terça-feira, 12 de julho de 2022

Como partidos políticos gastam milhões em dinheiro público praticamente sem fiscalização

        Entre as eleições de 2014 e 2018, o Brasil não assistiu apenas a uma mudança no perfil do presidente eleito. A matriz de financiamento da         política no país também deu uma guinada: a participação do dinheiro público nas despesas das campanhas saltou de quase 4% para 69% no         período, de R$ 189 milhões para R$ 2,09 bilhões.

Brasil mudou o modelo de financiamento da política, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização - o que acaba favorecendo a corrupção (Getty Images)

Nesse meio tempo, foram aprovados a criação do fundo eleitoral, que injetou R$ 1,7 bilhão em recursos públicos nas campanhas, e o reforço do fundo partidário, cujo orçamento mais que dobrou, de R$ 371 milhões para R$ 888 milhões nesses quatro anos.

O país mudou o modelo de financiamento de campanhas e partidos, mas praticamente não alterou as regras do jogo ou a estrutura de fiscalização. Como resultado, parte dos bilhões que alimentaram as eleições foi gasto com pouco ou sem nenhum escrutínio.

Um exemplo: nem todas as despesas do fundo eleitoral passam pela análise da Justiça Eleitoral. Como o volume de informações a cada pleito é enorme - foram pouco mais de 28 mil candidatos em 2018 -, a fiscalização é feita por amostragem. Via de regra, apenas as candidaturas vencedoras têm as contas verificadas.

As estatísticas mostram que a maior parte dos gastos está de fato concentrada nos vencedores - de acordo com um cálculo feito pelo professor de direito eleitoral Filippe Lizardo, em 2014, os 7% do total de candidatos que foram eleitos concentraram 63% das movimentações de receita.

Os escândalos recentes envolvendo candidaturas laranjas nas eleições do ano passado, entretanto - em que partidos usavam candidatas de fachada para cumprir as cotas obrigatórias para mulheres e desviar os recursos para particulares ou para formação de caixa 2 -, mostraram que há casos importantes de corrupção que, dessa forma, acabam escapando da fiscalização do Estado.

Especialistas em contabilidade eleitoral afirmam que a Justiça não tem estrutura para avaliar todas as contas, mas ressaltam que a própria regulamentação do fundo eleitoral abre uma série de brechas para corrupção.

Gráfico com a composição das despesas de campanha

Ela não proíbe, por exemplo, que candidatos contratem empresas de familiares ou que os fornecedores que prestam serviço para as campanhas subcontratem outras firmas - o que permite, por exemplo, que uma gráfica que claramente não tenha infraestrutura para entregar os milhões em santinhos declarados na prestação de contas alegue que repassou o trabalho para outra empresa.

O fundo eleitoral foi criado como alternativa ao financiamento privado de campanha, que é pano de fundo de alguns dos maiores casos de corrupção da última década e que foi considerado inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2015.

Diante dos escândalos recentes, pelo menos dois projetos surgiram do Congresso neste ano com a proposta de acabar com o fundo eleitoral - o que divide especialistas.

Ele não é, entretanto, a única fonte de dinheiro público usada por partidos políticos - ou que tem problemas na maneira como está estruturado.

Fundo partidário: TSE ainda julga contas de 2014

Mais antigo que o fundo eleitoral, o fundo partidário está previsto na Constituição de 1988, mas foi apenas recentemente que ele passou a chamar atenção, por movimentar cifras cada vez maiores.

"Em 2014, o Congresso se deu conta de que o STF iria julgar inconstitucional o financiamento privado de campanha e deram um jeito de aumentar o valor do fundo", diz Lizardo, que já foi chefe da seção de contas eleitorais do TRE-SP.

Em setembro de 2015, o Supremo proibiu o financiamento privado de campanha. Cinco meses antes, em abril daquele mesmo ano, uma emenda à proposta de Orçamento relatada pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) aumentou a previsão de repasse para o fundo partidário em três vezes, para quase R$ 900 milhões.

O texto foi aprovado sem vetos pela presidente Dilma Rousseff, que não queria se indispor com o Legislativo e perder ainda mais apoio entre deputados e senadores.

Gráfico mostra evolução do fundo partidário

No caso do fundo partidário, porém, a avaliação da Justiça Eleitoral é mais minuciosa. Como conta Henrique Neves da Silva, ex-ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e presidente do Ibrade (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral), técnicos da Assessoria de Exame de Contas Eleitorais e Partidárias (Asepa) do TSE ou dos Tribunais Regionais Eleitorais analisam cada nota fiscal apresentada pelas legendas.

O problema: isso leva muito tempo. Hoje estão sendo julgadas as contas de 2014 apresentadas pelos 35 partidos. Ou seja, há ainda cerca de R$ 3,6 bilhões em recursos públicos ainda não avaliados pela Justiça - e o prazo de prescrição é de 5 anos.

"O fundo partidário é uma caixa-preta", diz Marcelo Issa, coordenador do movimento Transparência Partidária.

Procurador Regional Eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves reconhece que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para dar conta da demanda de forma célere - "a gente precisaria ter 10 vezes o tamanho de uma (auditoria) Ernst&Young pra conseguir fiscalizar isso tudo" -, mas pondera que "é de interesse dos partidos protelar ao máximo, por causa da prescrição".

Nesses casos, a avaliação detalhada muitas vezes não tem efeito prático, já que os partidos não podem sofrer sanções por eventuais irregularidades, mesmo que elas sejam encontradas.

No início de abril, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criticou emendas feitas ao PL 1321/19, que anistia partidos que cometeram infrações eleitorais (Najara Araujo / Câmara dos Deputados)

Na prática, diz ele, os partidos costumam, de antemão, entregar a documentação incompleta - e muitas vezes fora do prazo. A fiscalização, por sua vez, leva três ou quatro anos para detectar a falta de algum comprovante - que, a essa altura, muitas vezes nem existe mais.

Apesar de a contabilidade eleitoral (ou seja, das campanhas) ser automatizada desde 2002, a prestação de contas dos partidos era feita em papel até 2017. E ainda que o sistema seja hoje digital, ele não é alimentado em tempo real - os partidos têm até abril do ano fiscal seguinte para apresentar os documentos.

O movimento Transparência Partidária já propôs a mudança, inclusive para que os dados estivessem disponíveis para a sociedade civil em um prazo mais curto, mas a sugestão foi rejeitada por advogados e representantes de 32 dos 35 partidos, diz Issa.

Ele elenca ainda outro problema, esse comum ao fundo partidário e eleitoral - o das rubricas excessivamente genéricas, que dificultam a identificação da natureza da despesa e, portanto, o destino de fato do recurso público.

No relatório sobre as contas dos partidos apresentadas em 2017, o Transparência Partidária apontou que 45 das 270 categorias de despesas presentes no Sistema de Prestação de Contas Anual (SPCA) eram excessivamente abrangentes. Juntas, elas responderam por 17,4% das despesas totais dos partidos em 2017, mais de R$ 120 milhões.

Apenas a rubrica "Serviços técnicos-profissionais - Outros serviços técnicos e profissionais - Ordinárias" concentrou R$ 44,9 milhões. "Assunção de Dívidas de Campanha - Dívidas de Candidatos - Despesas Eleitorais" somam outros R$ 22 milhões.

"As empresas são submetidas a um escrutínio muito maior", compara o procurador Luiz Carlos Gonçalves, que defende maior transparência "porque, afinal, trata-se de recurso público, que o Brasil poderia usar para outros fins".

Financiamento público vs. privado

Em meio aos escândalos de candidaturas laranjas que atingiram o partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL, o senador Major Olímpio, também filiado à sigla, apresentou em fevereiro um projeto de lei para acabar com o fundo eleitoral.

"Nos casos que estão aí manifestos em inúmeros partidos, está cada vez mais clara a falta de critérios na própria lei e ainda a imoralidade de usar recurso público, no caso, de R$ 1,7 bilhão (do fundo). A lei é absolutamente aberta. A distribuição é feita ao bel-prazer do dirigente partidário", disse ele na ocasião.

Além do PL 555/2019, também foi protocolado neste ano um outro projeto para acabar com o fundo eleitoral, o PL 748/2019, de autoria do senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Casos de desvio de verba do fundo eleitoral por meio de candidaturas laranjas motivou propostas para acabar com financiamento público de campanha (Cecilia Tombesi / BBC)

Especialistas avaliam, entretanto, que o problema da corrupção no sistema político não se deve necessariamente ao fato de o financiamento ser público ou privado.

Rumbidzai Kandawasvika-Nhundu e Yukihiko Hamada, especialistas do International Idea, organização sem fins lucrativos que conta com uma base de dados com informações sobre o financiamento da política em 180 países, ressaltam que não existe um modelo ideal.

Seja com dinheiro público ou vindo do setor privado, dizem, o que favorece a corrupção é a falta de fiscalização ou de uma legislação rigorosa de prestação de contas ou, no caso de recursos públicos, de como o dinheiro deve ser gasto.

"Esse (o financiamento de partidos e eleições) é um desafio em todas as democracias, especialmente em um momento em que a antipolítica predomina", avalia a cientista política Silvana Krause, pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

A especialista pondera que, hoje, a sociedade percebe que foi um equívoco a avaliação de que o problema da corrupção na política brasileira estava relacionado exclusivamente ao fato de que eram empresas privadas que financiavam campanhas.

Krause destaca que o sistema político segue altamente concentrador de recursos, à medida que o dinheiro é repassado para os diretórios nacionais, que têm completa autonomia para distribuí-los da forma como quiserem.

Esse tipo de arranjo favorece a perpetuação dos "caciques" e a formação de oligarquias nos partidos - que, em última instância, facilitam a corrupção.

Relator do PL 1321/19, que tratava da duração dos mandatos de dirigentes dos partidos, deputado Paulinho da Força incluiu emenda da anistia (Luís Macedo / Câmara dos Depuitados)

Nesse sentido, para Lizardo, além de estabelecer critérios de distribuição interna dos recursos, a legislação deveria ter regras de "democracia intrapartidária" mais rigorosas, normas específicas para balizar a aplicação dos recursos - que proibissem a contratação de parentes, por exemplo - e o fortalecimento da Justiça Eleitoral.

Para o professor, um bom começo é o Projeto de Lei do Senado 429, de 2017, que prevê a adoção de programa de compliance pelos partidos para coibir desvios e fraudes na utilização de recursos públicos.

Para Issa, do Transparência Partidária, o país vai no sentido oposto, entretanto, quando aprova, por exemplo, que os partidos sejam isentos de multas e penalidades por infrações na legislação eleitoral, como aconteceu no início deste mês de abril.

Aprovada na Câmara dos Deputados, a anistia libera os partidos que não tenham respeitado até 2019 a regra que prevê a aplicação de 5% do fundo partidário para a "criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres".

Havia uma proposta de emenda do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) para que os partidos tivessem a possibilidade de devolver as sobras do fundo ao Tesouro - rejeitada, porém, por 294 votos a 144.

O projeto, relatado pelo deputado Paulinho da Força (SD-SP), agora tramita no Senado.

Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil em São Paulo - 23.04.19

4 previsões que revelam economia em apuros para próximo presidente

 A menos de três meses do primeiro turno das eleições, as expectativas para a economia brasileira na virada de 2022 para 2023 indicam sufoco para quem assumir o comando do país.

A combinação prevista é de baixo crescimento, inflação ainda corroendo o poder de compra da população e uma ausência de sinais de melhora no nível de emprego formal e na renda das famílias.

Previsões são de baixo crescimento e inflação corroendo o poder de compra da população (Getty Images)

Tudo isso em um país que viu subir o número de pessoas que passa fome, chegando a 33 milhões de brasileiros (15,5% da população). E onde mais da metade da população vive com algum grau de insegurança alimentar — ou seja, enfrenta dificuldade para comer, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.

Para explicar as previsões, a BBC News Brasil reuniu projeções de órgãos oficiais e instituições internacionais em relação a quatro pontos centrais para a economia — que sinalizam como está ou estará a condição de vida do brasileiro.

Antes de detalhar esses indicadores, é preciso lembrar que essas projeções vêm sendo reavaliadas diante de cada novo acontecimento relevante no mundo (como os efeitos da Guerra na Ucrânia e o medo de uma recessão global) e no Brasil (como a incerteza diante da eleição e os efeitos de medidas propostas às vésperas dela).

Brasil viu subir número de pessoas que passam fome, chegando a 33 milhões de brasileiros (Getty Images)

1. Crescimento econômico

As perspectivas para o crescimento da economia brasileira apontam que pode vir um "pibinho" ao fim de 2022 — as diferentes projeções giram em torno de 1% para o ano. O PIB (Produto Interno Bruto) é a soma de bens e serviços produzidos por um país.

Mas o que isso significa, de fato?

"É andar de lado, igual a um caranguejo", diz o economista Fábio Terra, professor de Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC). "É uma imagem triste, mas é a mais realista que a gente tem".

No boletim Focus (levantamento semanal de expectativas do mercado colhidas pelo Banco Central) divulgado nesta segunda (11/7), a projeção de PIB para este ano está em 1,59%.

A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) revisou em junho sua expectativa para 0,6% de crescimento do Brasil neste ano; o Banco Central prevê 1,7%, e a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado estima cerca de 1,4%.

Segundo a previsão da OCDE, o crescimento previsto para o Brasil representa um quinto da projeção de crescimento mundial (3%).

OCDE prevê crescimento de 0,6% para o Brasil em 2022. Projeção do PIB (em %).  .

A entidade destacou que a inflação afetou o poder de compra dos brasileiros e aponta que a eleição presidencial de 2022 adiciona incerteza, afetando o investimento. Acrescenta ainda que "a recuperação do mercado de trabalho tem sido lenta" (como será detalhado no terceiro tópico desta reportagem).

Para 2023, a entidade prevê um crescimento de 1,2% para o Brasil, pouco menos da metade da projeção para o avanço no mundo (2,8%). Antes, a OCDE previa que o Brasil poderia crescer 2,1% no próximo ano.

OCDE prevê crescimento de 1,2% para o Brasil em 2023. Projeção - PIB (em %).  .

A economista Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado, destaca que, de maio para junho, a IFI diminuiu sua projeção de crescimento para 2023, de 1% para 0,8%. Ela diz que medidas que vêm sendo adotadas pelo Brasil se refletem "na perda da credibilidade na condução da política fiscal" — como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que abre brecha para que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) turbine programas sociais às vésperas da eleição, apelidada de PEC Kamikaze.

O Senado já aprovou a proposta, que propõe o reconhecimento do estado de emergência, o que, em tese, daria respaldo legal para o governo criar benefícios em ano eleitoral. A expectativa é que a Câmara avalie o texto nesta terça-feira (12/7). Se a PEC for aprovada, seu impacto nos cofres públicos pode chegar a R$ 41,2 bilhões.

O governo defende a medida afirmando que ela é importante para diminuir o efeito da alta da inflação sobre as pessoas mais vulneráveis. A PEC prevê benefício para caminhoneiros autônomos de R$ 1 mil por mês até dezembro deste ano, um auxílio para taxistas, aumenta de R$ 400 para R$ 600 o Auxílio-Brasil, dobra o valor do Auxílio Gás, compensa Estados pela gratuidade do transporte público de idosos, entre outras medidas.

E, fora do Brasil, as expectativas para a economia mundial têm sido impactadas por um receio que cresceu nos últimos dias: a possibilidade de uma recessão global, o que é uma notícia ruim especialmente para países emergentes.

Quando há recessão global, investidores tendem a buscar maior segurança, o que significa tirar dinheiro de países como o Brasil.

Esse temor de recessão está ligado principalmente à expectativa de que países como os Estados Unidos subam mais os juros, fortalecendo o dólar em relação a outras moedas.

"E aí tem efeito sobre a inflação: tudo aquilo que é comprado em dólar se torna mais caro. E o poder de compra acaba corroendo mais ainda, o que é ruim para o consumo e para a atividade econômica", explica Terra.

Vilma Pinto diz que o desafio do Brasil será "tentar recuperar um pouco da credibilidade que foi perdida ao longo do tempo", para então "recuperar capacidade de investimento, tentar melhorar o zelo com as contas fiscais e tentar criar mecanismos para que o Brasil consiga crescer mais, ter menor inflação e ter um desemprego menor".

Vilma Pinto, diretora da IFI, diz que desafio do Brasil será 'tentar recuperar um pouco da credibilidade que foi perdida ao longo do tempo' (Pedro França / Agência Senado)

2. Inflação

Órgão responsável por manter a inflação sob controle, o Banco Central (BC) já reconheceu que a meta estabelecida para 2022 não será cumprida. A projeção da instituição é que o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, índice oficial para medir inflação no Brasil) fique em 8,8% neste ano, bem acima da meta de inflação, fixada em 3,5% para este ano (com margem para oscilar entre 2% e 5%).

As expectativas dos economistas do mercado financeiro estão hoje em 7,67%, segundo o boletim Focus divulgado nesta segunda (11/7).

Os números refletem o que os brasileiros já estão sentindo na prática — os aumentos de preços de alimentos e de combustíveis estão entre as principais queixas.

Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, a inflação é um problema que vem afetando países no mundo todo — inclusive alguns que lembravam muito pouco como era ter que lidar com um aumento tão acelerado do custo de vida, como o Reino Unido.

No entanto, o Brasil está agora entre os poucos países com inflação de dois dígitos (em 12 meses até maio), como mostra levantamento da OCDE. Entre os integrantes do G20, inflação brasileira só não é maior que Tuquia, Argentina e Rússia.

Com a inflação nas alturas, o Banco Central sobe a taxa de juros para tentar contê-la, mas isso também impacta negativamente na atividade econômica, pois se trata de um desestímulo para o investimento produtivo, como explica Terra.

"O Banco Central corretamente subiu a taxa de juros a partir de 2021 porque a inflação estava já incômoda e demonstrando que não cederia fácil. Talvez ele tenha subido demais. O Brasil tem hoje a maior taxa real de juros do mundo. Isso é muito desestimulante ao investimento", opina o professor. "O Brasil tem hoje uma renda real de trabalho que é 7,5% menor do que em 2021. Portanto, as pessoas conseguem consumir menos e o Brasil talvez esteja entrando agora no período mais complicado, em geral, das dificuldades políticas do país, que é o período eleitoral."

As previsões para 2023 são de uma inflação menor que em 2022, mas ainda em níveis elevados. O Banco Central, por exemplo, prevê um IPCA em torno de 4%.

Banco Central prevê inflação de 8,8% em 2022. Projeção de inflação para os próximos anos (em %).  .

Terra aposta em um índice mais alto, perto de 5 ou 6%. E a economista Vilma Pinto lembra que medidas tomadas recentemente pelo governo para tentar aliviar preços estão afetando essas previsões - reduzindo um pouco a projeção para este ano, mas aumentando para o próximo.

A meses da eleição e com a alta dos preços de combustíveis, o governo vem promovendo medidas para tentar reduzir o preço desses produtos — como a lei que zerou até o fim deste ano os tributos federais sobre diesel e gás de cozinha.

Também houve a imposição de um teto de 17% no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis. E, em um decreto editado antes da eleição e que vale até o final de 2022, o presidente Jair Bolsonaro (PL) determina que postos exibam os preços dos combustíveis antes e depois dessa lei.

Vilma Pinto destaca que a IFI aumentou para 4,2% a previsão de inflação em 2023 e que está voltando a revisar essa previsão.

"É provável que a gente tenha um número pior do que esses 4,2% que a gente está projetando hoje, lembrando que esse número já é pior do que o que a gente projetava em maio por conta desse efeito de corte de impostos para 2022 e reversão disso para 2023."

3. Desemprego

Economistas dizem que não há sinais de que haverá melhora significativa no mercado de trabalho formal (Lincoln Zarbeietti)

O mais recente indicador do nível de desemprego mostrou uma recuperação. A taxa de desemprego caiu para 9,8% no trimestre encerrado em maio, a menor desde o trimestre encerrado em janeiro de 2016, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Apesar disso, 10,6 milhões de brasileiros seguem sem trabalho.

Especialistas destacam que uma análise mais detalhada desses números mostra que a alta foi puxada por trabalhos sem carteira assinada, como aponta Terra.

"A gente fala que o mercado de trabalho está melhorando. Mas qual é essa melhora? Sobretudo, o mercado de trabalho informal. Há uma metáfora para comunicar isso, que é o 'se vira nos 30' — a renda está caindo, a pessoa precisa trabalhar, agora já não tem mais que fazer distanciamento social, tem vacinação… Aí as pessoas estão fazendo o que dá para sobreviver, para poder trabalhar — então vai trabalhar como entregador, como diarista", diz o economista.

O problema, segundo Terra, é que não há hoje elementos para acreditar que haverá uma melhora na atividade para dar força ao emprego com carteira assinada.

"A pergunta para 2003 é: o que vai puxar o crescimento econômico? Se a gente não tem nada muito forte puxando o crescimento econômico, a gente não vai ter nada que apareça muito forte puxando o emprego formal. A dinâmica do trabalho informal vai continuar para o ano que vem. Não vejo diferença com relação a esse ano."

Isso se reflete na renda dos trabalhadores.

Vilma Pinto, da IFI, chama atenção para o fato de que o rendimento real (descontando o efeito da inflação) está menor.

"Se por um lado a gente vê, em termos de quantidade, uma melhora, uma redução em um número de pessoas desempregadas, por outro lado, essa questão da inflação está de fato piorando a situação econômica como um todo. E quando a gente olha em termos de salários, o salário real está sendo altamente afetado", diz a economista.

Os dados do IBGE apontam que o rendimento médio real do trabalhador (R$ 2.613) ainda é 7,2% menor na comparação do trimestre encerrado em maio de 2022 com o igual período de 2021.

Vilma prevê que, em 2023, a população ocupada fique estagnada (ou seja, em níveis parecidos com os de 2022). "Nas situações de curtíssimo prazo, a gente enxerga uma melhora, mas a perspectiva de médio prazo não é tão animadora", diz.

Inflação está corroendo poder de compra do brasileiro (Getty Images)

4. Contas públicas

A inflação — a mesma que corrói o poder de compra dos brasileiros — tem um efeito "positivo" para os cofres públicos: aumenta a arrecadação do governo. Isso acontece devido ao aumento dos preços dos produtos — com as empresas lucrando mais, a base de arrecadação também sobe.

"O aumento de preços de commodities está fazendo com que as finanças públicas se comportem bem melhor do que o esperado. E isso implica que tem sido bom o fluxo de caixa", avalia Terra.

O resultado mais recente da arrecadação de tributos federais, por exemplo, aponta que essa receita foi a mais alta em 28 anos — atingiu R$ 165,3 bilhões em maio, recorde para o mês desde 1995, quando começou a série histórica da Receita Federal.

No entanto, o aumento de arrecadação costuma ser comemorado quando ele reflete uma atividade econômica mais aquecida. E outro problema sobre o cenário atual, dizem os economistas, é que essa melhora é pontual.

Vilma Pinto, que é especialista em finanças públicas, defende que o governo não pode contar com esse aumento de arrecadação no médio prazo.

"Esse aumento de receita tende a ser temporário, na medida em que esse choque (de commodities) passa", argumenta. "A gente precisa ter um pouco mais de cautela na hora de adotar medidas que gerem impactos permanentes."

E alerta: "As medidas fiscais que estão sendo adotadas do ano passado para cá, principalmente, vão no sentido não só de piorar a trajetória fiscal futura em termos de aumento de gastos e redução de receita, mas também no sentido de diminuir a confiança das pessoas no compromisso com a responsabilidade fiscal".

"Isso gera melhora fiscal aparente de curtíssimo prazo, dá impressão de que teto está sendo cumprido, mas isso é piora fiscal lá na frente", conclui a economista.

Laís Alegretti, da BBC News Brasil em Londres, em 12.07.22. / publicado origionalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62062570

Discurso eleitoral contra comunismo não está mais tendo efeito na América Latina, diz especialista

A direita latino-americana tem que parar de fazer política por nostalgia se quiser ganhar as eleições presidenciais novamente.

Comemoração pela vitória de Gustavo Petro nas eleições presidenciais colombianas nas ruas de Bogotá (Getty Images)

Os desafios de Gustavo Petro, primeiro presidente de esquerda eleito na Colômbia

É o que pensa Alberto Vergara, cientista político da Universidade do Pacífico em Lima, no Peru, ao avaliar o que muitos descrevem como uma "onda esquerdista", movimento que ele acredita estar invadindo a região porque as pessoas estão cansadas da "nova direita" que governou recentemente em alguns países.

Com a vitória de Gustavo Petro na Colômbia em 19 de junho, foi confirmada uma tendência de candidatos de esquerda na América Latina, precedida pelos triunfos de Xiomara Castro em Honduras, Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile.

A chamada onda esquerdista surge após vários partidos de direita governarem essas regiões.

Houve algum desgaste na direita? As pessoas se cansaram? Ou seus programas são pouco atraentes?

Vergara, que é autor de vários livros e ensaios sobre política latino-americana, fala em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre os motivos pelos quais a "nova direita latino-americana" não é mais atraente para muitos setores da região.

Além disso, explica como e por que a esquerda recuperou espaços que havia perdido e o que se pode esperar dos novos governos de esquerda na região.

BBC Mundo - O triunfo de Petro na Colômbia confirma que, pouco a pouco, a América Latina continua voltando à esquerda. A que se deve essa mudança?

Alberto Vergara - Existem duas coisas diferentes. Uma é que na região existe e tem existido um clima anti-incumbência, uma rejeição dos que estão no poder. Isso mostra que as pessoas estão cansadas.

Também mostra que as pessoas querem experimentar outras opções e querem uma mudança.

Em Honduras, por exemplo, as pessoas ficaram fartas do governo de Juan Orlando Hernández e entrou Xiomara Castro, que encararam como a mudança. Ele ganhou porque estava na esquerda? Sim, mas as pessoas também estavam cansadas de Hernández e queriam algo alternativo e lá estava ela.

Diante desse espírito contra o status quo, acredito que a direita se apoiou em um discurso basicamente dos tempos da Guerra Fria, anticomunista, como forma de fazer política.

Diante disso, a esquerda interpretou melhor a necessidade de mudança e oferece um projeto com o qual você pode concordar ou não, mas que é um projeto do início ao fim, enquanto a direita parece ter ficado sem projeto.

Então temos de um lado uma direita que tem dificuldade em oferecer algo novo e do outro uma esquerda que acaba oferecendo algo que ressoa mais com a mudança.

BBC Mundo - Por que você acha que não consegue desenvolver um plano? O que está acontecendo com a direita latino-americana hoje?

Vergara - Acredito que a direita se transformou e é diferente daquela direita após a queda do Muro de Berlim.

Aquela era uma direita associada às reformas neoliberais, ao consenso de Washington e à vontade de liberalizar os mercados, internacionalizar a economia e administrar a macroeconomia da forma mais ortodoxa possível.

Isso foi se esgotando como retórica e projeto. De fato, a onda de governos de esquerda no início dos anos 2000 veio para tentar encerrar essa era neoliberal.

Mas nos últimos 10 anos tem surgido uma direita mais radical que a direita economicista do passado.

A preocupação central dessa nova direita já não é tanto a economia, mas o que eles chamam de batalhas culturais.

A direita atual considera que a do passado, mais neoliberal e centrada na economia, é uma "direita covarde" e que eles, representantes da direita mais radical, estão travando as batalhas ideológicas e culturais que são as questões que importam, segundo eles.

BBC Mundo - Então você acredita que as pessoas estão cansadas dessa direita mais radical?

Vergara - Essa nova direita que é mais cultural, muito ligada a redes e circuitos que compartilham teorias da conspiração, um pouco na órbita do trumpismo, teve seu momento. Principalmente com a eleição de Jair Bolsonaro.

A eleição de Bolsonaro talvez tenha sido o momento de maior sucesso para essa direita mais conservadora e antiliberal. Isso deu a eles a sensação de que você pode ter sucesso com plataformas reacionárias.

No entanto, não é que tenha deixado de ter importância. Eles simplesmente pararam de ter vitórias presidenciais equivalentes.

A direita que apoiou fortemente a candidatura de Kast no Chile ou por trás de Fujimori no Peru acabou fracassando.

Gabriel Boric representou chegada da esquerda ao poder no Chile (Getty Images)

Na verdade, na Colômbia falhou ainda mais. María Fernanda Cabal, a política de extrema-direita da Colômbia, nem sequer ganhou as primárias do Uribismo.

A direita radical vem perdendo relevância.

'Elites não têm de concordar comigo, mas não precisam ter medo', diz Gabriel Boric à BBC

Ainda tem seguidores muito fiéis e ativos nas redes, mas acho difícil para eles atrair mais pessoas fora desses circuitos.

Com essas últimas derrotas, o racional seria que a direita latino-americana entendesse que não tem conseguido êxito com esse rol conservador, autoritário e orgulhosamente antiprogressista.

BBC Mundo - O discurso "não votem neles porque vão transformar o país em outra Venezuela" não é mais convincente?

Vergara - A direita na América Latina tentou durante anos dissuadir as pessoas de votar na esquerda acusando-a de comunista, mas essa tática não funciona mais, pelo menos não para ganhar as eleições presidenciais.

Eu diria que ainda funciona parcialmente, mas não como antes.

Na Colômbia, Rodolfo Hernández obteve 47% dos votos: não é que tenha ficado completamente arrasado.

Ainda há um importante grupo da população que está genuinamente assustado com a chegada de um governo que leve o país a algo semelhante ao que Chávez fez com a Venezuela.

Vergara diz que a direita latino-americana tem que deixar de acreditar que é possível fazer política por meio da nostalgia (Arquivo pessoal Alberto Vergara).

Mas, efetivamente, o discurso não obteve êxito recentemente em Honduras, no Chile e no Peru.

As pessoas ainda temem essa opção, mas não votam apenas por medo, mas também por necessidade de mudança.

Os eleitores sabem que há nuances e que as opções não são apenas o status quo ou a Venezuela.

Eles sabem que qualquer tentativa alternativa não será necessariamente o desastre venezuelano.

BBC Mundo - Falam de uma nova onda de esquerda que está "expandindo por toda a América Latina". Você acha que vai durar e continuar chegando a outros países da região?

Vergara - Não acho que vai durar tanto. Na América Latina de vez em quando fala-se de uma onda da esquerda, depois vem a onda da direita, como quando Sebastián Piñera, Bolsonaro, Pedro Pablo Kuczynski e Guillermo Lasso venceram.

E agora estaríamos virando à esquerda novamente.

O mais provável é que teremos que nos acostumar com essa saudável alternância democrática entre direita e esquerda, em vez de ter ondas duradouras.

Vários estudos de ciências políticas demonstram que em geral não houve transformações profundas nos valores políticos da sociedade e que as crenças políticas do povo não se moveram para a direita ou para a esquerda.

BBC Mundo - O que a esquerda deveria fazer para atrair novamente o eleitorado?

Vergara - A direita latino-americana tem que parar de acreditar que a política pode ser feita na região a partir da nostalgia.

É ridículo replicar o "tornar a América grande novamente" de Trump na América Latina. Os latino-americanos sabem que as melhorias na região sempre foram construídas aos poucos.

Não havia momento ideal, um Éden, ao qual retornar.

Quando Kast, no Chile, fez campanha com comentários abertamente machistas, ou quando o próprio Rodolfo Hernández o fez na Colômbia, eles estavam falando para um continente no qual as mulheres hoje são muito mais fortes, mais livres e autônomas e que não querem voltar ao passado.

Ouvir um candidato que quer voltar no tempo é uma bobagem.

O discurso abertamente sexista de Kast permitiu que um candidato como Boric obtivesse cerca de 70% dos votos de mulheres com menos de 30 anos.

A direita latino-americana precisa reconsiderar por que não consegue convencer as pessoas. Eles devem entrar em uma fase de avaliação e transformação no futuro.

BBC Mundo - O que esperar de Chile, Peru e Colômbia após a vitória da esquerda nesses países?

Vergara - Acho que estão em situações diferentes. No Chile tenho a impressão de que a Assembleia Constituinte dominada pela nova esquerda desperdiçou uma oportunidade talvez única de renovar o país ao impor uma agenda muito ativista e muito distante do cidadão comum.

Se o projeto constitucional acabar rejeitado, será um grande problema para o presidente Boric e para a esquerda latino-americana.

No caso peruano, chegou ao poder um presidente que é uma rara combinação de inexperiência absoluta com corrupção significativa e que deixa o país à deriva, sem nenhum projeto.

Castillo está simplesmente tentando sobreviver enquanto o país vai pelo ralo.

Gustavo Petro e a vice-presidente Francia Márquez fizeram história ao ganhar as eleições presidenciais na Colômbia (Getty Images)

Petro é um gande líder político, com muita experiência. Foi prefeito de Bogotá e foi um senador muito importante na Colômbia. Tem uma longa trajetória e vem mudando, em questões econômicas, por exemplo, e vem desenvolvendo uma preocupação com energia verde e ecologia.

Politicamente, tudo indica que ele abandonou a reivindicação de uma nova assembleia constituinte para a Colômbia.

Parece ser alguém da esquerda que vem moderando. Embora todos saibamos que há uma distância entre dizer e fazer.

BBC Mundo - O que essa virada à esquerda significa do ponto de vista internacional e para as relações com os Estados Unidos e o resto do mundo?

Vergara - As relações com os Estados Unidos ou com a China não são marcadas pelo ciclo eleitoral, mas sim por processos um pouco mais longos.

Tenho a impressão de que os Estados Unidos perderam relevância na região. Parece não ter muito a oferecer, independentemente de governos de esquerda ou de direita.

A Colômbia, que sempre foi aliada dos EUA, não vai deixar de ser aliada porque Petro venceu.

Por outro lado, Bolsonaro, sendo um governo de direita, não tem nenhuma simpatia pelo governo Biden e abomina os democratas e suas agendas progressistas.

Norberto Paredes @norbertparedes, da BBC News Mundo, em 02.07.22

sábado, 9 de julho de 2022

Brasil desperdiça 40% do talento das crianças, diz estudo inédito do Banco Mundial

Banco Mundial estima que PIB do Brasil poderia ser 158% maior, se crianças desenvolvessem todo seu potencial e país chegasse a pleno emprego

Menino vendendo biscoito de polvilho para motorista parado no trânsito (Getty Images)

O que uma criança vivendo nas ruas e fora da escola em São Paulo e uma jovem negra formada na universidade que não consegue emprego em Salvador têm em comum?

Ambas fazem parte do contingente de talentos que são desperdiçados todos os dias no Brasil.

Uma criança brasileira nascida em 2019 deve alcançar em média apenas 60% do seu capital humano potencial ao completar 18 anos, calcula estudo inédito do Banco Mundial, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.

Isso significa que 40% de todo o talento brasileiro é deixado de lado, na média nacional.

Nos rincões mais vulneráveis, o desperdício de potencial superava os 55% antes da pandemia, estima a instituição. Com a crise sanitária, a situação se agravou e, em apenas dois anos, o Brasil reverteu dez anos de avanços no acúmulo de capital humano de suas crianças.

As crianças que esqueceram como ler e escrever durante a pandemia

Como a alfabetização sofreu na pandemia: 'criança que já deveria saber ler ainda não domina o abc'

"Agora, mais do que nunca, as ações não podem esperar", alerta o banco, no Relatório de Capital Humano Brasileiro, que deverá ser lançado nesta semana.

O estudo é parte do Human Capital Project do Banco Mundial, iniciativa lançada em 2018 para alertar governos quanto à importância de se investir em pessoas. O relatório brasileiro é o primeiro focado em um país específico.

O banco estima que o PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços produzidos por um país) do Brasil poderia ser 2,5 vezes maior (158%), se as crianças brasileiras desenvolvessem suas habilidades ao máximo e o país chegasse ao pleno emprego.

Capital humano e potencial desperdiçado

Capital humano é o conjunto de habilidades que os indivíduos acumulam ao longo da vida, explica Ildo Lautharte, economista do Banco Mundial e um dos autores do estudo.

Essas habilidades acumuladas determinam, por exemplo, o nível de renda e as oportunidades de trabalho que uma pessoa vai ter em sua vida. E impactam a produtividade, o tamanho do PIB e a capacidade de gerar riqueza de um país.

Para comparar esse potencial acumulado nos diferentes países e nas diversas regiões, Estados e municípios em cada país, o Banco Mundial desenvolveu o ICH (Índice de Capital Humano), um indicador que combina dados de educação e saúde, para estimar a produtividade da próxima geração de trabalhadores, se as condições atuais não mudarem.

Os dados que compõem o ICH são: taxas de mortalidade e déficit de crescimento infantil; anos esperados de escolaridade e resultados de aprendizagem; e taxa de sobrevivência dos adultos.

Com base nesse conjunto de dados, o indicador varia de 0 a 1, sendo 1 o potencial pleno — ou seja, não ter déficit de crescimento ou morrer antes dos 5 anos, receber educação de qualidade e se tornar um adulto saudável.

Aplicando essa metodologia ao Brasil, o banco chegou a um ICH de 0,60, que significa que uma criança brasileira nascida em 2019 deve atingir apenas 60% de todo seu potencial aos 18 anos.

O país está abaixo de países de desenvolvidos como Japão (0,81) e Estados Unidos (0,70) e de pares latino-americanos como Chile (0,65) e México (0,61), mas acima de outros países em desenvolvimento mais pobres como Índia (0,49), África do Sul (0,43) e Angola (0,36).

"O Brasil precisaria de 60 anos para alcançar o nível de capital humano alcançado pelos países desenvolvidos ainda em 2019", estima o Banco Mundial. "Não há tempo a perder."

'Muitos Brasis'

A instituição financeira internacional alerta, porém, que a média nacional é apenas uma parte da história e que há muitas desigualdades dentro do país.

Por regiões, por exemplo, em 2019, o ICH do Norte e do Nordeste era de 56,2% e 57,3%, enquanto para Sul, Centro-Oeste e Sudeste variava de 61,6% a 62,2%.

Mapa do Brasil mostra desigualdades no Índice de Capital Humano em 2019

Índice de Capital Humano é mais baixo no Norte e Nordeste, mas há também desigualdades significativas dentro dos Estados e das regiões  (Banco Mundial)

"60% a 70% dessa desigualdade regional é explicada pela educação", afirma Lautharte. "Isso inclui tanto os anos que a criança fica na escola, como a qualidade da educação, isto é, se ela consegue aprender aquilo que deveria ter aprendido na escola."

"Mas além dessa desigualdade regional, que já é esperada por quem conhece o Brasil, chama atenção a desigualdade dentro de um mesmo Estado ou uma mesma região", observa.

Por exemplo, enquanto o município de Ibirataia na Bahia tem um ICH de 44,9%, similar a países africanos muito pobres como Gana e Gabão, Cocal dos Alves no Piauí, com um ICH de 74%, está mais próximo dos índices da Itália e da Áustria.

Embora todas as regiões tenham melhorado seu ICH ao longo dos anos — o estudo analisa o período de 2007 a 2019 —, a desigualdade persiste com o passar do tempo.

Por exemplo, o Índice de Capital Humano médio das regiões Norte e Nordeste em 2019 era similar ao das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste em 2007 — ou seja, uma lacuna de 12 anos.

Gráfico de linhas mostra evolução do ICH entre 2007 e 2019 no Brasil e regiões

Índice de Capital Humano das regiões Norte e Nordeste em 2019 era similar ao das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste em 2007 (Banco Mundial)

Desigualdade racial crescente

O Banco Mundial chama atenção também para a desigualdade racial no desenvolvimento do potencial dos brasileiros.

Segundo o estudo, a produtividade esperada de uma criança branca em 2019 era de 63% do seu potencial, comparado a 56% para uma criança negra e 52% para uma indígena.

Mas, ainda mais grave, é que essa desigualdade está aumentando ao longo do tempo.

Isso porque o ICH das crianças brancas avançou 14,6% entre 2007 e 2019, enquanto o índice para crianças negras variou 10,2% e o das indígenas ficou praticamente estável (0,97%).

Gráfico de linhas mostra evolução do ICH entre 2007 e 2019 por raças

Diferença de potencial entre brancos, negros e indígenas aumentou ao longo do tempo (Banco Mundial)

Para Ildo Lautharte, a explicação aqui novamente está nas desigualdades educacionais.

"O Brasil teve muito sucesso em termos de acesso à educação, conseguimos fazer com que a quase totalidade das crianças esteja na escola. A grande questão agora é a qualidade dessa educação e isso tem um componente racial muito elevado", diz o economista.

Lautharte observa que essa diferença nos resultados de aprendizagem está ligada tanto à qualidade do ensino, quanto às condições das crianças, que partem de bases muito desiguais.

Mercado de trabalho e o talento desperdiçado das mulheres

O Banco Mundial analisa também o que acontece quando todo esse potencial chega ao mercado de trabalho. E aqui, o quadro é ainda mais preocupante.

O ICHU (Índice de Capital Humano Utilizado) pondera o ICH com a taxa de emprego nos mercados de trabalho formal e informal. O objetivo é analisar quanto do capital humano é de fato aproveitado pelo mercado de trabalho.

No Brasil, o ICHU é de 39%, estima o Banco Mundial, o que significa que o mercado de trabalho brasileiro desperdiça boa parte dos seus talentos devido à baixa ocupação.


Mercado de trabalho brasileiro desperdiça boa parte dos seus talentos devido à baixa ocupação (Marcelo Camargo / Agencia Brasil)

Aqui, chama a atenção também a desigualdade entre homens e mulheres.

Olhando para o ICH, as mulheres chegam aos 18 anos com potencial acima dos homens. Elas tinham um Índice de Capital Humano de 60% em 2019, contra 53% para eles.

A diferença se explica por fatores diversos. Por exemplo, as mulheres tendem a abandonar menos a escola para trabalhar e, por isso, acumulam em média mais tempo de estudo do que os homens. Além disso, elas tendem a viver mais, tanto por questões de saúde, como da maior propensão dos homens (particularmente dos negros) a morrer por causas violentas.

No entanto, apesar de as mulheres terem acúmulo de capital humano acima dos homens aos 18 anos, elas são menos aproveitadas no mercado de trabalho.

Enquanto o ICHU delas é de 32%, o deles é de 40%. Isso se deve a fatores que vão desde profissões que ainda hoje são entendidas como predominantemente masculinas, até a desigualdade no trabalho doméstico e no cuidado dos filhos.

"Só política pública pode fazer com que essa diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho diminua", diz Lautharte.

"Esse é um ponto onde o Brasil ainda engatinha, outros países já estão fazendo muito mais, com políticas muito mais ativas para aumentar a inserção da mulher no mercado de trabalho. Esse desperdício é particularmente grave entre mulheres negras, são talentos desperdiçados."

Pandemia fez Brasil andar dez anos para trás

Se o Brasil já desperdiçava o potencial de suas crianças antes da pandemia, a crise sanitária só agravou essa situação, destaca o Banco Mundial.

"Em termos de saúde infantil, por exemplo, mais 3,5 em cada 10 mil crianças não sobreviveram até os 5 anos de idade em 2021, em comparação a 2019, no Sudeste do Brasil", cita o banco, no relatório. "Além disso, cerca de 80 mil crianças podem sofrer déficit de crescimento no Brasil devido à pandemia."

Na educação, as escolas ficaram fechadas por 78 semanas, um dos fechamentos mais longos do mundo. Consequentemente, a parcela de crianças que não sabem ler e escrever saltou 15 pontos percentuais entre 2019 e 2021, observa a instituição financeira internacional.

Com tudo isso, o Índice de Capital Humano do Brasil caiu de 60% para 54% entre 2019 e 2021, estima o Banco Mundial, voltando ao nível de 2009. "Em dois anos, a pandemia de Covid-19 reverteu o equivalente a uma década de avanços do ICH no Brasil", observa o Banco Mundial.

Gráfico mostra impacto da pandemia sobre o ICH do Brasil


O caminho para a recuperação será longo, diz a instituição.

"Considerando-se a taxa de crescimento antes da pandemia, o ICH levará de 10 a 13 anos para retornar ao patamar de 2019 no Brasil. Ou seja, o Brasil chegaria novamente ao ICH de 2019 somente em 2035."

Para Lautharte, reverter esse quadro passa por um grande esforço de políticas públicas, com recomposição da aprendizagem, que deve ser combinado com a agenda de combate à fome, de fortalecimento dos programas de transferência de renda e de políticas de saúde pública.

Além disso, diz o economista, o Brasil precisa aprender consigo mesmo. Por exemplo, a bem sucedida experiência educacional do Ceará pode ser replicada em outros Estados e municípios.

"Mesmo antes da pandemia, o Brasil tinha 52% das crianças com 10 anos que não conseguiam ler um parágrafo adaptado para a idade delas. Então nosso objetivo não deve ser voltar para o pré-pandemia, mas avançar para um cenário melhor", diz Lautharte.

"Temos agora uma oportunidade para repensar algumas coisas e fortalecer outras. Então conhecer os 'muitos Brasis' é fundamental para saber onde investir e quem precisa de mais ajuda."

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo. (Originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62018496 - 04.07.22)

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Cantanhêde: ùnica ‘emergência’ de Planalto, Congresso e Defesa é salvar a reeleição de Bolsonaro

A PEC que passou no Senado é ‘golpe de misericórdia’: Não sobra nada para destruir

Os adversários e os que têm pavor da reeleição do presidente Jair Bolsonaro, vermelhos, azuis ou roxos, insistem no mesmo erro de 2018: menosprezar suas chances. Basta olhar as fotos, a milícia digital, a omissão da PGR, a ação da AGU, os decretos, as votações do Congresso e a montanha de dinheiro que ele vai torrar (ou está torrando) na compra de votos para concluir que a eleição não está decidida. É temerário contar só com a rejeição, altíssima.

Na previsão palaciana, Bolsonaro ultrapassaria o ex-presidente Lula em junho, julho, mas ele estacionou nas pesquisas e só teve más notícias: expectativa de vitória de Lula em primeiro turno, assassinato de Dom e Bruno, prisão de Milton Ribeiro, CPI do MEC, Petrobras, escândalo da CEF. E a inflação inclemente...

O Planalto também madrugou, com o decreto para os postos exibirem os preços dos combustíveis antes e depois da garfada no ICMS dos Estados. Só faltou mandar incluir: votem em Bolsonaro! 

O Planalto também madrugou, com o decreto para os postos exibirem os preços dos combustíveis antes e depois da garfada no ICMS dos Estados. Só faltou mandar incluir: votem em Bolsonaro!  Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Bateu o desespero e, se Bolsonaro jamais deixou de ser candidato e virou presidente, o Planalto se transformou definitivamente em comitê de campanha, botando para quebrar e com um novo prazo para “virar o jogo”: agosto. A “reunião ministerial” de terça-feira não foi para discutir as mazelas do País, mas um freio de arrumação na campanha.

Toda a estratégia passa pelo governo: caneta, verbas, base no Congresso, aliados no Judiciário, ministros e até os aviões que cruzam os ares com presidente e ministros travestidos de cabos eleitorais. Mas, ao contrário de Pedro Guimarães na CEF e de Milton Ribeiro no MEC, tem de dissimular...

Exceto a derrubada dos vetos a duas leis da Cultura, Bolsonaro só colheu vitórias num Congresso do Centrão e do orçamento secreto: a PEC da reeleição passou no Senado quase por unanimidade, foi mantida intocada na Câmara e aprovada em um minuto (um minuto!), no fim da madrugada, para comprar os votos já em agosto. E quem vai se interessar por CPI do MEC depois das eleições?

O Planalto também madrugou, com o decreto para os postos exibirem os preços dos combustíveis antes e depois da garfada no ICMS dos Estados. Só faltou mandar incluir: votem em Bolsonaro! Ele não jogou fora escrúpulos que nunca teve, mas é chocante ver os três Poderes e a Defesa embolados numa única “emergência” do País: o medo de derrota do presidente.

Depois de explodir teto de gastos, responsabilidade fiscal, órgãos de fiscalização e o Ministério da Economia, a era Bolsonaro recorre ao “estado de emergência” (só até dezembro...) para fazer picadinho da lei eleitoral e do resto dos princípios básicos da economia. A PEC da reeleição tem uma pilha de nomes, mas um leitor, roxo de raiva e pavor, lhe deu um definitivo: “golpe de misericórdia”. Não sobra nada para destruir.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é Jornalista. Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.07.22

País decente não tem fome

ONU recoloca Brasil no vergonhoso ‘mapa da fome’, do qual só sairemos quando a sociedade considerar inaceitáveis a obscena desigualdade social e o desenvolvimento econômico medíocre

   O Brasil voltou de vez ao mapa da fome e nada indica que se livrará dessa vergonhosa marca tão cedo. Dados do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022, divulgado por cinco agências da Organização das Nações Unidas (ONU), apontam que 15,4 milhões de pessoas estavam sob insegurança alimentar grave no País entre 2019 e 2021, um contingente que representa hoje 7,3% de toda a população – são 3,9 milhões a mais do que o contingente observado entre 2014 e 2016, época em que o índice não chegava a 2%. Números que muitas vezes parecem frios ganham outra dimensão quando traduzidos em exemplos mais claros: 15,4 milhões de brasileiros não sabem se comerão um prato de comida ao longo do dia de hoje.

A essas pessoas, o presidente Jair Bolsonaro nunca ofereceu nada, nem mesmo uma palavra de solidariedade. Sem qualquer planejamento nem foco nos mais necessitados, o governo distribuiu benefícios de forma indiscriminada a todos que conseguissem passar pelos parcos e confusos controles de acesso do Auxílio Emergencial. Agora, observando que seus índices de aprovação atingiram o pico na vigência do programa, o Executivo dobrou a aposta no Auxílio Brasil, repleto de falhas graves apontadas por todos os especialistas em políticas sociais. Principal adversário de Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem falado em retomar o Bolsa Família, que, embora seja melhor que seu malfadado sucessor, tampouco foi capaz de solucionar a miséria nacional.

Essa tragédia não é fruto do acaso, mas de escolhas feitas por um País que sempre virou as costas para os mais necessitados. É verdade que Bolsonaro destruiu as bases do Cadastro Único para Programas Sociais, um consistente banco de dados de mais de 20 anos de história; que extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), cujo papel nas políticas de combate à fome ao longo dos últimos anos foi fundamental; que praticamente zerou as verbas do programa de aquisição de alimentos Alimenta Brasil, que priorizava regiões com maior índice de pobreza. Também é inegável que o aumento na quantidade de famintos não é exclusividade brasileira. A pandemia, a guerra na Ucrânia e os preços de alimentos e combustíveis agravaram a pobreza em diversos países do mundo. Mas também é fato que a incompetência nacional para resolver gargalos históricos não vem de hoje e atravessa administrações de diferentes matizes políticas. Não se trata de diminuir a incontestável contribuição do governo Bolsonaro em levar o Brasil à ruína, mas de chamar a sociedade a assumir a responsabilidade pela solução de questões que têm raízes na nossa história.

Se a fome havia deixado de ser um problema crônico no passado recente, a desigualdade social era e continua sendo uma marca obscena do País – inabalável mesmo quando o PIB cresce de maneira mais vigorosa. A desigualdade sempre foi vista como uma característica inerente ao Brasil, algo que deveria ser inaceitável sob qualquer ponto de vista. Atacar a mazela da fome é urgente e passa por uma articulação entre governo e entidades da sociedade civil, além de parcerias entre o setor público e privado. Mas ações emergenciais não substituem respostas estruturais, e compensações, ainda que fundamentais, não levam à emancipação.

Não há como oferecer uma solução definitiva para a miséria sem que o País retome o caminho do crescimento, algo que passa pelo resgate dos fundamentos macroeconômicos devastados por Bolsonaro. É essencial a aprovação de uma reforma tributária para acabar com a regressividade e para deixar de castigar a produção. Não haverá empregos de qualidade enquanto não houver uma política industrial que incentive a inovação e a produtividade e abandone a proteção de setores com amigos em Brasília. Será impossível oferecer melhores oportunidades aos mais pobres enquanto a Educação Básica não for uma prioridade real. O Brasil está à deriva e, em suma, precisa voltar a ter um governo de fato. Do contrário, mesmo que o País consiga sair do mapa da fome, basta aguardar a próxima crise para que volte para lá.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.07.22

O País kamikaze

O piloto na 2.ª Guerra Mundial morria só; nossos kamizazes buscam a própria salvação colocando o Brasil em risco. Artigo de Fernando Gabeira.

A chamada PEC Kamikaze, que pode aumentar os gastos públicos em até R$ 50 bilhões, mostra que a elite brasileira não se importa com o que acontecerá com o seu país, desde que se mantenha no poder. Num só movimento, a proposta atropela o equilíbrio fiscal, a Constituição e a legislação que rege as eleições.

O desequilíbrio fiscal foi o argumento usado pelo senador José Serra para apresentar o único voto contra a emenda. Ele lembrou que o Senado descobriu só agora que há milhões de famintos no Brasil. De fato, se houvesse sensibilidade, o tema do combate à fome teria sido desenvolvido há muito tempo, sem grandes transtornos ao equilíbrio fiscal. De repente, nas vésperas das eleições, há um estalo que coincide, de um lado, com a péssima situação de Bolsonaro nas pesquisas e, também, com o medo da oposição de se colocar contra um projeto tão ostensivamente demagógico.

O argumento de que há uma alta no preço do petróleo e de que isso justifica uma decretação de estado de emergência é ridículo. Talvez no Equador, onde houve manifestações nacionais contra o aumento da gasolina, isso tivesse algum sentido. Ainda assim, não seria a resposta adequada.

O atropelo da legislação eleitoral é dos fatos mais graves desde a redemocratização. Houve compra de votos no passado republicano, mas precisamente por causa disso se formularam leis para superar essa questão. A decretação do estado de emergência é feita para driblar a legislação e abertamente comprar votos com dinheiro público.

Quando existem no País 33 milhões de pessoas passando fome e mais de 100 milhões em insegurança alimentar, existe, sim, um diagnóstico de emergência. Mas um tipo de emergência que obriga o governo a fazer planos de combate à fome, reavaliar seus gastos. Porém, antes mesmo de pensar nisso, o governo aceita um orçamento secreto na Câmara, destinado a lhe garantir apoio e assegurar aos deputados os gastos em seus redutos eleitorais.

O avanço do fisiologismo se prolonga no futuro, pois, agora, deputados querem que as emendas de relator, base do orçamento secreto, sejam impositivas.

Essa singularidade do sistema político brasileiro favorece a eleição dos parlamentares que já estão aí. Considerando que o interesse pela eleição de congressistas é menor e que apenas alguns novos conseguem romper a barreira, é possível prever que o Congresso brasileiro não será qualitativamente melhor nos próximos quatro anos. Independentemente do desfecho das eleições presidenciais, portanto, as perspectivas são sombrias.

Não se espera de uma elite política que nos prometa, como no passado, amanhãs luminosos. No entanto, quando ela é comprometida apenas com se manter no poder, cria-se uma situação similar a quando os punks definiam sua época como no future.

Isso não significa que tudo esteja perdido. Ainda há a possibilidade de mobilizar os eleitores para que escolham bem seus candidatos. Mesmo que surja uma modesta minoria de parlamentares comprometidos com o País, ela pode muito, se souber se articular com a opinião pública, sobretudo quando as redes sociais têm tanto peso.

As pesquisas nas eleições anteriores não são animadoras: em Estados como o Rio de Janeiro, cerca de 70% dos eleitores esqueciam em quem votaram para a Câmara.

Não creio apenas que a relação eleitor-candidato defina nosso futuro. Há, também, o curso da realidade, a crescente complexidade dos problemas. Não será possível, adiante, tratar de forma tão ligeira problemas como a fome e a insegurança alimentar. Da mesma maneira, não será possível prosseguir subsidiando a gasolina, como se ela fosse o eterno combustível. Em outras palavras, a gravidade crescente dos problemas dará ao encontro da minoria parlamentar com a opinião pública um alento para propor saídas e, em certos momentos, evitar catástrofes.

Nem todos os que votaram agora na PEC Kamikaze vão repetir incessantemente esse comportamento. Eles se viram duplamente chantageados. Não querem parecer indiferentes à crise econômica e muito menos arriscar-se num momento eleitoral. Mas esse tipo de chantagem que usa os vulneráveis como escudo – aliás, largamente usado por grupos armados de traficantes ou terroristas na guerra assimétrica – precisa ser diagnosticado a tempo e desmontado por meio de campanhas.

A oposição marchou de olhos fechados para o cadafalso e acabou, contra sua vontade, dando a Bolsonaro uma chance espúria de chegar ao segundo turno. Não é garantido que haja tempo para que a medida tenha o efeito eleitoral desejado; não é certo que todos a associem a Bolsonaro. Mas a inclusão de um dispositivo que proíbe a propaganda pela campanha do presidente é bastante limitada. As emissoras de rádio já divulgam a medida, o próprio Bolsonaro a transformou no seu principal discurso e o governo voltou amplamente a ocupar espaço na TV, depois de tantos insultos à mídia.

Muito possivelmente, este tema já estará superado por outra barbaridade nos próximos dias. Mas foi uma grande lição sobre como somos governados, como se usa dinheiro público à vontade e como se driblam as leis no País.

O piloto kamikaze na 2.ª Guerra morria só; nossos kamizazes buscam a própria salvação colocando o Brasil em risco.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.07.22

terça-feira, 5 de julho de 2022

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Abro com uma hilária historinha envolvendo o folclórico deputado Antônio Bilu, potiguar do meu querido RN.

Hotel Zero Km

O deputado do Rio Grande do Norte desceu no aeroporto Santos Dumont, no Rio, pegou um táxi:

– Hotel Zero Quilômetro.

– Zero Quilômetro? Não tem esse hotel, não.

– Tem, sim. Em frente ao Hotel Ambassador.

– Ah, Hotel OK Senador Dantas, não é?

– Não, senhor, Deputado Antônio Bilu, de Natal.

Pitadas filosóficas

a) "O luxo do funeral e a suntuosidade do túmulo não melhoram as condições do morto; satisfazem apenas a vaidade dos vivos". (Dante Veoleci)

b) Sabedoria popular

Quando Confúcio visitou a montanha sagrada de Taishan, encontrou uma mulher cujos parentes haviam sido mortos por tigres.

- Por que não se muda daqui, perguntou Confúcio.

- Porque os governantes são mais ferozes que os tigres.

Análise da conjuntura

Braga Netto

O general Braga Netto, filiado ao PL, foi escolhido pelo presidente Bolsonaro como candidato a vice em sua chapa. Primeira constatação: não agrega um voto. A ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, seria um nome com mais apelo ao eleitorado feminino – onde Jair tem votação menor – ou mesmo a ex-ministra da Pasta da Mulher e da Família, Damares Alves.

Passaporte

O ex-ministro da Defesa, Braga Netto, poderia ser o passaporte que Bolsonaro pensa ter para se sentar novamente na cadeira presidencial no voo de um golpe? Digamos que a hipótese passa pela cabeça do capitão. Fiquemos, porém, no terreno de um improvável evento de ruptura. As Forças Armadas, em sua plenitude, não topariam entrar nessa aventura. Não há clima político para abrigar um golpe. Não haveria endosso social. A economia, a escassez, a fome seriam também grandes armas contra o golpismo.

O Centrão reclama

O Centrão não quer Braga Netto como candidato a vice. Vai chiar. Mas o general, se não será o passaporte para uma inclinação golpista, deve funcionar como bastião de defesa contra eventual prisão do capitão-comandante das FAs, em caso de sua derrota. E disso o Centrão será instado a acreditar.

As democracias

A paisagem mundial faria parte também do painel de contrariedades. As democracias ocidentais não fechariam os olhos a uma eventual ação golpista. O mundo é, hoje, interdependente. Vejam o caso de isolamento da Rússia por causa de sua empreitada de invadir a Ucrânia. Vladimir Putin está isolado, com exceção da posição da China e da dubiedade que paira sobre a conduta de algumas poucas Nações, entre as quais, o Brasil.

Esquisitice

Caem sobre as nossas cabeças essas esquisitices. A geopolítica, com seus interesses comerciais, faz com que países de ideologias opostas se unam em alianças pragmáticas. Ora, o Brasil de Bolsonaro faz virulenta "guerra de palavras" contra o comunismo, as ameaças vermelhas que ainda existem aqui e ali, condenando aqueles que se identificam com elas, como Cuba, Venezuela, China e, claro, Rússia. E qual o parceiro que Bolsonaro faz questão de glorificar a todo momento? Com quem falou segunda-feira última? Vladimir Putin. Que, por sua vez, tem interesse em formar uma cabeça de ponte por essas bandas do sul do continente.

Não beberei

Minha querida mãe sempre me dizia: "meu filho, nunca diga: desta água não beberei".

Polarização e inquietude

O artigo "Polarização e Inquietude", do padre João Medeiros Filho, na mídia potiguar, é oportuno, denso e merece profunda reflexão. "Diante de fundamentalismos ideológicos e religiosos, polêmicas jurídicas e políticas, importa meditar sobre as palavras de Cristo: 'Deixo-vos a Paz, dou-vos a minha vida, não como a dá o mundo'. (João, 14, 27).

Um terço à deriva

Se os dois candidatos somam, juntos, cerca de 70% das intenções de voto, vale inferir que 30% estão com um olho no norte, outro no sul. Olham para cima e para baixo. O eleitor brasileiro é mutante. Garantir que a eleição será decidida no primeiro turno é esquecer o histórico de campanhas eleitorais. O vento pode mudar de rumo. E se mudar, não haverá força a impedir sua trajetória.

Lula cá

Lula é um candidato partido ao meio. Vez ou outra, o discurso palanqueiro emerge e ele embarca nos velhos refrãos do passado. Mas, no geral, corre para o meio, onde espera atrair votos de segmentos refratários ao petismo. Aborto, controle da mídia, estatização, reforma trabalhista e outros temas polêmicos continuam integrando a velha pauta lulista. O Lula Lá e o Lula Cá deixam confusos muitos eleitores.

Combustíveis

Digamos que os preços dos combustíveis sejam contidos e segurados pela mão do novo comando da Petrobras. Vai adiantar e dar votos a Bolsonaro? Este analista tende a acreditar que não reverterão em votos para o presidente. A imagem da economia fraturada, inflação alta, juros subindo, alimentos distantes das mesas pobres – essa mistura quase venenosa acabará puxando a gasolina, o diesel, o gás de cozinha para o caldeirão da indignação. Reverter imagem negativa, com esse andar da carruagem, é tarefa para gigantes de estatura moral.

A barriga ronca

Sou recorrente com a minha hipótese: a barriga roncando de fome e panelas vazias definirão o voto em 2 de outubro. A fome se espalha. A estética dos polos urbanos está locupletada de pedintes, mendigos e sem teto.

O bem contra o mal?

Jung perguntou, certa vez, a um rei africano:

- Qual é a diferença entre o bem e o mal?

O rei meditou, meditou e respondeu às gargalhadas:

- Quando roubo as mulheres do meu inimigo, isso é o bem. E quando ele rouba as minhas, isso é o mal.

Bolsonaro disse que a campanha eleitoral desse ano será uma luta do bem contra o mal.

Quem vai roubar?

Entendamos que esse posicionamento vale para os dois lados. Pois Lula deve dizer a mesma coisa. Se Bolsonaro roubar os votos do petista, o bem estaria do lado dele? Assim como Lula, se conseguir roubar os votos do bolsonarismo? Ambos garantem que sim.

Agregador de pesquisas

Os Institutos de Pesquisa, em sua quase totalidade, atribuem ao candidato do PT uma margem entre 10 pontos a 19 pontos de maioria. O índice depende da metodologia usada. Pelo sistema de agregação de resultados de pesquisas, montado pelo Estadão, a média é de 15 pontos. A virtude está no meio? Vamos acompanhar esses números.

Até quando?

O novo presidente da Petrobras – a ser ainda referendado pelo Conselho – ficará no cargo até quando? Promete nova dinâmica de preços na estatal. Dinâmica de preços – eis o vocabulário da crise.

Terceira via

Foi para o beleléu, segundo muitos analistas. Este escriba ainda vê faíscas no fim do túnel.

Ciro com 10 pontos

Ciro Gomes deve entrar na faixa dos dois dígitos. Simone Tebet terá fôlego? É a candidata de contingentes médios. Pelo menos, nas expectativas.

França baixando a crista

Marcio França (PSB) até que suportou bem as pressões. Mas poderá abandonar o barco da pré-candidatura ao governo de São Paulo e se refugiar na canoa de candidato ao Senado com apoio de Fernando Haddad. O PT parece ter ganhado a parada. Lula teria costurado bem. Quando França fará o anúncio?

No Rio de Janeiro

Marcelo Freixo (PSB) deve escolher Cesar Maia (PSDB) em articulação feita por seu filho, Rodrigo Maia (PSDB) como vice em sua chapa ao governo do Rio de Janeiro. Pode ganhar do atual governador, Claudio Castro (PL), candidato de Bolsonaro, por enquanto na frente. O prefeito Eduardo Paes(PSD) apoia o ex-presidente da OAB, Felipe Santa Cruz (PSD). Mas pode desistir desse apoio por causa do baixo índice de intenção de voto de Santa Cruz.

O véio Lunga

Seu Lunga estava cortando uns limões, quando passa sua mulher e pergunta:

– Esse limão é pra fazer suco?

– Não, é pra eu usar de colírio!

Prefiro um sabonete

Entra um sujeito na sucata de seu Lunga, escolhe um relógio um pouco velho e pergunta:

– Seu Lunga, esse relógio presta pra tomar banho?

– Eu prefiro um sabonete – resmunga o velho.

Amor próprio

"Um maltrapilho dos arredores de Madrid pedia esmolas com grande dignidade. Um transeunte lhe disse:

- "Não tem vergonha de exercer essa infame atividade quando pode trabalhar?"

- "Senhor, respondeu o mendigo, peço-lhe esmola e não conselhos".

E tendo dito isto, deu-lhe as costas com toda a empáfia castelhana. Era um mendigo orgulhoso esse; pouca coisa bastava para ferir sua vaidade. Por amor de si mesmo pedia esmola; e ainda por amor de si mesmo não permitia que lhe fizesse qualquer reprimenda". (Voltaire)

 Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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‘PEC do Desespero’ não prioriza pobres

Auxílio para caminhoneiro e taxista não é programa social. É privilégio para a base eleitoral de Bolsonaro. Oposição não pode apoiar uma PEC cujos meios e fins são antidemocráticos

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022 é uma violência contra as regras do jogo eleitoral. É incompreensível que senadores não alinhados ao bolsonarismo tenham aprovado a criação, no texto constitucional, de um estado de emergência para burlar a legislação fiscal e eleitoral. Para piorar, os parlamentares autorizaram essa aberração jurídica motivados por uma mentira: ao contrário do que o governo diz, a PEC, destinada na prática a comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cria benefícios sociais para profissionais de classe média, e não para a população carente e desempregada.

O foco da PEC 1/2022, apelidada corretamente de “PEC do Desespero”, tem pouco a ver com os pobres. Ela cria auxílios, por exemplo, para caminhoneiros e taxistas – que, por mais que estejam sofrendo as consequências da crise social e econômica, não fazem parte da população necessitada no Brasil.

Na verdade, caminhoneiros e taxistas só estão na “PEC do Desespero” porque são supostamente parte da clientela eleitoral de Bolsonaro. Sendo assim, e como o desespero bolsonarista é grande diante das pesquisas de intenção de voto, nada impede que outras categorias profissionais (e eleitores em potencial) entrem no pacote de bondades com dinheiro alheio: o relator da matéria na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), quer agora incluir motoristas de aplicativo. Sabe-se lá quem mais será beneficiado até a votação da PEC. Só se sabe que não serão os mais carentes.

Há muitos pobres no Brasil. Recente estudo da FGV Social mostrou que, no ano passado, 62,9 milhões de brasileiros (29,62% da população) estavam abaixo da linha da pobreza. De acordo com critérios consolidados internacionalmente, essa linha é de US$ 5,50 per capita por dia, o que, ajustada por paridade do poder de compra, equivalia a R$ 497 mensais no ano passado. Nas faixas mais pobres, eram 33,5 milhões de brasileiros vivendo com até US$ 3,20 por dia, e 15,5 milhões de brasileiros com até US$ 1,90 por dia. Essas pessoas, no entanto, mal estão contempladas pelos benefícios que a PEC 1/2022 cria.

A PEC tem, portanto, escasso conteúdo social e abundantes privilégios – que, uma vez concedidos, dificilmente poderão ser retirados sem criar ressentimentos. Logo, como a mudança constitucional vale só até o fim do ano, supõe-se que haverá muito ressentimento em 2023. Já os pobres, bem, estes continuarão pobres.

Ou seja, a PEC 1/2022 não é a escolha de um caminho errado – violação das regras fiscais e eleitorais – para um fim supostamente bom. Ao dar dinheiro para determinadas pessoas, sem nenhum critério social, apenas por motivo eleitoral, a “PEC do Desespero” reforça desigualdades, com a produção de novas distorções. Essa disfuncionalidade é rigorosamente contrária ao papel do Estado, que não tem poder nem competência para atuar assim. No seu art. 3.º, a Constituição define que um dos “objetivos fundamentais da República” é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Tudo isso só faz aumentar a perplexidade perante a votação quase unânime da PEC 1/2022 no Senado. Apenas o senador José Serra (PSDB-SP) foi contrário. Qual é o sentido de a oposição apoiar a criação de privilégios para a base eleitoral de Jair Bolsonaro? Talvez alguém possa achar que o aumento temporário de R$ 200 no benefício do Auxílio Brasil, também previsto na PEC, justificaria todo o restante. No entanto, esse acréscimo, longe de representar algum conteúdo social, só reitera a natureza eleitoreira da “PEC do Desespero”. 

O valor de R$ 200, como tudo o que parte de Bolsonaro, foi definido arbitrariamente, sem nenhum estudo prévio nem qualquer vinculação com as reais necessidades da população. Além disso, a implosão do Cadastro Único, que o governo Bolsonaro vem causando, escancara o objetivo de destituir de sentido social – de proteção da população mais vulnerável – todas as políticas públicas sociais em funcionamento para transformá-las em meras plataformas de compra de votos. Tal aberração, vergonhosamente apoiada pela oposição, não merece nenhuma condescendência.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.06.22

José Serra: PEC Kamikazi, há arcabouço fiscal que resista?

A polêmica provocada pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 1/2022, no Senado me fez pensar sobre o crônico menosprezo no país por aspectos institucionais, em variadas instâncias, não somente políticas. Situo o leitor brevemente no contexto da discussão.

Em 30/6/2022, o Senado votou em dois turnos a PEC nº 1/2022, a qual determinou um conjunto de gastos para 2022 somando mais de R$ 41,2 bilhões. Há diferentes itens no pacote: transferências de renda para famílias pobres inscritas no Cadastro Único da assistência social; subsídios à gratuidade de idosos no transporte público; benefícios para caminhoneiros e taxistas; e compensação aos estados pela concessão de crédito presumido de ICMS à cadeia do etanol. Não pretendo discutir o mérito de cada item. Apenas destaco que foram necessários somente dois dias para o Senado emendar o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com o intuito de incrementar gastos sem que os atores — Executivo, sobretudo — incorressem em riscos de responsabilização por violar normas de direito financeiro e eleitoral.

Todo o arcabouço fiscal do país — composto por dispositivos constitucionais, leis complementares, entre outros — foi expressamente afastado para que um dispêndio conjuntural pudesse acontecer. Aprovou-se uma PEC (a de nº 01/2022) para criar exceções à PEC anteriormente aprovada (a que originou a EC nº 95/2016 ou teto de gastos). É como se as restrições institucionais devessem subsistir até que começassem a restringir de fato; a partir de então, excetua-se. Não foi a primeira vez, não será a última.

Sintomaticamente, poder-se-ia dizer, o Brasil tem sido pródigo na criação de normas, incluídas normas fiscais. Especialistas apontam que, desde sua promulgação em 1988, o texto principal da Constituição saltou de 67 para 167 dispositivos no capítulo das finanças públicas. Há ainda o ADCT, o qual em breve receberá mais dispositivos caso a PEC nº 1/2022 seja aprovada, e dispositivos apartados no corpo das emendas. Discute-se muito o afã brasileiro de constitucionalizar: a Carta de 1988 trata de numerosos assuntos. Como parlamentar constituinte, pude observar o fenômeno. Para alguns, o esforço de tudo inscrever na CF/88 foi e é reflexo da busca de proteção por parte dos vários segmentos sociais: na falta de consensos suficientes decorrente de um conflito distributivo acentuado e não raro predatório, num quadro de brutais desigualdades, todos almejam um lugar constitucional. Mas se tudo se constitucionaliza, toda mudança requer alterações constitucionais. Lá se vão 128 emendas desde 1988. Outras duas já estão a caminho.

Existem numerosos conceitos na literatura das ciências sociais, desde os mais parcimoniosos, que definem instituições como regras formais, até outros mais abrangentes que incluem normas e valores culturais. Considerando o tema que motiva este artigo, chamo a atenção para a importância de certas funções institucionais. Instituições delimitam as ações possíveis dos vários atores, são as regras do jogo social ou político. Instituições criam incentivos ao recompensar e punir. Instituições facilitam, em maior ou menor grau, para os diversos atores, projetar, em horizontes variados, os resultados possíveis de suas decisões. Instituições mitigam ou ampliam riscos.

A ideia de governança, tão em voga em múltiplas esferas, tem um caráter institucional. Nos termos do Ifac (International Federation of Accountants), por exemplo, governança diz respeito ao conjunto de arranjos institucionais que objetivam assegurar que os resultados esperados pelas diferentes partes interessadas (stakeholders) de uma organização sejam definidos e alcançados. No campo da política fiscal, o recente debate opondo padrões de governança a regras fiscais numéricas tem como pano de fundo uma questão institucional: que conjunto de instituições fiscais melhor promovem o equilíbrio intertemporal das contas públicas, além de otimizar aspectos de eficiência e equidade do gasto? Na arena eleitoral, diferentes conjuntos de regras favorecem maior ou menor representatividade ou governabilidade.

Instituições, portanto, não são irrelevantes. Novas regras tendem a promover novos resultados. Ao transigir com instituições, podem-se comprometer objetivos, ainda que não imediatamente. Pense-se agora no grande marco institucional que é uma Constituição, na qual aspectos fundamentais de uma sociedade como direitos individuais, arquitetura do aparato estatal, regras de competição política, entre outros, são estabelecidos. Quais são as consequências de submetê-la a mudanças circunstanciais?

Algo paradoxal, o Brasil parece apostar em reformas institucionais mesmo com sua disposição a subverter normas com muita presteza. O arcabouço fiscal, como mencionado, é um caso evidente. Em 1998, inserimos na Constituição um teto remuneratório do serviço público. Desde então, foi inventado um sem-número de manobras para burlá-lo. Cada tentativa de tapar furos no teto é seguida de novos artifícios, num ciclo interminável. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pela extensão e magnitude das mudanças trazidas, tinha um imenso potencial de introduzir novos padrões e comportamentos na gestão pública. Fato é, no entanto, que crises fiscais abalaram os vários entes federativos desde então e, em 2016, decidiu-se que um teto de gastos deveria ser imposto à União. Esse teto, por sua vez, já sofreu mudanças para atender a necessidades do governo de ocasião. A PEC nº 1/2022 é apenas a bola da vez. Já se espera que o governo a ser empossado em 2023 venha a instituir novo regime fiscal.

Ao fim, pergunto-me se existem arranjos institucionais que prescindam da qualidade dos atores. Se quase todos se prestam a votar contra o arcabouço fiscal do país, há arcabouço que resista?

José Serra, o autor deste artigo, é senador (PSDB-SP), ex-governador de Estado, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro das Relações Exteriores, da Saúde e do Planejamento, ex-deputado, ex-secretário da Fazenda de Estado, professor, economista e engenheiro civil. Publicado no Consultor Jurídico, em 04.06.22

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Bolsonaro sozinho com seu golpismo

Nenhum partido político, como nenhuma entidade relevante da sociedade civil, apoia a investida de Bolsonaro contra as eleições. O golpismo bolsonarista não é força, e sim fraqueza

Eis um fato constante ao longo de todo o governo. As instituições não conseguiram moderar Jair Bolsonaro. Para piorar, seu destempero fica ainda mais estridente no período prévio às eleições. Tem-se um presidente da República rigorosamente sem limites. Mas, se o mundo político-institucional não conseguiu conter Jair Bolsonaro, é também um fato o fracasso do bolsonarismo em arrastar o mundo político-institucional para seus devaneios. 

É inegável que Jair Bolsonaro tem seguidores. No entanto, mesmo tendo conquistado a confiança de parcela da população, ele continua inteiramente isolado em relação à sua bandeira atual mais importante, contra as eleições e a Justiça Eleitoral. Não há nenhum partido ou organização da sociedade civil, como também não há nenhuma liderança política ou civil, que apoie sua campanha contra a integridade eleitoral. Apesar de todo o discurso bolsonarista, a sociedade não está dividida quanto a isso.

Tanto é assim que mesmo os aliados do governo – aqueles para os quais o governo Bolsonaro vem entregando generosos nacos do orçamento federal – se colocam bem distantes do presidente da República quando o assunto são as urnas eletrônicas. Consideram o tema encerrado desde que o Congresso rejeitou, no ano passado, a PEC do Voto Impresso. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que, diante das inúmeras denúncias de crimes de responsabilidade, muito contribuíram para a permanência de Jair Bolsonaro no cargo, são taxativos em rejeitar qualquer suspeita contra o sistema eleitoral. Até o pré-candidato bolsonarista ao governo do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), admitiu, em entrevista na TV Cultura: “Eu acredito nas urnas”.

Se o isolamento de Jair Bolsonaro já era visível, ficou especialmente notório após envolver os Ministérios da Defesa e da Justiça em sua tentativa de controlar as eleições, aventando a realização de uma contagem paralela de votos pelas Forças Armadas. O País tem muitos defeitos, mas ninguém – nenhuma liderança ou entidade relevante – manifestou apoio a essas investidas ilegais contra o sistema eleitoral. O que se tem visto é, cada vez com maior frequência, declarações contundentes de apoio ao Estado Democrático de Direito, à independência do Poder Judiciário e à integridade eleitoral, como a que fez o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva, em recente reunião da entidade. “Esta casa está ao lado do fortalecimento das instituições e do Judiciário”, disse o presidente da Fiesp.

O recado das lideranças políticas e civis é claro: ninguém quer rompimento da ordem democrática, ninguém quer bagunça nas eleições, ninguém quer candidato rejeitando, seja antes ou depois das eleições, o resultado das urnas a ser anunciado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A vontade do eleitor é soberana e será respeitada.

No isolamento de Jair Bolsonaro em sua campanha contra as eleições, há um ponto que merece destaque. Os partidos políticos têm experiência com a Justiça Eleitoral. Sabem que, por mais que haja deficiências e atrasos, o TSE aplica a legislação relativa às eleições. O pleito não é um mundo sem lei, como gostaria Jair Bolsonaro. O candidato que comete crime eleitoral não toma posse ou, se toma, tem depois seu mandato cassado. Ou seja, ninguém deseja pôr em risco sua candidatura embarcando na tresloucada investida bolsonarista contra as eleições.

É preciso, ainda, reconhecer que o desamparo político de Jair Bolsonaro vai além da questão da integridade eleitoral. Há dois anos, o presidente da República franqueou o governo para o Centrão, que passou a oferecer algum suporte político ao Palácio do Planalto. Mas a aliança está longe de ser estável ou segura. Por exemplo, na escolha do general Braga Netto como vice na sua chapa, Jair Bolsonaro ficou inteiramente isolado entre seus aliados. Como o seu entorno político mais próximo já percebeu, o golpismo de Bolsonaro não é força, e sim fraqueza. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.07.22