quinta-feira, 14 de julho de 2022

Lula fica em suíte mais cara de hotel de luxo em Brasília; diária é de R$ 6 mil

Espaço de luxo tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls; PT diz que as despesas são pagas pelo partido


Hotel onde o ex-presidente Lula se hospedou em Brasília; petista passou dois dias na capital federal Foto: Wilton Junior/Estadão

Nos dois dias em que passou em Brasília para contatos políticos, nesta semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato do PT ao Palácio do Planalto, se hospedou na melhor suíte presidencial do hotel de luxo Meliá. Com 183 metros quadrados, o espaço é reservado na internet por uma diária de R$ 6 mil.

A suíte ocupada pelo petista, segundo anúncio do hotel, é destinada para hóspedes que vão se “sentir especiais”. Tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls. Há, ainda, uma sala de jantar para oito pessoas. A conta da hospedagem deve sair do Fundo Partidário. A socióloga Rosângela Silva, mulher de Lula, conhecida como Janja, se hospedou com o ex-presidente.

Líder nas pesquisas de intenção de voto, Lula está na suíte que é oferecida a preço cheio por R$ 9,2 mil, sem o desconto da internet. A decoração é composta por móveis franceses e abajures de cristal. O hotel tem outras duas opções de suítes presidenciais – um apartamento de 86 m² e outro de 102 m² –, cada uma delas com diária de aproximadamente R$ 4 mil.

O Estadão perguntou à assessoria do PT o motivo de Lula ter escolhido a suíte presidencial. Em nota, o partido informou que, durante os deslocamentos do ex-presidente, providencia “locais de hospedagem capazes de atender também a sua equipe de apoio e os dirigentes políticos que o acompanham em suas agendas, com instalações adequadas para receber convidados e realizar reuniões (salas e auditórios)”. Destacou, ainda, que “todas as despesas relacionadas aos deslocamentos de seu presidente de honra são realizadas pelo PT, conforme a lei e rigorosamente informadas à Justiça Eleitoral, que as divulga”.

Presidenciáveis

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fica em residências oficiais quando em deslocamento. No exterior, desde que assumiu, tem feito vídeos para se contrapor aos governos do PT, dizendo que não se hospeda com dinheiro do contribuinte.

Em novembro, porém, ele próprio fez uma gravação para mostrar a suíte de luxo em que ficou no Bahrein, no Oriente Médio. “Aqui a gente tem uma sala, uma sala aqui que (é) quase o tamanho do apartamento que eu morava no Rio de Janeiro. A cama bastante confortável, uma televisão (de) primeira linha.” A diária de R$ 46 mil, segundo Bolsonaro, foi paga pelo “rei do Bahrein”.

Bolsonaro colocou sob sigilo gastos do cartão corporativo, o que inviabiliza identificar despesas nas viagens internacionais. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), publicada pela Veja, apontou que os deslocamentos do presidente e do vice Hamilton Mourão, assim como de suas equipes de apoio, custaram mais de R$ 16 milhões de 2019 até março do ano passado. Não foram encontradas irregularidades, mas a Corte apontou aumento nos gastos de viagens.

Adversária do petista, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse, por meio de assessoria, que não usa suíte presidencial “em nenhum momento”. Simone afirmou que a escolha de hospedagens é feita “levando em consideração a eficiência dos deslocamentos e dentro de um padrão do bom senso dos investimentos dessa rubrica, sem buscar luxo”. Ciro Gomes (PDT) não respondeu aos contatos da reportagem.

Por Julia Affonso, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 13.07.22

Os focos de preocupação dos EUA com eleições no Brasil

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Segundo reportagem da agência de notícias financeiras Bloomberg, Bolsonaro teria pedido a Biden ajuda para se reeleger nas eleições presidenciais de outubro (Itamaraty)

Na semana passada, parlamentares americanos adicionaram mais um elemento à lista recente de advertências que tanto o Congresso dos Estados Unidos quanto o governo do presidente Joe Biden têm enviado ao Brasil sobre a eleição no país.

Trata-se de uma emenda, entre mais de mil, incluída no projeto de Orçamento americano, que, se aprovada, prevê a suspensão de parcerias e corte de recursos americanos destinados às Forças Armadas brasileiras, caso elas abandonem a neutralidade política nos próximos meses.

A motivação, segundo apurou a BBC News Brasil, teria sido "sinais preocupantes" observados pelos parlamentares americanos de que os militares brasileiros estariam dispostos a participar do processo político-eleitoral, o que, argumentam os deputados americanos, seria um fator de instabilidade para a América Latina e para os interesses de segurança nacional dos EUA.

Bancada por seis deputados da ala mais à esquerda do partido Democrata, é possível que a emenda nem chegue a ser apreciada no plenário. Se for votada, não o será antes de dezembro, dois meses depois da eleição brasileira. E sua chance de aprovação é hoje minoritária.

Ainda assim, a manobra foi vista como uma mensagem importante. Ela seria menos uma peça legislativa e mais um recado de que os desdobramentos eleitorais no Brasil seguem sendo analisados de perto pelos americanos.

A administração Biden e boa parte do partido democrata, no entanto, tenta se equilibrar na linha tênue entre demonstrar atenção a um pleito que tem sido descrito por eles como "contencioso" e deixar claro que não estão dispostos a intervir de nenhuma maneira no processo eleitoral, que deve "ser feito por brasileiros, para os brasileiros" e seguir seu curso programado.

Recado da CIA

A proposta de emenda se junta a uma lista de ao menos outras quatro manifestações públicas feitas nos últimos dois meses que indicam uma atenção próxima de autoridades americanas ao processo eleitoral brasileiro.

Primeiro, houve a revelação, pela Reuters, de uma conversa entre o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA), William Burns, e auxiliares de Jair Bolsonaro (PL) em que Burns recomendava que o mandatário brasileiro deixasse de questionar as eleições brasileiras. A conversa, a portas fechadas, teria acontecido em outubro de 2021.

Bolsonaro e seus ministros negaram que ela tenha acontecido e disseram que seria "extremamente deselegante" que o chefe da CIA viesse dar "recado" no Brasil. A própria CIA não comentou o assunto.

EUA querem eleições livres e justas no Brasil

Uma semana depois, em entrevista à BBC News Brasil a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, afirmou que "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Com isso, ela explicitava a posição dos americanos contrária a qualquer tipo de intervenção das Forças Armadas no processo eleitoral, como defende o presidente Bolsonaro.

"Foi a declaração mais forte do governo americano sobre como se preocupa e avalia a situação", afirma o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly.

"Líder que minar a democracia"

Ainda em maio, senadores americanos descreveram Bolsonaro como um "líder que tenta minar a democracia" apontaram "retrocessos democráticos no país", durante a sabatina da apontada por Biden para assumir a embaixada americana no Brasil, Elizabeth Bagley.

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Em outra intervenção, Menendez citou o presidente pelo nome: "Bolsonaro tem tentado enfraquecer o processo eleitoral. Que medidas podemos tomar para apoiar a integridade e o resultado democrático das eleições?".

Bagley, escolha política de Biden que falhou em ser chancelada pela Comissão e pode ter sua indicação retirada pelo governo, criticou diretamente o presidente brasileiro, embora tenha feito ressalvas sobre a qualidade das instituições do país.

"Bolsonaro tem dito muitas coisas, mas o Brasil tem sido uma democracia, tem instituições democráticas, Judiciário e Legislativo independentes, liberdade de expressão. Eles têm todas as instituições democráticas para realizar eleições livres e justas. Eu sei que não será um processo fácil, por todos os comentários dele (Bolsonaro), mas, a despeito disso, temos todas essas instituições e continuaremos expressando confiança e expectativa de uma eleição justa", disse Bagley.

Encontro entre Bolsonaro e Biden ocorreu durante a Cúpula das Américas (Getty Images)

Maravilhado x Satisfeito

Em junho, Biden e Bolsonaro se encontraram pela primeira vez e, nas poucas palavras que disse diante do colega na presença da imprensa, Biden reafirmou confiança nas instituições eleitorais brasileiras.

Após o encontro, Bolsonaro se disse "maravilhado" com o líder americano. Já Biden teria se sentido, segundo o Departamento de Estado, "satisfeito" — e teria levado a sério supostas garantias dadas por Bolsonaro de respeito ao processo eleitoral.

Dias mais tarde, a agência de notícias financeiras Bloomberg noticiou que durante o encontro Bolsonaro teria pedido a Biden que o ajudasse a vencer Lula nas urnas em outubro.

A BBC News Brasil questionou a Casa Branca sobre o assunto. Sem negar, nem confirmar o teor da reportagem, a administração Biden respondeu que "falando amplamente, temos total confiança no sistema eleitoral do Brasil. Em uma democracia consolidada como a brasileira, esperamos que os candidatos respeitem o resultado constitucional do processo eleitoral".

Manifestantes a favor de Trump invadiram Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (Getty Images)

A palavra em Washington é "preocupação"

"A palavra em voga sobre Brasil em Washington é preocupação. Não é à toa que temos visto esses vazamentos e declarações. A administração Biden tem deixado clara as suas preocupações publicamente", diz à BBC News Brasil Nick Zimmerman, consultor sênior do Brazil Institute, do Wilson Center, e ex-auxiliar da Casa Branca para política externa na gestão de Barack Obama (2009-2017).

Zimmerman foi anfitrião do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin que, na semana passada, deu uma palestra em Washington na qual disse que "nós poderemos ter um episódio ainda mais agravado do 6 de janeiro daqui do Capitólio".

Em transmissão ao vivo nas suas redes sociais, em 8 de julho, Bolsonaro atacou o sistema eleitoral de urnas eletrônicas e declarou que os eleitores "sabem como se preparar" antes das eleições.

"Não preciso dizer o que estou pensando, mas você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar, não para o novo Capitólio, ninguém quer invadir nada, mas sabemos o que temos que fazer antes das eleições", disse o presidente aos apoiadores durante a live.

A declaração gerou preocupação entre os que temem atos antidemocráticos antes ou depois da eleição, embora o presidente não tenha especificado a que ele se refere quando diz que os eleitores "sabem o que têm que fazer" antes do pleito.

"O governo Biden está preocupado com a possibilidade de uma ruptura institucional e vê com clareza a possibilidade de um 6 de janeiro no Brasil, que poderia acontecer até mesmo antes das eleições de outubro", afirma Winter. Segundo ele, a possibilidade de que Bolsonaro tente adiar o pleito de outubro está no radar das autoridades em Washington.

"Se Bolsonaro se convencer de que não tem como ganhar nas urnas, vai tentar paralisar o processo", diz Winter. As atuais pesquisas eleitorais mostram o presidente em segundo lugar, cerca de dez pontos percentuais atrás do primeiro colocado, o petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Tanto as acusações de falta de transparência das urnas eletrônicas quanto o cenário de tensão e violência — maximizados pelo caso do assassinato de um dirigente local do PT em Foz do Iguaçu (PR) por um apoiador de Bolsonaro no último fim de semana — poderiam ser levantados como justificativas pelo governo para tentar impedir a realização do pleito, em menos de três meses. A possibilidade tem sido ventilada também em Brasília, como afirmou Elio Gaspari, colunista dos jornais Folha de S. Paulo e de O Globo.

Para o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon, o adiamento das eleições parece um risco bastante palpável.

"Se isso fosse feito, os EUA e outros países da região teriam reações bastante dramáticas. Bolsonaro estaria arriscando a própria relação Brasil-EUA, não só em termos políticos, mas econômicos também. O Brasil ficaria isolado", antevê Shannon.

Para o diplomata americano, o caso de 6 de janeiro nos EUA foi instrutivo para os brasileiros.

"Brasil e EUA são como dois espelhos que refletem um ao outro nesse momento, em sua polarização política, sua sociedade dividida", afirma Shannon.

Ele argumenta que tanto Bolsonaro quanto seu entorno, especialmente seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), estudaram detidamente os eventos de 6 de janeiro, quando uma massa de apoiadores do então presidente Donald Trump, derrotado nas eleições, invadiu o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden. Eduardo estava nos EUA na ocasião e havia se encontrado com o núcleo trumpista um dia antes do episódio.

"Acredito que ele (Eduardo) chegou à conclusão de que o erro de Trump foi confiar na multidão de apoiadores, sem conseguir se apoiar nas forças de segurança, sem trazer consigo esse suporte institucional. Esse é um erro que eles tentam não repetir", diz o diplomata, que morou por sete anos no Brasil.

Embora admita que militares tenham se envolvido de modo "inusual" na gestão de Bolsonaro, Shannon duvida que as Forças Armadas brasileiras, como instituição, estariam dispostas a patrocinar qualquer possível tentativa de ruptura institucional proposta por ele. Mas vê nas ações do presidente, de dragar os militares para dentro do processo de apuração de votos, uma tentativa de provocar esse efeito.

Comportamento das Forças Armadas brasileiras têm chamado atenção nos EUA (Getty Images)

Apoio ou intervenção?

"Quando os deputados propõem a emenda ao orçamento sobre Forças Armadas do Brasil, estão mandando um claro recado de que estão atentos a esses movimentos. Esse tipo de mensagem, no entanto, é uma faca de dois gumes: se por um lado, mostra apoio à democracia brasileira, por outro, irrita o sentimento nacionalista do Brasil, pode soar como intromissão", diz Shannon.

A diplomacia americana estuda com cuidado seus movimentos justamente porque, há pouco mais de dois anos, se viu no lado oposto do cenário. Em 2020, era Bolsonaro quem fazia comentários sobre o processo eleitoral americano — indicando possibilidade de fraude, como defendia Trump, sem provas. À época, tais declarações geraram insatisfação em Washington, especialmente entre os democratas.

"Os EUA hoje se debatem entre expressar essa preocupação e ser cautelosos para não forçar demais a mão no assunto, o que poderia gerar efeitos negativos e levantar questionamentos dado o histórico de envolvimento dos americanos em episódios trágicos da América Latina no século 20", diz Zimmerman, em referência às ditaduras militares na região, que contaram com o apoio dos americanos.

Segundo Zimmerman, a Casa Branca não quer gerar qualquer espaço para que se diga que os EUA favorecem um dos lados. Até porque, qualquer um deles pode compor o próximo governo com quem Biden terá que negociar em pautas que lhes são caras, como o meio ambiente.

Esse seria inclusive, segundo fontes ouvidas reservadamente pela BBC News Brasil, um dos motivos pelos quais o ex-presidente Lula acabou não visitando os EUA no primeiro semestre de 2022. A campanha petista queria tentar repetir em território americano o tour que ele deu na Europa, com bons resultados políticos. A administração Biden, no entanto, sinalizou aos emissários do ex-presidente que esse não seria um momento conveniente para isso.

Para Winter, além de pouca vontade, o governo Biden tem poucas condições de mensagens mais fortes nesse momento, porque "têm muitos problemas a administrar e tem perdido poder".

Impopular, o presidente americano deve sofrer derrota nas eleições de meio de mandato no Congresso. Por mais que possa se preocupar com o Brasil, por falta de apoio parlamentar, ele sequer conseguiu, até o momento, enviar ao país um embaixador de sua confiança. O mais provável é que Washington não tenha nenhum observador diplomático do mais alto nível em Brasília durante as eleições brasileiras de 2022.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, em 13.07.22 / publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62142759

Brasil vive 'mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política', diz americano especialista em democracia na América Latina

Petista morto por bolsonarista disse há 2 meses que policiais da esquerda seriam 'primeiras vítimas' de violência política

Arruda foi enterrado num ambiente de grande comoção nesta terça (12) (Reuters / Christian Rizz)

Nem mesmo a experiência de quem acompanha a política e as eleições na América Latina há mais de 30 anos foi suficiente para evitar o espanto que o professor americano Scott Mainwaring sentiu ao saber da morte de Marcelo Arruda, um membro do PT morto a tiros por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL).

"É um fato grave, não lembro de nada parecido no Brasil", disse à BBC News Brasil.

Scott Mainwaring é um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina. Ele já morou em países como a Argentina e o Brasil (onde fez pesquisa de campo para o seu doutorado) e fala português fluentemente. Nestes países, ele investigou a redemocratização na região e viu como, em alguns casos, esse processo envolveu casos de violência política.

Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo. Atualmente, é professor de Ciências Políticas da Universidade de Notre Dame.

O americano é autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).

Eleição ocorre em meio a polarização política (Reuters)

É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escalada de violência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.

Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morte de Marcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.

Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente de "ódio pessoal e polarização política".

Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atos de violência.

"Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.

Petista morto por bolsonarista: 6 vezes em que violência política pode ter sido estimulada em discursos

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Confira os principais trechos da entrevista:

Scott Mainwaring é um dos principais pesquisadores do mundo sobre política, democracia e ditaduras na América Latina (Matt Cashore / Harvard)

BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinato de um membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipo de alerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?

Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipo de violência política. É um ato de criminalidade comum e, além disso, é um tipo de ato que atinge a democracia.

BBC News Brasil - Que sinal a morte de alguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?

Mainwaring - Para mim, é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentes de violência.

Marcelo Arruda foi morto quando comemorava seus 50 anos numa festa com decoração do PT e imagens de Lula (Facebook / Marcelo Arruda)

BBC News Brasil - O que o Sr. quer dizer com isso?

Mainwaring - Me refiro a outros incidentes de violência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatos de candidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.

BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morte de um militante político por um oposicionista?

Mainwaring - É um fato grave. Não lembro de acontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atinge de forma profunda a democracia.

[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantes de uma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler em 1921]

BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Na sua avaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?

Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.

BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nível de animosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?

Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito grave de polarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processo de animosidade, de ódio. É possível ter um processo de polarização que não se baseia em ódios pessoais. Mas no Brasil de hoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política.

Em ato de campanha em 2018, Bolsonaro defendeu fuzilar a 'petralhada' (YouTube)

BBC News Brasil - Considerando essa escalada de violência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palco de algo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?

Mainwaring - É um risco.

BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?

Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fato de Bolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinais de que pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.

BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira onda de democratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?

Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.

A eleição de um presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinal em si mesmo.

Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.

Os problemas antecediam a eleição de Bolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perda de credibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.

Bolsonaro já falou em 'fuzilar' petistas e usar 'granadinha' para matar Lula e políticos opositores (Carla Carniel)

BBC News Brasil - Considerando a quantidade de armas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direção de uma realidade em que atos de violência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?

Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o número de assassinatos de candidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.

BBC News Brasil - O nível de polarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?

Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provável de Lula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momento de possível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.

BBC News Brasil - Qual é a responsabilidade de Lula nesse cenário de polarização?

Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidade de ele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticos de incentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Na sua avaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambiente de tensão que a gente vê no Brasil?

Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.

Lula parabenizou um ex-vereador do PT que agrediu um empresário em 2018 num protesto contra o ex-presidente (Reuters)

BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistema em dúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?

Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho, de qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.

BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistas em democracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Na sua avaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?

Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequente de a democracia se romper é pela via do que chamamos de "executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixa de ser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regime de Daniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a Hungria de Viktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganhar de novo. O risco de ele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.

BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasil em relação à compra de armas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambiente de tensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?

Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como o de Marcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupante em termos do aumento de número de armas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do Rio de Janeiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.

BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil, em relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?

Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.

BBC News Brasil - Existe, na sua avaliação, algum sinal de que essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nível de polarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?

Mainwaring - Se Lula ganhar, vai depender de como ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. E de quê maneira? Se o governo de Lula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casos de corrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.

BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morte de Marcelo Arruda é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?

Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.

BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas lá em Foz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou em 2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerda de violenta. Esse tipo de declaração ajuda a acalmar os ânimos?

Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressão de um petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.

Leandro Prazeres, da BBC News Brasil em Brasília, em 13.07.22 - originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62144553

terça-feira, 12 de julho de 2022

Sérgio Moro vai disputar vaga ao Senado pelo Paraná

Ex-juiz lançou pré-candidatura pelo seu Estado de origem após ter transferência de domicílio eleitoral a São Paulo negada pela Justiça Eleitoral


Após ter sua transferência de domicílio eleitoral barrada da Justiça Eleitoral, Moro lança pré-candidatura ao Senado pelo Paraná Foto: Werther Santana/Estadão

A primeira disputa eleitoral do ex-juiz federal e ex-ministro Sérgio Moro (União Brasil) será por uma vaga ao Senado pelo Paraná. Quase um mês após anunciar que seria candidato pelo Estado, ele acabou com o suspense sobre o cargo e confirmou a pré-candidatura na manhã desta terça-feira, 12, em entrevista coletiva em um hotel, no Centro de Curitiba.

“Sou pré candidato ao senado pelo Paraná, a minha terra”, disse Moro, em um vídeo logo na abertura do evento. Na sequência, ele relembrou a atuação na Operação Lava Jato e o combate ao crime organizado e narcotraficantes.

Moro estava ao lado do presidente do diretório municipal do União Brasil, o deputado federal Ney Leprevost. Os presidentes estadual e nacional do partido, os deputados Felipe Francischini e Luciano Bivar, não estiveram presentes. Francischini teve um problema de saúde e precisou de atendimento médico antes da coletiva.

Após ter sua transferência de domicílio eleitoral barrada da Justiça Eleitoral, Moro lança pré-candidatura ao Senado pelo Paraná

“Precisamos de novas ideias e de renovação”, disse. “O Paraná precisa de vozes fortes no Senado, lideranças que não se omitam e não sumam do cenário político. A minha carreira pública, como juiz e como Ministro, me dá credibilidade e legitimidade para ser esse representante do povo paranaense”, afirmou.

Antes de encerrar o pronunciamento que precedeu a entrevista coletiva, Moro citou o poeta curitibano Paulo Leminski, recordando o poema “Incenso fosse música”: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é, ainda vai nos levar além”. “Esse é o objetivo dessa jornada. Nada, nada vai nos deter”, destacou.

Disputa ao Senado

Na disputa ao Senado, as pesquisas eleitorais já divulgadas apontam que o ex-juiz e o senador Alvaro Dias (Podemos) brigam pela vaga. Entre a última semana de junho e a primeira de julho, três pesquisas de institutos diferentes mostraram que o cenário está indefinido para o Senado.

A diferença entre os dois pré-candidatos oscila entre 7% e 10% das intenções de voto. Moro apareceu à frente apenas no levantamento do Real Time Big Data, com 30% a 23% sobre Dias. A pesquisa Ipespe mostrou o senador na dianteira, 31% a 24%. Já o levantamento da IRG Pesquisas indicou Dias com 32%, contra 22% do ex-juiz.

A sondagem do Ipespe mediu também a rejeição dos candidatos ao Senado no Paraná. Moro lidera com 31% daqueles que não votariam “de jeito nenhum”. Dias aparece em terceiro, atrás de Dr. Rosinha (PT), com 17%. Outro fator a ser considerados nas pesquisas é a quantidade indecisos e daqueles que não votariam nos pré-candidatos apresentados, que varia de 20% a 30%.

Alvaro Dias articulou a entrada de Moro no Podemos, ainda antes da mudança do ex-ministro para o União Brasil, no fim de março. Três meses e meio depois de desistir da candidatura à Presidência, que era apoiada pelo senador, o ex-juiz vai disputar contra o “padrinho político”.

Ambos têm se tratado publicamente da, até então, possível disputa com respeito e civilidade. “É um político que respeito. Corremos em raias separadas. (Precisa ver) se afinal de contas, ele será candidato ao senado ou uma outra situação. Caso se confirme, vou conduzir no mais alto nível, sempre tive essa postura de construção e de jamais proceder ataques”, afirmou Moro.

No mês passado, entre a possível corrida pelo Planalto, como representante da chamada terceira via, e a pré-candidatura ao Senado pelo Paraná, Moro viu frustrados os planos de se candidatar a uma vaga no Congresso por São Paulo. Ele teve a transferência de domicílio eleitoral negada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por não ter vínculo com o Estado. À época, o ex-juiz discordou, mas disse que respeitava a decisão.

“Havia intenção e desejo de que eu me colocasse como pré-candidato à Presidência, mas seria necessário ter estrutura partidário robusta para concorrer em condições de igualdade. Não foi possível no Podemos”, disse. “O destino escreve certo por linhas tortas, estou radiante no Paraná por poder colocar meu nome como pré-candidato ao Senado”, apontou.

O ex-ministro nasceu em Maringá (PR) e foi o responsável por julgamentos da Operação Lava Jato como juiz federal de primeira instância, de 2014 a 2018. Depois, deixou a magistratura para assumir o Ministério da Justiça do recém-eleito, à época, presidente Jair Bolsonaro. Moro anunciou a saída do cargo em maio de 2020.

Ederson Hising, especial para o Estado de S. Paulo, em 12.07.22

Como partidos políticos gastam milhões em dinheiro público praticamente sem fiscalização

        Entre as eleições de 2014 e 2018, o Brasil não assistiu apenas a uma mudança no perfil do presidente eleito. A matriz de financiamento da         política no país também deu uma guinada: a participação do dinheiro público nas despesas das campanhas saltou de quase 4% para 69% no         período, de R$ 189 milhões para R$ 2,09 bilhões.

Brasil mudou o modelo de financiamento da política, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização - o que acaba favorecendo a corrupção (Getty Images)

Nesse meio tempo, foram aprovados a criação do fundo eleitoral, que injetou R$ 1,7 bilhão em recursos públicos nas campanhas, e o reforço do fundo partidário, cujo orçamento mais que dobrou, de R$ 371 milhões para R$ 888 milhões nesses quatro anos.

O país mudou o modelo de financiamento de campanhas e partidos, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização. Como resultado, parte dos bilhões que alimentaram as eleições foi gasto com pouco ou sem nenhum escrutínio.

Um exemplo: nem todas as despesas do fundo eleitoral passam pela análise da Justiça Eleitoral. Como o volume de informações a cada pleito é enorme - foram pouco mais de 28 mil candidatos em 2018 -, a fiscalização é feita por amostragem. Via de regra, apenas as candidaturas vencedoras têm as contas verificadas.

As estatísticas mostram que a maior parte dos gastos está de fato concentrada nos vencedores - de acordo com um cálculo feito pelo professor de direito eleitoral Filippe Lizardo, em 2014, os 7% do total de candidatos que foram eleitos concentraram 63% das movimentações de receita.

Os escândalos recentes envolvendo candidaturas laranjas nas eleições do ano passado, entretanto - em que partidos usavam candidatas de fachada para cumprir as cotas obrigatórias para mulheres e desviar os recursos para particulares ou para formação de caixa 2 -, mostraram que há casos importantes de corrupção que, dessa forma, acabam escapando da fiscalização do Estado.

Especialistas em contabilidade eleitoral afirmam que a Justiça não tem estrutura para avaliar todas as contas, mas ressaltam que a própria regulamentação do fundo eleitoral abre uma série de brechas para corrupção.

Gráfico com a composição das despesas de campanha

Ela não proíbe, por exemplo, que candidatos contratem empresas de familiares ou que os fornecedores que prestam serviço para as campanhas subcontratem outras firmas - o que permite, por exemplo, que uma gráfica que claramente não tenha infraestrutura para entregar os milhões em santinhos declarados na prestação de contas alegue que repassou o trabalho para outra empresa.

O fundo eleitoral foi criado como alternativa ao financiamento privado de campanha, que é pano de fundo de alguns dos maiores casos de corrupção da última década e que foi considerado inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015.

Diante dos escândalos recentes, pelo menos dois projetos surgiram do Congresso neste ano com a proposta de acabar com o fundo eleitoral - o que divide especialistas.

Ele não é, entretanto, a única fonte de dinheiro público usada por partidos políticos - ou que tem problemas na maneira como está estruturado.

Fundo partidário: TSE ainda julga contas de 2014

Mais antigo que o fundo eleitoral, o fundo partidário está previsto na Constituição de 1988, mas foi apenas recentemente que ele passou a chamar atenção, por movimentar cifras cada vez maiores.

"Em 2014, o Congresso se deu conta de que o STF iria julgar inconstitucional o financiamento privado de campanha e deram um jeito de aumentar o valor do fundo", diz Lizardo, que já foi chefe da seção de contas eleitorais do TRE-SP.

Em setembro de 2015, o Supremo proibiu o financiamento privado de campanha. Cinco meses antes, em abril daquele mesmo ano, uma emenda à proposta de Orçamento relatada pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) aumentou a previsão de repasse para o fundo partidário em três vezes, para quase R$ 900 milhões.

O texto foi aprovado sem vetos pela presidente Dilma Rousseff, que não queria se indispor com o Legislativo e perder ainda mais apoio entre deputados e senadores.

Gráfico mostra evolução do fundo partidário

No caso do fundo partidário, porém, a avaliação da Justiça Eleitoral é mais minuciosa. Como conta Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Ibrade (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral), técnicos da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE ou dos Tribunais Regionais Eleitorais analisam cada nota fiscal apresentada pelas legendas.

O problema: isso leva muito tempo. Hoje estão sendo julgadas as contas de 2014 apresentadas pelos 35 partidos. Ou seja, há ainda cerca de R$ 3,6 bilhões em recursos públicos ainda não avaliados pela Justiça - e o prazo de prescrição é de 5 anos.

"O fundo partidário é uma caixa-preta", diz Marcelo Issa, coordenador do movimento Transparência Partidária.

Procurador Regional Eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves reconhece que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para dar conta da demanda de forma célere - "a gente precisaria ter 10 vezes o tamanho de uma (auditoria) Ernst&Young pra conseguir fiscalizar isso tudo" -, mas pondera que "é de interesse dos partidos protelar ao máximo, por causa da prescrição".

Nesses casos, a avaliação detalhada muitas vezes não tem efeito prático, já que os partidos não podem sofrer sanções por eventuais irregularidades, mesmo que elas sejam encontradas.

No início de abril, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou emendas feitas ao PL 1321/19, que anistia partidos que cometeram infrações eleitorais (Najara Araujo / Câmara dos Deputados)

Na prática, diz ele, os partidos costumam, de antemão, entregar a documentação incompleta - e muitas vezes fora do prazo. A fiscalização, por sua vez, leva três ou quatro anos para detectar a falta de algum comprovante - que, a essa altura, muitas vezes nem existe mais.

Apesar de a contabilidade eleitoral (ou seja, das campanhas) ser automatizada desde 2002, a prestação de contas dos partidos era feita em papel até 2017. E ainda que o sistema seja hoje digital, ele não é alimentado em tempo real - os partidos têm até abril do ano fiscal seguinte para apresentar os documentos.

O movimento Transparência Partidária já propôs a mudança, inclusive para que os dados estivessem disponíveis para a sociedade civil em um prazo mais curto, mas a sugestão foi rejeitada por advogados e representantes de 32 dos 35 partidos, diz Issa.

Ele elenca ainda outro problema, esse comum ao fundo partidário e eleitoral - o das rubricas excessivamente genéricas, que dificultam a identificação da natureza da despesa e, portanto, o destino de fato do recurso público.

No relatório sobre as contas dos partidos apresentadas em 2017, o Transparência Partidária apontou que 45 das 270 categorias de despesas presentes no Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) eram excessivamente abrangentes. Juntas, elas responderam por 17,4% das despesas totais dos partidos em 2017, mais de R$ 120 milhões.

Apenas a rubrica "Serviços técnicos-profissionais - Outros serviços técnicos e profissionais - Ordinárias" concentrou R$ 44,9 milhões. "Assunção de Dívidas de Campanha - Dívidas de Candidatos - Despesas Eleitorais" somam outros R$ 22 milhões.

"As empresas são submetidas a um escrutínio muito maior", compara o procurador Luiz Carlos Gonçalves, que defende maior transparência "porque, afinal, trata-se de recurso público, que o Brasil poderia usar para outros fins".

Financiamento público vs. privado

Em meio aos escândalos de candidaturas laranjas que atingiram o partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL, o senador Major Olímpio, também filiado à sigla, apresentou em fevereiro um projeto de lei para acabar com o fundo eleitoral.

"Nos casos que estão aí manifestos em inúmeros partidos, está cada vez mais clara a falta de critérios na própria lei e ainda a imoralidade de usar recurso público, no caso, de R$ 1,7 bilhão (do fundo). A lei é absolutamente aberta. A distribuição é feita ao bel-prazer do dirigente partidário", disse ele na ocasião.

Além do PL 555/2019, também foi protocolado neste ano um outro projeto para acabar com o fundo eleitoral, o PL 748/2019, de autoria do senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Casos de desvio de verba do fundo eleitoral por meio de candidaturas laranjas motivou propostas para acabar com financiamento público de campanha (Cecilia Tombesi / BBC)

Especialistas avaliam, entretanto, que o problema da corrupção no sistema político não se deve necessariamente ao fato de o financiamento ser público ou privado.

Rumbidzai Kandawasvika-Nhundu e Yukihiko Hamada, especialistas do International Idea, organização sem fins lucrativos que conta com uma base de dados com informações sobre o financiamento da política em 180 países, ressaltam que não existe um modelo ideal.

Seja com dinheiro público ou vindo do setor privado, dizem, o que favorece a corrupção é a falta de fiscalização ou de uma legislação rigorosa de prestação de contas ou, no caso de recursos públicos, de como o dinheiro deve ser gasto.

"Esse (o financiamento de partidos e eleições) é um desafio em todas as democracias, especialmente em um momento em que a antipolítica predomina", avalia a cientista política Silvana Krause, pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

A especialista pondera que, hoje, a sociedade percebe que foi um equívoco a avaliação de que o problema da corrupção na política brasileira estava relacionado exclusivamente ao fato de que eram empresas privadas que financiavam campanhas.

Krause destaca que o sistema político segue altamente concentrador de recursos, à medida que o dinheiro é repassado para os diretórios nacionais, que têm completa autonomia para distribuí-los da forma como quiserem.

Esse tipo de arranjo favorece a perpetuação dos "caciques" e a formação de oligarquias nos partidos - que, em última instância, facilitam a corrupção.

Relator do PL 1321/19, que tratava da duração dos mandatos de dirigentes dos partidos, deputado Paulinho da Força incluiu emenda da anistia (Luís Macedo / Câmara dos Depuitados)

Nesse sentido, para Lizardo, além de estabelecer critérios de distribuição interna dos recursos, a legislação deveria ter regras de "democracia intrapartidária" mais rigorosas, normas específicas para balizar a aplicação dos recursos - que proibissem a contratação de parentes, por exemplo - e o fortalecimento da Justiça Eleitoral.

Para o professor, um bom começo é o Projeto de Lei do Senado 429, de 2017, que prevê a adoção de programa de compliance pelos partidos para coibir desvios e fraudes na utilização de recursos públicos.

Para Issa, do Transparência Partidária, o país vai no sentido oposto, entretanto, quando aprova, por exemplo, que os partidos sejam isentos de multas e penalidades por infrações na legislação eleitoral, como aconteceu no início deste mês de abril.

Aprovada na Câmara dos Deputados, a anistia libera os partidos que não tenham respeitado até 2019 a regra que prevê a aplicação de 5% do fundo partidário para a "criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres".

Havia uma proposta de emenda do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) para que os partidos tivessem a possibilidade de devolver as sobras do fundo ao Tesouro - rejeitada, porém, por 294 votos a 144.

O projeto, relatado pelo deputado Paulinho da Força (SD-SP), agora tramita no Senado.

Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo - 23.04.19

4 previsões que revelam economia em apuros para próximo presidente

 A menos de três meses do primeiro turno das eleições, as expectativas para a economia brasileira na virada de 2022 para 2023 indicam sufoco para quem assumir o comando do país.

A combinação prevista é de baixo crescimento, inflação ainda corroendo o poder de compra da população e uma ausência de sinais de melhora no nível de emprego formal e na renda das famílias.

Previsões são de baixo crescimento e inflação corroendo o poder de compra da população (Getty Images)

Tudo isso em um país que viu subir o número de pessoas que passa fome, chegando a 33 milhões de brasileiros (15,5% da população). E onde mais da metade da população vive com algum grau de insegurança alimentar — ou seja, enfrenta dificuldade para comer, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.

Para explicar as previsões, a BBC News Brasil reuniu projeções de órgãos oficiais e instituições internacionais em relação a quatro pontos centrais para a economia — que sinalizam como está ou estará a condição de vida do brasileiro.

Antes de detalhar esses indicadores, é preciso lembrar que essas projeções vêm sendo reavaliadas diante de cada novo acontecimento relevante no mundo (como os efeitos da Guerra na Ucrânia e o medo de uma recessão global) e no Brasil (como a incerteza diante da eleição e os efeitos de medidas propostas às vésperas dela).

Brasil viu subir número de pessoas que passam fome, chegando a 33 milhões de brasileiros (Getty Images)

1. Crescimento econômico

As perspectivas para o crescimento da economia brasileira apontam que pode vir um "pibinho" ao fim de 2022 — as diferentes projeções giram em torno de 1% para o ano. O PIB (Produto Interno Bruto) é a soma de bens e serviços produzidos por um país.

Mas o que isso significa, de fato?

"É andar de lado, igual a um caranguejo", diz o economista Fábio Terra, professor de Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC). "É uma imagem triste, mas é a mais realista que a gente tem".

No boletim Focus (levantamento semanal de expectativas do mercado colhidas pelo Banco Central) divulgado nesta segunda (11/7), a projeção de PIB para este ano está em 1,59%.

A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) revisou em junho sua expectativa para 0,6% de crescimento do Brasil neste ano; o Banco Central prevê 1,7%, e a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado estima cerca de 1,4%.

Segundo a previsão da OCDE, o crescimento previsto para o Brasil representa um quinto da projeção de crescimento mundial (3%).

OCDE prevê crescimento de 0,6% para o Brasil em 2022. Projeção do PIB (em %).  .

A entidade destacou que a inflação afetou o poder de compra dos brasileiros e aponta que a eleição presidencial de 2022 adiciona incerteza, afetando o investimento. Acrescenta ainda que "a recuperação do mercado de trabalho tem sido lenta" (como será detalhado no terceiro tópico desta reportagem).

Para 2023, a entidade prevê um crescimento de 1,2% para o Brasil, pouco menos da metade da projeção para o avanço no mundo (2,8%). Antes, a OCDE previa que o Brasil poderia crescer 2,1% no próximo ano.

OCDE prevê crescimento de 1,2% para o Brasil em 2023. Projeção - PIB (em %).  .

A economista Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado, destaca que, de maio para junho, a IFI diminuiu sua projeção de crescimento para 2023, de 1% para 0,8%. Ela diz que medidas que vêm sendo adotadas pelo Brasil se refletem "na perda da credibilidade na condução da política fiscal" — como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que abre brecha para que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) turbine programas sociais às vésperas da eleição, apelidada de PEC Kamikaze.

O Senado já aprovou a proposta, que propõe o reconhecimento do estado de emergência, o que, em tese, daria respaldo legal para o governo criar benefícios em ano eleitoral. A expectativa é que a Câmara avalie o texto nesta terça-feira (12/7). Se a PEC for aprovada, seu impacto nos cofres públicos pode chegar a R$ 41,2 bilhões.

O governo defende a medida afirmando que ela é importante para diminuir o efeito da alta da inflação sobre as pessoas mais vulneráveis. A PEC prevê benefício para caminhoneiros autônomos de R$ 1 mil por mês até dezembro deste ano, um auxílio para taxistas, aumenta de R$ 400 para R$ 600 o Auxílio-Brasil, dobra o valor do Auxílio Gás, compensa Estados pela gratuidade do transporte público de idosos, entre outras medidas.

E, fora do Brasil, as expectativas para a economia mundial têm sido impactadas por um receio que cresceu nos últimos dias: a possibilidade de uma recessão global, o que é uma notícia ruim especialmente para países emergentes.

Quando há recessão global, investidores tendem a buscar maior segurança, o que significa tirar dinheiro de países como o Brasil.

Esse temor de recessão está ligado principalmente à expectativa de que países como os Estados Unidos subam mais os juros, fortalecendo o dólar em relação a outras moedas.

"E aí tem efeito sobre a inflação: tudo aquilo que é comprado em dólar se torna mais caro. E o poder de compra acaba corroendo mais ainda, o que é ruim para o consumo e para a atividade econômica", explica Terra.

Vilma Pinto diz que o desafio do Brasil será "tentar recuperar um pouco da credibilidade que foi perdida ao longo do tempo", para então "recuperar capacidade de investimento, tentar melhorar o zelo com as contas fiscais e tentar criar mecanismos para que o Brasil consiga crescer mais, ter menor inflação e ter um desemprego menor".

Vilma Pinto, diretora da IFI, diz que desafio do Brasil será 'tentar recuperar um pouco da credibilidade que foi perdida ao longo do tempo' (Pedro França / Agência Senado)

2. Inflação

Órgão responsável por manter a inflação sob controle, o Banco Central (BC) já reconheceu que a meta estabelecida para 2022 não será cumprida. A projeção da instituição é que o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, índice oficial para medir inflação no Brasil) fique em 8,8% neste ano, bem acima da meta de inflação, fixada em 3,5% para este ano (com margem para oscilar entre 2% e 5%).

As expectativas dos economistas do mercado financeiro estão hoje em 7,67%, segundo o boletim Focus divulgado nesta segunda (11/7).

Os números refletem o que os brasileiros já estão sentindo na prática — os aumentos de preços de alimentos e de combustíveis estão entre as principais queixas.

Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, a inflação é um problema que vem afetando países no mundo todo — inclusive alguns que lembravam muito pouco como era ter que lidar com um aumento tão acelerado do custo de vida, como o Reino Unido.

No entanto, o Brasil está agora entre os poucos países com inflação de dois dígitos (em 12 meses até maio), como mostra levantamento da OCDE. Entre os integrantes do G20, inflação brasileira só não é maior que Tuquia, Argentina e Rússia.

Com a inflação nas alturas, o Banco Central sobe a taxa de juros para tentar contê-la, mas isso também impacta negativamente na atividade econômica, pois se trata de um desestímulo para o investimento produtivo, como explica Terra.

"O Banco Central corretamente subiu a taxa de juros a partir de 2021 porque a inflação estava já incômoda e demonstrando que não cederia fácil. Talvez ele tenha subido demais. O Brasil tem hoje a maior taxa real de juros do mundo. Isso é muito desestimulante ao investimento", opina o professor. "O Brasil tem hoje uma renda real de trabalho que é 7,5% menor do que em 2021. Portanto, as pessoas conseguem consumir menos e o Brasil talvez esteja entrando agora no período mais complicado, em geral, das dificuldades políticas do país, que é o período eleitoral."

As previsões para 2023 são de uma inflação menor que em 2022, mas ainda em níveis elevados. O Banco Central, por exemplo, prevê um IPCA em torno de 4%.

Banco Central prevê inflação de 8,8% em 2022. Projeção de inflação para os próximos anos (em %).  .

Terra aposta em um índice mais alto, perto de 5 ou 6%. E a economista Vilma Pinto lembra que medidas tomadas recentemente pelo governo para tentar aliviar preços estão afetando essas previsões - reduzindo um pouco a projeção para este ano, mas aumentando para o próximo.

A meses da eleição e com a alta dos preços de combustíveis, o governo vem promovendo medidas para tentar reduzir o preço desses produtos — como a lei que zerou até o fim deste ano os tributos federais sobre diesel e gás de cozinha.

Também houve a imposição de um teto de 17% no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis. E, em um decreto editado antes da eleição e que vale até o final de 2022, o presidente Jair Bolsonaro (PL) determina que postos exibam os preços dos combustíveis antes e depois dessa lei.

Vilma Pinto destaca que a IFI aumentou para 4,2% a previsão de inflação em 2023 e que está voltando a revisar essa previsão.

"É provável que a gente tenha um número pior do que esses 4,2% que a gente está projetando hoje, lembrando que esse número já é pior do que o que a gente projetava em maio por conta desse efeito de corte de impostos para 2022 e reversão disso para 2023."

3. Desemprego

Economistas dizem que não há sinais de que haverá melhora significativa no mercado de trabalho formal (Lincoln Zarbeietti)

O mais recente indicador do nível de desemprego mostrou uma recuperação. A taxa de desemprego caiu para 9,8% no trimestre encerrado em maio, a menor desde o trimestre encerrado em janeiro de 2016, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Apesar disso, 10,6 milhões de brasileiros seguem sem trabalho.

Especialistas destacam que uma análise mais detalhada desses números mostra que a alta foi puxada por trabalhos sem carteira assinada, como aponta Terra.

"A gente fala que o mercado de trabalho está melhorando. Mas qual é essa melhora? Sobretudo, o mercado de trabalho informal. Há uma metáfora para comunicar isso, que é o 'se vira nos 30' — a renda está caindo, a pessoa precisa trabalhar, agora já não tem mais que fazer distanciamento social, tem vacinação… Aí as pessoas estão fazendo o que dá para sobreviver, para poder trabalhar — então vai trabalhar como entregador, como diarista", diz o economista.

O problema, segundo Terra, é que não há hoje elementos para acreditar que haverá uma melhora na atividade para dar força ao emprego com carteira assinada.

"A pergunta para 2003 é: o que vai puxar o crescimento econômico? Se a gente não tem nada muito forte puxando o crescimento econômico, a gente não vai ter nada que apareça muito forte puxando o emprego formal. A dinâmica do trabalho informal vai continuar para o ano que vem. Não vejo diferença com relação a esse ano."

Isso se reflete na renda dos trabalhadores.

Vilma Pinto, da IFI, chama atenção para o fato de que o rendimento real (descontando o efeito da inflação) está menor.

"Se por um lado a gente vê, em termos de quantidade, uma melhora, uma redução em um número de pessoas desempregadas, por outro lado, essa questão da inflação está de fato piorando a situação econômica como um todo. E quando a gente olha em termos de salários, o salário real está sendo altamente afetado", diz a economista.

Os dados do IBGE apontam que o rendimento médio real do trabalhador (R$ 2.613) ainda é 7,2% menor na comparação do trimestre encerrado em maio de 2022 com o igual período de 2021.

Vilma prevê que, em 2023, a população ocupada fique estagnada (ou seja, em níveis parecidos com os de 2022). "Nas situações de curtíssimo prazo, a gente enxerga uma melhora, mas a perspectiva de médio prazo não é tão animadora", diz.

Inflação está corroendo poder de compra do brasileiro (Getty Images)

4. Contas públicas

A inflação — a mesma que corrói o poder de compra dos brasileiros — tem um efeito "positivo" para os cofres públicos: aumenta a arrecadação do governo. Isso acontece devido ao aumento dos preços dos produtos — com as empresas lucrando mais, a base de arrecadação também sobe.

"O aumento de preços de commodities está fazendo com que as finanças públicas se comportem bem melhor do que o esperado. E isso implica que tem sido bom o fluxo de caixa", avalia Terra.

O resultado mais recente da arrecadação de tributos federais, por exemplo, aponta que essa receita foi a mais alta em 28 anos — atingiu R$ 165,3 bilhões em maio, recorde para o mês desde 1995, quando começou a série histórica da Receita Federal.

No entanto, o aumento de arrecadação costuma ser comemorado quando ele reflete uma atividade econômica mais aquecida. E outro problema sobre o cenário atual, dizem os economistas, é que essa melhora é pontual.

Vilma Pinto, que é especialista em finanças públicas, defende que o governo não pode contar com esse aumento de arrecadação no médio prazo.

"Esse aumento de receita tende a ser temporário, na medida em que esse choque (de commodities) passa", argumenta. "A gente precisa ter um pouco mais de cautela na hora de adotar medidas que gerem impactos permanentes."

E alerta: "As medidas fiscais que estão sendo adotadas do ano passado para cá, principalmente, vão no sentido não só de piorar a trajetória fiscal futura em termos de aumento de gastos e redução de receita, mas também no sentido de diminuir a confiança das pessoas no compromisso com a responsabilidade fiscal".

"Isso gera melhora fiscal aparente de curtíssimo prazo, dá impressão de que teto está sendo cumprido, mas isso é piora fiscal lá na frente", conclui a economista.

Laís Alegretti, da BBC News Brasil em Londres, em 12.07.22. / publicado origionalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62062570

Discurso eleitoral contra comunismo não está mais tendo efeito na América Latina, diz especialista

A direita latino-americana tem que parar de fazer política por nostalgia se quiser ganhar as eleições presidenciais novamente.

Comemoração pela vitória de Gustavo Petro nas eleições presidenciais colombianas nas ruas de Bogotá (Getty Images)

Os desafios de Gustavo Petro, primeiro presidente de esquerda eleito na Colômbia

É o que pensa Alberto Vergara, cientista político da Universidade do Pacífico em Lima, no Peru, ao avaliar o que muitos descrevem como uma "onda esquerdista", movimento que ele acredita estar invadindo a região porque as pessoas estão cansadas da "nova direita" que governou recentemente em alguns países.

Com a vitória de Gustavo Petro na Colômbia em 19 de junho, foi confirmada uma tendência de candidatos de esquerda na América Latina, precedida pelos triunfos de Xiomara Castro em Honduras, Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile.

A chamada onda esquerdista surge após vários partidos de direita governarem essas regiões.

Houve algum desgaste na direita? As pessoas se cansaram? Ou seus programas são pouco atraentes?

Vergara, que é autor de vários livros e ensaios sobre política latino-americana, fala em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre os motivos pelos quais a "nova direita latino-americana" não é mais atraente para muitos setores da região.

Além disso, explica como e por que a esquerda recuperou espaços que havia perdido e o que se pode esperar dos novos governos de esquerda na região.

BBC Mundo - O triunfo de Petro na Colômbia confirma que, pouco a pouco, a América Latina continua voltando à esquerda. A que se deve essa mudança?

Alberto Vergara - Existem duas coisas diferentes. Uma é que na região existe e tem existido um clima anti-incumbência, uma rejeição dos que estão no poder. Isso mostra que as pessoas estão cansadas.

Também mostra que as pessoas querem experimentar outras opções e querem uma mudança.

Em Honduras, por exemplo, as pessoas ficaram fartas do governo de Juan Orlando Hernández e entrou Xiomara Castro, que encararam como a mudança. Ele ganhou porque estava na esquerda? Sim, mas as pessoas também estavam cansadas de Hernández e queriam algo alternativo e lá estava ela.

Diante desse espírito contra o status quo, acredito que a direita se apoiou em um discurso basicamente dos tempos da Guerra Fria, anticomunista, como forma de fazer política.

Diante disso, a esquerda interpretou melhor a necessidade de mudança e oferece um projeto com o qual você pode concordar ou não, mas que é um projeto do início ao fim, enquanto a direita parece ter ficado sem projeto.

Então temos de um lado uma direita que tem dificuldade em oferecer algo novo e do outro uma esquerda que acaba oferecendo algo que ressoa mais com a mudança.

BBC Mundo - Por que você acha que não consegue desenvolver um plano? O que está acontecendo com a direita latino-americana hoje?

Vergara - Acredito que a direita se transformou e é diferente daquela direita após a queda do Muro de Berlim.

Aquela era uma direita associada às reformas neoliberais, ao consenso de Washington e à vontade de liberalizar os mercados, internacionalizar a economia e administrar a macroeconomia da forma mais ortodoxa possível.

Isso foi se esgotando como retórica e projeto. De fato, a onda de governos de esquerda no início dos anos 2000 veio para tentar encerrar essa era neoliberal.

Mas nos últimos 10 anos tem surgido uma direita mais radical que a direita economicista do passado.

A preocupação central dessa nova direita já não é tanto a economia, mas o que eles chamam de batalhas culturais.

A direita atual considera que a do passado, mais neoliberal e centrada na economia, é uma "direita covarde" e que eles, representantes da direita mais radical, estão travando as batalhas ideológicas e culturais que são as questões que importam, segundo eles.

BBC Mundo - Então você acredita que as pessoas estão cansadas dessa direita mais radical?

Vergara - Essa nova direita que é mais cultural, muito ligada a redes e circuitos que compartilham teorias da conspiração, um pouco na órbita do trumpismo, teve seu momento. Principalmente com a eleição de Jair Bolsonaro.

A eleição de Bolsonaro talvez tenha sido o momento de maior sucesso para essa direita mais conservadora e antiliberal. Isso deu a eles a sensação de que você pode ter sucesso com plataformas reacionárias.

No entanto, não é que tenha deixado de ter importância. Eles simplesmente pararam de ter vitórias presidenciais equivalentes.

A direita que apoiou fortemente a candidatura de Kast no Chile ou por trás de Fujimori no Peru acabou fracassando.

Gabriel Boric representou chegada da esquerda ao poder no Chile (Getty Images)

Na verdade, na Colômbia falhou ainda mais. María Fernanda Cabal, a política de extrema-direita da Colômbia, nem sequer ganhou as primárias do Uribismo.

A direita radical vem perdendo relevância.

'Elites não têm de concordar comigo, mas não precisam ter medo', diz Gabriel Boric à BBC

Ainda tem seguidores muito fiéis e ativos nas redes, mas acho difícil para eles atrair mais pessoas fora desses circuitos.

Com essas últimas derrotas, o racional seria que a direita latino-americana entendesse que não tem conseguido êxito com esse rol conservador, autoritário e orgulhosamente antiprogressista.

BBC Mundo - O discurso "não votem neles porque vão transformar o país em outra Venezuela" não é mais convincente?

Vergara - A direita na América Latina tentou durante anos dissuadir as pessoas de votar na esquerda acusando-a de comunista, mas essa tática não funciona mais, pelo menos não para ganhar as eleições presidenciais.

Eu diria que ainda funciona parcialmente, mas não como antes.

Na Colômbia, Rodolfo Hernández obteve 47% dos votos: não é que tenha ficado completamente arrasado.

Ainda há um importante grupo da população que está genuinamente assustado com a chegada de um governo que leve o país a algo semelhante ao que Chávez fez com a Venezuela.

Vergara diz que a direita latino-americana tem que deixar de acreditar que é possível fazer política por meio da nostalgia (Arquivo pessoal Alberto Vergara).

Mas, efetivamente, o discurso não obteve êxito recentemente em Honduras, no Chile e no Peru.

As pessoas ainda temem essa opção, mas não votam apenas por medo, mas também por necessidade de mudança.

Os eleitores sabem que há nuances e que as opções não são apenas o status quo ou a Venezuela.

Eles sabem que qualquer tentativa alternativa não será necessariamente o desastre venezuelano.

BBC Mundo - Falam de uma nova onda de esquerda que está "expandindo por toda a América Latina". Você acha que vai durar e continuar chegando a outros países da região?

Vergara - Não acho que vai durar tanto. Na América Latina de vez em quando fala-se de uma onda da esquerda, depois vem a onda da direita, como quando Sebastián Piñera, Bolsonaro, Pedro Pablo Kuczynski e Guillermo Lasso venceram.

E agora estaríamos virando à esquerda novamente.

O mais provável é que teremos que nos acostumar com essa saudável alternância democrática entre direita e esquerda, em vez de ter ondas duradouras.

Vários estudos de ciências políticas demonstram que em geral não houve transformações profundas nos valores políticos da sociedade e que as crenças políticas do povo não se moveram para a direita ou para a esquerda.

BBC Mundo - O que a esquerda deveria fazer para atrair novamente o eleitorado?

Vergara - A direita latino-americana tem que parar de acreditar que a política pode ser feita na região a partir da nostalgia.

É ridículo replicar o "tornar a América grande novamente" de Trump na América Latina. Os latino-americanos sabem que as melhorias na região sempre foram construídas aos poucos.

Não havia momento ideal, um Éden, ao qual retornar.

Quando Kast, no Chile, fez campanha com comentários abertamente machistas, ou quando o próprio Rodolfo Hernández o fez na Colômbia, eles estavam falando para um continente no qual as mulheres hoje são muito mais fortes, mais livres e autônomas e que não querem voltar ao passado.

Ouvir um candidato que quer voltar no tempo é uma bobagem.

O discurso abertamente sexista de Kast permitiu que um candidato como Boric obtivesse cerca de 70% dos votos de mulheres com menos de 30 anos.

A direita latino-americana precisa reconsiderar por que não consegue convencer as pessoas. Eles devem entrar em uma fase de avaliação e transformação no futuro.

BBC Mundo - O que esperar de Chile, Peru e Colômbia após a vitória da esquerda nesses países?

Vergara - Acho que estão em situações diferentes. No Chile tenho a impressão de que a Assembleia Constituinte dominada pela nova esquerda desperdiçou uma oportunidade talvez única de renovar o país ao impor uma agenda muito ativista e muito distante do cidadão comum.

Se o projeto constitucional acabar rejeitado, será um grande problema para o presidente Boric e para a esquerda latino-americana.

No caso peruano, chegou ao poder um presidente que é uma rara combinação de inexperiência absoluta com corrupção significativa e que deixa o país à deriva, sem nenhum projeto.

Castillo está simplesmente tentando sobreviver enquanto o país vai pelo ralo.

Gustavo Petro e a vice-presidente Francia Márquez fizeram história ao ganhar as eleições presidenciais na Colômbia (Getty Images)

Petro é um gande líder político, com muita experiência. Foi prefeito de Bogotá e foi um senador muito importante na Colômbia. Tem uma longa trajetória e vem mudando, em questões econômicas, por exemplo, e vem desenvolvendo uma preocupação com energia verde e ecologia.

Politicamente, tudo indica que ele abandonou a reivindicação de uma nova assembleia constituinte para a Colômbia.

Parece ser alguém da esquerda que vem moderando. Embora todos saibamos que há uma distância entre dizer e fazer.

BBC Mundo - O que essa virada à esquerda significa do ponto de vista internacional e para as relações com os Estados Unidos e o resto do mundo?

Vergara - As relações com os Estados Unidos ou com a China não são marcadas pelo ciclo eleitoral, mas sim por processos um pouco mais longos.

Tenho a impressão de que os Estados Unidos perderam relevância na região. Parece não ter muito a oferecer, independentemente de governos de esquerda ou de direita.

A Colômbia, que sempre foi aliada dos EUA, não vai deixar de ser aliada porque Petro venceu.

Por outro lado, Bolsonaro, sendo um governo de direita, não tem nenhuma simpatia pelo governo Biden e abomina os democratas e suas agendas progressistas.

Norberto Paredes @norbertparedes, da BBC News Mundo, em 02.07.22