quarta-feira, 31 de maio de 2023

Recepção de Lula a Maduro foi vexatória

 Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

O presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia FloresO presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia Flores (Evaristo Sá/AFP)

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

Editorial de O Globo, em 31.05.23

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