segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Debate Band: Com Bolsonaro e Lula fora de foco, Simone Tebet e Soraya Thronicke roubaram a cena

O que fica da participação do presidente é o ataque grosseiro, absurdo, à adversária Tebet e à jornalista Vera Magalhães


Simone Tebet e Soraya Thronicke atraíram os holofotes no debate Band. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O presidente Jair Bolsonaro apareceu muito no primeiro debate entre presidenciáveis, mas agressivo, descontrolado, inconsequente. Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, líder das pesquisas, não aconteceu, passou praticamente em branco. Quem chegasse de Marte teria a sensação de que a eleição está polarizada entre duas mulheres, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil), que atraíram bem os holofotes.

Principal alvo de todos os demais, Bolsonaro referia-se a Lula como “ex-presidiário”, enalteceu a “responsabilidade fiscal”, que nunca foi uma prioridade para ele, e jogou luzes em sua mulher, Michele, isca para mulheres e evangélicos. O que fica da sua participação, porém, é o ataque grosseiro, absurdo, à adversária Tebet e à jornalista Vera Magalhães. Para um candidato que lidera os índices de rejeição e sofre tanta resistência do eleitorado feminino, foi um destempero que vai lhe custar caro.

Incisiva, clara, Tebet usou praticamente todas as suas participações, desde a primeira até a última, para criticar e atacar Bolsonaro e seu governo. E foram ela e Thronicke – ambas senadoras de Mato Grosso do Sul e ativas na CPI da Covid — as que assumiram uma defesa contundente da jornalista e ratificaram duas marcas do presidente, a misoginia e os ataques às mulheres.

Num dos principais momentos, Tebet tascou: “candidato Bolsonaro, por que tanta raiva das mulheres?” E Thronicke cresceu no debate ao provocar “quem é tchutchuca com os homens e tigrão com as mulheres”, avisar que pode virar “uma onça” e dramatizar: “Vou pedir para reforçar minha segurança”. A força dessa manifestação é ainda maior porque ela é a cara e a voz dos bolsonaristas arrependidos.

Lula, porém, interpretou os ataques de Tebet e Thronicke a Bolsonaro como apoio indireto a ele e enganou-se redondamente. Quando ele tentou uma dobradinha, sobretudo com Tebet, deu um tiro n’água. Ela reagiu cobrando a corrupção nos governos petistas e Thronicke foi na mesma linha. A corrupção foi, aliás, uma palavra constante nas perguntas a Lula.

Assim como Luiz Felipe d’Avila foi exceção ao evitar ataques aos demais,

Ciro Gomes (PDT) foi o único a lançar propostas, focar no futuro, mas pesou a mão ao atacar Lula. Quando o petista tentou uma abordagem simpática, acenando com uma aliança com o PDT e cobrando que Ciro “não viajasse a Paris desta vez”, Ciro subiu o tom: “Lula se deixou corromper mesmo”, “Bolsonaro não veio de Marte, mas da devastadora crise econômica que Lula e o PT deixaram”. E Ciro também não amenizou para Bolsonaro, “uma pessoas sem coração, que corrompeu todas as suas mulheres e os filhos”.

Fora do ar, dois momentos merecem, mais do que atenção, reflexão. Um foi a troca de desaforos entre o bolsonarista Ricardo Salles e o neolulista Janones, que tiveram de ser contidos para não trocarem também sopapos nos bastidores. O outro foi logo na chegada de Bolsonaro, quando ele disse que “não apertava a mão de ladrão” e automaticamente remeteu à frase do general e seu ministro Augusto Heleno na campanha de 2018: “Se gritar pega Centrão (no lugar de ladrão), não fica um, meu irmão”. O Centrão não está apenas no governo, mas no coração do governo Bolsonaro.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.08.22

O eleitorado no pântano

 Presidente e ex-presidente tentam se limpar, um na sujeira do outro

A resposta de Lula no Jornal Nacional sobre a compra de apoio parlamentar em seu governo, com R$ 101,6 milhões em dinheiro sujo, é ilustrativa da corrida eleitoral em que ex-presidente e presidente tentam se limpar um na sujeira do outro. “Você acha que o mensalão é mais grave que o orçamento secreto?”

Grave é que a corrupção tradicional ou institucionalizada tenha se tornado no Brasil uma questão relativa e comparativa, não absoluta e eliminatória. Do “rouba, mas faz” para a disputa de “quem rouba menos”, agravou-se de tal modo a transigência moral com a rapinagem dos cofres públicos que o resultado só pode ser o conformismo perverso do raciocínio “roubar, todos roubam, mas quem me representa?”.

Jair Bolsonaro deu discurso a Lula não apenas com ataques ao processo eleitoral e negacionismo da pandemia e da fome, mas também com o histórico familiar de funcionários fantasmas e a busca de evitar o impeachment com essa versão moderna de um mensalão pretensamente limpo – um esquema gestado no Palácio do Planalto, como revelou o Estadão, em que os recursos (R$ 72,9 bilhões, entre 2020 e 2023) saem direto do cofre da União para irrigar redutos indicados por parlamentares não identificados.

“Esse caminho de presidencialismo de coalização, de contemporização com o orçamento secreto, com roubalheira, transformou a Presidência da República em uma testa de ferro do pacto cleptocrata, fisiológico e clientelista que destruiu a vida brasileira”, disse Ciro Gomes, prometendo acabar com o esquema no primeiro dia de seu eventual governo. “Emendas de relator, tenha a santa paciência... Você simplesmente institucionalizou a roubalheira ou, na menor hipótese, a distribuição fisiológica clientelista de tostões prá cá e prá lá sem dar consistência nenhuma.”

Para Simone Tebet, “a partir do momento que a gente abre essas contas, a gente basicamente coloca os órgãos de fiscalização de controle”, como Ministério Público e Tribunal de Contas da União, para acompanhar a destinação das verbas “e o orçamento secreto acaba rapidinho”. A candidata explicou a terceirização do Executivo: “Por que o Congresso controla o Orçamento? Porque temos um governo que não planeja nada.”

Na verdade, temos em disputa um presidente que planeja exclusivamente permanecer no poder, distribuindo dinheiro dos outros sem equidade e transparência; e o dono do partido que planejava se perpetuar no poder com mensalão e petrolão. Eles só se limpam na sujeira um do outro, porque o eleitorado se diverte no pântano.

Felipe Moura Brasil, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em29.08.22

No 1º debate, Bolsonaro vira alvo por ofensa às mulheres; Lula, por corrupção

Líderes nas pesquisas protagonizaram confrontos agressivos na TV; Ciro foi crítico à polarização, Simone e Soraya ressaltaram a questão feminina e Felipe d’Avila, a economia

Lula e Bolsonaro no debate Band deste domingo, 28 de agosto de 2022. Foto: Reprodução/Band TV

No primeiro debate na TV, na noite de ontem, o presidente Jair Bolsonaro (PL) entrou na mira dos concorrentes na disputa pelo Palácio do Planalto em razão de ataques às mulheres, da condução da pandemia da covid-19 e da deterioração da economia brasileira. Em outra frente, a artilharia dos candidatos se voltou também para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no quesito corrupção. O petista se esquivou do tema e tergiversou nas respostas.

Os presidenciáveis não pouparam adjetivos entre si – em sua maioria ofensivos –, no encontro promovido pela Band, em parceria com a TV Cultura, o portal UOL e o jornal Folha de S.Paulo, com a presença, ainda, de Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB), Soraya Thronicke (União Brasil) e Luiz Felipe d’Avila (Novo). Houve tensão. Bolsonaro atacou a jornalista Vera Magalhães, da Cultura.

Logo no início, Bolsonaro questionou Lula sobre os escândalos de corrupção na Petrobras. Segundo o presidente, o esquema prejudicou o povo do Nordeste, um reduto petista. “Era preciso ser ele para me perguntar”, disse Lula. “Inverdades não valem a pena na TV.”

Bolsonaro rebateu: “Todo mundo fazia malfeitos, só o presidente é que não sabia”. O presidente chamou Lula de “presidiário” e citou a delação do ex-ministro Antonio Palocci, segundo o qual “tudo foi aparelhado no governo de Lula”. O petista optou por lembrar de seu governo, que, segundo ele, foi marcado por crescimento. “Meu governo deveria ser reconhecido exatamente por isso.” No bastidor, petistas minimizaram a estratégia do ex-presidente.

Fome

Já Bolsonaro foi questionado por ter dito que não há “fome para valer” no Brasil e pela relação conflituosa com o Judiciário. Ciro, que criticou a polarização, afirmou que “qualquer pessoa que não tenha trocado o coração por uma pedra sabe o que existe fome”. O presidente lembrou que trocou o Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, e elevou o benefício médio de R$ 190 para R$ 400, além de prometer manter o valor atual, de R$ 600, no próximo ano. “O meu governo que tem um olhar todo especial para os mais pobres, pagando três vezes que o PT lá atrás no Bolsa Família”, disse Bolsonaro, para quem a economia “está bombando”.

Simone e Soraya lembraram da pandemia e focaram em Bolsonaro. “No momento em que o Brasil mais precisou, o presidente negou vacina no braço dos brasileiros. Não vi o presidente pegar a moto dele e entrar num hospital para abraçar uma mãe que perdeu o filho”, afirmou Simone. A senadora ainda criticou Bolsonaro ao responder pergunta de jornalista sobre a harmonia entre os Poderes. “Sabe como se resolve isso? Trocando o presidente.”

Mulheres

O uso político da religião também foi tema, assim como a pauta feminina. As duas candidatas defenderam a liberdade religiosa, o Estado laico e a busca por equidade salarial entre homens e mulheres. “Quando homens são tchutchuca com outros homens, mas vem para cima da gente sendo tigrão, eu fico extremamente incomodada”, afirmou Soraya sobre Bolsonaro.

A defesa de pautas liberais ficou a cargo de D’Avila e Simone. O candidato do Novo defendeu a entrada de “gente competente e com caráter” em cargos públicos, em oposição aos profissionais da política. “A economia brasileira jamais vai voltar a crescer com o Estado sendo gerido do jeito que é”, disse. “A única forma de crescer é tirar esse Estado pesado das costas de quem produz a trabalha.”

Por Beatriz Bulla, Adriana Ferraz, Eduardo Gayer, Rubens Anater e Renato Vasconcelos para O Estado de S. Paulo, 29.08.22 / Atualização: 29/08/2022 | 01h13

domingo, 28 de agosto de 2022

Fórum dos Leitores

Cartas de leitores selecionadas pelo jornal O Estado de S. Paulo

Eleições 2022

A opção Bolsonaro

As eleições se aproximam e, ao final de seu governo, Bolsonaro não tem obras a mostrar. Não controlou a economia e estamos saboreando desemprego, fome e inflação. Isso é fato, não são alegações vazias de adversários. Os preços nos supermercados não param de subir e estão sufocando a classe média. Enquanto isso, o que temos são motociatas e bravatas contra a esquerda, além do uso obsceno da religião como pauta de campanha e escora para tentar fazer o que mais sabe: difamar por meio da propagação de mentiras. Bolsonaro não fala uma vírgula sobre educação, saúde, habitação, segurança, saneamento, obras rodoviárias, ferroviárias ou de qualquer natureza. Votar nele de novo é colocar o País definitivamente no rumo do caos, sem volta.

Rafael Moia Filho, rmoiaf@uol.com.br, Bauru - SP

Triste círculo vicioso

Em agosto de 2018, Lula, preso, liderava pesquisas de intenção de voto para a Presidência. Não foi solto e o povo falido foi atrás do “mito”, que hoje tem o apoio só de seus cúmplices. Agora, Lula pode vencer em primeiro turno, não tem projeto para o País, mas voltou a agradar aos bancos e ao mercado. Ciro Gomes tem projeto, ficha limpa, mas desagrada aos que lucram com o nosso atraso político e social. Lula e Bolsonaro, triste círculo vicioso.

João Bosco Egas Carlucho, boscocarlucho@gmail.com, Garibaldi (RS)

Culpa da Dilma

Nada mais machista do que considerar as mulheres como as verdadeiras culpadas. Lembram-se de Rosinete Melanias, a secretária de PC Farias, que assinava cheques de contas fantasmas que eram usados para pagar despesas pessoais do presidente Fernando Collor? No fim, ele foi considerado inocente, mas a vilã Rosinete teve de pagar por sua participação no esquema. Lula anda por todo o País exibindo a sua inocência. No máximo, se houve alguma culpa no triplex, foi de dona Marisa Letícia (que descanse em paz). E quanto à tragédia da gestão econômica de Dilma Rousseff? Ora, deve ser creditada exclusivamente a ela, conforme Lula declarou no Jornal Nacional. E a coitada só colheu o que Lula plantou – e que ele deixou para que ela colhesse. Inclusive quanto às questões da lisura no trato da coisa pública que brotaram na gestão Dilma. Lula, fica feio jogar tanta pedra na Geni.

Jorge Alberto Nurkin, jorge.nurkin@gmail.com , São Paulo - SP

Lula ‘satisfeito’

Lula, segundo Janja, sua mulher, não necessitaria de jantar após a sabatina no Jornal Nacional, porque já tinha jantado os entrevistadores. O semideus petista, em 40 minutos, falou para quem ainda janta, a classe média, em cujas mãos está o veredicto eleitoral, ignorando os milhões de famélicos que não jantam, não almoçam nem tomam café da manhã. Convém, assim, lembrar as palavras de Marilena Chauí, filósofa e ideóloga petista, ditas em 2013, num evento que levou Lula a dar gargalhadas e a bater palmas de aprovação: “Eu odeio a classe média. A classe média é o atraso de vida. A classe média é estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, e ela é uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante”. O reavivamento dessas cáusticas palavras, chanceladas por Lula, valerá uma eleição presidencial.

Túllio Marco Soares Carvalho, tulliocarvalho.advocacia@gmail.com, Belo Horizonte - MG

Segurança

Farmácias reféns do crime

Realidade triste a do Rio de Janeiro, em que boa parte do Estado é dominada pelo crime. Matéria do Estadão de 25/8 (página A18) mostrou que Milícias dominam 1,2 mil farmácias no Rio e ameaçam fiscais. As informações se baseiam num levantamento feito pelo Conselho Regional de Farmácia (CRF). Os milicianos – quadrilhas de policiais, bombeiros e criminosos comuns, com cobertura política, que se fortaleceram a partir dos anos 90 no Rio – extorquem esses estabelecimentos, com a promessa fajuta de garantia de proteção, e, para lavar dinheiro, obrigam seus proprietários a comprar mercadoria roubada. Por fim, quando fiscais do CRF-RJ aparecem, são ameaçados de toda forma. É como se o Estado do Rio fosse terra de ninguém. E, enquanto isso, o governador finge que está preocupado e o Planalto lava as mãos. Os empresários e a população dessas regiões, na realidade, vivem abandonados pelas nossas instituições. Uma vergonha!

Paulo Panossian, paulopanossian@hotmail.com, São Carlos - SP

QUE ALTERNATIVA?

Em editorial (O voto é exercício de liberdade, 24/8, A3), o Estadão ameaçou incentivar o eleitor a dar alguma atenção aos demais candidatos à Presidência além de Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Realmente, os dois majoritários possuem características e passados não recomendáveis. O povo do País estaria em irremediável desgraça caso, como parece ser o caso, qualquer dos dois viesse a ser reeleito. Mas quem resta? O nome que teria alguma chance, desde que se esqueça o passado de profundas idiotices nas atitudes, respostas, palavras e sinais de autoritarismo coronelista, é Ciro Gomes. O próprio candidato alterou muito suas características passadas ao perceber que confirmaria mais uma derrota caso mantivesse a mesma atitude ofensiva do passado. Continua em baixa, mas pode até surpreender.

Ademir Valezi, valezi@uol.com.br, São Paulo - SP

CONTRA O VOTO ÚTIL

Temos muito tempo ainda para decidirmos em quem votar. Temos obrigação de conhecer os candidatos, suas propostas e suas equipes. De Bolsonaro e seu Centrão, sabemos o suficiente, assim como sabemos de Lula, seu PT e seu mais novo amigo de infância, Geraldo Alckmin. Vamos ouvir o que tem a dizer Ciro, que foi um bom governador e prefeito no Ceará, e Simone Tebet, que brilhou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid e também é aprovada como prefeita na sua cidade (pena que não estejam juntos). É inacreditável que se vote em Bolsonaro para se livrar de Lula ou em Lula para se livrar de Bolsonaro. Temos tempo para virar o jogo, é o destino de mais de 220 milhões de brasileiros. No primeiro turno, voto útil não é solução.

Cecilia Centurion, ceciliacenturion.g@gmail.com, São Paulo - SP

HORÁRIO ELEITORAL

Desde a última sexta-feira, 26/8, os candidatos às próximas eleições estão no rádio e na televisão pedindo o nosso voto. É interessante que, em vez de desligar o aparelho, o ouvinte ou telespectador preste atenção no que ali é falado. É possível que alguma coisa dita possa definir a sua decisão de votar ou de não votar em determinado candidato. É para isso que existe a campanha em suas diferentes formas. O jogo do poder é bruto e a maioria dos concorrentes usa artifícios para benefício próprio e prejuízo dos concorrentes. Vem daí a radical afirmativa popular de que todo político é mentiroso, ou até de que seriam ladrões. Mas não é bem assim. Existem os mentirosos e até os desonestos comprovados, e também há muita gente boa e bem-intencionada. Daí é a conveniência do eleitor – para não perder a única oportunidade que tem de mudar o destino – de conhecer os candidatos, informar-se sobre o que já fizeram na vida, se são honestos e quais as propostas que apresentam para o caso de serem eleitos. É a única forma de não jogar fora o voto. Em vez de protestar se abstendo ou votando branco ou nulo, o eleitor insatisfeito será muito útil se conseguir encontrar o candidato de sua confiança ou, na falta deste, votar no “menos pior”. Agindo dessa forma, em vez de omisso, poderá ser o pêndulo positivo para decidir a eleição.    

Dirceu Cardoso Gonçalves, aspomilpm@terra.com.br, São Paulo - SP

DEBATE NA BAND

Segundo se especula nos bastidores, Bolsonaro e Lula podem não participar do debate entre presidenciáveis realizado na Band no domingo, 28/8. Mais pela desistência – e covardia – do primeiro, que já se acostumou às mentiras, às manifestações dos apoiadores nas motociatas e aos "tapinhas" nas costas dos bajuladores, bem como aos elogios de parte da imprensa considerada poliana de plantão – ou aluguel – quando tenta colocar o presidente num pedestal e num lugar nas pesquisas que não merece. E, pelo que parece, num púlpito que deve recusar enquanto puder. Quanto a Lula, que acaba de dar "um banho" no Jornal Nacional, por estratégia de campanha também ficaria em casa assistindo aos outros candidatos falando dele e de propostas difíceis de serem colocadas em prática. Uma pena se isso se confirmar, uma vez que o Brasil perderá uma grande chance de saber quem é o melhor preparado e o que errou menos.

João Di Renna, joao__direnna@hotmail.com, Quissamã (RJ)

MEIA CORRUPÇÃO

Gostaria de avisar o candidato petista que, assim como gravidez, não existe meia corrupção. Não importa o valor, é ou não é. Não existe nenhum capítulo na Constituição afirmando que corrupção até um determinado valor é permitido e não é crime.

Vital Romaneli Penha, vitalromaneli@gmail.com, Jacareí - SP

EX-PRESIDENTE

Num país desenvolvido, com um verdadeiro regime democrático e um Poder Judiciário isento/apolítico, quer dizer, não aparelhado, a candidatura de Lula não seria possível.

Harald Hellmuth, hhellmuth@uol.com.br, São Paulo - SP

FRUSTRAÇÃO

A trajetória do PT na Presidência do Brasil frustrou a esperança do País dos nossos sonhos. Fernando Henrique Cardoso (FHC) entregou a Lula o Brasil pronto para alçar voo de águia, mas o resultado foi, com muitos deslizes, um voo de galinha durante 13 anos. A cobertura em Guarujá com elevador privativo. Constantes duvidosas palestras bem-remuneradas no exterior. Ao acobertar invasões e destruições em propriedade urbana e rural, inclusive de importantes pesquisas agrícolas, causou insegurança e desassossego às pessoas de bem. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) priorizou ditaduras africanas e americanas com empréstimos subsidiados, impagáveis, em detrimento de empresas brasileiras, foi um fiasco. O Foro de São Paulo, para avermelhar a América do Sul, foi um retrocesso democrático imperdoável e o Brasil quase venezuelou. A Petrobras não só foi vítima da maior corrupção da face da Terra abalando a sua estrutura, mas também a petroleira foi induzida a praticamente doar duas refinarias à Bolívia, além da aquisição da refinaria Pasadena, sucata que não funcionou após a compra, causou prejuízo de US$ 1 bilhão e ninguém foi responsabilizado. O inchaço da máquina pública inviabilizou investimentos. Obras importantes inacabadas, mas sorvedouros de recursos, a exemplo da transposição do Rio São Francisco para o Nordeste e a Refinaria Abreu e Lima, fruto do insucesso da parceria Lula/Hugo Chávez. Internamente se incentivou a discórdia de “nós contra eles”. Empresário, base do emprego, sempre considerado vilão. A Lei Rouanet, beneficiando muitos artistas apaniguados sem trabalhar. O presidente Lula chegou a Brasília com uma modesta bagagem e na saída levou 11 caminhões baú, sendo um deles climatizado para os vinhos (abrigados na adega em Atibaia, no famoso sítio dos pedalinhos com nomes dos netos). O crucifixo no gabinete presidencial desde Itamar Franco desapareceu com a saída de Lula. Apesar de duas condenações em três instâncias, estranhamente está livre, inclusive da Lei da Ficha Limpa, e lidera a pesquisa de intenção de voto, com real chances de se eleger – o que será o fim da picada, é um fake news ambulante piorado em relação à sua gestão anterior. Destaco: prometeu desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, fazer o controle da mídia e venezuelarmos. Foram algumas das “heranças”, mas aos poucos o Brasil, apesar da covid-19 acrescida do palanque político e da agressão russa à Ucrânia, causadores de inflação e desestruturação mundial, além de boa parte da mídia ser contra e as inconvenientes interferências do Supremo Tribunal Federal (STF), graças a Deus e à patriótica direção, o nosso país sobrevive galhardamente e é destaque econômico e administrativo até no cenário internacional.

Humberto Schuwartz Soares, hs-soares@uol.com.br, Vila Velha (ES)

PLANO COLLOR

É surreal, triste e incrível a crueldade que vem fazendo o STF com os credores dos bancos em relação aos processos dos Planos Collor e Bresser. Estão suspensos há muitos anos, através de liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes. Muitos credores já partiram sem receber a devolução da diferença dos índices da poupança. O Supremo desconhece as agruras do povo que necessita da verba que por direito ao povo pertence e impede a tramitação dos processos lançando a plebe rude aos ricos e poderosos banqueiros. Os credores que recebam, se quiserem, as migalhas que o banco oferece, num acordo leonino, de no máximo 20% do que os mesmos teriam direito, enquanto isso legislam em causa própria aumentando seus proventos em 18% fora os penduricalhos e com lagostas e vinhos premiados em quatro concursos, conforme exigido pelo ministro Dias Toffoli quando presidiu o STF. O povo ainda tem pele de frango e um restinho de carne nos ossos bovinos. E triste vida que segue.

Carlos da Costa Coelho, ccoelho1@uol.com.br, São Paulo - SP

IMPOSTO DE RENDA

É de uma covardia e canalhice sem limites o que os vários governos vêm fazendo com a correção da tabela do imposto de renda.

Albino Bonomi, acbonomi@yahoo.com.br, Ribeirão Preto - SP

BICO BRASIL

O instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), em parceria com o Instituto Cidades Sustentáveis, revelou que devido ao encarecimento do custo de vida, sobretudo dos alimentos, e à elevada inflação, quase metade da população brasileira – impressionantes 45% – não consegue se sustentar com o salário recebido, sendo obrigada a fazer algum tipo de bico. Entre as atividades citadas, estão faxina, manutenção, transporte de aplicativo, serviços gerais, produção de marmitas, venda de roupas e artigos usados. Com efeito, quando mais de 90 milhões de pessoas se veem obrigadas a fazer qualquer trabalho extra para complementar os baixos salários e garantir um mínimo padrão aceitável de sobrevivência, é hora de parar e repensar o País, antes que haja ruptura do tecido social e seja tarde demais.

J. S. Decol, decoljs@gmail.com, São Paulo - SP

SANEAMENTO BÁSICO

Em junho de 2020 foi aprovado no Brasil o novo marco regulatório do saneamento básico. O acontecimento despertou então a esperança de que um aumento substancial de investimentos na referida área suavizasse o tremendo déficit que faz do País um dos de pior situação no mundo civilizado no que diz respeito à capacidade de propiciar em larga escala o tratamento de esgoto e a distribuição de água potável. Esperava-se que uma considerável melhoria na qualidade de tais serviços atingisse um maior porcentual da população e permitisse a evolução para um quadro mais favorável da situação da saúde pública, o que certamente aumentaria o nível de qualidade das atividades ligadas à assistência médica pública, mal-avaliadas em quase todo o território nacional. Era natural também a expectativa de que as ações decorrentes diminuíssem o tamanho dos abismos das desigualdades sociais Brasil afora. Como está o panorama do setor hoje? Com a palavra, os políticos no poder que recorrentemente usaram a questão como bandeira em suas campanhas.

Paulo Roberto Gotac, pgotac@gmail.com, Rio de Janeiro - RJ

LEI DE MURPHY

Estranho que o candidato a governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, do partido Republicanos, afirmou em sabatina que vai acabar com a vacinação obrigatória dos servidores estaduais (Estado, 25/8, A14). Entende que a opção vacinal é de cada um. Como não sou médico, mas engenheiro, prefiro adotar a Lei de Murphy, quando afirma que se algo poderá dar errado, certamente dará. Com a pandemia da covid -19 ainda não erradicada, segundo os infectologistas, a vacina é a melhor defesa que podemos ter, não só individualmente, mas inclusive para não contaminar outras pessoas e propagar o vírus. O ex-ministro também afirmou que na vacinação da poliomielite sempre teve liberdade de escolha, e as mães vacinaram seus filhos. Se o ministro tivesse pego a pólio como eu, acredito que não pensaria assim. Na minha época, ainda não existia a vacina contra essa doença e a mudança na minha vida foi radical devido a isso. O Estado não pode deixar ao livre arbítrio dos pais escolherem se vacinam ou não seus filhos. Eles podem agir assim, inclusive por ignorar o perigo e, no caso, é dever do Estado defendê-los da negligência ou ignorância dos seus genitores. Aliás, se a pólio ressurgiu no Brasil, depois de controlada, é porque os pais estão negligenciando em vacinar seus filhos.

Gilberto Pacini, benetazzogp38@gmail.com, São Paulo - SP

FARMÁCIAS DO RIO

Num país onde já se viu de tudo em matéria de bandidagem, é estarrecedor o que revela a matéria Milícias dominam 1,2 mil farmácias no Rio e ameaçam fiscais, diz conselho (Estado, 25/8, A18). Como podem agir livremente as quadrilhas de policiais, de bombeiros e de criminosos comuns, com a cobertura de políticos, denominadas milícias, achacando algo como mil farmácias, sem contar o comando da distribuição de cargas roubadas? Depois do assalto à Petrobras com apoio de políticos, está aí mais um assalto milionário a ser esclarecido, uma vez que uma leva de poderosos milionários fardados vem se formando.

José Elias Laier, joseeliaslaier@gmail.com, São Carlos - SP

ENIGMA DO FORTE FANIQUITO

Só tenho um adjetivo para definir o artigo de Eugênio Bucci, Tchutchuca: ontologia ou faniquito (25/9, A8): magistral. Com uma qualidade literária refinada e muito senso de humor, me fez dar muito boas risadas. Que bom o brilhante jornalista ter-nos proporcionado uma leitura tão agradável mesmo em se tratando de uma tremenda confusão entre um frágil youtuber e o presidente cercado de fortes seguranças mas que no empurra-empurra ainda conseguiu carimbar e reduzir o chefe da Nação a um mero “tchutchuca do Centrão". Foi um feito e tanto e lavou a alma de muita gente. E o autor do artigo decifrou o enigma do forte faniquito como poucos. 

Eliana França Leme, efleme@gmail.com, Campinas - SP

CORAÇÃO IMPERIAL

Há tempos, com a situação econômica adversa, uma lanchonete na Avenida Paulista, em São Paulo, pela franqueza ostensiva do proprietário, tinha o sugestivo nome O Engenheiro que Virou Suco. Agora, nas comemorações da data-pátria, num arroubo nonsense e ridículo do Itamaraty, coadjuvado pela chancelaria portuguesa, temos mais que patrioticamente O Imperador que Virou Picles. Definitivamente, o Brasil e d. Pedro I não mereciam isso.

A. Fernandes, standyball@hotmail.com, São Paulo - SP

Publicadas originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.08.22 

Paradoxo democrático

No cenário da eleição, perdida entre polos agudos, a razão democrática poderá ser chamada ao dilema das escolhas trágicas.

Vivemos importante desencanto com a política institucionalizada, trazendo consigo nuvens de preocupação sobre o futuro da democracia. Objetivamente, as instituições democráticas não mais conseguem atender aos justos anseios de uma cidadania ativa e pulsante que, antes de solenidades imperiais, apenas quer – e exige – melhores e efetivas entregas políticas.

Palavras e discursos já não bastam; é preciso fazer, descer ao chão da vida e impactar a vida das pessoas. A sociedade em redes mudou a lógica do jogo; num mundo de informação instantânea, a política não mais dispõe de tempo para retardar fatos inconvenientes; a pressão é imediata e os danos, automáticos, podendo, em questão de instantes, levantar um maremoto de indignação popular. Nas urgências do hoje, a edição do jornal de amanhã perdeu a possibilidade de amaciar a narrativa para apaziguar ânimos. Tudo está mais frontal, alterando a dinâmica de funcionamento do sistema de freios e contrapesos republicano.

Sem cortinas, a democracia – como experiência humana que é – mudou. Podemos, aqui, adotar um tom romântico, lembrar exemplos de alta erudição política do passado e, assim, concluirmos que estamos em rota de retrocesso. Todavia, antes de juízos qualitativos, o fundamental é compreendermos o fenômeno em si que, em sua materialidade objetiva, apresentará virtudes e defeitos como toda e qualquer obra humana de dimensão política.

No tabuleiro do presente, o advento das redes sociais recriou assistemática forma de participação democrática direta. Aqueles que pareciam não ter voz tiveram acesso a um meio fácil e livre para o exercício da crítica política. Aliás, não se trata de mera crítica escrita, mas de uma expressão que permite o uso da própria voz com gravação de imagens, em cores e alta resolução, revolucionando, difusa e tantas vezes confusa, os instrumentos de pressão sobre a política constituída.

No caso brasileiro, uma classe política frágil e desguarnecida pela erosão partidária ficou ainda mais exposta a dramas, insuficiências e inconstitucionalidades. A decadência do universo político (essencial à democracia) gerou a ascensão da litigiosidade constitucional, outorgando ao Supremo Tribunal Federal (STF) poderes que, originariamente, não seriam seus. Por mais incrível que possa parecer, uma suprema caneta monocrática passou a valer mais que maiorias absolutas conquistadas democraticamente no Parlamento. É lógico que o Congresso não pode tudo. Em tempo, lembrando o grande Otávio Mangabeira, “ninguém pode tudo; sobretudo, ninguém pode sempre”. O fato é que, numa democracia autêntica, as decisões políticas do Parlamento e a presunção de constitucionalidade delas decorrente somente poderiam ser relativizadas em situações geneticamente extraordinárias, por meio de pronunciamentos colegiados e dialéticos da Corte Constitucional, diante de inarredável urgência circunstancial.

Ora, não é o que estamos vendo. E não será o banalizar da alta jurisdição constitucional que elevará o sentimento de justiça no Brasil.

Ato contínuo, o cenário da eleição presidencial confirma o grave ocaso da democracia nacional. Por motivos políticos desencontrados, nenhuma alternativa superior surgiu no horizonte da Nação. E não se diga que não houve tempo; tempo havia, mas as lideranças capazes e competentes, salvo exceções pontuais, repousam no comodismo da apatia. Perdida entre polos agudos, a razão democrática poderá ser chamada ao dilema das escolhas trágicas. Sobre o ponto, com larga experiência nos difíceis domínios do poder, a sabedoria de Henry Kissinger ensina que há situações de extraordinária ambiguidade que impõem ao statesman o dever de encontrar a vontade de agir e correr riscos em situações que apenas permitem “choice among evils”. Eis, aí, o paradoxo trágico que a democracia pode impor aos cidadãos: uma eleição entre candidatos péssimos, sem opções competitivas razoáveis.

O que fazer, então? Simplesmente desistir e não ir votar? Tal fenômeno – como bem revelam a eleição chilena passada e o recente pleito colombiano – está longe de ser desprezível, sublinhando profundo desinteresse popular no exercício cívico do voto. Estruturalmente, a falência moral dos partidos políticos é um tumor violento para a saúde da democracia. Afinal, não há como ter política democrática alta com partidos baixos. E onde há baixeza é difícil de surgir altura de procedimentos.

Agora, a culpa da decadência democrática é dos partidos, mas não só deles. Enquanto os cidadãos mais capazes e preparados abdicarem do dever de colaborar com a vida pública responsável, seguiremos a viver sob o império dos medíocres. As mudanças necessárias, definitivamente, não são fáceis e não acontecerão por milagres dos céus. Mais do que votar, democracia é prática diária, é participar da política, é ir além da crítica, é assumir a responsabilidade de ser brasileiro, é contribuir ativamente para a dignidade e a decência do Brasil. Do contrário, iremos de mal a pior. Ou já estamos lá?

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., o autor deste artigo, é advogado e conselheiro do Instituto Milenium. Publicado original n'O Estado de S.Paulo, em 28.08.22

Dois inconsequentes e uma eleição

Nem Lula nem Bolsonaro estão preocupados com responsáveis políticas para acabar com a extrema pobreza. Ambos posam de garantidores de dívida bilionária que não será paga por eles

O presidente Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional, com honrosas exceções, achincalharam a Constituição e a Lei Eleitoral para forjar um “estado de emergência” e criar um punhado de benefícios sociais às vésperas da eleição. O objetivo era óbvio. Desde a origem, saltava aos olhos a natureza oportunista desse derrame de recursos públicos em ano eleitoral, principalmente o aumento temporário de R$ 200 nas parcelas do Auxílio Brasil.

Ninguém de boa-fé contesta a necessidade de o Estado prover condições mínimas de subsistência para nossos concidadãos que foram lançados na pobreza extrema nos últimos anos. Milhões de brasileiros passam fome todos os dias e isso é absolutamente inaceitável em qualquer país decente. A questão central sempre foi a definição das políticas públicas para acabar com a miséria de forma responsável e, sobretudo, sustentada.

O improviso do pacote de benesses no ano eleitoral, combinado com indecência e pouco-caso com a ordem jurídica do País, fica ainda mais explícito às vésperas do encaminhamento da Proposta de Lei Orçamentária Anual (Ploa) 2023 pelo Poder Executivo.

A poucos dias do fim do prazo para envio da Ploa 2023 ao Congresso Nacional, o Palácio do Planalto ainda não faz ideia de como bancar o Auxílio Brasil no valor de R$ 600 a partir de janeiro. A lei que instituiu o benefício permanente (Lei n.º 14.342/2022) estabelece o valor de R$ 400. O pagamento das parcelas adicionais de R$ 200, autorizado pela promulgação da chamada PEC Kamikaze – também conhecida como PEC Eleitoral –, só está garantido até o fim deste ano. A Ploa 2023, portanto, prevê que o Auxílio Brasil será pago no valor de R$ 400 a partir do dia 1.º de janeiro.

Com aquela desfaçatez característica, Bolsonaro qualifica como fake news as justas ponderações sobre a incerteza da manutenção do pagamento do Auxílio Brasil no valor atual. Mas, de fato, nada garante que os beneficiários continuarão a receber R$ 600 no ano que vem. A menos que se tome como garantia apenas a palavra do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira.

Há poucos dias, o ministro afirmou no Twitter que os que “torcem pelo pior” tomarão um “banho de água fria”, pois, “no dia seguinte à vitória do presidente Jair Bolsonaro nas eleições”, Ciro Nogueira estará “com o Congresso tratando das medidas” que o governo “pretende aprovar” para garantir o pagamento dos R$ 600 do Auxílio Brasil em 2023.

Ora, não se trata de “torcer pelo pior”. É uma questão aritmética: até este momento não há recursos para cumprir as promessas de Bolsonaro e Ciro Nogueira. Já se viu do que o atual governo e seus operadores políticos são capazes para aprovar benefícios populistas, em detrimento da saúde das contas públicas; logo, não se descarta que o “banho de água fria” nos realistas, prometido pelo ministro da Casa Civil, venha na forma de uma nova manobra orçamentária contrária às regras fiscais e à Constituição. Para quem dá calote em precatórios e admite que o teto de gastos é “retrátil”, como fez este governo, limites fiscais não existem.

Já o petista Lula da Silva, líder das pesquisas de intenção de voto, garantiu que o Auxílio Brasil de R$ 600 vai continuar no ano que vem, caso ele seja eleito, mas tampouco indicou de onde pretende tirar o dinheiro para isso. Sempre que fala do assunto, diz que esse tipo de gasto é “investimento”.

Sem uma nesga de compromisso com a transparência e com a responsabilidade, atributos de um bom administrador público, Lula anda pedindo que os eleitores simplesmente “olhem para o passado” e confiem que, do futuro, cuida ele. Dado o histórico do petista, isso soa quase como uma ameaça.

Em recente entrevista à imprensa estrangeira, Lula voltou a afirmar que “o teto de gastos parece coisa para garantir os interesses do sistema financeiro”. Em encontro com empresários do setor de construção civil, o petista disse também que “não tem medo de dívida do Estado” e que “dinheiro público bom é dinheiro em obra”. 

E assim, com dois inconsequentes na liderança da corrida presidencial, o País flerta perigosamente com mais um desastre.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 28.08.22

É possível dizer que Lula foi inocentado na Lava Jato?

Após ficar 580 dias preso e ser impedido de disputar a eleição presidencial de 2018, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve suas condenações na operação Lava Jato anuladas em 2021 pelo Supremo Tribunal Federal (STF)

Afinal, Lula foi inocentado na Justiça? A BBC News Brasil buscou juristas para responder à questão (Reuters)

O petista havia sido considerado culpado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas o STF anulou essas condenações por entender que Lula não teve seus direitos respeitados ao longo dos processos conduzidos pelo então juiz Sergio Moro.

Hoje candidato à presidência, Lula cita o fim das condenações como prova da sua inocência e afirma que foi perseguido pela Lava Jato.

"Eu tinha certeza que esse dia chegaria. Esse dia chegou com o voto do (ministro do STF Edson) Fachin, de reconhecer que nunca teve crime cometido por mim, de reconhecer que nunca teve envolvimento meu com a Petrobras. E todas as amarguras que eu passei, todo o sofrimento que eu passei, acabou", disse o ex-presidente no ano passado.

A declaração se referia à determinação do ministro Edson Fachin para que os processos julgados por Moro em Curitiba fossem anulados e julgados por outro juiz, em Brasília. Na decisão, Fachin entendeu que o Ministério Público (MP) não demonstrou que havia envolvimento da Petrobras nos supostos crimes de Lula, requisito necessário para o caso ser julgado na vara de Moro.

Essa decisão foi confirmada pela Segunda Turma do STF, que depois também julgou Moro como tendo sido um juiz parcial nos processos contra o petista, o que reforçou a anulação das condenações.

Para críticos do ex-presidente, como os processos foram anulados por razões técnicas, não ficou provada a inocência de Lula frente às acusações. Na visão desse grupo, ele não foi "inocentado" pela Justiça. Seu principal adversário na eleição, o presidente Jair Bolsonaro, inclusive, costuma se referir ao petista como "descondenado".

"Quando o Supremo Tribunal Federal anulou o caso Lula, muitas pessoas passaram a falar que ele foi inocentado, quando ele não foi inocentado. Três tribunais, primeira, segunda e terceira instâncias, juízes independentes, mais os ministérios públicos que atuavam perante essas instâncias de modo independente, entenderam que existiam fortes provas, não só de corrupção, mas de lavagem de dinheiro também", disse o ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, em um vídeo compartilhado em julho nas suas redes sociais

"E aí o Supremo vem e ele não inocenta o Lula. O Supremo não disse que não existiam provas. Ele não entrou no mérito. O Supremo anulou por uma questão formal, do mesmo modo como anulou, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo, os grandes casos contra corrupção no país. O sistema de Justiça nosso foi feito para garantir impunidade dos poderosos que roubam nosso país. Essa é a verdade", disse ainda o ex-procurador e agora candidato a deputado federal.

Processos contra o ex-presidente foram encerrados por falta de provas ou por parcialidade de Moro (Reuters)

Nesta reportagem, a BBC News Brasil relembras as principais acusações contra Lula, explica porque as condenações foram anuladas e traz a opinião de diferentes juristas para a questão: afinal, Lula foi inocentado na Justiça?

Mas antes de abordar esses três pontos, é importante entender o princípio da presunção da inocência, previsto na Constituição brasileira. Segundo esse princípio, toda pessoa é considerada inocente até que se prove o contrário em um julgamento realizado dentro da lei. Dessa forma, com a anulação dos processos contra Lula, ele recuperou seu status de inocente perante a Justiça.

Já a opinião pública segue bem dividida. Uma pesquisa da consultoria Quaest de junho mostrou que 48% dos eleitores acreditam que Lula foi condenado corretamente, contra 43% que têm opinião contrária.

1. Relembre os processos contra Lula

O petista enfrentou uma série de acusações na Operação Lava Jato. Hoje, todos os desdobramentos na Justiça estão encerrados ou suspensos.

Grosso modo, houve dois caminhos para a conclusão desses processos: em alguns deles, Lula foi absolvido, ou seja, a Justiça considerou que não havia provas de que havia cometido crimes; em outros, as condenações foram anuladas porque os direitos do petista foram desrespeitados.

Um dos casos em que ele foi absolvido, por exemplo, foi o processo conhecido como "Quadrilhão do PT", em que Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e outros petistas eram acusados de formar uma organização criminosa.

"A denúncia apresentada, em verdade, traduz tentativa de criminalizar a atividade política. Adota determinada suposição — a da instalação de 'organização criminosa' que perdurou até o final do mandato da ex-presidente Dilma Vana Rousseff — apresentando-a como sendo a 'verdade dos fatos', sequer se dando ao trabalho de apontar os elementos essenciais à caracterização do crime de organização criminosa", escreveu o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal em Brasília, na sentença que absolveu os acusados.

Na maioria dos casos contra Lula na Lava Jato, porém, os processos foram anulados ou interrompidos porque a Justiça entendeu que houve ilegalidades contra o ex-presidente.

Ou seja, nessa segunda situação, não houve uma análise final de mérito das acusações, para decidir se elas eram verdadeiras ou falsas, por que não é possível fazer essa análise em um processo em que os direitos do acusado foram desrespeitados.

Isso ocorreu, por exemplo, nos dois processos mais conhecidos, em que Lula chegou a ser condenado: o do tríplex do Guarujá e o do sítio de Atibaia.

No primeiro, o petista foi acusado de receber uma cobertura no Guarujá, cidade no litoral paulista, do grupo OAS como um suposto acerto por desvios de recursos da Petrobras durante o governo petista.

No segundo, Lula foi acusado de ser beneficiado por obras realizadas por OAS e Odebrecht em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, que pertencia a um amigo seu e que o ex-presidente frequentava com sua família. Também nesse caso, a força-tarefa da Lava Jato dizia que essas benfeitorias foram bancadas com dinheiro desviado da estatal.

O que dizia a defesa do petista?

Em ambos os casos, a defesa de Lula argumenta que os dois imóveis jamais pertenceram a Lula. Os advogados também afirmaram que não havia qualquer prova concreta de que as obras foram pagas com dinheiro desviado da Petrobras, já que essas acusações se baseavam na palavra de delatores ou de outros réus do processo, que estariam tentando se beneficiar na Justiça ao acusar Lula.

No caso do tríplex do Guarujá, o petista havia comprado com sua então mulher, Marisa Letícia, um apartamento de dois quartos no mesmo prédio do triplex. Mas a cooperativa que iria construir o empreendimento faliu e a obra foi assumida pela OAS.

Foi após essa mudança que a cobertura teria sido reservada para Lula ao invés do apartamento de dois quartos. Ele e Marisa Leticia chegaram a visitar o imóvel para ver as obras realizadas pela OAS no triplex.

Na visão da acusação, o apartamento estava sendo personalizado para o casal e não havia sido passado formalmente para nome de Lula como forma de ocultar o crime.

Já a defesa diz que a OAS estava tentando vender o tríplex ao ex-presidente, que o casal visitou o apartamento para avaliar sua compra, mas que acabou desistindo do negócio.

Lula no local do velório do neto, quando deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba durante seu período na prisão (AFP / Getty Images)

Lula e seus advogados sustentavam ainda que as acusações seriam fruto de uma perseguição da Lava Jato contra Lula, com apoio de parte da imprensa brasileira, para tirá-lo da vida política.

Nos dois processos, Lula foi julgado culpado pelo então juiz Sergio Moro. Nas sentenças, Moro considerou que os imóveis não estavam no nome de Lula como forma de ocultar os benefícios que estaria recebendo ilegalmente e, por isso, o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

As duas condenações foram confirmadas depois pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região. No caso do triplex, isso ocorreu ainda em 2018, o que tornou Lula inelegível naquela eleição. Ele também foi preso naquele ano porque o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância.

2. Por que os processos julgados por Moro foram anulados?

Primeiramente, o STF entendeu, em março de 2021, que esses processos não deveriam ter tramitado na Justiça de Curitiba. Pouco depois, em junho, a corte decidiu também que Moro não julgou Lula com imparcialidade.

Com essas duas decisões, as condenações foram consideradas nulas, mas Lula ainda poderia responder às acusações em novos processos, a serem realizados na Justiça de Brasília.

No entanto, esse retorno à estaca zero acabou provocando a prescrição da pretensão punitiva. Ou seja, terminou o prazo estabelecido na legislação penal para possível punição dos crimes, caso Lula fosse considerado culpado.

E quando não há mais possibilidade de punição, as acusações são arquivadas definitivamente. Ou seja, Lula não pode mais ser julgado nos casos do triplex e do sítio de Atibaia.

Que diferença faz Lula ser processado em Curitiba ou Brasília?

Existe uma regra no direito penal brasileiro que determina que um processo criminal deve ocorrer na vara do local onde o suposto crime ocorreu. Por exemplo, se um assassinato acontece no bairro carioca de Copacabana, o julgamento ocorre na Justiça do Rio de Janeiro.

Essa regra serve para evitar que um processo seja direcionado para um juiz específico, contribuindo para a neutralidade do julgamento.

Inicialmente, os casos da Lava Jato estavam concentrados na vara do então juiz Sergio Moro. Isso ocorreu porque a operação, que teve sua primeira fase em março de 2014, começou a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros e o ex-deputado federal do PP José Janene.

No entanto, com o avançar das investigações e as informações obtidas em acordos de delação dos primeiros investigados, a operação passou a apurar crimes em outras regiões do país, nem sempre relacionados a Petrobras.

A força-tarefa da Lava Jato, porém, argumentou que havia uma conexão entre esses crimes e que todos deveriam ser investigados pela operação e julgados por Moro.

Desde o início da Lava Jato, a defesa de vários investigados contestaram essa decisão e pediram que os casos fossem redistribuídos para outras varas de outros Estados.

A partir de 2015, diversos processos foram redirecionados principalmente para Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. No entanto, o STF determinou que todos os casos que envolvessem a Petrobras deveriam ser mantidos com Moro. Como o Ministério Público acusava as empreiteiras de terem usado recursos desviados da estatal para beneficiar Lula, os processos do ex-presidente continuaram na vara de Curitiba.

No entanto, em março de 2021, ministro Edson Fachin acolheu o argumento da defesa de que, na verdade, não havia elementos concretos na acusação comprovando que o petista teria interferido diretamente em contratos da Petrobras para favorecer OAS e Odebrecht em troca do tríplex ou das obras no sítio. Sua decisão depois foi confirmada pela Segunda Turma da Corte.

Para a professora de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procuradora da República Silvana Batini, que atuou em casos da Lava Jato do Rio de Janeiro, foi um erro não ter se adotado critérios mais objetivos para delimitar a competência dos casos da Lava Jato no início da operação.

"Quando (a Lava Jato) começou, era a primeira vez que você lidava com uma mecânica tão vasta de fatos ligados entre si. Então, você podia ter uma interpretação sobre competência técnica muito extensa, que tornava o juiz de Curitiba quase um juiz universal. Isso aconteceu e o Supremo deixou", afirmou à BBC News Brasil.

"Depois, quando o Supremo veio colocar um freio, colocou, criando um critério que não existia na lei. Disse: 'Olha, (permanece na Vara de) Curitiba só o que for Petrobras'. Não existe competência em razão da vítima. Inventaram aquilo. Então isso tudo, realmente, dá um visão de como (houve) uma insegurança jurídica que o próprio Supremo acabou plantando", disse ainda.

O impacto da Vaza Jato

Por trás da decisão de Fachin de tirar os processos contra Lula de Curitiba havia o contexto de enfraquecimento da Lava Jato.

Em 2019, a série de reportagens Vaza Jato, do portal Intercept Brasil, revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e Sergio Moro, que indicavam uma espécie de conluio por parte do Ministério Público e do então juiz nos processos contra Lula e outros acusados.

Esses diálogos mostravam, por exemplo, que Moro teria sugerido aos procuradores ouvir uma testemunha que poderia incriminar o petista.

Foi nesse contexto que ganhou força o pleito antigo da defesa de Lula para que Moro fosse declarado suspeito nos processos que havia julgado o petista antes de deixar a magistratura para virar ministro no governo de Jair Bolsonaro.

Um dos argumentos dos advogados era, por exemplo, a condução coercitiva que o petista sofreu em 2016, mesmo sem ter sido previamente intimado a depor, como prevê a lei.

Conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol foram reveladas pelo Intercept Brasil (Senado / Ag.Brasil)

Com o aumento do desgaste da Lava Jato, foi aumentando a expectativa de que Moro seria declarado parcial nos processos contra Lula. O que se diz nos bastidores de Brasília é que Fachin queria evitar que Moro fosse declarado suspeito e, por isso, decidiu aceitar o pedido da defesa para retirar os processos da vara de Curitiba. O ministro de fato argumentou na sua decisão que, após a mudança dos casos para outra vara, não fazia mais sentido julgar se Moro era ou não parcial.

A preocupação de Fachin seria evitar que a declaração da suspeição do ex-juiz tivesse efeito mais amplo de anular não só as condenações, mas todas as investigações contra Lula realizadas na vara de Curitiba.

A maioria do STF, porém, discordou de Fachin e, com isso, a Segunda Turma analisou a suspeição de Moro e declarou que ele foi parcial contra Lula, provocando a anulação de todas as investigações.

3. Afinal, Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio?

Gustavo Badaró, advogado e professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP), explica que o termo inocentado não existe dentro da linguagem jurídica e é usado de forma coloquial. Dentro das normas jurídicas, lembra ele, uma pessoa acusada pode ser condenada ou absolvida.

Segundo Badaró, com a anulação da condenação de Lula, ele "é tão inocente quanto quem nunca foi processado".

Na sua avaliação, porém, não seria adequado, numa linguagem leiga, dizer que Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio porque isso passa a ideia de que ele foi absolvido nesses processos.

"Tem um certo jogo de palavras que ao dizer 'o Lula foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal' parece que você está querendo dizer que o Supremo deu um atestado de idoneidade pra pessoa. A mim, parece que dá uma ideia de que o Poder Judiciário declarou absolvição", ressaltou.

Já para Davi Tangerino, advogado e professor de Direito Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), não faz sentido colocar a questão se Lula foi ou não inocentado, a partir do momento em que os processos foram considerados nulos.

"Para alguém ser inocentado ou condenado, existe um pressuposto lógico, no Estado Democrático de Direito, que ele tenha sido julgado, entre outras coisas, por um juiz imparcial. Então, nos casos da Lava Jato (julgados por) Moro, quando você tem a declaração pelo Supremo de parcialidade do Moro, o binômio condenado ou inocente não faz mais sentido porque ele pressupõe uma denúncia recebida por um juiz competente e imparcial, um julgamento, e aprovação de uma sentença", argumenta

"Quando você retira dessa equação o juiz parcial, desaparece, via de consequência, o binômio condenado ou inocentado, e aí continua a valer o quê? A presunção de inocência", reforçou.

A procuradora Silvana Batini também diz que a discussão é irrelevante do ponto de vista jurídico. Já no campo político, nota ela, cabe a cada eleitor fazer seu juízo sobre Lula.

"No aspecto jurídico, não tem a menor relevância o que aconteceu, o fato de ele ser inocentado ou não ser inocentado. Os processos do Lula desapareceram porque foram anulados", disse.

"Não se obteve nenhum juízo definitivo sobre responsabilidade criminal dele. Se reconheceu que o processo estava nulo, então não é possível fazer juízo nenhum sobre aqueles fatos hoje. Se não tem nenhum juízo definitivo sobre culpa, o que prevalece é a presunção da inocência. Isso é o que a lei diz, o que a Constituição diz. No plano político, isso aí é absolutamente incontrolável, cada eleitor que faça as suas análises", ressalta.

Procurada a conceder entrevista à reportagem, a defesa de Lula se manifestou após a publicação.

"Nosso trabalho jurídico resultou no encerramento, nas mais diversas instâncias, de 26 procedimentos que foram abertos indevidamente contra o ex-presidente Lula durante a perseguição promovida contra ele pela "operação lava jato" e seus desdobramentos. Também conseguimos a primeira decisão proferida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em favor de um cidadão brasileiro, reconhecendo que Lula sofreu violação aos seus direitos fundamentais previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU", disse o advogado Cristiano Zanin, por meio de nota.

"Foi um trabalho que necessitou de muita resiliência, muito fôlego e o uso de uma visão multidisciplinar do Direito, pois tivemos que passar quase 6 anos defendendo a inocência de Lula e os inúmeros vícios presentes nos processos e procedimentos abertos contra ele nas mais diversas frentes. Felizmente, conseguimos vencer o caso e permitir que Lula pudesse resgatar todos os seus direitos, inclusive os direitos políticos, permitindo que ele seja o candidato à Presidência da República mais bem posicionado nas eleições deste ano", acrescentou Zanin.

Divisão

Mesmo que cerca de metade da população considere o petista culpado, segundo pesquisa Quaest de junho, diversas sondagens eleitorais têm apontado Lula como favorito para vencer a eleição presidencial em outubro.

Com o acirramento da corrida eleitoral, a tendência é que os adversários de Lula usem cada vez mais o escândalo de corrupção na Petrobras durante o governo petista para tentar tirar votos do ex-presidente.

Mesmo que o STF tenha entendido que a operação cometeu abusos, R$ 6 bilhões desviados da estatal foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações. A expectativa é que PT rebata esses ataques reafirmando a inocência de Lula e acusando a Lava Jato de ter perseguido o partido politicamente.

Para reforçar esse argumento, os petistas costumam lembrar que Moro e Dallagnol entraram de vez para a política e são candidatos na eleição desse ano.

Mariana Schreiber - @marischreiber, da BBC News Brasil em Brasília, em 22.08.22. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62612955

O enigma de Letizia: a rainha completa 50 anos

Hiperativa, inconformista e contraditória, depois de quase 19 anos no La Zarzuela é uma profissional que deixou para trás o tempo em que não conseguia encontrar seu lugar. Ela é a rainha que ninguém esperava. 'El País Semanal' segue seus passos há quatro meses.

Rainha Letizia, fotografada no Princess of Girona Awards em 4 de julho, no AGBAR Water Museum, em Cornellà de Llobregat (Barcelona). (Samuel Sanchez)

Quando a porta do bombardeado Airbus 310 matrícula T.22-2 da Força Aérea finalmente se fecha e começa a rolar pela pista do aeroporto de Nouakchott (capital da República Islâmica da Mauritânia), invisível sob uma violenta tempestade de areia que o céu está manchado de bile, o suspiro de alívio da equipe da rainha é ouvido a bordo do avião. Acabou-se. É 2 de junho. Foram três dias frenéticos percorrendo um dos territórios menos favorecidos do planeta. Uma viagem da Cooperação Espanhola para dar visibilidade aos seus projetos de desenvolvimento neste país estratégico: articulação entre o Magrebe e o Sahel; uma barragem de contenção para o tráfico de seres humanos e terrorismo jihadista. E também para expressar a solidariedade da Espanha em aspectos como educação, saúde, nutrição ou igualdade. Durante cinco meses, esta visita da Rainha foi cuidadosamente pensada em três lados: La Moncloa, La Zarzuela e Negócios Estrangeiros. E nada falhou.

As escoltas, abatidas e cobertas de poeira, tiram seus coletes à prova de balas e fones de ouvido. O chefe da operação, comandante da Guarda Civil SRV, sorri e desabafa: "O quê, você suou?" E ele abraça cada componente, cerca de vinte guardas, entre os quais há um casal de agentes; um, com apenas 24 anos, manca perceptivelmente. O aparelho toma altura. A Rainha salta de seu assento e cumprimenta seus seguranças um por um: é sua inevitável segunda família. Piada; pratica a retranca asturiana, cujo sotaque brota quando domina a situação; falar alto, claro e rápido; gesticular; Pergunta; ele se dirige a eles pelo primeiro nome e os aplaude vigorosamente. Nenhum lhe escapa. Ele se agacha para massagear o tornozelo do guarda ferido. Ela cora.


Letizia Ortiz, durante a viagem de três dias à Mauritânia que terminou em 2 de junho. (Samuel Sanchez)

Até aterrissar na base aérea de Torrejón quatro horas depois, o consorte não se sentará por um momento. Ela não parece cansada, embora esteja exausta. É a liturgia do ofício. Percorre os corredores do avião: conversa com seu secretário, o hierático General de Cavalaria José Zuleta; com o chefe do Protocolo da Casa, o também militar Curro Lizaur; com a equipe de Comunicações e Transmissões e com SC, um dos médicos de La Zarzuela a quem tem grande confiança. E também com o pessoal da Secretária de Estado da Cooperação Internacional, que a organizou e acompanhou nesta viagem, chefiada pela sua chefe, a veterana socialista especialista em questões de igualdade, Pilar Cancela.Ela se junta a Letizia em um abraço e exclama: "A rainha é nossa socorrista". Mais tarde, em privado, confidencia ao jornalista: “Achei-a fria e distante, e acabou por ser profissional, normal e até engraçada. Os tópicos foram curados. Esta viagem está em sintonia com seus interesses sociais, desde a segurança alimentar até o trabalho infantil ou a violência sexista. Encontramo-nos com ela em seu escritório em La Zarzuela e ela se debruçou conscientemente sobre nosso dossiê, que estava cheio de post-its. Ele sabe o que estamos aqui para fazer e seu papel é fundamental para tornar nossos projetos de solidariedade conhecidos em todo o mundo. E agora vamos nos encontrar com ela para fazer um julgamento crítico e ver as lições aprendidas para a viagem do ano que vem, que é sua vez de ir para a América Latina. A Rainha não é um vaso.

De jeans de marca branca, camiseta e botas de caminhada, a Rainha revela-se uma mulher pequena, rija e muito magra; com mãos pequenas, unhas curtas e transparentes, sem anéis (nem aliança); seu rosto lavado e seu cabelo, escuro e com mechas grisalhas, preso em um rabo de cavalo. Ele está em forma, mas não tem braços de fisiculturismo. Ele usa óculos discretamente e sempre tem um doce de menta à mão. É telegênico; uma viciada em teatro que domina o palco (como os grandes políticos, sem ir mais longe, seu estimado casal Macron), mas podia-se passar por ela na rua de alpargatas rasteiras e boné e não notar sua presença. A máscara foi para ela (e suas duas filhas, Leonor e Sofía) um valioso instrumento de anonimato durante a pandemia e seus golpes (por exemplo, para esta última no último show de Rosalía em Madri). Caminhar, ir comprar livros ou ir ao mercado são sua maneira de sentir uma realidade da qual não quer se abstrair.

A Rainha, com o colete da Cooperação Espanhola, na Mauritânia. (Samuel Sanchez)

Porque Letizia Ortiz Rocasolano, prestes a completar 50 anos em 15 de setembro, não oficia como rainha 24 horas por dia como Felipe, comprometido em ser chefe de Estado em tempo integral. Ele é constitucionalmente a primeira autoridade do Estado. Ela não. Tudo o afeta, desde uma vitória esportiva até um incêndio florestal. Quando sua casa recebe ingressos para o cinema ou um show (algo que acontece com frequência), sempre fica a dúvida se você poderá comparecer ou algo inesperado surgirá. Com um problema acrescido: a conduta reprovável de seu pai, Juan Carlos de Borbón , privou-o da menor possibilidade de fracasso; Falta a menor margem de erro. Felipe e Letizia não podem estragar tudo. Eles nunca serão capazes de sussurrar com um gesto contrito: “Sinto muito. Eu cometi um erro. Não vai acontecer novamente".

O deslize mais óbvio de Letizia em seus quase 19 anos na empresa (após 3.000 atos públicos sem erros notáveis) foi encenado sob a nave gótica da catedral de Palma de Mallorca no domingo de Páscoa de 2018, com um encontro com sua mãe. cunhado imortalizado por câmeras . Alguém que estava lá explica: “O erro da rainha Letizia foi dizer à rainha Sofía, de maneira muito questionável, que as fotos com as meninas eram em casa, não na igreja; que aquele não era o momento nem o lugar. E a de Sofia, que tem um caráter teimoso e irritante, sem perceber que não é mais a rainha. É sua nora. E Sofía insistiu até que a outra pulou”. O protocolo voou naquele dia pelo ar. Do jornal britânico The Times aoO New York Times , a imprensa internacional, ecoou o incidente, que escondia algo mais profundo: a relação entre os dois sempre foi difícil. E o apoio do emérito para Letizia, escasso. Sofía é bisneta do Kaiser e Letizia, neta de um taxista. A educação, formação e geração a que pertencem são diferentes. Sofia é uma profissional do século XX. E Letizia, do XXI. E como tal eles agem.

A rainha visita um projeto durante sua viagem à Mauritânia. (Samuel Sanchez)

Letizia nem nasceu na realeza (como seu marido e filhas e cunhadas e cunhadas); Falta-lhe funções constitucionais (além de uma possível regência se ficar viúva com Eleanor menor), um estatuto ( que é usufruído, por exemplo, pela esposa do presidente francês ), um manual de instruções preciso e equipamento próprio. De fato, ela participa de um número limitado de eventos institucionais, ao contrário de Sofía, que, por exemplo, copresidiu o juramento dos presidentes (Aznar, Zapatero e Rajoy) e seus ministros diante de uma Bíblia e um crucifixo que ficaram na história com os atuais reis. Como a missa de tédio após a coroação ou a celebração da Páscoa. Esta Rainha não é agnóstica nem crente. É, como a Constituição de 1978, não-denominacional. De fato, o anacrônico “Sua Majestade o Rei, que Deus guarde” desapareceu da redação dos convites da Casa.


A viagem à Mauritânia conectou-se com os interesses da Rainha, como saúde, educação e igualdade de gênero. Na imagem, a Rainha, em 1º de junho.

São pequenas pistas que indicam uma nova direção. A determinação do casal é construir uma Monarquia mais útil e próxima. Um plano Renove que Felipe iniciou em 2014 ao elaborar um código de conduta para sua Casa e a família real , e que levou oito anos para tornar público seu patrimônio pessoal: 2,5 milhões de euros. Ao mesmo tempo em que tentava se defender contra sua própria linhagem. Em especial, o chamado com ironia na Casa "ambiente de Abu Dhabi", que, por exemplo, contraprogramou com uma fotografia do emérito com suas filhas e netos em seu refúgio nos Emiradosa visita do atual rei e rainha e suas filhas em 16 de abril, durante as férias da Páscoa, a um centro de refugiados ucranianos em Madri. Letizia ajoelhou-se para falar com as crianças enquanto elas contavam sua dramática partida do país. Foi uma das fotos do dia. A outra, a que foi enviada de Abu Dhabi para uma agência, criou um sismo nas redes sociais, pois na primeira fotografia enviada as pernas de um dos filhos da Infanta Cristina não foram vistas, levantando dúvidas sobre se ou não foi retocada.

Rainha Letizia, na Mauritânia. (Samuel Sanchez)

A amplificação do incidente da catedral mostra que Letizia (voluntariamente ou não, essa é a grande dúvida) fornece conteúdo de entretenimento contínuo a uma sociedade de entretenimento ávida por ícones dispensáveis. Sua imagem e sua presença; seus figurinos e as lendas que a cercam (distantes, tirânicas, desagradáveis), são um ativo que se rentabiliza no show businesstelevisão ou digital. Está sempre sob os holofotes. Devo ser mais distante ou mais aberto? Deve ser mais moderno ou mais tradicional? Devo ser mais real ou mais plebeu? Esse é o debate. E há bandas. Mas ela é simplesmente a parceira do chefe de Estado. Procura ser feliz com o seu trabalho, estar no seu lugar, ajudar o Rei, dar visibilidade às causas em que acredita, ser uma correia de transmissão entre os de cima e os de baixo, abrir portas, conectar-se com o valores e sentimentos da cidadania. E ser útil para a sociedade civil organizada. Que valor tem esse trabalho? Como Lady Di demonstrou abraçando um paciente terminal de AIDS ou visitando um campo de minas terrestres em Angola, uma realeza também pode destacar as desigualdades do mundo.

Mas, além disso, Letizia tem uma vida. Ele reafirma esse fato. Embora nem todos concordem que você pode ser uma rainha e uma cidadã que gosta de férias particulares. Qual é a tese que ela defende? E pense que a fantasia de soberana não foi feita para ela. Mas quase duas décadas depois de chegar a La Zarzuela, Letizia acredita. Em seus oito anos como rainha, ela se fortaleceu. Ele conhece o ofício. E ele tem instinto. Ela é uma rainha contemporânea que busca o equilíbrio; respeitador dos rituais e do protocolo (algo que lhe custou muito a aceitar), mas também convicto da necessidade de afinar uma instituição ferida —questionada pela sociedade espanhola e alvo de controvérsia política entre os partidos—, que Felipe VI pretende converter em "uma monarquia renovada para um novo tempo". A Rainha acredita mais na evolução do que na revolução. Seu futuro e o de sua família dependem disso. Ele se perde em Madri com uma equipe de segurança muito discreta. Seus amigos são os mesmos de sempre. As sextas-feiras são para ir ao cinema (às vezes sozinho), e aos sábados, para sair com os amigos. Ela compartilha com o marido e as filhas o longo café da manhã e, sempre que possível, os jantares, nos quais abundam as histórias de guerra do pai . Seu círculo são profissionais de classe média. E suas filhas, já adolescentes, não tiveram babás, empregadas domésticas ou tutores. Quando eles eram pequenos, seus pais eram os que se levantavam à noite quando choravam. Se Letizia viajasse, sua mãe, Paloma Rocasolano, enfermeira de profissão, daria uma mão.

O Rei e a Rainha e suas filhas, Leonor, Princesa das Astúrias, e a Infanta Sofía, em julho em Barcelona. (Samuel Sanchez)

Tentaram ser uma família normal com um pai (aparentemente) co-responsável. Embora o resto de nós nunca os tenha visto como tal. Para começar, porque eles moram em uma mansão perdida em uma propriedade estatal de 16.000 hectares . Mas para a Rainha, realidade ou ficção, a portas fechadas, os Borbón Ortiz são uma família comum onde suas filhas foram educadas no sentido estrito do valor das coisas e onde jeans ou tênis premium não entram; um lar onde o feminismo é evidente, há um controle rigoroso sobre as telas (ela é obcecada pelo impacto da cibernética nos jovens) e Leonor e Sofía foram inoculadas com cultura nas veias por uma mãe que se presume ser uma cultureta. A rainha Letizia prefere uma cerveja com Scorsese ou um jantar com Woody Allen, uma conversa com Graça Machel, os Obama ou sua amada Penélope Cruz, um almoço com Angela Merkel (que lhe contou sobre seus passeios de bicicleta de domingo com Joachim, seu marido) ou um reflexão sobre o aborto com Jill Biden ou sobre nutrição com Brigitte Macron, do que esquiar nas pistas na moda, regatas, caçadas, na primeira fila de Paris ou uma bebida no meio da tarde no Real Club de la Puerta de Hierro, reduto do Madrid aristocracia.

A Rainha vence na curta distância. Ela é uma profissional de comunicação. Ele sabe que tem apenas dois minutos para conquistar cada interlocutor e influenciar a ideia que será feita e transmitida a respeito. Seja um diretor do Ibex ou uma pessoa com deficiência. É sobre ser rápido e direto. Chegar, dar uma olhada no contexto e agir; tentando ser normal, educado, legal. Procure se dirigir a todos pelo nome, o que envolve um processo prévio de documentação e memorização.

Rainha Letizia e Princesa Leonor, em julho, na cerimónia de entrega dos Prémios Princesa de Girona. (Samuel Sanchez)

O lado B, o da sua personagem forte, incisiva e inconformista, obcecada pela imagem que projeta e que recebe todas as manhãs um grosso dossiê com comentários sobre ela na mídia e nas redes (que ora lê e ora não), raro uma vez que vem à luz. Um de seus poucos biógrafos, Leonardo Faccio, que publicou em 2020 Letizia. A impaciente rainha , descreveu-a entre "o paradoxo e a contradição". Ou seja, preso entre sua origem e sua escolha. O jornalista José Antonio Zarzalejos, ex-diretor do Abc e autor de Felipe VI. Um rei na adversidade a define sucintamente: "A rainha é uma mulher de personalidade complexa e temperamento indomável".

Ela anda ereta e com o queixo erguido (talvez mais como a velha bailarina clássica de sua infância asturiana do que com a suposta prosopopeia da realeza), determinada e levemente abanando os braços, embora sofra de dores contínuas em um pé devido à metatarsalgia crônica, a resultado do uso excessivo de sapatos de salto alto, que ele odeia. Em sua equipe dizem que ela é crítica por sistema e não se satisfaz com mediocridade ou meias medidas; que você não pode mentir para ele ou roubar informações porque ele te pega na hora; que busca alternativas e novos caminhos; que não é uma boneca que é carregada em uma ninhada para centenas de atos sem sentido ou conteúdo. Dê sua opinião. Ponte e toque os narizes. Seu estilo é o da solidariedade, não o das mesas de petição. eu gostaria de ir mais longePolígono Marconi, nos arredores de Madri, para tentar resgatar mulheres forçadas à prostituição naquele território suburbano de exploração sexual; ou viajar para estados problemáticos como Mali, Níger ou Burkina Faso para dar visibilidade à cooperação espanhola. Teria sido ainda mais dura na censura legislativa e familiar do emérito (com algumas investigações arquivadas na Procuradoria do Supremo Tribunal Federal porque a imunidade de Juan Carlos I enquanto chefe de Estado o protegeu de qualquer acusação e um caso foi aberto em Londres por sua ex-amante Corinna Larsen ). O bom senso e o sistema impedem isso. Às vezes você tem que se contentar com os Correios para emitir um carimbo com o seu perfil para o seu aniversário de 50 anos. Mas ele não está resignado.

Visita dos Reis e suas filhas a um centro de refugiados ucraniano em Madri, em 16 de abril. (Ass. de Imprensa da Casa Real de Espanha)

Dizem que uma manhã, na quitanda do Carrefour perto de sua casa, seu vizinho na fila olhou para ela de lado e desabafou: "E o que você está fazendo aqui?" Ao que a Rainha respondeu sarcasticamente: "Bem, olhe, como você, comprando tomates." Letizia não é tímida. Réplica. À equipa da Casa e ao seu fornecedor de peixe, a quem pede sardinhas mais gordas porque estamos na época. Mas ela está ciente de que o fato de ser mulher é uma desvantagem em uma sociedade onde a imprensa dá mais eco ao fato de ela repetir seu vestido, o comprimento de sua saia ou seu bronzeado do que seu status de embaixadora da FAO para Nutrição.ou defensora da Saúde Mental da Criança e do Adolescente do Unicef ​​(ela falará em breve sobre o assunto na sede das Nações Unidas em Nova York). Algo que o incomoda profundamente. Mas para a mídia, para qualquer dispositivo de gravação móvel, o alvo é ela. O que quer que você faça. Uma fonte próxima conta: “Ela sabe que as mulheres são julgadas muito mais pela aparência do que os homens. E isso a irrita. Ele tem, por exemplo, uma grande relação de respeito e apreço com Begoña Gómez, esposa do presidente Sánchez, que é de sua geração e uma profissional valiosa. Eles poderiam fazer muitas coisas interessantes juntos, mas começariam a compará-los. As discordâncias seriam inventadas. Por isso, é melhor que não os vejam de mãos dadas, porque seriam alvo de fofocas, como quando o presidente Biden visitou a Espanha. Em torno de Letizia, a forma sempre prevalece sobre a substância. Em junho, durante a Feira do Livro do Retiro de Madri, a Rainha ficou rouca ao recomendar a leitura de um grande grupo de senhoras; eles, entretanto, aconselharam-na a pintar os cabelos grisalhos porque a envelheciam. "Faça alguns destaques, linda", disse um. "Sim, senhora, mas deixe você ler", concluiu o consorte.

Ela não concede entrevistas, mas seria uma péssima entrevistada: pergunta mais do que responde. Ele olha para frente com seus olhos verdes e atira. Ela é hiperativa, inquisitiva, curiosa, até mesmo grosseira em seus julgamentos. Um membro de sua equipe garante: "É verdade". Ele desembarcou por amor há quase 19 anos no coração de uma das monarquias mais antigas do mundo. Talvez ele não soubesse no que estava se metendo. Ele achava que podia fazer qualquer coisa. Garota nerd, avançada e conhecedora; filha de divorciadas, universitárias e independentes; pouco manso; casada civilmente aos 25 anos com seu ex-professor do ensino médio; divorciada; ambiciosa, profissionalmente bem-sucedida, talvez sua alta auto-estima a tenha traído. Ou talvez o amor o impedisse de ver a realidade. Ele entrou na cova dos leões. Sua ascensão à realeza em 2004 causou-lhe um choquedo qual ele levou uma década para se recuperar.

Incidente de Letizia e Rainha Sofía em Maiorca, no Domingo de Páscoa de 2018.

Ele acessou uma família disfuncional na qual nunca se sintonizou com seus membros. Para começar, com Juan Carlos de Borbón (que demitiu repetidamente o casal), e depois com as infantas Elena e Cristina. E menos ainda com o marido, Iñaki Urdangarin —que um dia o soltou em público: “Você, do que vai reclamar?”—, e para cuja mansão em Barcelona o casal Borbón Ortiz decidiu não voltar depois de testemunhar a ostentação da propriedade . Letizia nunca se conectou com a plutocracia madrilena da carteira e do brasão. Embora um de seus erros tenha ocorrido precisamente por causa de uma mensagem que ela enviou a um membro proeminente dessa classe dominante, Javier López Madrid, um velho amigo de seu marido e envolvido nos resumos das cartas opacas da Caja Madrid, o ataque ao Dr. Elisa Pinto ou a Operação Púnica, e a quem ele carinhosamente chamou de “compi yogi” em uma nota particular que vazou. Mas muito antes, o rótulo havia sido pendurado nela de que ela iria destruir a Monarquia sozinha (algo comoCamilla Parker Bowles, que é hoje um dos grandes trunfos da monarquia britânica ). No final, aqueles que estavam prestes a levar a coroa na Espanha à frente foram outros com sobrenome real.

Suas quase duas décadas de vida em La Zarzuela poderiam ser intituladas como a biografia de Pedro Sánchez: Manual de Resistencia . Ela atingiu o limite físico e emocional depois de muita solidão e amargura, duas gestações ruins com cesarianas incluídas e, principalmente, quando Erika, sua irmãzinha, tirou a própria vida em 2007. Sem esquecer o livro escrito por seu primo David Rocasolano , Adeus, princesa,que considerou uma traição por dinheiro e que entrou em capítulos muito particulares de sua vida passada, como uma suposta interrupção da gravidez. Apenas sua disciplina a trouxe para a frente. Ele conseguiu se adaptar e sobreviver. E, acima de tudo, aceite as consequências de sua escolha. Hoje ela é rigorosa e rigorosa em seu exercício físico, dieta e saúde mental. E luta para que a opinião dos outros não pese tanto no seu estado de espírito. Ele ganhou em flexibilidade (de caráter). Embora para ganhar um pulso ainda tenha que quebrar o braço dele.

Pedido de casamento de Letizia Ortiz pelo Príncipe das Astúrias, em 6 de novembro de 2003. (Angel Diaz (EFE)

O lema da Casa de Sua Majestade o Rei quando Letizia Ortiz chegou ao Monte del Pardo em 2004 era, segundo um de seus ex-gestores, "freie-a". Ou, como preferem dizer agora em La Zarzuela com sua linguagem cortês: "Faça um processo de adaptação e adaptação à Casa". Isso se traduziu em mantê-la calada por três anos, sem agenda, sem espaço ou estrutura; sem assistir a atos sozinho, como um companheiro passivo do então príncipe das Astúrias e sem ofuscar a rainha Sofía, que cobriu todas as lacunas, desde a luta contra a toxicodependência até os pandas no zoológico de Madrid. Aqueles verões em Maiorca eram passados ​​em Marivent, com as filhas pequenas, entre a sogra e o primoroso Jaime de Marichalar, enquanto o resto da família regateava.

Em 2007, depois de atingir o fundo do poço, a Câmara finalmente decidiu fornecer a ele uma agenda e designar-lhe um secretário. O cargo coube a José Zuleta, Duque de Abrantes, funcionário do Estado que passou toda a sua carreira no La Zarzuela. Ninguém pediu a opinião de Letizia. O que a princípio parecia uma escolha arriscada, tem sido um bom conjunto há 15 anos. Até porque Zuleta é um cara durão que não permite milongas e atua perfeitamente como introdutor e escudo da Rainha. A partir daquele momento, era preciso dar sentido a uma agenda tão pomposa em seu nome quanto vazia de conteúdo. O que significou acordar com o Governo ( através da Secretaria-Geral da Presidência), não incomodando Dona Sofía (nem as infantas, que continuaram sob o guarda-chuva de La Zarzuela) e garantindo que os interesses de Letizia coincidam com os da Casa. Em suma, eles eram inofensivos. Letizia optou por se concentrar em duas questões nebulosas que havia desenvolvido como editora da Televisión Española: saúde e educação. Nesses anos, 77% de suas atividades foram nesse sentido. Dona Sofía não dizia uma palavra em atos oficiais há 40 anos (sua primeira língua é o inglês), portanto, os discursos de Letizia devem ser poucos, breves e supervisionados pela Câmara. No máximo, três minutos. Hoje ela escreve todas as suas palavras, mas a revisão de La Zarzuela (e em certos casos de La Moncloa) é inevitável. As do Rei são sempre endossadas pela Presidência do Governo.

Um dos verões de toda a família real em Maiorca, em agosto de 2006. (Besteiros/EFE)

Você tinha que ganhar a coroa todos os dias. Por onde começar? Segundo fontes do La Zarzuela, “as primeiras atividades foram na luta contra o câncer, mas ela não ficou no cerimonial, que é a pior coisa que pode fazê-la sentir, e se envolveu na pesquisa do câncer. E então, o próprio ritmo vem contribuindo com novas atividades. Há um efeito de atração, porque sua presença gera interesse nesses setores sociais”. Isso aconteceu em 2008, quando destacou as doenças raras ignoradas e a formação profissional marginalizada. Seu leque de interesses seria ampliado com questões como deficiência, violência sexista, exploração sexual de mulheres (trabalha ativamente com a Apram, Associação para a Prevenção, Reintegração e Atendimento às Mulheres Prostituídas), e, sobretudo, a nutrição, que vem ruminando com o zelo de um adversário dos notários. Hoje ele pode falar livremente sobre biologia molecular e patologias metabólicas, neurotoxicidade do álcool, obesidade infantil, diabetes, hipertensão ou disbiose. Na primeira troca, pergunta ao interlocutor o que come.

Em 19 de junho de 2014, mesmo dia em que Felipe VI foi proclamado, Sofía de Grecia recolheu suas coisas em seu escritório em La Zarzuela, decorado em tons de verde e cheio de lembranças, e fechou a porta. Letizia demorou muito para ocupá-lo, mas antes tirou o tapete e o tecido e o pintou de branco. E ele começou a imprimir seu estilo. Hoje, depois de 10 anos como princesa das Astúrias e oito como rainha consorte, é, com todas as suas contradições, uma profissional da Monarquia. Ela está satisfeita com seu trabalho. Pelo qual cobra 142.402 euros por ano. E dá sentido a isso. Ela até se reconciliou com a moda depois de contratar a estilista Eva Fernández em 2015, que lhe deu segurança e a oportunidade de fazer piscadelas sociais com seus looks:desde peças de roupas de marcas espanholas, algumas sustentáveis ​​ou que reivindicam conhecimento artesanal, apoio à Ucrânia ou La Palma, reconhecimento do estilo Adlib, ou uma coleção feita por mulheres resgatadas da prostituição.

Rainha Letizia, em julho, na cerimônia de premiação da Princesa de Girona. (Crédito da foto: Samuel Sanchez)

Agora, sua preocupação é com a educação e o futuro das filhas. Foi Leonor, a herdeira da Coroa, que decidiu passar dois anos no UWC Atlantic College, no País de Gales ; dois anos de liberdade como um passo antes de entrar nas três academias militares (que começarão no outono de 2023 e culminarão navegando no navio de treinamento Juan Sebastián de Elcano) e estudos universitários, tendo o Direito como espinha dorsal. Leonor e Sofía viveram sua posição única desde crianças com aparente naturalidade. “Para Leonor não era como tirar a espada Excalibur da rocha e de repente ser uma princesa; Seus pais não a chamaram um dia como uma epifania e lhe disseram do nada que ela seria rainha. Tudo tem sido mais fácil. São meninas normais”, diz uma pessoa próxima. Embora em alguns meios de comunicação Letizia tenha sido acusada de tê-los enclausurados e separados da vida de jovens de sua idade.

É surpreendente que uma pessoa tão visceral quanto Letizia consiga conter tanto seus sentimentos. Raramente saiu do roteiro. Talvez o mais palpável tenha sido seu retorno à Faculdade de Ciências da Informação em 14 de setembro de 2021. Era Ortiz. Inteligente, engraçado, intenso; imitar as vozes dos professores, relembrar situações e voltar a ser aquela jovem de 18 anos que queria ser jornalista. Ao final do ato, levou a mão ao coração e fez a travessura: “Cinquenta anos é um bom número para continuar tentando fazer as coisas bem no lugar a que cada um pertence”.

Jesus Rodrigues, o autor deste artigo, é  repórter do El País desde 1988. Formado em Ciências da Informação, começou na imprensa financeira. Trabalhou em zonas de conflito como Bósnia, Afeganistão, Iraque, Paquistão, Líbia, Líbano ou Mali. Professor da Escola de Jornalismo El País, autor de dois livros, recebeu uma dezena de prêmios por seu trabalho informativo. Publicado originalmente em 28.08.22