quarta-feira, 3 de maio de 2023

PF faz buscas na casa de Bolsonaro e prende ex-assessores

Seis pessoas foram presas, incluindo o tenente-coronel Mauro Cid Barbosa. Celulares de Bolsonaro e Michele são apreendidos. Investigação mira suspeita de fraude em certificados de vacinação da família do ex-presidente.

A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (03/05) buscas na residência de Jair Bolsonaro em Brasília e prendeu seis pessoas, entre elas ex-assessores do ex-presidente, incluindo o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid Barbosa e o ex-PM Max Guilherme.

Os telefones celulares de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michele Bolsonaro foram apreendidos pela PF. Bolsonaro não foi alvo de mandado de prisão, mas deverá depor ainda nesta quarta na PF.

A operação, batizada de Venire, investiga a inserção de dados fraudulentos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde, que teriam sido usados para garantir a entrada de Bolsonaro e membros do círculo do ex-presidente nos EUA, burlando a exigência de imunização. Ao todo, estão sendo cumpridos 16 mandados de busca e apreensão e seis mandados de prisão preventiva em Brasília e no Rio de Janeiro.

 A operação foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Um dos membros do círculo de Bolsonaro, o tenente-coronel Cid, que foi preso nesta quarta-feira, é um personagem frequente de escândalos. Seu nome já apareceu no inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos e mais recentemente ele foi um dos personagens centrais do escândalo envolvendo  joias sauditas avaliadas em milhões de reais.

Cid também é filho do general Mauro Cesar Lourena, um antigo colega de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras.

Outros alvos de mandado de prisão são os militares Sergio Cordeiro e Max Guilherme, que atuavam na equipe de segurança de Bolsonaro. Outro detido é o secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), onde os dados falsos teriam sido inseridos. 

Fraude para provar vacinação contra covid-19

A PF comunicou que está sendo feita análise do material apreendido durante as buscas e a realização de oitivas de pessoas que detenham informações sobre o caso. 

"As inserções falsas, que ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022, tiveram como consequência a alteração da verdade sobre fato juridicamente relevante, qual seja, a condição de imunizado contra a covid-19 dos beneficiários", destacou a PF.

"Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes impostas pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa", completou.

A PF não identificou quem chamou de "tais pessoas", mas a imprensa brasileira afirma que se trata de Bolsonaro, da filha dele, Laura, e de Mauro Cid e familiares deste. A falsificação teria garantido a entrada deles nos EUA, driblando as exigências locais de imunização obrigatória. 

Bolsonaro retornou ao Brasil em março de 2023 e desde então mora em sua casa em Brasília. O ex-presidente se notabilizou durante a pandemia por declarar publicamente que não tomaria a vacina e por espalhar desinformação sobre os imunizantes.

Ainda conforme a PF, o objetivo do grupo seria "manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19". 

As ações ocorrem dentro do inquérito policial que apura a atuação das chamadas milícias digitais, em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF). Os fatos investigados configuram crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

O ex-presidente negou qualquer fraude após a operação. "Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final. Em momento nenhum eu falei que tomei a vacina e não tomei."

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 03.04.23 (asj/ps  - Lusa, Agência Brasil, ots)

Entenda a operação da PF contra Bolsonaro

Novo caso de suspeita de falsificação de comprovantes de vacinação se soma à série de inquéritos que envolvem ex-presidente. Investigação também mira coronel que já foi personagem de outros escândalos.


A Polícia Federal (PF) realizou nesta quarta-feira (03/05) buscas na residência de Jair Bolsonaro em Brasília e prendeu seis pessoas, entre elas assessores do ex-presidente.

O telefone celular de Bolsonaro foi apreendido pela PF. Ao todo, foram cumpridos 16 mandados de busca e apreensão, que miram militares e políticos do Rio de Janeiro.

A operação, batizada de Venire, investiga a inserção de dados fraudulentos de vacinação contra a covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde, que teriam sido usados para garantir a entrada nos EUA de Bolsonaro e membros do círculo familiar e pessoal do ex-presidente, burlando a exigência de imunização.

Segundo a PF, o nome da operação é uma referência ao princípio Venire contra factum proprium, que em latim significa "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos"

A nova operação se soma a uma série de investigações em curso que envolvem o ex-presidente. Ao todo, Bolsonaro é alvo de oito inquéritos, que abordam suspeitas de participação no caso das milícias digitais, os ataques golpistas de 8 de janeiro, a tentativa de entrar ilegalmente no país com joias sauditas avaliadas em milhões de reais, ações para desestimular medidas de prevenção na pandemia, suspeita de interferência na PF, ataques ao sistema eleitoral, apologia ao estupro e vazamento de um inquérito sigiloso.

A operação desta quarta-feira foi autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), dentro do inquérito das milícias digitais.

Entenda a nova investigação contra Bolsonaro:

Fraude em comprovantes de vacinação

O esquema investigado pela PF aponta que dados falsos de vacinação teriam sido inseridos em dois sistemas do Ministério da Saúde – o Programa Nacional de Imunizações e a Rede Nacional de Dados em Saúde – entre novembro e dezembro de 2022, com o objetido de gerar compravantes fraudulentos de vacinação.

Teriam sido forjados comprovantes de vacinação dos seguintes personagens:

Ex-presidente Jair Bolsonaro

Laura Bolsonaro, filha de 12 anos de Jair e Michele Bolsonaro

Tenente-coronel Mauro Cid Barbosa

A mulher e a filha do coronel Cid

Segundo a TV Globo, os sistemas adulterados do Ministério da Saúde chegaram a indicar que duas doses de vacinas da Pfizer contra Covid teriam sido aplicadas em Jair Bolsonaro. Após a operação, o ex-presidente negou que ele e a filha tenham se imunizado.

Os suspeitos de participarem do esquema são investigados, segundo a PF, pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

De acordo com a PF, Bolsonaro tinha ciência da inserção fraudulenta de dados nos sistemas do Ministério da Saúde.

"Jair Bolsonaro, Mauro Cid e, possivelmente, Marcelo Câmara [os dois últimos assessores do ex-presidente] tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento", diz a PF. 

O objetivo da fraude

Segundo a investigação, o esquema fraudulento tinha como objetivo garantir que Jair Bolsonaro e membros do círculo, incluindo sua filha, Laura, e vários assessores e os familiares destes pudessem entrar nos EUA. Bolsonaro se notabilizou durante a pandemia por declarar publicamente que não tomaria a vacina e por espalhar desinformação sobre os imunizantes.

Pelas regras que entraram em vigor nos EUA desde 2021, a entrada a partir do exterior de viajantes não-cidadãos e não-residentes no país só é permitida com a apresentação de comprovante de vacinação. Recentemente, o governo americano informou que deve acabar com a exigência a partir de 11 de maio de 2023.

"Com isso, tais pessoas puderam emitir os respectivos certificados de vacinação e utilizá-los para burlarem as restrições sanitárias vigentes imposta pelos poderes públicos (Brasil e Estados Unidos) destinadas a impedir a propagação de doença contagiosa, no caso, a pandemia de Covid", diz a Polícia Federal.

Ainda segundo a PF, o grupo ainda teria como objetivo "seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a covid-19”, no que parece uma referência às ações do ex-presidente durante a pandemia, caracterizadas por sabotagem a medidas de prevenção, oposição à vacinação e campanhas de desinformação sobre a doença.

Bolsonaro abandonou o governo em 30 de dezembro e seguiu para o estado americano da Flórida junto com Michele e uma série de assessores, evitando a posse do seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Ele retornou ao Brasil em março.

A conexão Goiás e Duque de Caxias (RJ)

Segundo o jornal O Globo, o esquema de fraude nos dados de vacinação começou em Goiás, quando um médico da prefeitura de Cabeceiras preencheu a mão uma série de cartões de vacinação, que incluíam os nomes de Jair Bolsonaro, Laura Bolsonaro, o coronel Cid e familiares deste.

Membros do esquema tentaram então inserir os dados no sistema de dados do SUS da prefeitura de Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, com o objetivo de obter comprovantes oficiais, necessários para entrar nos EUA.

No entanto, segundo o jornal, o sistema de dados rejeitou a inserção, porque as vacinas indicadas constavam como um lote que havia sido distribuído em Goiás. Os membros do grupo, incluindo o coronel Cid, trocaram uma série de mensagens para tentar contornar o bloqueio. Eles acabaram conseguindo o número de outro lote de vacinas, distribuído no Rio de Janeiro, para inserir os dados sem problemas.

Segundo a reportagem do jornal, a PF descobriu que após imprimir os comprovantes, o grupo tentou apagar seus rastros. De acordo com o jornal, em 27 de dezembro de 2022 – poucos dias antes da viagem de Bolsonaro aos EUA – o grupo apagou os dados do sistema. Quem procurasse os dados não conseguiria encontrar os registros. Os dados só foram recuperados após uma perícia da PF.

Além dos membros de um núcleo duro formado por ex-assessores, a PF também investiga políticos do Rio de Janeiro que teriam intermediado o esquema, como o deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ), irmão do ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis, e o ex-vereador carioca Marcello Siciliano (PP-RJ).

Os presos

Tenente-coronel Mauro Cesar Barboda Cid

A Polícia Federal colheu provas do esquema por meio da quebra de sigilo das comunicações do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ou "coronel Cida", que atuou como ajudante de ordens do ex-presidente. Preso nesta quarta, Cid é um personagem que já apareceu em outros escândalos da era Bolsonaro. Ele é filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, um antigo colega de Bolsonaro na Academia das Agulhas Negras. Durante o governo Bolsonaro, o coronel Cid se tornou um notório "faz tudo" do então presidente.

O nome do tenente-coronel já apareceu no inquérito do STF que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos e também é apontado como participante em ações de desinformação executadas por Bolsonaro para contestar a segurança das urnas eletrônicas e vacinas.

No último caso, a PF apontou que ele teve participação direta na notória live de Bolsonaro que associou falsamente vacinas ao risco de contrair HIV.  Mais recentemente, Cid foi um dos personagens centrais do escândalo envolvendo a entrada ilegal de joias sauditas avaliadas em milhões de reais.

João Carlos de Sousa Brecha

O secretário municipal de Governo de Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha, suspeito de inserir de maneira fraudulenta os dados de vacinação para beneficiar as famílias de Bolsonaro e do coronel Cid. Brecha faz parte do grupo político do ex-prefeito da cidade, Washington Reis, um aliado de Bolsonaro.

Max Guilherme

Sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Max Guilherme atua como segurança de Bolsonaro. Na última segunda-feira, ele esteve ao lado do ex-presidente durante uma visita à Agrishow, feira de tecnologia agrícola que ocorre anualmente em Ribeirão Preto (SP). Ele também fez parte da comitiva que viajou com Bolsonaro aos EUA no final de 2022, antes da posse de Lula. Hoje ele ocupa um dos cargos de assessor a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente.

Sergio Rocha Cordeiro

Capitão da reserva, Sérgio Rocha Cordeiro também atua como segurança de Bolsonaro e esteve na comitiva que foi aos EUA. Ele também é dono do imóvel no Diustrito Federal onde o ex-presidente passou a fazer suas lives de campanha em 2022 após ser impedido pela Justiça de usar o Alvorada para tal finalidade. Assim como Guilherme, Cordeiro ocupa um dos cargos de assessor a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente.

Luis Marcos dos Reis

Antigo supervisor a Ajudância de Ordens da Presidência da República, o segundo-sargento Luis Marcos dos Reis trabalhou diretamente com Bolsonaro e o coronel Cid desde o início de 2019 até agosto de 2022. Depois disso, foi transferido para um cargo no Ministério do Turismo. Nos anos 2010, ele também atupou como motorista de Eduardo Villas-Boas, ex-comandante do Exército.

Ailton Moraes Barros

Ex-major do Exército, Ailton Gonçalves Moraes Barros foi candidato pelo PL a deputado estadual no Rio de Janeiro em 2022. Ele se apresentou como "01 do Bolsonaro" no Rio de Janeiro durante a campanha. Ele conseguiu a suplência durante a eleição.

Possíveis implicações nos EUA

Segundo o site da embaixada americana no Brasil, quem chega aos EUA precisa estar ciente que informar dados falsos para entrar no país pode ser indicado por fraude.

"As consequências são sérias. Se você cometer fraude, você não receberá o benefício imigratório que você busca. Você também pode enfrentar multas ou prisão ", diz o site.

Segundo a legislação americana, a punição para quem fornece dados falsos pode chegar a até 10 anos de prisão.

Não está claro se Bolsonaro mostrou algum comprovante falso para entrar nos EUA. Como viajou aos EUA quando ainda cumpria mandato, o ex-presidente ainda contava com privilégios diplomáticos, que dispensavam apresentação de comprovantes.

Reações

Após a operação, Bolsonaro negou qualquer fraude e disse que não tomou a vacina contra a covid-19, assim como sua filha, Laura Bolsonaro. "Não tomei a vacina. Nunca me foi pedido cartão de vacina [para entrar nos EUA]. Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina, ponto final. Nunca neguei isso. Havia gente que me pressionava para tomar, natural. Mas não tomava, porque li a bula da Pfizer", disse o ex-presidente.

Em sua conta no Instagram, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro também se manifestou e negou que seu celular tenha sido apreendido, como foi divulgado mais cedo pela imprensa. "Hoje a PF fez uma busca e apreensão na nossa casa, não sabemos o motivo e nem o nosso advogado não teve acesso aos autos. Apenas o celular do meu marido foi apreendido. Ficamos sabendo, pela imprensa, que o motivo seria 'falsificação de cartão de vacina' do meu marido e de nossa filha Laura. Na minha casa, apenas EU fui vacinada", escreveu Michelle.

O presidente do PL, partido de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto defendeu o ex-presidente em um tuite. "Bolsonaro é uma pessoa correta, íntegra, que melhorou o país e procurava sempre seguir a lei". Valdemar ainda disse que confia que todas as dúvidas da Justiça serão esclarecidas e "que ficará provado que Bolsonaro não cometeu ilegalidades".

O presidente Lula evitou comentar publicamente o caso envolvendo seu adversário político, mas publicou uma mensagem no Twitter que foi interpreta por seus apoiadores como uma pequena celebração. "Bom dia e boa quarta-feira!", escreveu o presidente, quando a operação já havia sido divulgada pela imprensa.

Já o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, foi direto. "Falsificar dados oficiais do Governo para falsificar documentos pessoais e corromper menor de idade para entrar em território estrangeiro descumprindo as leis locais. Filme de criminoso internacional? Não, o ex-presidente da República! Bolsonaro precisa pagar pelos seus crimes!", escreveu o ministro no Twitter.

Jean-Philip Struck, o autor desta reportagem, é Repórter do Deutche Welle. Publicado originalmente em 03.05.23

sábado, 29 de abril de 2023

Bolsonarismo, risco para o agronegócio

‘Desconvite’ a ministro da Agricultura para a solenidade de abertura da Agrishow, na próxima segunda-feira, quebra tradição e não condiz com a importância do setor agrícola

O agronegócio puxa o crescimento da economia brasileira e exporta alimentos para o mundo inteiro. Setor pujante, deve estar no centro das preocupações de qualquer governo, com políticas adequadas de crédito e fomento agrícola, além de investimentos em pesquisa para aumentar a produtividade no campo − algo, aliás, que já é feito exitosamente há décadas. Se o Brasil quer mesmo deixar o subdesenvolvimento para trás, precisa dobrar a aposta no que dá certo. Sem perder de vista, porém, que o caminho de sucesso trilhado até aqui pelo agronegócio foi construído a muitas mãos, com atores-chave remando no mesmo rumo. A começar pelo governo federal, esteja quem estiver na Presidência da Repú

É surpreendente, então, que a edição deste ano da maior feira de tecnologia agrícola do Brasil, a Agrishow, esteja prestes a produzir uma cena que não deveria interessar a ninguém: a ausência de representantes do governo federal na cerimônia de abertura do evento, no dia 1.º de maio, em Ribeirão Preto (SP). Detalhe: não por iniciativa do governo, já que o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, era presença confirmada − assim como também estava prevista a ida do vice-presidente e ministro da Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin. A decisão, conforme informou o Valor, partiu da organização do evento, que achou por bem “desconvidar” o ministro, uma vez que o ex-presidente Jair Bolsonaro deverá comparecer à solenidade do dia 1.º.

Ora, saias-justas fazem parte do dia a dia da política, e é preciso saber lidar com elas. Nada que os encarregados do cerimonial não possam resolver na hora de definir assentos ou por onde cada convidado vai entrar e sair. A abertura de uma feira do porte da Agrishow não precisa ter ares de confraternização − e o compromisso das autoridades ali reunidas, antes de mais nada, deve ser com o avanço de um setor vibrante da economia nacional e, portanto, com o desenvolvimento do País.

Mas o bolsonarismo não consegue conversar com quem não segue sua cartilha. Em vez disso, queima pontes e encara adversários como inimigos. Uma triste lição que ficou evidente nos últimos quatro anos, com efeitos deletérios nas mais diversas áreas.

Resta lamentar que tal atitude possa seduzir representantes do agronegócio, a ponto de macular a abertura da Agrishow − cuja perspectiva, felizmente, é bater recordes de vendas e atrair milhares de visitantes. Vale lembrar que o evento tem patrocínio do Banco do Brasil e, como informou o Estadão, o ministro Fávaro deveria anunciar mais de R$ 1 bilhão em recursos suplementares para a equalização de crédito para o Plano Safra 2022/23.

Divergências políticas, por óbvio, são o oxigênio da democracia, e é natural que produtores rurais, assim como os demais eleitores, se identifiquem com partidos e governantes que melhor representem seus interesses. Em poucos meses de governo Lula, o Movimento dos Sem Terra (MST) voltou a afrontar a lei e a invadir propriedades, o que deve ser repudiado e combatido por todas as autoridades do País – como, aliás, fez o próprio ministro Fávaro, uma das vozes que prontamente condenaram as recentes invasões de terra pelos baderneiros do MST.

Note-se que até mesmo para divergir cabe dialogar, e exemplo disso é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas − com quem Jair Bolsonaro deverá ir à Agrishow. Apadrinhado por Bolsonaro nas últimas eleições, o governador tem buscado agir republicanamente desde que tomou posse. Sua relação com o governo federal pauta-se, acima de tudo, pelos interesses do Estado e da população. Corretamente, ele foi a Brasília para a reunião de governadores com o presidente Lula da Silva após a tentativa de golpe no 8 de Janeiro. Também somou esforços com o presidente após a tragédia provocada pela chuva no litoral norte paulista. É com esse espírito que se governa e faz política.

O “desconvite” ao ministro da Agricultura, lamentavelmente, caminha em outra direção. Fiel retrato dos estragos que o bolsonarismo é capaz de provocar, será a quebra de uma tradição, que não reflete a modernidade e a pujança do agronegócio brasileiro.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.04.23

Lei desmoralizada

Anistia para partidos tira sentido de legislação que o próprio Congresso aprovou

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Beto Barata/Folhapress

Armand Jean du Plessis (1585-1642), mais conhecido como cardeal de Richelieu, ministro de Luís 13 e arquiteto do absolutismo francês, certa vez afirmou que criar uma lei e não mandar executá-la significava o mesmo que autorizar a coisa que se queria proibir.

Richelieu não conhecia o Congresso brasileiro. Nosso Parlamento não apenas aprova normas sem se preocupar com sua execução como ele próprio, quando seus interesses estão em jogo, se encarrega de aprovar regra subsequente que esvazia inteiramente a anterior.

É bem esse o sentido da proposta de emenda constitucional 9/2023, com apoios da direita à esquerda.

O texto traz três dispositivos. No primeiro, ele anistia as legendas que não destinaram os valores previstos em lei para campanhas de mulheres e negros; no segundo, proíbe a Justiça Eleitoral de aplicar qualquer penalidade às siglas por irregularidades em prestações de contas; e, no terceiro, autoriza partidos a receberem doações de empresas para quitar dívidas contraídas até agosto de 2015.

Louve-se a objetividade dos parlamentares. No primeiro mecanismo, contrariam a lei de cotas de financiamento de candidaturas; no segundo, disparam contra o sistema de freios e contrapesos, pelo qual um Poder fiscaliza e modula o outro; no terceiro, debilitam o veto às doações empresariais, decisão do Supremo Tribunal Federal depois transformada em lei.

Pode-se discutir a oportunidade de cada uma dessas medidas. As cotas de financiamento, por exemplo, são polêmicas. Aqueles mais identificados com as questões identitárias as consideram muito tímidas —gostariam de ver instaurada uma cota mínima de parlamentares mulheres e negros.

Já os liberais mais radicais julgam que mesmo essa intervenção sobre as campanhas já é excessiva. Para eles, não é necessária nenhuma regra de alocação de recursos que limite as decisões partidárias.

Mas, se o Parlamento está convencido de que as regras das cotas de financiamento (ou quaisquer outras) não são as mais adequadas, deve propor uma discussão sobre o mérito, que pode ou não resultar em alteração.

O que não tem cabimento é promover uma tratorada constitucional que tire a eficácia daquilo que o próprio Legislativo já decidira.

Ao fazê-lo, os congressistas não apenas autorizam o que se queria proibir, para retomar o tropo de Richelieu, como ainda contribuem para erodir a própria ideia de que as leis devem ser respeitadas —o que tende a produzir efeitos daninhos sobre a institucionalidade.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 29.04.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Golpismo não é efeito colateral de remédio

Jair Bolsonaro nunca precisou de medicamentos para dar vazão aos seus desígnios liberticidas. O problema nem de longe está no remédio. O problema é o prontuário do paciente

O ex-presidente Jair Bolsonaro escarneceu da inteligência e da memória de muitos brasileiros ao dizer, durante depoimento à Polícia Federal (PF), que publicou “por equívoco” em uma rede social um vídeo que lançava suspeitas infundadas sobre o resultado da eleição. É curioso que um “equívoco” desses tenha sido cometido logo por Bolsonaro, tido como um ás no manuseio de smartphones. Mas, vá lá. A explicação dada pelo ex-presidente é que ele estaria fora de seu juízo normal, “sob tratamento com morfina” para aliviar fortes dores abdominais. Ora, a farmacologia descreve uma série de efeitos que o uso de morfina pode provocar no organismo, mas incitação ao golpe não está entre eles. Ademais, o problema nem de longe está no remédio; está no prontuário do paciente.

Por mais estapafúrdia que tenha sido a versão apresentada por Bolsonaro à PF, que investiga a responsabilidade do ex-presidente pelo 8 de Janeiro, nem original ela é. Não faz muito tempo, a deputada norte-americana Marjorie Taylor Greene, do Partido Republicano, talvez a mais fiel adoradora de Donald Trump, publicou vários tuítes de conteúdo racista, islamofóbico e antissemita. Sob a ameaça de ter de responder por suas palavras na Justiça, a parlamentar alegou que estaria sob efeito de um ansiolítico quando fez as publicações. Foi desmentida peremptoriamente pelo laboratório, sob a alegação de que o tal medicamento poderia apresentar muitos efeitos colaterais, mas não transformava ninguém em uma pessoa preconceituosa.

É importante considerar que o vídeo golpista foi publicado por Bolsonaro no dia 10 de janeiro, enquanto ele se homiziava na Flórida. Veio a público, portanto, apenas 48 horas depois do assalto às sedes dos Poderes em Brasília perpetrado por uma horda de bolsonaristas furiosos pela vitória do presidente Lula da Silva. Ou seja, o País mal estava refeito da mais grave tentativa de subversão da ordem democrática desde a ditadura militar, enquanto Bolsonaro jogava mais gasolina na fogueira ao espalhar uma teoria da conspiração segundo a qual a vitória de Lula decorrera de um conluio entre a cúpula do Poder Judiciário, e não da supremacia da vontade popular.

Em que pese a extrema gravidade do vídeo, sobretudo tendo sido difundido por ninguém menos que o candidato derrotado na eleição, é preciso dar àquela postagem a exata dimensão que ela tem. A publicação golpista se tratou de uma entre uma infinidade de atitudes e palavras de Bolsonaro nos últimos quatro anos para desqualificar o sistema eleitoral brasileiro, seus adversários políticos e as instituições democráticas, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nesse sentido, poder-se-ia considerar que Bolsonaro pudesse mesmo estar atrapalhado das ideias caso, ao invés de publicar o vídeo que publicou, tivesse publicado outro, de teor diametralmente oposto, reconhecendo a vitória de seu adversário na eleição. Todo o seu comportamento ao longo do mandato indicava um desfecho exatamente como aquele a que o País tristemente assistiu no segundo domingo do ano. A suposta conspirata entre ministros do STF e do TSE em tudo se coaduna com o discurso de Bolsonaro. Estranho seria se acaso ele posasse como genuíno democrata.

A versão de Bolsonaro para sua postagem sediciosa nas redes sociais soa tão abilolada que, talvez, o ex-presidente não tenha se dado conta de que ele possa ter lançado suspeitas sobre muitos atos de sua administração. Ora, Bolsonaro assumiu a Presidência depois de ter sobrevivido a um grave atentado a faca. Logo, já iniciou o mandato fazendo uso de medicações fortes para dar conta das dores decorrentes daquela agressão e de uma série de cirurgias.

Seria o caso de suspeitar que algumas de suas decisões de governo foram tomadas sob efeito desses medicamentos? É evidente que não. Eis por que o depoimento de Bolsonaro à PF não se prestou a outra coisa senão a uma tentativa de tirar dos ombros do ex-presidente a responsabilidade por ter incitado, para dizer o mínimo, uma insurreição contra sua derrota.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.04.23

A adolescência irresponsável da esquerda

Em nota, PT e mais seis partidos da base prometem trabalhar para desidratar ainda mais a proposta de arcabouço fiscal. Fascinados com a possibilidade de gastar, não aceitam limites

No dia 25 de abril, sete partidos de esquerda – PT, PSB, PDT, PV, PSOL, PCdoB e Rede – publicaram uma nota que parece ter sido escrita pela oposição, e não por legendas que, a rigor, fazem parte da base aliada do governo. Em vez de manifestarem apoio à principal proposta do Executivo apresentada até agora ao Legislativo – o Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/2023, sobre o novo arcabouço fiscal –, elas informam que vão trabalhar por mudanças no texto. Querem “debater as novas regras fiscais encaminhadas pelo governo ao Congresso Nacional, de forma a aperfeiçoá-las às necessidades do programa eleito nas urnas e à reconstrução do País”.

É realmente peculiar o modo de atuar dessas legendas de esquerda, capitaneadas – eis o paradoxismo máximo – pelo próprio partido do presidente da República, o PT. Elas estão no governo federal, chefiam Ministérios, têm filiados presentes em toda a estrutura da União, participam prioritariamente na distribuição das verbas públicas, mas não querem a responsabilidade de ser governo. Querem brincar de ser oposição.

O mais estranho é que a proposta de novo arcabouço fiscal foi cuidadosamente elaborada para atender às demandas e idiossincrasias dos partidos de esquerda. Trata-se de texto tímido, sem nenhuma regra especialmente exigente e permeado de exceções liberando o governo para gastar. Mesmo assim, as sete legendas querem desidratar ainda mais a proposta no Congresso.

Com esse modo de atuar, os partidos de esquerda explicitam uma profunda e perigosa imaturidade política. Se nem eles estão fechados com o texto do governo, quem estará? A proposta de novo arcabouço fiscal será aprovada por passe de mágica?

Tal atitude de intransigência reitera também outro velho traço das legendas de esquerda: a incapacidade de diálogo e de negociação. Em sua pretensão de superioridade moral e de hegemonia política, elas não conseguem sequer chegar a uma posição consensual com seu próprio governo. Fica então a pergunta: se agem assim com seus aliados, esses partidos serão capazes de assumir compromissos com outras forças e grupos políticos?

Sob a aparência de defesa apaixonada de princípios e posições ideológicas, o que os sete partidos fazem é desautorizar, na prática, o governo de Lula da Silva. Julgam que o trabalho feito por seu grupo político não expressa o interesse público, precisando ser modificado para – assim diz a nota – “levar em conta as necessidades do povo brasileiro”.

A confirmar a grave incompreensão dessa turma sobre a política e o País, o texto afirma que o tal aperfeiçoamento do arcabouço fiscal seria necessário para “garantir que seja executado o programa que nos levou à vitória nas urnas”. É simplesmente acintosa a manipulação da realidade – talvez fosse mais correto dizer, “explícito negacionismo” – dessa turma. As eleições de 2022 não deram aval a nenhum programa de governo irresponsável, menos ainda acolheram as intransigências ideológicas dos partidos de esquerda. Até mesmo porque Lula da Silva não apresentou nenhum programa de governo ao eleitor.

Entre todas essas incompreensões, negacionismos e pretensas espertezas, quem mais sofre é o País. O interesse público fica desamparado. E os problemas nacionais permanecem à espera de um mínimo de responsabilidade, que as legendas de esquerda se esforçam em afirmar, com todas as letras, que não estão dispostas a ter. O fato de elas estarem no governo não as leva nem mesmo a simular alguma preocupação com as questões reais que afligem a população. Estão, antes, fascinadas com a oportunidade de gastarem recursos públicos em seus projetos e em seus rincões. E – como diz a mensagem da nota conjunta – farão ferrenha oposição a quem queira fixar limites, exigir alguma racionalidade ou lembrar que o País é um tanto maior que seus torcidos e limitados interesses.

Que os adultos na sala, especialmente no Congresso, não se deixem impressionar com as birras dos partidos de esquerda. Elas são velhas conhecidas – e atendê-las nunca fez o País andar para a frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.04.23

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Democracias prisioneiras do medo

A perspectiva de uma reedição da disputa entre Biden e Trump nos EUA expõe dilemas de democracias que, como no Brasil, têm dificuldade de encontrar sangue novo e ideias novas

O presidente americano, Joe Biden, anunciou que concorrerá à reeleição em 2024. No fim do ano passado, o ex-presidente Donald Trump, derrotado por Biden em 2020, também anunciou que concorrerá à nomeação dos republicanos. É improvável que os democratas se amotinem contra o incumbente. As primárias republicanas são mais incertas, mas, hoje, Trump lidera as intenções de voto dos afiliados do partido.

O fenômeno desconcertante é que as pesquisas apontam que só 5% dos americanos gostariam de ver a disputa Biden-Trump reeditada – 70% não gostariam que Biden disputasse e a mesma proporção não gostaria que Trump disputasse. A se confirmar uma repetição de 2020, será uma batalha pela menor rejeição.

A disputa à reeleição de um incumbente é – não só, mas principalmente – um referendo. Biden tem resultados razoáveis. Valendo-se de sua experiência de 36 anos no Senado, ele conseguiu aprovar reformas no sistema de saúde e um pacote de US$ 1 trilhão para investimentos em infraestrutura e transição para a economia verde. Na política externa, fez mais do que ninguém para frear o assalto da Rússia à Ucrânia e tem se empenhado em revigorar as alianças ocidentais.

Mas não é nisso que aposta para ganhar as eleições. O vídeo em que anunciou sua candidatura não faz menção a conquistas passadas ou futuras, exceto uma: vencer Trump. Após uma sucessão de imagens da invasão do Capitólio e referências a “extremistas MAGA” (sigla para Make America Great Again, lema trumpista), Biden arrematou: “Vamos terminar o serviço”, insinuando que só ele pode fazê-lo. O anúncio de Trump também se resumiu a reciclar o medo: dos imigrantes, da epidemia de opioides, do crime, da sexualização de crianças, da China e outras ameaças que, de novo, só ele poderia superar.

A aposta de Biden pode render. Sua impopularidade líquida (a diferença entre os que o aprovam e desaprovam) é de 10 pontos; a de Trump, 19. Sua inclinação a abraçar o protecionismo e subsídios à indústria tem apelo popular e responde às ansiedades de potenciais eleitores de Trump com a globalização. O disruptivo Trump, por sua vez, motiva como ninguém os democratas a irem às urnas, desmobiliza os republicanos moderados e afasta os eleitores independentes, decisivos para as eleições americanas. Após 2016, Trump só colecionou reveses eleitorais.

Ainda assim, não se pode subestimá-lo. Os problemas que ele exagera não deixam de ser reais. A economia, crucial para um incumbente, ainda atravessa uma turbulência: a inflação (em parte pelos gastos de Biden) pressiona e os riscos de recessão não estão afastados. Uma crise geopolítica por viradas inusitadas na Ucrânia ou conflitos na Ásia pode desestabilizar o governo de Biden, ecoando o desastre no Afeganistão. E sua aposta pode malograr: as pesquisas de intenção de voto sugerem que ele venceria Trump, mas perderia para outros presidenciáveis republicanos.

Seja lá qual for seu resultado, a disputa presidencial que se avizinha expõe uma exaustão da política americana. Há uma dificuldade de encontrar ideias novas e sangue novo. O incumbente democrata terá 82 anos em 2024, enquanto Trump, seu possível adversário, terá 78. Ou seja, a política dos EUA parece ter sido incapaz de produzir líderes mais jovens depois do fenômeno Barack Obama, que se elegeu aos 47 anos.

Não é um fenômeno exclusivo dos EUA. O último segundo turno no Brasil registrou a maior média etária em toda a redemocratização. Se os dois candidatos tivessem enfatizado suas propostas, ficaria explícito que foram forjadas nas mentalidades de esquerda e de direita dos anos 70. Mas não precisaram, porque ambos também apostaram no medo um do outro. Ambos tinham altos índices de rejeição, e venceu o que teve ligeiramente menos.

EUA e Brasil são as duas maiores democracias do Ocidente. Assim como em outras, as disputas políticas estão sendo orientadas mais à repetição do que à inovação e estão sendo vencidas mais pelo temor do que pela esperança. Independentemente das preferências ideológicas à esquerda ou à direita, essa política gerontocrática e amedrontada sugere um esgotamento cívico que pede um profundo exame de consciência por parte da sociedade.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.04.23

terça-feira, 25 de abril de 2023

Sem Bolsonaro, não haveria 8 de Janeiro

CPMI do 8/1 tem tudo para ser uma grande confusão. Mas que os bolsonaristas não se enganem: falar daqueles eventos é expor a incontornável responsabilidade de Bolsonaro

Prevê-se para amanhã a leitura do pedido de instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os atos do 8 de Janeiro. É preciso reconhecer: apesar da resistência do governo federal, poucas situações da vida nacional mereceram de forma tão cristalina a instauração de uma comissão de investigação por parte do Congresso como os eventos golpistas em Brasília do início do ano. O Poder Legislativo não podia ignorar tal barbárie cometida contra o Estado Democrático de Direito.

Ao mesmo tempo, poucas vezes na história nacional foi tão nítido o risco de uma CPMI ser convertida, mesmo antes de instaurada, no exato oposto de sua finalidade constitucional. Há indícios abundantes de que, em vez de investigar, apurar e esclarecer, o objetivo da comissão é não apenas confundir e dificultar o conhecimento dos fatos e das respectivas responsabilidades, mas reescrever a história.

Diante dessa manobra gestada por alguns parlamentares, torna-se necessário relembrar o óbvio. O 8 de Janeiro não é um caso sobre o qual faltam provas ou que os fatos sejam pouco conhecidos. Na verdade, há excesso de provas. Ao longo de anos, o País assistiu à trajetória de enfrentamento do bolsonarismo contra as instituições democráticas – de forma muito concreta, contra a Justiça Eleitoral –, alimentando a resistência a todo e qualquer resultado das urnas que lhe fosse desfavorável e criando as condições políticas e sociais para uma ruptura institucional.

Após o segundo turno das eleições de 2022, mais um passo de desestabilização democrática e de desordem republicana foi dado com acampamentos em todo o País pedindo intervenção militar e a manutenção de Jair Bolsonaro no poder. Não foi mero gesto tresloucado de alguns apoiadores mais exaltados. Basta ver que lideranças importantes do bolsonarismo atuaram para qualificar as manifestações golpistas, muitas delas em áreas militares, de exercício legítimo da liberdade de expressão.

Eis o fato que a CPMI do 8 de Janeiro não pode negar. Os lamentáveis eventos do segundo domingo deste ano não foram fruto de geração espontânea, tampouco se enquadram em meros atos de vandalismo. A cada novo elemento probatório – seja uma gravação das câmeras de segurança do Palácio do Planalto, um vídeo postado nas redes sociais pelos manifestantes, uma minuta de golpe na casa do último ministro da Justiça do governo Bolsonaro ou uma notícia de atuação aparelhada da Polícia Rodoviária Federal (PRF) –, torna-se mais nítida a digital do bolsonarismo.

Sem Jair Bolsonaro, não haveria 8 de Janeiro. É impossível narrar os fatos relacionados à tomada das sedes dos Três Poderes sem incluir o ex-presidente que, em toda sua carreira política, atacou a ordem democrática da Constituição de 1988 e defendeu a ditadura militar. Nesse sentido, o trabalho investigativo do Congresso pode não apenas ajudar a explicitar o inegável protagonismo de Jair Bolsonaro no curso de eventos que culminaram no 8 de Janeiro – ele se valeu até de uma reunião com embaixadores para criar condições para o golpe –, mas também colher novos elementos que sirvam para a devida responsabilização no âmbito da Justiça penal.

Essa é a grande cegueira dos parlamentares bolsonaristas. Acham que vão controlar o desenrolar dos trabalhos da comissão de inquérito tal como controlam as versões delirantes disseminadas por suas redes sociais. A CPMI do 8 de Janeiro, que nasce um tanto desacreditada, pode ser ocasião para o Congresso, em respeito à sua própria história e existência, expor a farsa bolsonarista e ajudar a identificar os envolvidos na intentona golpista. Afinal, sabe-se como uma CPI começa, mas não como ela termina.

Como já se criticou neste espaço, o governo de Lula da Silva tratou equivocadamente várias vezes o 8 de Janeiro, utilizando-o como pretexto seja para não enfrentar os problemas nacionais, seja para aprofundar divisões na sociedade. O bolsonarismo, no entanto, vai além. Insiste em usar o próprio crime em benefício político. Que os fatos venham a público e escancarem a sem-vergonhice.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.03.23

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Favorito para assumir GSI, general que foi 'sombra' de Dilma se reúne com Lula

Para aliados, movimento indica que Lula não deve mexer na estrutura da pasta

General Marcos Antonio Amaro dos Santos, durante posse como chefe da Casa Militar da PresidênciaGeneral Marcos Antonio Amaro dos Santos, durante posse como chefe da Casa Militar da Presidência Roberto Stuckert Filho / Divulgação/Presidência

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já tem um favorito para assumir o comando do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) após a demissão do general Gonçalves Dias. Na quinta-feira, horas antes de embarcar para Portugal, ele chamou o general da reserva Marco Antonio Amaro dos Santos para uma reunião no Palácio do Planalto. A rapidez com que buscou um substituto, segundo aliados, indica que Lula não deve mexer por enquanto na estrutura da pasta, como defende uma ala do governo.

(Queda de braço: Saída de Gonçalves Dias do GSI fortalece diretor-geral da Polícia Federal)

(GSI: Múcio defende militar na chefia e expõe divergência no governo sobre mudanças no órgão)

O general Amaro, como é conhecido, foi uma espécie de sombra de Dilma, primeiro na Secretaria de Segurança Presidencial e, depois, como ministro-Chefe da Casa Militar, pasta que substituiu o GSI no governo da petista. Ele ficou no posto até o impeachment em maio de 2016. Depois, Amaro foi comandante militar do Sudeste e chefe do Estado-Maior do Exército. O general foi para a reserva em janeiro.

O encontro com Amaro foi um dos últimos compromissos de Lula antes da viagem à Europa. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, também participou da reunião. O presidente ficou de conversar novamente quando retornar da Europa, na quinta-feira.

A saída de Gonçalves Dias deu força a um movimento pela extinção do órgão, tradicionalmente comandado por militares. A defesa dessa solução é encabeçada pelo delegado federal Alexsander Castro de Oliveira, que comanda a Secretaria Extraordinária de Segurança Imediata do Presidente da República.

O delegado-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, responsável pela indicação de Oliveira, também participa dessa articulação. A extinção do GSI conta ainda com o apoio da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja.

A favor da manutenção do GSI sob comando militar estão Rui Costa e o ministro da Defesa, José Múcio. Em Portugal, Lula disse que decidirá se a pasta será comandada por um civil ou um militar quando voltar ao país. Na viagem, Múcio defendeu publicamente a escolha de um militar o GSI.

A ala do governo que trabalha para o ministério continuar em seu formato tradicional argumenta que a mudança provocaria um grande desgaste com os militares, num momento em que Lula trabalha para pacificar as relações com a caserna.

De forma interina, o GSI está segundo comandado pelo jornalista Ricardo Cappelli, secretário executivo do Ministério da Justiça. A sua escolha foi anunciada no mesmo dia da demissão de Gonçalves Dias

A Secretaria Extraordinária de Segurança Imediata do Presidente da República, responsável pela proteção do chefe do Executivo, foi criada em janeiro para atuar até 30 de junho, enquanto o governo trabalha na “desbolsonarização” do GSI. A nova estrutura é formada predominantemente por policiais federais.

Sérgio Roxo, de Brasília - DF para O GLOBO, em 24.04.23

Lula é um negacionista de si próprio

Quando o caldo entorna, petista camufla suas pegadas com falsas narrativas, ecoadas e legitimadas por comunicadores amigos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante entrevista, em Lisboa, após particupar da XIII Cimeira Luso-Brasileira Foto: PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP - 22/4/23

Em Portugal, Lula negou (“eu nunca igualei os dois países”) o Lula da China (“a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois”), o Lula dos Emirados Árabes Unidos (“a decisão da guerra foi tomada por dois países”; Putin e Zelenski não tomam “a iniciativa de parar”), o Lula do Brasil (“quando um não quer, dois não brigam”) e o Lula da revista Time (“ele é tão responsável quanto o Putin, porque numa guerra não tem apenas um culpado”).

Para Lula mudar de princípios, basta mudar Lula de ambiente. Repercutindo a propaganda russa, ele vem adulando com falsas equivalências o tirano que mandou invadir e atacar um país democrático vizinho; culpando a vítima pela invasão; e acusando os EUA e a Europa, que saíram em socorro da Ucrânia, de incentivarem a guerra e darem “contribuição para a continuidade” dela.

(A CPI vem aí e Lula alimenta o bolsonarismo, que é craque em inverter a verdade)

Como calhou de Portugal ficar na Europa, Lula foi questionado por uma repórter local “se mantém essas palavras” e, enquanto pensava em como sair da saia-justa, precisou fingir que não entende o português do país (cobrando que ela falasse “mais perto do microfone” e, diante da repetição, dizendo “sinceramente, eu não consigo entender”), até que seu homólogo, Marcelo Rebelo, “traduziu” a pergunta em seu ouvido e ele descaradamente negou as falas anteriores.

Lula é uma negação. Um negacionista de si próprio. Seus métodos não mudam.

Quando membros do Gabinete de Segurança Institucional apareceram com golpistas em cenas do 8 de janeiro, Lula vazou, por exemplo, a alegação de que havia pedido reiteradas vezes a Gonçalves Dias acesso às imagens das câmeras de segurança do Palácio do Planalto e tinha ouvido do então ministro-chefe do GSI que não seria possível. Por isso, alegaram aliados, ficou bastante irritado.

Há gente ingênua para acreditar, de novo, que, mesmo tratando-se de indicado dele, de sua mais alta confiança, Lula não sabia de nada e foi traído, o expediente número 1 do playbook lulista, também usado no mensalão. O governo, revelou o Estadão, ainda tentou esconder até 2028 as imagens, que indicam, segundo o ministro do STF Alexandre de Moraes, “a atuação incompetente das autoridades responsáveis pela segurança interna”, “inclusive com a ilícita e conivente omissão de diversos agentes do GSI”.

Quando o caldo entorna, Lula camufla suas pegadas com falsas narrativas, ecoadas e legitimadas por comunicadores amigos, todos eles com empregos garantidos durante seu mandato em mercados dependentes de verbas de governo, como os de TV e rádio.

É um cinismo sem fim.

Felipe Moura Brasil, o autor deste artigo, é joprnalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.23

Contradições da esquerda

O PT no poder esteve e está imerso em dilemas semelhantes aos da social-democracia alemã no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20

A social-democracia alemã, no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, era um partido marxista inserido numa sociedade capitalista que se desenvolvia rapidamente, graças à indústria têxtil e, depois, à mineração e à metalurgia. Na perspectiva marxista, sua finalidade última (Endziel) era a implantação de uma sociedade comunista, baseada nos avanços da “luta de classes”, tendo como desfecho a revolução, identificada à salvação da Alemanha e da humanidade enquanto tal. No entanto, tal formulação era de pouca valia na condução dos assuntos corriqueiros e práticos do partido, que tinha se tornado uma grande organização, baseada em sindicatos fortes, com uma folha expressiva de salários e tendo suas próprias empresas, das quais extraía lucro.

Politicamente, propugnava pelo sufrágio universal, pela defesa da democracia, pela liberdade de imprensa (o partido era proprietário de vários jornais importantes) e por constituir uma forte representação parlamentar. Em seu combate social, estava voltado para a consolidação da previdência para os trabalhadores (implantada por Bismarck), melhores salários, redução da jornada de trabalho, entre outras medidas de melhorias sociais. Acontece, porém, que havia uma contradição evidente entre a narrativa marxista, com seus objetivos revolucionários, e a prática do partido, que era essencialmente reformista, voltada para uma luta no interior da sociedade capitalista.

O secretário-geral do partido, August Bebel, um homem pragmático, procurava equilibrar-se entre a retórica marxista e uma prática dela distante. Na sua ala mais à esquerda estava Rosa Luxemburgo, de pouca influência no aparelho partidário, pregando a revolução e o levante de massas do proletariado. Em sua ala mais à direita estava Eduard Bernstein, companheiro de Engels no final de sua vida e homem atento às mudanças em curso na economia, na sociedade e na política. Foi o grande teórico reformista de sua época, rompendo com a revolução e o marxismo, e propugnando pelo reconhecimento teórico da prática social-democrata. Quase terminou, por isso, expulso do partido, e não o foi graças à intervenção de Bebel e de Victor Adler, líder da social-democracia austríaca. Aliás, Bernstein foi a grande orientação da social-democracia alemã do pós-guerra, tendo sido uma figura emblemática para Willy Brandt, depois chanceler da Alemanha.

O PT no poder esteve e está imerso em contradições e dilemas semelhantes. Em seu primeiro mandato, Lula adotou uma prática reformista, seguindo as regras de uma economia de mercado, seguindo os passos de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. Sem dizê-lo, filiava-se à mesma linha social-democrata. Ampliou os programas sociais, tendo sempre em vista a melhoria das condições dos trabalhadores e dos desempregados. Contudo, a retórica esquerdista continuava. O MST funcionava como seu braço revolucionário, desrespeitando propriedades privadas e as invadindo. Teoricamente, essa organização auxiliar do PT fundava-se na “luta de classes”, combatendo por uma sociedade comunista.

O partido ainda se baseava na consideração da democracia não como valor universal, mas como instrumental na conquista do poder. O namoro com ditaduras de esquerda continuou – e continua –, tendo se traduzido, inclusive, pelo apoio explícito ao Foro de São Paulo, organização internacional dos partidos de esquerda, de orientação comunista. Note-se que essa filiação foi negada na campanha eleitoral de então. A política externa prosseguiu, portanto, nessa mesma linha, obedecendo a diretrizes anti-imperialistas, a saber, antiamericanas.

Agora, Lula enfrenta sérias dificuldades em se reconhecer plenamente em sua prática reformista. Considera qualquer regra de mercado um entrave para seus objetivos políticos, advogando pela irresponsabilidade fiscal e fazendo troça acerca de qualquer medida de saneamento das contas públicas. Em consequência, ataca sistematicamente o Banco Central. É como se uma economia de mercado fosse para ele algo completamente alheio, coisa da Faria Lima, como se uma sociedade capitalista fosse uma mera conspiração nacional de grandes empresários e banqueiros. No momento oportuno, pensa negociar com eles, seja lá o que isso signifique.

A demagogia esquerdista exacerba-se em razão de suas contradições, que se traduzem pela falta de medidas governamentais. O MST, enquanto braço revolucionário, retoma suas invasões, consideradas meios de sua luta política. A política externa acompanha o mesmo curso, com forte retórica antiamericana (anti-imperialista), alinhando-se com a China comunista e a Rússia, herdeira do stalinismo. A neutralidade diplomática se perde nas brumas dessa aliança, relegando o País à posição de mero coadjuvante. Chega-se à mais absurda das incoerências ao equalizar a Ucrânia e a Rússia como responsáveis pela guerra. A potência invasora e o Estado invadido, ou, em outra linguagem, o criminoso e sua vítima são igualmente culpados.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é professo de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.23.

Queda do general G. Dias mostra Janja no centro das decisões no Palácio do Planalto

Após sair do GSI com interferência da primeira-dama, militar aponta para omissão da pasta de Anderson Torres nos atos golpistas e confirma depoimento de ex-comandante militar do Planalto

O presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a primeira-dama, Janja, durante reunião sobre ações integradas das escolas, realizada no Palácio do Planalto em Brasília.  Foto: WILTON JUNIOR

Trinta e cinco parlamentares bolsonaristas, como os deputados federais Carlos Jordy (PL-RJ) e Carla Zambelli (PL-SP), pediram na quinta-feira, 20, a prisão do general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. Dias. O militar foi defenestrado rapidamente pelo governo em um movimento que sugeriu haver alguma responsabilidade do oficial com o assalto às sedes dos Três Poderes. A oposição aproveitou o caso para acusar uma suposta conivência petista com a fracassada intentona do dia 8 de janeiro. E contou com uma ajuda inesperada: a ação da primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, para derrubar o general.

Pessoas próximas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os militares têm visões distintas, mas complementares, sobre os fatos, pois as razões para a queda de G. Dias parecem múltiplas. Ele era o único general de confiança de Lula. Daí porque foi nomeado para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Se cometeu um erro na primeira semana de governo, foi o de não ter nomeado rapidamente para o GSI uma equipe de confiança para evitar ser pego de surpresa no dia 8. Colegas lembram que ele “não tinha equipe”.

Também agiu de forma temerária ao se dirigir sem escolta ao Palácio do Planalto invadido por criminosos na tarde do dia 8. As imagens agora liberadas das câmeras do prédio e exibidas pelo Estadão mostram o general chegando ao terceiro andar do Planalto às 16h19. Quando a porta do elevador se abre, o ministro percebe que o corredor está tomado pelos vândalos e se assusta. Aperta o botão e desce sozinho para a entrada do edifício, onde é flagrado por outra câmara, um minuto depois. O então ministro estava só. E sozinho não poderia deter ninguém. Eis a prova da temeridade que representou sua ida ao palácio.

Naquele momento, o Planalto era um local de crime e, como tal, só admitiria um tipo de conduta: a prisão imediata dos bandidos que depredavam o patrimônio público e tentavam até roubar um caixa eletrônico. Todos os que adentraram ao palácio teriam o mesmo desígnio: a “tomada do poder”, a consigna compartilhada pelos vândalos nas redes sociais. Não há dúvida para os investigadores da Polícia Federal quanto ao dolo dos criminosos. Todos concorreram para os resultados ali observados. A questão para a PF é separar a incompetência – a falha de quem devia proteger o prédio e não o fez – da omissão de quem, sendo do GSI ou da PM do DF, assumia os mesmos desígnios dos atacantes.

O desempenho de G. Dias durante a crise ficou exposto no depoimento aos delegados federais Raphael Soares Astini, Vinicius Barancelli e Alexandre Camões Bessa. Ele disse que desconhecia informações produzidas pela Abin, bem como o fato de o coronel Alexandre dos Santos Amorim, coordenador de Avaliações de Risco do GSI, ter classificado o evento do dia 8 como “risco laranja”, conforme revelado pelo ex-comandante militar do Planalto, general Gustavo Henrique Dutra de Menezes (leia aqui a íntegra do depoimento de G. Dias). Ou bem o general foi boicotado pelos subordinados ou bem não procurou de forma ativa se inteirar do que se preparava para aquele fim de semana em Brasília.

O depoimento de G. Dias à PF traz ainda revelações preciosas. A primeira é a de que os delegados estão seguindo a trilha das declarações do general Dutra. Dutra entregou a eles um documento que prova que a Segurança Pública do Governo do Distrito Federal (GDF), então comandada pelo ex-ministro da Justiça Anderson Torres, excluiu o Comando Militar do Planalto (CMP) e o GSI do plano de segurança para o dia 8. A pasta de Torres avisou a segurança do Congresso e a do Supremo, mas, de forma suspeita, deixou a sede do Executivo de fora. G. Dias afirmou que isso não era comum e citou como exemplo a operação para a posse de Lula, quando o CMP e seu gabinete foram convocados para as reuniões do GDF.

Sobre isso, seu depoimento registra: “Respondeu achar um absurdo o GSI não ser convidado para participar da reunião na Secretaria da Segurança Pública do DF, onde foram delimitadas, no Plano de Ações Integradas (PAI), as atribuições das instituições de Estado”. De acordo com ele, seu gabinete sempre é convidado a participar desses planos. “Inclusive participou da reunião para a elaboração do PAI referente à posse presidencial; que esses convites sempre existem quando há manifestações”, afirmou aos delegados.

Segundo G. Dias, o general Carlos Feitosa, da Secretaria de Coordenação da Segurança Presidencial, do GSI, era quem deveria ter sido convidado. Homem de confiança do antigo ministro-chefe do gabinete, general Augusto Heleno, Feitosa já foi ouvido pela PF, que queria saber por que o reforço para a guarda do Planalto enviado pelo CMP no dia 6 foi dispensado pelo GSI no dia 7. No momento da invasão, havia cerca de cem homens para proteger a sede do Executivo. No fim da tarde, o efetivo havia subido para 1.007.

A dispensa do reforço ocorreu apesar, segundo G. Dias, da adoção no dia 6 do Plano Escudo, de proteção aos palácios, “dentro do nível de criticidade avaliado pela Secretaria de Coordenação de Segurança (...), coordenada pelo general Feitosa”. Para o general, houve um “apagão da inteligência”, pois ninguém teria detectado o perigo da chegada de mais de uma centena de ônibus a Brasília para a “tomada do poder”.

Por fim, G. Dias afirmou que, apenas quando já estava no Planalto, retirando os vândalos dos quarto e terceiro andares, é que ligou para o coronel Wanderli Baptista da Silva Júnior, para requisitar o auxílio da Tropa de Choque da PM na prisão dos bandidos. E disse que, se tivesse visto o major do GSI José Eduardo Natale de Paula Pereira entregando água mineral aos vândalos, teria dado voz de prisão ao oficial. Nomeado por Jair Bolsonaro para o GSI, Natale afirmou à CNN que não tinha como prender sozinho os criminosos. Mas também não precisava confraternizar. Até em uma guerra há um limite em que a colaboração do prisioneiro com seu captor o transforma em um traidor. Essa é outra questão que a PF está analisando.

Aos fatos ligados ao desempenho de G. Dias na pasta, um outro se somou e definiu o destino do general: a pressão feita contra o militar pela primeira-dama. Foram Janja e sua sensibilidade para as redes sociais o peso decisivo na balança para derrubar o ministro, o primeiro do governo. Sua antipatia pelo general era conhecida por petistas desde a campanha de 2022. Mesmo assim, tornou-se o único homem de confiança de Lula a superar as cabalas de Janja e a obter um lugar no palácio. Sua queda ocorre apesar de o presidente, desde 8 de janeiro, saber do próprio general que ele estivera no Planalto, então tomado por “malucos”.

Petistas dizem que este foi só mais um episódio em que Janja conseguiu afastar do núcleo palaciano antigos conselheiros de confiança de Lula. Nessa conta estariam o ex-coordenador de campanha e ex-ministro Luiz Dulci, o jornalista Franklin Martins, o amigo Paulo Okamoto e o ex-senador Aloizio Mercadante, todos distantes do Planalto. Até mesmo Gleisi Hoffmann, a presidente da legenda, já sofreu com a ação da primeira-dama, cuja força no cotidiano do palácio ameaça transformar o Planalto na “Casa da Janja”, onde só se entra com a permissão de sua dona.

Nenhum dos antigos colaboradores restou a Lula para evitar gafes ou diminuir crises. Janja interfere em tudo, como verdadeira especialista em generalidades – das taxas para o comércio internacional às atividades da inteligência, passando por tudo o que é pop nas redes sociais. Se a atividade da primeira-dama causa tal rebuliço, deve-se buscar sua origem em quem lhe dá esse poder: Lula. Um general disse à coluna: “Cachorro late, gato mia e passarinho canta. Quando passarinho começa a ladrar, é bom desconfiar”. Lula, um político com seus 77 anos, parece ter esquecido a velha sabedoria popular.

PS.

Enquanto o País discutia as novas imagens das câmeras do Palácio do Planalto, o capitão Danilo Rapael Alcarde deixou a sede de sua companhia, a força tática do 4.º Batalhão da PM paulista, para rondar como um soldado as escolas da zona oeste paulistana. Por volta das 14h30, estacionou na Avenida Pacaembu e foi fazer mais uma visita. Nas casas de todo o País uma preocupação incomodava pais e mães naquele dia: a segurança escolar. O medo tomou conta de alguns e o receio de muitos. Mas o capitão foi às ruas como se desejasse provar que ainda existe um Estado organizado em torno do bem-estar comum e não dos interesses de uns poucos, que não se veem como participantes de um mesmo destino, o do povo brasileiro. O capitão não ganhou medalha, nem as crianças e professores se viram ameaçados. Mas todos chegaram à noite com uma sensação incomum: estavam em um mesmo barco.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista especializado em assuntos militares. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.23

Depoimento de Bolsonaro à PF: o que pode ligar ex-presidente aos crimes de 8/1

A Polícia Federal vai ouvir na próxima quarta-feira (26/4) o ex-presidente Jair Bolsonaro como parte da investigação sobre quem foram os mentores intelectuais das invasões de 8 de janeiro ao Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Palácio do Planalto.

Para especialistas, maior desafio é estabelecer nexo de causalidade entre falas do presidente e invasões ao Planalto, Congresso e Supremo (Reuters)

O inquérito tramita no STF e o relator, ministro Alexandre de Moraes, havia determinado no dia 14 de abril, que a PF agendasse o depoimento em até dez dias.

Os policiais devem questionar Bolsonaro sobre mensagens postadas nas redes sociais em que ele questiona o resultado da eleição e sobre o fato de não ter determinado, quando ainda presidente, a retirada dos acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis.

Mas, para que as investigações resultem numa denúncia contra o ex-presidente, os investigadores terão que encontrar evidências de que os atos de Bolsonaro resultaram nas invasões aos prédios públicos.

Bolsonaro tem negado envolvimento no 8 de janeiro. Enquanto ainda estava nos EUA, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões.

"As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora NBC.

A BBC News Brasil ouviu criminalistas para entender que crimes podem ser considerados nessa investigação, quais as possibilidades de o inquérito terminar em acusação penal contra o ex-presidente, e que condutas de Bolsonaro que devem ser investigadas.

Em 8 de janeiro, apoiadores de Bolsonaro invadiram prédios dos Três Poderes. Até agora cerca de 100 pessoas foram denunciadas (Reuters)

Os crimes

Segundo os professores de processo penal Juliana Bertholdi e Gustavo Badaró, se os investigadores encontrarem provas do envolvimento de Bolsonaro com os atos de 8/1, ele poderá ser enquadrado em algum (ou alguns) desses três crimes: o do Art. 286 do Código Penal, e os dos artigos 359-L e 359-M, que punem quem atenta contra o Estado Democrático de Direito.

O Art. 286 do Código Penal prevê pena de detenção de três a seis meses ou multa a quem incita publicamente a prática de crime.

Já o Art. 359-L pune com reclusão de 4 a 8 anos quem: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais."

E o Art. 359-M pune com reclusão de 4 a 12 anos quem: "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". Ou seja, pune quem tenta dar um golpe de Estado.

Até agora, 100 pessoas que participaram dos acampamentos e invasões foram denunciadas. Muitas delas foram enquadradas nos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, além de associação criminosa armada e danos ao patrimônio público.

“Em relação ao Bolsonaro, obviamente ele não invadiu nenhum estabelecimento, nem permaneceu acampado em nenhum quartel. E não se tem notícia de que ele tenha financiado, num sentido material do termo, as invasões”, diz o professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo Gustavo Badaró.

“Mas o que se coloca é se ele, fora da Presidência da República ou no final do mandato, incitou ou instigou a população na prática desses atos.”

Segundo especialistas, pelo menos três crimes podem ser considerados em inquérito que apura quem foram os mentores intelectuais das invasões (Reuters)

Segundo Juliana Bertholdi, professora de Processo Penal da PUC-PR, durante o depoimento, a Polícia Federal vai tentar esclarecer até que ponto as condutas de Bolsonaro e outros integrantes de seu governo contribuíram para as invasões do 8 de janeiro.

“Nós estamos tentando entender como toda essa articulação para os atos do dia 8/1 aconteceu. Existem diferentes formas do articulador participar dessa organização. Ele pode ser um financiador, ele pode ser um mentor intelectual ou alguém que participou desse planejamento”, explica.

“No depoimento, a força policial vai tentar recolher o máximo de informações possíveis sobre aquele fato que aconteceu e, a partir dessas informações, tentar tipificar ou não as condutas. Vai decidir se aquela pessoa deve ser indiciada ou não.”

Condutas de Bolsonaro

Ao pedir que Bolsonaro fosse investigado no inquérito que apura quem foram os autores intelectuais das invasões, a Procuradoria-Geral da República citou uma postagem do ex-presidente nas redes sociais feita no dia 10 de janeiro, dois dias após os atos.

A publicação, que rapidamente viralizou antes de ser apagada da conta de Bolsonaro, diz: “Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo TSE e o STF”.

Na representação feita ao Supremo, o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, sugere que Bolsonaro fez incitação pública à prática de crimes contra o Estado de Direito ao questionar o resultado eleitoral.

Para ele, ainda que a postagem tenha sido feita após os episódios de violência e vandalismo do dia 8 de janeiro, as condutas do ex-presidente devem ser investigadas no inquérito sobre a autoria intelectual dos ataques.

“Não se nega a existência de conexão probatória entre os fatos contidos na representação e o objeto deste inquérito, mais amplo em extensão. Por tal motivo, justifica-se a apuração global dos atos praticados antes e depois de 8 de janeiro de 2023 pelo representado”, escreveu.

Para o professor da USP Gustavo Badaró, essa postagem tem relevância por ter sido feita pouco após as invasões.(Reuters)

Mas a Polícia Federal deverá avaliar também outras condutas do ex-presidente, como o fato de ele não ter desmobilizado as manifestações de bolsonaristas em frente aos quartéis antes de deixar a Presidência.

“As pessoas protestando pedindo abertamente a prática de um ato ilegal ficaram lá nos acampamentos pelo tempo que quiseram. Foram mobilizadas numa área de segurança que era uma área pertencente ao quartel”, lembra Badaró.

“Acho que o ponto principal da investigação vai ser esse: o fato de Bolsonaro, que é ex-militar, não ter agido para desmobilizar os acampamentos quando era presidente e, portanto, superior hierárquico do ministro da Defesa e de todas as forças.”

Outras condutas que, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, podem ser investigadas incluem os vários momentos em que Bolsonaro questionou o sistema eleitoral, em postagens, entrevistas e lives e em que defendeu os protestos nos acampamentos, antes da invasão.

Também deve ser levado em consideração pela PF o fato de o governo do ex-presidente ter pressionado para que o Exército pudesse auditar as eleições.

Dificuldade de estabelecer nexo causal

Mas, os criminalistas destacam que não será fácil estabelecer uma relação de causalidade entre as falas e omissões de Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro.

Juliana Bertholdi explica que, para o ex-presidente ser enquadrado como mentor intelectual dos crimes de golpe de Estado e atentado violento ao Estado de Direito, é preciso ficar claro que ele tinha a intenção de induzir seus eleitores a invadir os Três Poderes.

“A gente tem que demonstrar que a pessoa tinha a intenção de, com aquele comportamento, atingir aquele resultado danoso. Então, a gente entra num espaço de subjetividade e complexidade bastante significativo”, disse à BBC News Brasil.

Para a criminalista, Bolsonaro foi cauteloso em suas manifestações, conseguindo se comunicar com seus apoiadores mais radicais sem incitá-los de maneira direta a cometer crimes.

“A forma como ele construiu o discurso foi seguramente muito pensada, porque em nenhum momento ele afirma o que ele parece querer afirmar. Ele sempre se utiliza de subterfúgios na hora de fazer as afirmações”, diz.

Gustavo Badaró também destaca que será um desafio estabelecer um nexo causal entre as falas de Bolsonaro e as invasões. Por isso, segundo ele, a PF deverá construir uma narrativa que agregue diferentes condutas e falas como evidência do possível envolvimento do ex-presidente com os atos de 8/1.

“A gente não tem um ato decisivo que a gente possa falar que claramente foi crime. A questão é verificar se, pelo conjunto da obra, os pequenos atos, sinalizações e omissões têm, do ponto de vista jurídico, relevância causal para o 8 de janeiro”.

Nathalia Passarinho, para a BBC News Brasil, em 24.04.23.

domingo, 23 de abril de 2023

Qual Brasil voltou?

Lula diz e repete que ‘o Brasil voltou’. De fato: voltou o Brasil do toma lá dá cá, das invasões de terra, do atraso econômico e da megalomania internacional, marcas do lulopetismo

O presidente Lula da Silva tem bradado que, com ele, “o Brasil voltou”. Pois bem. Imodéstia à parte, é o caso de perguntar: afinal, de que Brasil se está falando? Que país é esse que estaria de volta?

É seguro afirmar que não é o Brasil pelo qual ansiavam milhões de eleitores moderados que, mesmo conhecendo bem o passado de malfeitos dos governos petistas, entenderam que a eventual reeleição de Jair Bolsonaro, um dos mais desqualificados, indecorosos e patrimonialistas presidentes em toda a história republicana, representava uma tragédia a ser evitada a qualquer custo.

Esses brasileiros fundamentais para a apertada vitória do petista em 2022 foram descartados por Lula cedo demais – e sem o menor constrangimento, haja vista o discurso arrogante e as atitudes do presidente. Não que as expectativas fossem altas. A rigor, são pessoas que não esperavam muito mais do atual governo, além do resgate da decência no exercício da Presidência da República e alguns sinais de moderação e responsabilidade na condução do País.

Lula, porém, tem conduzido o Brasil por um caminho perigoso. O governo tem tomado um rumo que, se não chega a configurar estelionato eleitoral – pois só o mais lhano dos cidadãos haveria de acreditar que Lula, de volta ao poder, faria algo muito diferente do que está fazendo –, tampouco sinaliza que, se não os esqueceu, ao menos Lula teria aprendido alguma coisa com os erros cometidos em um passado não muito distante.

Esse Brasil que Lula diz que “voltou” parece ser um país que só existe na cabeça do presidente; um país forjado por seus dogmas, sua recalcitrância, seu voluntarismo na implementação de políticas públicas e quiçá por uma gama de sentimentos que possam ter moldado suas visões de mundo após o período de 580 dias na cadeia.

O Brasil dos fatos, da realidade implacável que está diante dos olhos de qualquer observador que não se deixa enviesar pela vaidade ou pelo fervor ideológico, é o Brasil do retrocesso em mais áreas do que Lula, alguns de seus ministros e apoiadores teriam coragem de admitir em público.

Por óbvio, é indisputável a verdade de que houve guinadas republicanas em áreas fundamentais para o País, como saúde, educação e meio ambiente, três dos setores que foram obliterados pela sanha destruidora de Bolsonaro. A derrota de Bolsonaro, por si só, já foi suficiente para melhorar a qualidade do ar que os brasileiros respiram. Literalmente, pois são perceptíveis os esforços da nova administração federal para reconstruir o aparato de proteção ambiental que conferiu ao Brasil um soft power nessa seara que, há décadas, alçou o País à condição de interlocutor indesviável em fóruns internacionais sobre as mudanças climáticas.

No governo de Lula, vacinas, ora vejam, também voltaram a ser tidas como indispensáveis para evitar mortes, e a cultura deixou de estar sob ataque permanente para voltar a ser tratada como traço de distinção e união de um povo, ou seja, um bem a ser preservado.

Mas, como já dissemos nesta página, não é vantagem alguma Lula posar como um presidente melhor do que seu antecessor porque é virtualmente impossível que haja um governo pior do que o de Bolsonaro. De Lula, esperava-se muito mais do que isso, não só por suas promessas, mas, sobretudo, pelo arco de apoios que o petista construiu – para além da esquerda e centro-esquerda – a fim de pôr fim à barbárie bolsonarista.

O que se viu até agora, no entanto, é igualmente uma política de destruição de marcos republicanos, tais como a lei das estatais, o marco legal do saneamento, a reforma do ensino médio, entre outros. É o voluntarismo megalomaníaco e o improviso de Lula pautando as relações internacionais do País. É o fisiologismo desbragado na relação entre Executivo e Legislativo. É a tolerância à invasão de terras pelos companheiros do MST.

O Brasil que tantos anseiam por ver de volta é o país que, unido, soube superar a ditadura militar, consolidar a democracia e derrotar a inflação e a instabilidade econômica. Com Lula, ao que parece, esse Brasil não voltará tão cedo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.04.23

Lula perdido no vasto mundo

 Com muito falatório e pouco governo, Lula se afunda em bobagens, iguala agressor e agredido e assusta os parceiros ocidentais

O mundo, mundo, vasto mundo de Carlos Drummond de Andrade é certamente maior que o universo petista, insuficiente até para eleger o candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Aparentemente esquecido da ampla diversidade política de seus eleitores, o presidente Lula insiste em agir como se o Brasil e o sistema internacional fossem extensões de Vila Euclides, berço sindical de sua carreira pública. Rebaixado à condição de pária pelo presidente Jair Bolsonaro, o País começou, com a mudança de governo, a retomar sua posição no sistema regional e na ordem global. Esse retorno seria mais fácil e mais seguro se o principal porta-voz brasileiro parasse de falar bobagens, levasse em conta o Direito Internacional, deixasse de afrontar sem razão Estados Unidos e Europa e considerasse mais seriamente os interesses nacionais.

O presidente brasileiro poderia, talvez, pensar no exemplo de seus gentis anfitriões na China, maior parceira comercial do Brasil. Sem descuidar de seus interesses, os chineses continuaram, nos últimos três anos, tomando espaço dos exportadores brasileiros nos maiores mercados sul-americanos. Em 2022, ocuparam o primeiro lugar nas vendas à Argentina.

O presidente Lula conseguiu impedir, por enquanto, acordos comerciais entre a China e outros países do Mercosul. Mas só impedirá a desorganização do bloco se coordenar uma negociação conjunta com os chineses. Isso dependerá muito mais de ação diplomática e de bons argumentos práticos do que de retórica. Paraguaios e uruguaios têm respeitáveis motivos, há muito tempo, para abandonar a fidelidade a um bloco estagnado e distante dos objetivos originais de cooperação produtiva e de inserção global.

Mas o presidente Lula tem mostrado mais inclinação para a retórica, para as picuinhas e para o falatório de palanque do que para a administração e para as políticas mais ambiciosas. Demorou cerca de três meses e meio para apresentar suas metas fiscais e formalizar o compromisso, ainda discutível, com o equilíbrio das contas públicas. Esse objetivo dependerá, como já indicaram analistas, de maior arrecadação, embora o ministro da Fazenda negue a intenção de impor maior peso aos contribuintes. Além disso, nenhum plano ou roteiro de governo foi apresentado até agora. Mas o presidente encontrou tempo para tolices administrativas, como a transferência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), importante instrumento da política agrícola, para o insignificante Ministério do Desenvolvimento Agrário – uma decisão tecnicamente injustificada e obviamente ideológica.

Na política externa, as manifestações mais ostensivas têm sido grotescas ou desastrosas. A viagem à China foi encerrada com uma declaração infantil sobre a predominância do dólar em negócios internacionais. Sem se envolver no episódio ridículo, o presidente Xi Jinping até pode ter gostado da canelada nos Estados Unidos, mas certamente conservará o enorme volume de reservas cambiais em moeda americana, cerca de US$ 3,1 trilhões.

Se a segunda maior economia do mundo conserva esse dinheiro, deve haver uma razão ponderável, assim como deve haver uma boa razão para o uso do euro no dia a dia da União Europeia. Ninguém está proibido de negociar com outras moedas, especialmente em blocos econômicos, mas quem quer acumular reservas em reais, liras turcas ou pesos argentinos? Lula terá, em algum momento, considerado essas questões?

Nem todas as falas de Lula têm sido, no entanto, inconsequentes e engraçadas. Ao tratar como equivalentes um Estado agressor, a Rússia, e um Estado agredido, a Ucrânia, o presidente brasileiro atropelou uma das noções mais importantes do Direito Internacional, enunciada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas e amadurecida em séculos de negociações e de elaborações teóricas.

Pelas normas internacionais, a violência só é admissível como resposta a um ataque. Também é inaceitável a chamada agressão preventiva – quando se fala, por exemplo, no perigo potencial gerado pela expansão da Otan ou quando se denuncia, com ou sem razão, a existência de armas de destruição em massa num país qualquer. O ataque à Ucrânia é tão contrário à regra internacional quanto foi a invasão do Iraque no começo deste século.

Pode-se até desculpar, em Lula, a ignorância da lei internacional, mas, neste caso, ele ignorou também uma norma simples do Código Penal e, é claro, uma regra básica da ética e da civilidade. Ao cometer esse erro, alinhou o Brasil à política criminosa de um autocrata. Diante da reação internacional, e certamente aconselhado por auxiliares mais informados e mais sensatos, o presidente mudou suas palavras e condenou, na terça-feira, a violação territorial da Ucrânia. Mas a tentativa de correção soou fraca e foi insuficiente para anular o enorme equívoco das declarações anteriores. Com tantos desastres, Lula talvez entenda, finalmente, a conveniência de falar menos, de consultar mais os assessores mais prudentes e de – afinal – dar mais atenção ao trabalho e começar, de fato, a governar o País.

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.04.23

Mediação marqueteira da guerra ressoa como balido de ovelha

Em briga de cachorro grande, neutralidade já é uma forma de intermediação

Celso Amorim, assessor especial de Lula para assuntos internacionais - Adriano Machado - 5.dez.22/Reuters

Não veio a público o teor da conversa entre o assessor especial da Presidência brasileira e Putin. Discrição de Estado, pode ser. Homem ponderado, o brasileiro poderia ter aproveitado, porém, para atualizar junto ao russo a fábula do lobo e do cordeiro.

No original de Esopo, o lobo, naturalmente mais forte, rejeita os argumentos do outro porque pretende devorá-lo a qualquer custo. Numa versão atualizada, o cordeiro poderia estar marcialmente preparado para dar uma surra no atacante.

Foi mais ou menos isso o que aconteceu entre Rússia e Ucrânia. Não que esta última, guarnecida por elites militares declaradamente neonazistas, como o Batalhão Azov, vestisse pacífica pele ovina. A invasão russa, porém, foi um ataque lupino, pretensiosamente mais forte e com o "argumento" apocalíptico das armas nucleares. Não funcionou.

Apesar da terra arrasada, de milhares de mortes civis e militares, o "cordeiro" ucraniano, com ajuda americana e europeia, inflige derrotas importantes aos invasores em termos de soldados, generais e equipamentos. Era uma vez um lobo mau...

Frio como inverno siberiano, Putin não se abala com execuções de civis, estupros e decapitações, de que têm sido acusadas suas tropas. Nenhum Hitler, certo, mas um autocrata que ascendeu dos temíveis serviços secretos, dos bastidores de acordos com máfias e oligarcas, sem hesitar no envenenamento e aprisionamento de adversários. Alimenta um nacionalismo neoczarista com roupagem stalinista.

Se o brasileiro foi recebido na sala frequente nas imagens, Putin estaria sentado à mesa com inusitada distância entre cabeceira e ponta, truque de linguagem corporal: espreitado por olhos de sociopata, o interlocutor já se senta em desvantagem de fala.

O que ouviu não revelou, mas transpareceu em Lula ao dizer que os EUA deveriam parar de "incentivar" a guerra. E mais: "A Ucrânia não pode querer tudo". Tudo o quê? A integridade de seu próprio território.

A Guerra da Ucrânia, claro, mais complexa que o perfil de seus líderes, é um ponto de inflexão na nova luta pela divisão geopolítica da Terra. Para o neoimperialismo comercial e tecnológico, não existem fronteiras materiais, e sim horizontes.

É a realidade do poder norte-americano, assim como o sonho imperial de Putin, em choque com o nacionalismo vitalista da Ucrânia: ancoragem num solo nacional eurocentrado.

Nessa briga de cachorro grande, neutralidade (Áustria, Finlândia) já é mediação, especialmente por quem não tem nada a ver com isso. Mediar não é fazer marketing unilateral com retórica identitária, mais estética do que política, de esquerda caquética. Senão a voz apaziguadora ressoa como patético balido de ovelha.

Muniz Sodré, o autor deste artigo, é sociólogo, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.04.23