domingo, 28 de agosto de 2022

Paradoxo democrático

No cenário da eleição, perdida entre polos agudos, a razão democrática poderá ser chamada ao dilema das escolhas trágicas.

Vivemos importante desencanto com a política institucionalizada, trazendo consigo nuvens de preocupação sobre o futuro da democracia. Objetivamente, as instituições democráticas não mais conseguem atender aos justos anseios de uma cidadania ativa e pulsante que, antes de solenidades imperiais, apenas quer – e exige – melhores e efetivas entregas políticas.

Palavras e discursos já não bastam; é preciso fazer, descer ao chão da vida e impactar a vida das pessoas. A sociedade em redes mudou a lógica do jogo; num mundo de informação instantânea, a política não mais dispõe de tempo para retardar fatos inconvenientes; a pressão é imediata e os danos, automáticos, podendo, em questão de instantes, levantar um maremoto de indignação popular. Nas urgências do hoje, a edição do jornal de amanhã perdeu a possibilidade de amaciar a narrativa para apaziguar ânimos. Tudo está mais frontal, alterando a dinâmica de funcionamento do sistema de freios e contrapesos republicano.

Sem cortinas, a democracia – como experiência humana que é – mudou. Podemos, aqui, adotar um tom romântico, lembrar exemplos de alta erudição política do passado e, assim, concluirmos que estamos em rota de retrocesso. Todavia, antes de juízos qualitativos, o fundamental é compreendermos o fenômeno em si que, em sua materialidade objetiva, apresentará virtudes e defeitos como toda e qualquer obra humana de dimensão política.

No tabuleiro do presente, o advento das redes sociais recriou assistemática forma de participação democrática direta. Aqueles que pareciam não ter voz tiveram acesso a um meio fácil e livre para o exercício da crítica política. Aliás, não se trata de mera crítica escrita, mas de uma expressão que permite o uso da própria voz com gravação de imagens, em cores e alta resolução, revolucionando, difusa e tantas vezes confusa, os instrumentos de pressão sobre a política constituída.

No caso brasileiro, uma classe política frágil e desguarnecida pela erosão partidária ficou ainda mais exposta a dramas, insuficiências e inconstitucionalidades. A decadência do universo político (essencial à democracia) gerou a ascensão da litigiosidade constitucional, outorgando ao Supremo Tribunal Federal (STF) poderes que, originariamente, não seriam seus. Por mais incrível que possa parecer, uma suprema caneta monocrática passou a valer mais que maiorias absolutas conquistadas democraticamente no Parlamento. É lógico que o Congresso não pode tudo. Em tempo, lembrando o grande Otávio Mangabeira, “ninguém pode tudo; sobretudo, ninguém pode sempre”. O fato é que, numa democracia autêntica, as decisões políticas do Parlamento e a presunção de constitucionalidade delas decorrente somente poderiam ser relativizadas em situações geneticamente extraordinárias, por meio de pronunciamentos colegiados e dialéticos da Corte Constitucional, diante de inarredável urgência circunstancial.

Ora, não é o que estamos vendo. E não será o banalizar da alta jurisdição constitucional que elevará o sentimento de justiça no Brasil.

Ato contínuo, o cenário da eleição presidencial confirma o grave ocaso da democracia nacional. Por motivos políticos desencontrados, nenhuma alternativa superior surgiu no horizonte da Nação. E não se diga que não houve tempo; tempo havia, mas as lideranças capazes e competentes, salvo exceções pontuais, repousam no comodismo da apatia. Perdida entre polos agudos, a razão democrática poderá ser chamada ao dilema das escolhas trágicas. Sobre o ponto, com larga experiência nos difíceis domínios do poder, a sabedoria de Henry Kissinger ensina que há situações de extraordinária ambiguidade que impõem ao statesman o dever de encontrar a vontade de agir e correr riscos em situações que apenas permitem “choice among evils”. Eis, aí, o paradoxo trágico que a democracia pode impor aos cidadãos: uma eleição entre candidatos péssimos, sem opções competitivas razoáveis.

O que fazer, então? Simplesmente desistir e não ir votar? Tal fenômeno – como bem revelam a eleição chilena passada e o recente pleito colombiano – está longe de ser desprezível, sublinhando profundo desinteresse popular no exercício cívico do voto. Estruturalmente, a falência moral dos partidos políticos é um tumor violento para a saúde da democracia. Afinal, não há como ter política democrática alta com partidos baixos. E onde há baixeza é difícil de surgir altura de procedimentos.

Agora, a culpa da decadência democrática é dos partidos, mas não só deles. Enquanto os cidadãos mais capazes e preparados abdicarem do dever de colaborar com a vida pública responsável, seguiremos a viver sob o império dos medíocres. As mudanças necessárias, definitivamente, não são fáceis e não acontecerão por milagres dos céus. Mais do que votar, democracia é prática diária, é participar da política, é ir além da crítica, é assumir a responsabilidade de ser brasileiro, é contribuir ativamente para a dignidade e a decência do Brasil. Do contrário, iremos de mal a pior. Ou já estamos lá?

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., o autor deste artigo, é advogado e conselheiro do Instituto Milenium. Publicado original n'O Estado de S.Paulo, em 28.08.22

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