segunda-feira, 6 de junho de 2022

A guerra de Putin: Zelenski visita tropas ucranianas na linha de frente

Em demonstração de apoio a militares, presidente ucraniano esteve em cidades de Donetsk e Lugansk, onde a Rússia concentra atualmente sua ofensiva.

Zelenski conversa com militares em bunker na linha de frente no Donbass

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, visitou neste domingo (05/06) tropas na linha de frente da guerra na região de Donbass – palco dos combates mais intensos e atual alvo principal da invasão russa – para, segundo ele, mostrar seu orgulho pelos ucranianos estão na resistência.

Zelenski visitou militares em Lysychansk, cidade vizinha de Sievierodonetsk, onde as tropas ucranianas estão combatendo a ofensiva russa, num dos raros momentos em que deixou a capital Kiev desde o início da guerra em 24 de fevereiro.

"Quero agradecê-los por seu grande trabalho, seu serviço protegendo a todos nós e o nosso Estado. Sou grato a todos vocês", afirmou Zelenski. "O que vocês merecem é a vitória, isso é a coisa mais importante, mas não a qualquer custo", acrescentou.

Durante a visita à linha de frente, o presidente também passou por Bakhmut e Soledar, em Donetsk. Lysychansk e Sievierodonetsk ficam na região de Lugansk. Juntas essas regiões compõem o Donbass, o coração industrial da Ucrânia, que a Rússia afirmar estar em missão para libertar. Depois de sofrer derrotas em Kiev e Kharkiv, Moscou concentrou a maior parte de seu poder de fogo no Donbass.

O presidente esteve ainda em Zaporíjia, onde conheceu moradores de Mariupol, que conseguiram deixar a cidade portuária que foi destruída pelos bombardeios russos. Mariupol enfrentou um cerco severo antes de ser tomada por Moscou, que desencadeou uma grave crise humanitária entre os poucos habitantes que permaneceram nela.

Em Zaporíjia, Zelenski visitou refugiados de Mauripol (Foto: UKRAINIAN PRESIDENTIAL PRESS SERVICE/AFP)

"Cada família tem a sua história. A maioria estava sem os homens. Em uma, o marido estava na guerra, na outra preso, outro infelizmente morreu. Uma tragédia. Sem um teto, sem a pessoa amada, mas temos que viver pelos filhos. São verdadeiros heróis", afirmou.

Intensos confrontos em Sievierodonetsk

Após ter conseguido recapturar dos russos partes de Sievierodonetsk, o governador da província de Lugansk, Serguei Haidai, afirmou no domingo que a situação havia piorado para o lado ucraniano, sem dar mais detalhes. Ele disse, no entanto, que as tropas de Kiev ainda mantinham suas posições na cidade.

"A batalha mais feroz é em Sievierodonetsk. A rápida batalha está acontecendo agora", ressaltou Haidai.

O Ministério da Defesa britânico confirmou nesta segunda-feira os confrontos intensos em Sievierodonetsk. Ambos os lados afirmam ter causado enormes baixas na cidade.

De acordo com o estado-maior ucraniano, as forças russas também estão fortalecendo suas posições na região de Kharkiv e realizando intensos bombardeios para manter o território que ocuparam. A Rússia estaria ainda atacando a infraestrutura civil em várias cidades da região. Moscou nega ter como alvo civis.

Militares ucranianos disseram ainda ter repelido sete ataques em Donetsk e Lugansk no domingo, destruindo quatro tanques e derrubando um helicóptero. Agências de notícias não conseguiram verificar esses relatos do campo de batalha.

Progresso lento

A Rússia controla em torno de um quinto do país, cerca de metade disso foi ocupada em 2014 e o restante, capturado desde o lançamento da invasão em 24 de fevereiro.

Para ambos os lados, o ataque maciço da Rússia no leste ucraniano nas últimas semanas foi uma das fases mais mortíferas da guerra, com a Ucrânia dizendo que está perdendo de 60 a 100 soldados todos os dias.

Moscou fez progresso lento, mas constante, pressionando as forças ucranianas dentro de bolsões de resistência nas províncias de Lugansk e Donetsk, mas fracassando em cercá-las. Kiev espera que o avanço russo drene as forças de Moscou o suficiente para que a Ucrânia recapture território nos próximos meses.

A guerra teve um impacto devastador na economia global, especialmente para os países pobres importadores de alimentos. A Ucrânia é uma das principais fontes mundiais de grãos e óleo de cozinha, mas o abastecimento desses produtos foi cortado pelo fechamento dos portos ucranianos do Mar Negro, que impede o escoamento de mais de 20 milhões de toneladas de grãos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 06.06.22 (cn AFP, efe, Reuters)

Como nasceu a Ucrânia - e quais seus vínculos históricos com a Rússia

Desde o dia 24 de fevereiro a comunidade internacional assiste com perplexidade à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Como outras nações vizinhas, os dois países têm tanto laços históricos e culturais que as unem quanto que as separam.

Essa herança em comum remonta ao século 9, quando Kiev, a atual capital ucraniana, era centro do primeiro Estado eslavo, criado por um povo que se autodenominava "rus".

Foi esse grande Estado medieval, que os historiadores chamam de Rus de Kiev, que deu origem à Ucrânia e à Rússia - cuja capital atual, Moscou, surgiu no século 12.

A fé professada era a cristã ortodoxa, instituída em 988 por Vladimir 1º de Kiev (ou São Vladimir Svyatoslavich "O Grande"), que consolidou o reino Rus no território que corresponde hoje a Belarus, Rússia e Ucrânia e se estende até o Mar Báltico.

Mapa de Girolamo Ruscelli mostra Rússia e Ucrânia em 1574 (Getty Images)

Entre os vários dialetos eslavos falados na região, acabaram se desenvolvendo as línguas ucraniana, bielorrussa e russa.

É por causa desse passado compartilhado que o presidente russo, Vladimir Putin, afirma que "russos e ucranianos são um povo, um único todo".

Especialistas apontam, entretanto, que, apesar da origem comum, a trajetória dos ucranianos tomou caminhos diferentes da dos russos pelo menos nos últimos nove séculos, quando estiveram sob domínio de povos diferentes.

Para Andrew Wilson, professor de estudos ucranianos da Universidade College London, é importante ver a Ucrânia, tanto seu território quanto sua identidade, mais como um "quebra-cabeças dinâmico" do que como uma unidade estanque.

Em meados do século 13, a federação de principados de Rus foi conquistada pelo Império Mongol.

Na sequência, no final do século 14, o território acabou dividido entre o Grão-Principado de Moscou e o Grão-Ducado da Lituânia (que mais tarde se juntou à Polônia), que se aproveitaram do declínio do poder mongol para avançarem sobre a região.

Kiev e as áreas adjacentes ficaram sob o domínio da Comunidade Polaco-Lituana - o que deixou a região oeste da Ucrânia mais exposta a influências ocidentais nos séculos seguintes, desde a contrarreforma (a resposta da igreja Católica à reforma protestante) até o renascimento (movimento artístico e cultural inspirado na antiguidade clássica, que rompia com os valores da Idade Média).

A chamada Galícia dos Cárpatos, também no oeste da Ucrânia, chegou a ser governada por um longo período pela dinastia dos Habsburgo, conhecida por estar à frente dos impérios Austríaco e Austro-Húngaro.

Assim, essa porção ocidental do país teve uma história completamente diferente daquela vivida no leste ucraniano, disse Geoffrey Hosking, historiador especializado em Rússia, à revista BBC HistoryExtra.

Muitos de seus habitantes não são católicos ortodoxos, pertencendo à igreja Greco-Católica Ucraniana ou a outras igrejas orientais católicas, que realizam seus ritos em ucraniano e reconhecem o papa como chefe espiritual.

Outra parte da Ucrânia de hoje com um passado bastante particular é a Crimeia, com seus laços com gregos e tártaros e períodos sob o domínio otomano e russo.


Rio Dnieper atravessa a Ucrânia e desemboca no Mar Negro 

Dois lados

No século 17, uma guerra entre a Comunidade Polaco-Lituana e o czarismo da Rússia colocou as terras a leste do rio Dnieper, região que era conhecida como "margem esquerda" da Ucrânia, sob o controle da Rússia Imperial.

Décadas depois, em 1764, a imperatriz russa Catarina, a Grande, desarticulou o Estado cossaco ucraniano que dominava as regiões central e noroeste do território e passou a avançar sobre terras ucranianas até então dominadas pela Polônia.

Durante os anos que se seguiram, uma política conhecida como russificação proibiu o uso e o estudo da língua ucraniana. As populações locais foram pressionadas a se converter à fé ortodoxa russa, para que pudessem constituir mais uma das "pequenas tribos" do grande povo russo.

Em paralelo, o nacionalismo se intensificou nas terras mais a oeste, que passaram da Polônia para o Império Austríaco, onde muitos começaram a se chamar de "ucranianos" para se diferenciar dos russos.

Com o século 20, veio a Revolução Russa e a criação da União Soviética, que fez seu próprio rearranjo do quebra-cabeças ucraniano.

Área histórica de Kiev, que já foi centro do Estado eslavo criado pelo povo russo (Getty Images)

Dominação soviética

A parte ocidental da Ucrânia foi tomada da Polônia pelo líder soviético Joseph Stalin no final da Segunda Guerra Mundial, quando foi constituída a República Socialista Soviética da Ucrânia.

Sob o manto comum soviético, na década de 1950 Moscou atendeu a uma demanda antiga da Ucrânia e transferiu a península da Crimeia para a república.

Localizada no Mar Negro, no sul, a região também tem laços fortes com a Rússia, que mantém até hoje uma base naval na cidade de Sebastopol. A Crimeia voltou para controle russo em 2014, quando a Rússia de Putin a invadiu e anexou.

Durante o período de dominação soviética, a tentativa de submeter a Ucrânia à influência russa se intensificou, muitas vezes a um custo humano elevado.

Milhões de ucranianos que já faziam parte da União Soviética na década de 1930 morreram em uma grande fome - que ficou conhecida como Holodomor - promovida por Stalin como estratégia para forçar os camponeses a se unirem à política comunista de fazendas coletivas.

Stalin chegou a enviar um grande número de cidadãos soviéticos, muitos sem conhecimento do idioma ucraniano e com poucos laços com a região, para tentar repovoar o leste do país.

Mesmo assim, a Moscou soviética nunca dominou culturalmente a Ucrânia.

Decisões econômicas, políticas e militares foram impostas a partir do centro, afirma Hosking, mas a Ucrânia "tinha certa autonomia" nas áreas de cultura e educação.

Embora o russo fosse a língua dominante, as crianças aprendiam ucraniano no ensino primário, muitos livros eram publicados no idioma local e, na segunda metade do século 20, "um forte movimento nacionalista ucraniano protagonizado por pessoas que tiveram uma educação ucraniana" cresceu na União Soviética.

Divisões profundas

Em 1991, a União Soviética entrou em colapso e, em 1997, um tratado entre Rússia e Ucrânia estabeleceu a integridade das fronteiras ucranianas.

Os diferentes legados que caracterizam as regiões do país deixaram, contudo, divisões que muitas vezes parecem abismos.

As regiões de cada um dos lados do rio Dnieper têm contrastes profundos, marcados pela extensão do domínio russo.

A leste, os laços com Moscou são mais fortes, e a população tende mais a seguir a religião ortodoxa e a falar o idioma russo.

Na parte ocidental, os séculos sob o domínio de potências europeias, como a Polônia e o Império Austro-Húngaro, acabam contribuindo para que muitos de seus habitantes fossem católicos e que preferissem falar a língua local.

Cada lado tem seus próprios interesses: alguns anseiam por retornar ao que consideram sua pátria-mãe, enquanto outros anseiam por trilhar caminhos independentes.

Publicado originalmente pela BBC News Mundo, em 27.02.22.

A luta de ucranianos por sua identidade nacional

Após a invasão russa à Ucrânia, muitos ucranianos lutam para manter a identidade do país.

Desde o colapso da União Soviética, a população já viveu mudanças radicais que vão da Revolução Laranja, em 2004, à deflagração de guerra em Donbas, em 2014.

Além de lutarem nos campos de batalha, muitos cidadãos do país também estão refletindo sobre quem de fato são.

Neste vídeo, a correspondente da BBC Zhanna Bezpiatchukk investiga como a ofensiva russa está impactando o sentimento nacional ucraniano.

Confira.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 18.05.22 

A Ucrânia de Clarice Lispector: como nascimento e migração ilustram capítulo sombrio do povo ucraniano

Em solo nordestino, as meninas foram rebatizadas com nomes brasileiros. A caçula, Haia, virou Clarice. E, 20 anos depois, se tornaria a famosa escritora Clarice Lispector — naturalizada brasileira nos anos 1940.

Clarice Lispector (Editora Rocco / Divulgação)

A pequena Haia Pinkhasovna Lispector tinha um ano e três meses quando desembarcou no porto de Maceió, em Alagoas, em 1922. Acompanhada dos pais e das duas irmãs, ela migrou da Ucrânia para o Brasil logo após a Guerra Civil Russa (1918-1921).

De origem judaica, quase toda a família Lispector — não só os pais de Clarice, como também seus tios e primos — chegou ao Brasil fugindo das perseguições contra judeus na Ucrânia no início do século 20.

"Os familiares que não saíram da Ucrânia naquela época certamente morreram. É o caso de um dos avós de Clarice, que teria sido assassinado em um pogrom", afirma a escritora Teresa Montero, uma das maiores biógrafas de Clarice Lispector.

Os "pogroms" foram uma onda de ataques violentos contra judeus, com motivações políticas e religiosas, que varreu a Ucrânia nas décadas de 1910 e 1920.

Os Lispector foram alvo de um pogrom praticado por militares russos na aldeia onde moravam, em Chechelnyk, na província de Podólia, por volta de 1919. O episódio foi descrito no livro Clarice, Uma Biografia, do crítico americano Benjamin Moser.

Segundo a obra, o ataque aconteceu durante uma viagem do pai de Clarice, o comerciante Pinkhas, e a mãe dela, Mania, teria sido estuprada e contraído sífilis.

Clarice foi concebida neste contexto: a família acreditava, segundo uma crença popular, que uma gravidez poderia curar a doença de sua mãe. Não à toa, o nome Haia significa "vida" em ucraniano.

A cura de Mania, contudo, não aconteceu, e ela morreu quando Clarice tinha dez anos. A escritora contou o episódio em uma crônica, publicada no livro A Descoberta do Mundo, de 1968:

"(...) Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei."

"Os anos 1910 e 1920 foram difíceis para toda a Ucrânia, mas particularmente para a população judaica", afirma Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan, nos EUA.

Ele explica que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a maioria dos judeus na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo, eram artesãos ou comerciantes pobres que viviam em pequenas aldeias e sofriam perseguições religiosas e políticas.

"Durante a Primeira Guerra, os militares russos deportaram centenas de milhares de judeus das fronteiras do império russo, temendo que eles pudessem ser recrutados como espiões para os alemães", explica Veidlinger.

A situação piorou a partir de 1917, com a Guerra Civil Russa instaurada com o fim do czarismo e a consolidação da Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques.

"Os pogroms mais letais foram praticados entre 1917 e 1921 por gangues armadas e unidades militares dos exércitos russos, ucranianos e poloneses", diz Veidlinger.

Escritora chegou ao Brasil ainda pequena, quando ainda se chamava Haia Pinkhasovna Lispector (Divulgação)

Estima-se que mais de 100 mil judeus foram mortos durante os pogroms de 1917 a 1921, segundo o professor, e outros 600 mil foram forçados a fugir da Ucrânia.

Com o desmantelamento do Império Russo, a Ucrânia e a Polônia vivenciaram um breve período de independência, mas também passaram por uma guerra civil em que judeus frequentemente eram alvos de saques e perseguições.

"O Exército ucraniano e o Exército Branco [russos contrários à Revolução Russa] atacaram os judeus com a suspeita de que eram leais aos bolcheviques. Já os poloneses acusaram os judeus de serem leais aos ucranianos", descreve Veidlinger.

A maior parte da violência contra os judeus, no entanto, foi cometida sob a acusação de que eles estavam do lado dos bolcheviques.

Clarice e família: de origem judaica, quase todos chegaram ao Brasil enquanto fugiam de perseguição (AMLB-FCRB)

"Os bolcheviques inicialmente atacaram os judeus sob a acusação de que eram capitalistas burgueses. Depois, o Exército Vermelho defendeu os judeus. Vários dos líderes bolcheviques mais visíveis, incluindo o chefe do Exército Vermelho, Leon Trotsky, eram conhecidos por terem origem judaica", completa Veidlinger, lembrando que o próprio Trotsky nasceu na Ucrânia.

Depois do Holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial (1941-1945), os pogroms são considerados o pior episódio antissemita da história.

Memórias da Ucrânia

Teresa Montero lembra que, apesar de Clarice ter falado muito pouco sobre a sua origem, trechos de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, onde foi colunista entre 1967 e 1973, tocam brevemente no tema.

"Na Polônia, eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo", escreve Clarice em uma crônica sobre suas viagens como mulher do diplomata Maury.

A escritora também nunca se manifestou publicamente sobre os episódios políticos que marcaram a Ucrânia e a Rússia.

Uma das hipóteses sobre o silêncio de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

"Não tem nenhum depoimento ou entrevistas em que Clarice tenha falado sobre a vida política da Ucrânia, nem sobre a União Soviética", afirma Montero.

Uma das hipóteses sobre o silenciamento de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

"Quando entrevistei a tradutora Tati de Moraes, amiga de Clarice, ela me contou que a escritora tinha medo de ser deportada", lembra a biógrafa.

Contudo, isso não significa que Clarice não tivesse uma postura política.

"Ela [Clarice] foi fichada pela ditadura por ter participado da Passeata dos Cem Mil. Antes, ela já havia sido fichada pelo governo [Eurico Gaspar] Dutra, certamente por ser judia e de origem russa", ressalta Montero.

A Passeata dos Cem Mil foi uma manifestação popular contra a ditadura militar e a favor da democracia, encabeçada por intelectuais, artistas e estudantes, em 1968, no Rio de Janeiro.

Marcos históricos ocorridos na Ucrânia que foram contemporâneos de Clarice:

- 1921: Parte da Ucrânia é incorporada à Polônia.

- 1922: Ucrânia é incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

- 1930: tem início o Holodomor (matar pela fome, em ucraniano), em que Joseph Stalin passa a exigir dos camponeses ucranianos grande parte da produção agrícola. Estima-se que 5 milhões de camponeses morreram de fome na região em pouco mais de três anos.

- 1953: a Ucrânia anexa a Crimeia.

Quem seria responsável por narrar as memórias da família Lispector na Ucrânia seria a irmã mais velha de Clarice, a também escritora Elisa Lispector.

"Elisa nasceu em 1911, era a mais velha das três irmãs. Clarice, a caçula, nasceu em 1920. Então, quem tinha memória do período na Ucrânia era Elisa, que chegou no Brasil já com 10 anos", diz Montero.

No livro Retratos Antigos, publicado postumamente em 2011 (Elisa morreu em 1989, deixando a obra inédita), a escritora conta sobre os pogroms e a vida dos judeus na Ucrânia.

"Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não pudessem dizer", diz ela em um trecho do livro.

Elisa escreve que as cidades permitiam que apenas uma porcentagem de judeus frequentasse a escola e universidade e que, apesar de terem o direito de morar nas cidades, "até nos pequenos vilarejos, nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam segregados e com medo".

Nacionalidade russa

"Hoje, falamos ucraniana, mas, na realidade, a nacionalidade da Clarice é russa, porque, na época do seu nascimento, a região pertencia ao Império Russo", explica Montero.

Ao longo da carreira, Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas (Edirora Roccco - Divulgação)

A questão fica clara na carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas pedindo sua naturalização, em que afirma ser:

"Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo (...) Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças."

Apesar do tom dramático, Teresa lembra que a carta foi escrita às vésperas do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial — o documento é de 3 de junho de 1942, e o país declarou guerra à Alemanha em 22 de agosto do mesmo ano — e que Clarice estava noiva do diplomata Maury Gurgel Valente, mas não podia se casar por ser estrangeira.

"O Itamaraty não permitia que diplomatas se casassem com estrangeiros, e Clarice não era só estrangeira, era também russa", explica a biógrafa.

A naturalização foi concedida um ano após a carta endereçada a Vargas. Cerca de duas semanas depois, Clarice e Maury se casaram.

A escritora morreu em 1977, no Rio de Janeiro, tendo afirmado durante toda a vida adulta ser brasileira.

Lais Modelli, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 05.06.22

domingo, 5 de junho de 2022

Bolsonaro e os poderes da rainha

Desde que se sentou no Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Artigo de Dorrit Harazim n'O Globo hoje.

Faltam 16 domingos para os 150 milhões de eleitores brasileiros se engalanarem no papel de protagonistas da História do país. Por um breve momento — pelo menos enquanto deposita sua esperança na urna eletrônica —, o eleitor tem o direito de se sentir participante do futuro nacional. É uma sensação valiosíssima, mesmo depois de esmaecer com o tempo ou devido a tropeços da vida. O voto democrático e universal, por ser igualitário, não revela quem somos. Revela apenas que existimos como cidadãos, o que é crucial num país de tamanha maioria invisível. Vinte anos atrás, neste mesmo espaço, escreveu-se que eleições são a única coisa com fila única de verdade no Brasil. Não existe título de eleitor gold, premier ou VIP. Nem título “terrivelmente evangélico” ou reservado a militares. O garoto candidato ao desemprego, o idoso esquecido pela vida, a mulher que rala e vota sozinha, o influencer incensado no TikTok, o próprio candidato a presidente — todos valem o mesmo na contagem dos votos. Nenhum Estado de Direito verdadeiramente democrático sobrevive numa sociedade que não leva a sério elementos básicos da vida cívica, como o respeito à verdade, à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da igualdade humana.

Desde que se sentou no Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Esse comportamento tão pouco republicano está sendo passado a crivo por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Só que inexiste reparação histórica a curto ou médio prazo para o confisco da esperança nacional em eleições incontestes. Qualquer que seja o vencedor em outubro próximo, o dano está feito — o eleitor terá perdido a certeza de seu poder, enquanto o chefe da nação deposita seu voto como combatente de uma guerra particular.

Ainda dois dias atrás, ao discursar na cidade paranaense de Umuarama, Bolsonaro desandou a criticar o que chamou de “nova classe de ladrão”, referindo-se “àqueles que querem roubar a nossa liberdade” —leia-se todos os ministros do STF à exceção dos que nomeou pessoalmente. “Se precisar, iremos à guerra. Mas quero um povo ao meu lado, consciente do que está fazendo e de por quem está lutando… A liberdade não tem preço, e parece que alguns não querem entender”, acrescentou.

(Queiroguinha: Queiroga leva filho candidato a eventos do Ministério da Saúde)

Ah, a liberdade! Poucos ideais da humanidade têm sido invocados com tanto ardor em 2.500 anos de pensamento ocidental. Ao longo da História, o conceito tem representado tanto um meio para alcançar um fim como um fim em si. Os Estados Unidos chegaram a erigir sua identidade nacional em torno desse ideal, por mais que o atropelem sempre que se consideram no direito de fazê-lo. Vale lembrar que o idioma inglês comporta não uma, mas duas palavras sinônimas para a ideia de liberdade: liberty e freedom. A primeira é mais usada para definir o direito individual de agir, crer e se expressar sem restrições, assumindo a responsabilidade por seus atos. A segunda define a condição de independência política, social, as garantias de vida em sociedade comumente associadas à democracia. De Platão a Mano Brown, o tema continua sendo inesgotável.

O uso frequente da palavra “liberdade” por Bolsonaro, em qualquer de suas acepções, deve ser ouvido como incongruência, quase como blasfêmia. Em três anos e meio de governo, o capitão já deu sinais múltiplos de intolerância, de ausência total de empatia e de voluntarismo autoritário. Fosse ele um simples cidadão, apenas intratável, rancoroso e egocêntrico, causaria danos limitados para si e seu entorno. Por se tratar de um presidente acometido de posse no poder, sua ideia de liberdade adquire forma de alto risco nacional.

Em tempos de celebração pelo jubileu de platina da rainha Elizabeth II, que nesta semana festeja seus 70 anos no trono britânico, o mandatário brasileiro talvez tenha ouvido de raspão que a rainha pode tudo — até dirigir sem carteira de habilitação e não pagar impostos (desde 1992, por decisão própria, passou a pagar tributos). Sua Majestade também nunca precisou de (ou teve) passaporte para dar suas 80 voltas ao mundo. Incluído nas “prerrogativas soberanas”, a monarca não pode ser presa nem julgada. Tem direito a duas festas de aniversário ao ano (uma na data do nascimento, outra em comemoração à coroação). Para o jubileu atual, 16 mil festas foram programadas só na Inglaterra. Soa bom, não? Em compensação, a rainha está proibida de expressar qualquer opinião política em público. Abriu raríssima exceção dois anos atrás quando, já vacinada contra a Covid-19, alertou sobre a dificuldade de muitos antivacinas em pensar nos outros. Tampouco pode votar ou ser eleita, direito assegurado a qualquer plebeu brasileiro.

Convém que seja mantido intacto.

Dorrit Harazin, a autora deste artigo é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22.

Pandemia pode ter levado Brasil a ter recorde histórico de 919.651 presos

Crescimento de furtos durante a pandemia pode explicar explosão da população carcerária no país. Especialistas temem que, em 2 anos, total de presos chegue a 2 milhões

A combinação de desemprego e fome, que se agravaram com a pandemia de Covid, pode ser um dos principais motivos de um crescimento expressivo da população carcerária brasileira. 

Em dois anos, o total de presos no país aumentou o equivalente a um município de 61 mil habitantes, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em abril de 2020, eram 858.195 pessoas privadas de liberdade contra 919.651 em 13 de maio deste ano, um salto de 7,6%.

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SP: Operação da polícia apreende armas adquiridas para colecionadores em casa de integrante de facção criminos

É a maior população carcerária já registrada pelos sistemas oficiais do país, como o Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que tem a mais extensa série histórica sobre a lotação de presídios brasileiros. Antes do número totalizado pelo CNJ, o recorde do Infopen era 755 mil presos em 2019.

O CNJ atualiza diariamente o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, que reúne dados de mandados de prisão e das Varas de Execuções Penais.

O cenário nos presídios poderia ser ainda pior porque atualmente há 352 mil mandados de prisão em aberto, sendo 24 mil deles de foragidos. Com a marca de 919 mil presos, o Brasil se mantém no terceiro lugar no ranking dos países que mais prendem no mundo, atrás da China e dos Estados Unidos.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro comemorou, em fevereiro, em suas redes sociais, o fato de ter “menos bandidos levando terror à população”, os especialistas veem a intensificação do encarceramento como um indício de que as coisas não vão bem.

— Esse crescimento reflete um conjunto de falhas. No Brasil, havia uma perspectiva de usar prevenção e repressão à criminalidade. Mas o governo Bolsonaro abandonou qualquer política de segurança. Não pode haver só repressão — diz o pesquisador Fábio de Sá e Silva, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que atribuiu a quantidade de presos ao aumento no índice dos chamados furtos famélicos, quando pessoas furtam para comer. — Você coloca a polícia na rua e sai prendendo gente que furtou alguma coisa no supermercado porque estava com fome.

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Número é um marco

Segundo o desembargador Mauro Martins, conselheiro do CNJ e diretor da área responsável por contabilizar a população carcerária, a marca de 919 mil presos é, “sem dúvidas”, a maior da história do país.

— Esse é um número assustador. E qual é o efeito disso na segurança pública do Brasil? Não vejo. Não há relação entre encarceramento e melhoria na segurança pública — afirma ele e destaca ainda que, entre quase um milhão de pessoas encarceradas, 45%, ou aproximadamente 413 mil, são presos provisórios, sem condenação definitiva:

— Acaba virando antecipação de pena. Muitas pessoas estão presas há mais tempo do que ficariam em caso de uma sentença condenatória, ou seja, já cumpriram antecipadamente até uma pena que não foi imposta. É um paradoxo.

A nova contagem feita pelo CNJ inclui 867 mil homens e 49 mil mulheres. Em 2020, o Brasil tinha 405 presos para cada 100 mil habitantes. Este ano, o número saltou para 434 presos para cada 100 mil habitantes.

Comparativamente, o total de 61.456 pessoas presas nos últimos dois anos, segundo o CNJ, equivale à população de municípios como Mirassol (SP), Floriano (PI) ou Barra do Garças (MT). As cadeias enchem em velocidade maior do que o crescimento populacional. Segundo projeções do IBGE, todo mês, em média, são 125 mil novos habitantes, 0,05% do total do país.

O número de presos também avança mais rápido do que o de vagas em presídios. Segundo o Depen, desde o início da gestão Bolsonaro, foram abertas 12.587 novas vagas para se chegar a um total de 453.942. Ou seja, há mais do que o dobro de presos no país do que espaço disponível em carceragens.

Lei anticrime deu impulso

Para a socióloga Ludmila Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o aumento também é fruto das mudanças do pacote anticrime, que tornou mais rigorosas as regras de progressão de regime. Ela estima que, em dois anos, o Brasil poderá estar perto de ter 2 milhões de presos:

— O tempo médio de encarceramento passou de 3 a 5 anos para 6 a 10 anos. Nesse ritmo, um milhão atingimos ainda este ano. A população carcerária vai crescer absurdamente.

'Câmara de gás da PRF': MPF diz que prisão cautelar é medida excepcional e vai 'focar nas provas'

Preconceito: Após denúncia de racismo contra criança de 3 anos fantasiado de macaco, escola se pronuncia nas redes

O Depen contabiliza 692 mil presos porque seus dados vêm de formulários preenchidos à mão por funcionários de unidades prisionais e não incluem presos em delegacias, por exemplo. Já os dados coletados pelo CNJ são abastecidos pelos tribunais e considerados mais próximos da realidade por especialistas.

Em 2019, ao negar a pesquisadores acesso a dados antes detalhados em relatórios que pararam de ser produzidos pelo órgão naquele ano, o Depen alegou que o rodízio de funcionários, imposto pela pandemia, prejudicou o controle interno.

Mulheres no crime

Os dados do Depen, vinculado ao Ministério da Justiça, mostram que o contingente de mulheres encarceradas passou de 5,6 mil, em 2000, para 33 mil em 2021. Segundo o órgão federal, em 2017, quando houve o ápice de presas, 59% tinham sido condenadas por ações ligadas ao tráfico de drogas, ao passo que 8,5% estavam envolvidas em crimes violentos, como homicídio e latrocínio.

No ano passado, o perfil de periculosidade das mulheres começou a mudar: caiu para 57% o total das que estavam encarceradas por tráfico e subiu em 11,6%, segundo o Infopen, as que respondiam por crimes mais graves.

— As mulheres já não realizam só funções burocráticas no crime, mas agem como gerentes. Como os homens estão ficando mais tempo encarcerados, assumem papéis até então masculinos como o de matar — observa a pesquisadora.

Segundo o CNJ, das 98 mil execuções penais de mulheres no país, entre regime fechado e aberto, 24.273 delas (24%) se referem a assalto à mão armada e 18.832 (19%) a tráfico de drogas. Outras 6.874 (7%) foram presas por homicídio.

Bruno Abbud, de Brasília para O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22

Bivar lança candidatura de mentirinha para torrar dinheiro do fundão. Alerta Bernardo Mello Franco, n'O Globo hoje.

Depois da série de desistências na chamada terceira via, a semana terminou com um novo presidenciável na praça. O deputado Luciano Bivar se lançou ao Planalto pelo recém-criado União Brasil. A candidatura serve a muitos propósitos. Curiosamente, nenhum deles envolve vencer a eleição.

O presidente do União Brasil, Luciano BivarO presidente do União Brasil, Luciano Bivar | Jorge William

Bivar é um homem de negócios. Em 1997, arrematou o nanico PSL da família Tuma. Virou dono de partido, uma atividade que sempre rendeu dividendos em época de eleição. Nove anos depois, resolveu testar sua popularidade numa aventura presidencial. Terminou em último lugar com 0,06% dos votos, atrás do folclórico Eymael.

O fiasco não convenceu o empresário a mudar de ramo. Em 2018, sua insistência seria recompensada. Numa tacada de sorte, Bivar alugou a sigla a um deputado do baixo clero que sonhava com a Presidência. Da noite para o dia, viu sua bancada na Câmara saltar de uma para 52 cadeiras.

A ruptura com Jair Bolsonaro não afetou o empreendimento. O deputado manteve o controle sobre a sigla, os recursos do fundão e o tempo de TV. No ano passado, fundiu o PSL ao DEM, formando o União Brasil. A nova legenda se tornou a maior máquina partidária do país. Receberá quase R$ 1 bilhão para gastar em 2022.

Bivar chegou a participar de reuniões para escolher um candidato único da tal terceira via. No fim de maio, admitiu que as conversas não iriam “a lugar nenhum” e partiu para o voo solo, mesmo sabendo que terá o mesmo destino.

A jogada cumpre ao menos três objetivos. O primeiro é sepultar de vez as ambições presidenciais de Sergio Moro. O ex-juiz já havia levado um drible do Podemos. Agora terá que se conformar com uma candidatura a deputado ou senador.

A segunda tarefa é liberar os caciques regionais do União Brasil. Dos quatro governadores da sigla que concorrem à reeleição, três já declararam apoio ao atual presidente. O quarto é o goiano Ronaldo Caiado, que prefere ficar em cima do muro na disputa nacional. Declarar voto em Bivar, que não pontuou no último Datafolha, é a saída perfeita para não se indispor com eleitores de Lula ou Bolsonaro. Este também é o plano de ACM Neto na Bahia.

O terceiro propósito da candidatura de mentirinha está ligado à especialidade de Bivar. Com R$ 956 milhões a receber dos cofres públicos, o deputado poderá torrar uma fortuna na própria campanha sem que falte dinheiro aos aliados nos estados. Se ele for mesmo até o fim, seu fracasso nas urnas será uma experiência lucrativa.

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Abre o olho, Guedes

Há duas semanas, Paulo Guedes declarou que pretende continuar onde está se o capitão for reeleito: “É natural que eu apoie, ajude e esteja lá”, disse. Falta saber se ele teria apoio para se segurar na cadeira.

O ministro da Economia já era detestado pelos políticos do Centrão. Agora ganhou um concorrente na visão dos militares que cercam Bolsonaro.

Na sexta-feira, o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Junior, divulgou vídeo em que exalta o “nosso Exército” e diz sentir saudade dos tempos de recruta. Em tom de campanha, o banqueiro encerra a gravação com um aviso: “O soldado 939 continua de prontidão”.

Bernardo Mello Franco é comentarista de politica de O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22

Tucano raiz, marqueteiro de Tebet diz que não há ‘elevador’ para 3ª via na corrida presidencial

Enquanto dirigentes do PSDB e do MDB tentam chegar a um acordo para formar palanque único presidencial, a pré-campanha da senadora Simone Tebet (MDB-MS) tem na retaguarda um marqueteiro com relações com o tucanato. Felipe Soutello, de 50 anos, trabalhou em sua primeira campanha aos 15 anos para José Serra, que em 1986 disputou uma vaga de deputado federal.

Felipe Soutello, que já fez campanhas para Serra, FHC e Bruno Covas, diz que senadora irá subir ‘escada’ e aposta na propaganda eleitoral na TV (Foto: Felipe Rau/Estadão)

Ipespe: número de eleitores que dizem não conhecer Simone Tebet cai 13 pontos em um mês

Soutello se filiou ao PSDB, mas hoje nem sequer sabe dizer se sua filiação está ativa no partido. “Minha filiação é de 1989. Fui um dos primeiros na cidade de São Paulo. Não estou na ata de fundação de 1988 porque não tinha idade”, afirmou. Sempre com atuação eleitoral, segue amigo de Serra e de outros tucanos.

Na parede da sua sala na sede de sua produtora, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, um cartaz com a imagem do prefeito Bruno Covas com os punhos cerrados se destaca. Soutello conheceu o neto de Mário Covas em 1995, quando Bruno ainda fazia faculdade e morava com o avô no Palácio dos Bandeirantes.

O marqueteiro virou uma espécie de ideólogo do grupo que conheceu na militância da juventude tucana e que mais tarde foi a espinha dorsal da gestão de Bruno. Ele comandou a campanha do tucano em 2020 e hoje é consultor da gestão Ricardo Nunes (MDB).

Depois de ter feito a campanha ao governo de Márcio França (PSB), em 2018, e de Patrícia Vanzolini para a presidência da OAB-SP, no ano passado, Soutello recebeu convite do presidente do MDB, Baleia Rossi, para cuidar da pré-campanha de Simone. A proposta surgiu depois de ter sido sondado por pré-candidatos ao governo paulista, entre eles Geraldo Alckmin, de quem é próximo e hoje é vice do pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Foi Soutello, aliás, quem sugeriu a Fernando Haddad pela primeira vez, em um jantar no apartamento de Marta Suplicy, em maio do ano passado, a ideia de uma chapa de Lula com o ex-tucano.

Ipespe: número de eleitores que dizem não conhecer Simone Tebet cai 13 pontos em um mês. De acordo com o levantamento, esse número, que era de 49% no começo de maio, agora é de 36%.

Programa de Simone Tebet terá ‘Lei de Responsabilidade Social’ do tucano Tasso

Projeto do senador prevê reformular programas, metas de redução da pobreza e cria poupança para vulneráveis; mensagem da pré-candidata é de pacificação do País.

O ex-presidente Michel Temer afirmou que “a história da terceira via” ainda está indefinida e que “não vai ser fácil” viabilizá-la até a eleição presidencial.

Pressão

A missão de Soutello agora é administrar a pressão pelo crescimento de Simone nas pesquisas de intenção de votos e transformar uma pré-candidatura com 2% em um projeto viável. “Em uma campanha de construção de imagem como a da Simone não existe elevador para pegar. Tem escada para subir, degrau por degrau.”

Ele admite não ter expectativa de crescimento “vertiginoso” antes do horário eleitoral gratuito de TV. “Não há instrumentos de comunicação suficientes para isso. A TV é o instrumento de comunicação determinante para estabelecer a agenda política da eleição. Sem ela, o candidato não se coloca, sobretudo os que não são conhecidos do eleitorado.”

Em uma campanha de construção de imagem como a da Simone não existe elevador para pegar. Tem escada para subir, degrau por degrau

Serão 45 dias de exposição – de 15 de agosto ao início de outubro – e aproximadamente 20 programas, além das inserções diárias. Caso feche com o PSDB, Simone terá em torno de 2 minutos e 30 segundos, contra cerca de 3 minutos de Lula e Jair Bolsonaro (PL), cada. O desafio é desenvolver uma empatia do eleitorado e tornar a senadora conhecida sem apelar para ataques. “O eleitor do meio não quer bate-boca.”

Questionado sobre as chances reais de se quebrar a polarização, o marqueteiro recorre aos números: 40% dos eleitores que já optaram pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro “odeiam” essa opção. “É um chute projetar o cenário político de agora com o daqui 30 dias”, disse.

Pedro Venceslau / O Estado de S. Paulo, em 04.06.22

Muda, Supremo!

Decisões revertendo cassações de deputados são apenas sintoma de doença mais grave: o modelo decisório da Corte. Artigo de Joaquim Falcão.

As decisões do ministro Nunes Marques suspendendo a cassação de dois deputados bolsonaristas pelo TSE são apenas sintoma de doença mais grave. Que doença é esta? Como descrevê-la? Tem cura? É a seguinte.

Pela Constituição, o Supremo é um órgão coletivo. Seu poder, legitimidade e independência vêm da coletividade decisória. Da participação de todos os ministros nas decisões. Justamente para evitar o que Nunes Marques fez agora.

Ministros do STF podem revisar decisões que livraram deputados bolsonaristas de cassação

A doença é o modelo decisório que o Supremo se autopratica. Se não mudar o modelo, o sintoma volta. A doença progride. Possivelmente até com ministros uns contra os outros.

O autofágico modelo decisório resulta do exagero de recursos, da estratégia dos advogados e procuradores e do vácuo de prazos decisórios. Tudo junto, permite-se que ministros ajam, cada um, sendo o próprio Supremo.

Resultou nos “onze supremos”. Até mais, se somarmos as turmas, a Presidência e o Plenário. Todos com pelo menos quinze minutos de fama.

Talleyrand, notável político francês, do século XVIII, dizia que “tudo em excesso torna-se insignificante”. É o que acontece. Quando se tem onze ou mais supremos, tem-se supremo nenhum.

Catarina, a Megera Domada de Shakespeare, na tradução de Millôr Fernandes, encerrava a peça dizendo: “Quanto mais queremos ser, menos somos”.

Deu no que deu. No que está dando. Um Supremo de temporários. Onde a decisão de um só ministro é final enquanto dura.

Decisões isoladas de ministros podem ser apenas “fake narrativas processuais”.

Não se trata de discutir se Nunes Marques tem ou não competência para suspender ou revogar decisões do TSE. Nem se estaria abrindo nova porta processual autônoma no Supremo: a “tutela provisória antecipada”. Muito menos sobre qual o prazo para levar ao Plenário.

A questão não é mais de interpretação legal. É de comportamento individual. Como deve se comportar um ministro? Qual sua visão de Supremo? Seus compromissos? Palavras sozinhas não geram independência decisória necessária. Afinal, o que é, para Nunes Marques, o Supremo no Estado Democrático de Direito?

Só o Supremo pode curar o próprio Supremo.

Se o Congresso aprovar lei ou emenda constitucional tentando diminuir os onze supremos para apenas um, como determina a Constituição, o atual individualismo exagerado vai reagir. Vai dizer que o Congresso não pode interferir. Fere a cláusula pétrea de separação e independência dos Poderes.

Na democracia, quem é independente é o Supremo coletivamente. Com este modelo decisório baseado no monocratismo, o Supremo criou o seu próprio vírus.

Muda, Supremo!

Joaquim Falcão, o autor deste artigo, é Membro da Academia Brasileira de Letras, professor de Direito Constitucional e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.06.22

Veja as 22 propostas de Luciano Huck para fomentar debate na eleição presidencial

Em artigo no Estadão, o apresentador de TV e empresário Luciano Huck afirma que há ainda muito jogo pela frente nesta eleição presidencial. Segundo ele, o pleito não está definido, apesar de antever uma campanha presidencial “dura e truculenta”.

Apresentador de TV e empresário afirma, em artigo no ‘Estadão’, que há ainda muito jogo pela frente na campanha, apesar da polarização (Leo Souza/Estadão)

Para fomentar os debates até o dia 2 de outubro, quando os brasileiros escolherão o ocupante do Palácio do Planalto a partir de 2023, Huck lista 22 propostas em áreas como educação, ambiente e seguridade social, elaboradas por um grupo multidisciplinar, de todo o espectro político. Leia abaixo todas elas:

22 propostas para 2022

Tornar fixo amplo programa de renda básica e aperfeiçoar seu cadastro nacional

Revisar produtos da cesta básica e aumentar sua desoneração

Fazer da diplomacia do Brasil referência mundial na pauta climática e ambiental

Punir o desmatamento e premiar o morador da fronteira amazônica que não desmatar e impedir desmatamento

Travar toda e qualquer iniciativa de regularização de grilagem de terras

Retomar o programa de demarcação de reservas indígenas

Multiplicar incentivos à bioeconomia e à agricultura sustentável

Conectar toda a rede escolar pública à internet e acelerar o letramento digital dos alunos e dos professores

Lançar um programa de revitalização do acolhimento à primeira infância

Modernizar e ampliar a oferta do ensino profissional, aderente à economia moderna

Adotar intersetorialidade e territorialidade como pilares de políticas sociais

Estimular a agenda de políticas afirmativas e ampliar a diversidade de atores na sua formulação

Fechar um pacto federativo pela responsabilidade fiscal, vetando aumento de custos recorrentes sem respectivo crescimento das receitas

Aprovar uma reforma tributária ancorada na simplificação e progressividade de impostos

Digitalizar documentos, sistemas de gestão e bancos de dados públicos

Criar uma plataforma social integrada no ambiente digital

Dar transparência à execução das despesas públicas pelos três Poderes

Retomar o cumprimento da Lei de Acesso à Informação e estimular ferramentas de accountability

Acabar com a possibilidade de reeleição para cargos no Executivo

Manter a política de cláusula de barreiras a fim de reduzir número de partidos

Democratizar estrutura e atividade internas dos partidos políticos

Ampliar acesso ao Fundo Partidário e regulamentar uso do fundo eleitoral

Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 05.06.22

O que seria de nós sem a democracia?

O Brasil e o mundo precisam reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres.

Democracia é o termo que caracteriza o regime político contemporâneo da maioria dos países ocidentais e que, literalmente, significa “o governo do povo”.

O conceito veio de longe. Surgiu nas cidades-Estado da Grécia antiga, durante o primeiro milênio antes de Cristo, consolidando-se no auge político da cidade de Atenas e classificada na obra Política, de Aristóteles, dentre as três formas possíveis de governo: a democracia (governo de muitos) se distingue da monarquia (governo de um só) e da aristocracia (governo dos nobres).

Na Idade Média, época da história geral que se inicia no século V, logo após a queda do Império Romano do Ocidente, e termina no século XV, o termo ficou esquecido. Foi um período marcado pela concentração do poder nas mãos de monarcas e pelo grande controle da Igreja Católica, influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval.

Por volta do século 18, quando eclodiram as revoluções burguesas no mundo ocidental, é que a democracia volta à baila, ganhando maior propulsão após as duas guerras mundiais.

Relembrar isso não é mero exercício de aula de História. Tem que ver com muito do que está acontecendo com a democracia em diversos países, inclusive o Brasil.

Assistimos a um perigoso processo de fragmentação das premissas democráticas. É como se houvesse uma espécie de tergiversação do termo democracia por alguns, cada qual bordejando conforme conveniências de momento.

Essa manobra, que enseja questionamentos inoportunos e desnecessários, se constitui em verdadeiro desserviço à democracia. Surgem ruídos nas relações entre as instituições, em detrimento do absoluto e imprescindível respeito que deve haver entre elas.

No Brasil, os Poderes vêm se estranhando. E não é de hoje. Esses atritos respingam para todo lado. Afetam todos nós, indistintamente. Atingem a economia, trazendo enorme insegurança quanto à tomada de decisão, gerando profunda crise de confiança.

É o que se vê, por exemplo, no questionamento a leis democraticamente aprovadas e promulgadas. Na Grécia antiga, quando o povo se reunia nas ágoras para debater e, por maioria, definir alguma coisa, as minorias podiam até não gostar, mas acatavam, atendiam às deliberações.

Por aqui, hoje e cada vez mais, legislações são alvo de sistêmicos questionamentos. Liminares são concedidas sem ponderada reflexão sobre suas consequências. Atividades produtivas são estancadas. No setor imobiliário, obras legalmente aprovadas são recorrentemente embargadas para, anos depois, decisão maior concluir que podem seguir, posto que dentro das leis que a autorizaram. Porém, sem qualquer tipo de ressarcimento financeiro ou moral.

Nos mais diversos campos, a chamada judicialização vem criando entraves ao crescimento econômico. Investimentos são inibidos, quando não simplesmente abortados. E mesmo agora, quando o conflito Rússia-Ucrânia vem induzindo o capital mundial a buscar portos menos voláteis, o Brasil não está no cardápio de opções, como poderia estar. Que garantias pode oferecer uma nação onde leis em vigor são frequentemente questionadas?

A fragmentação da democracia também alcança um de seus maiores símbolos: o voto. A relativização de premissas democráticas impede que a democracia se afirme positivamente.

O Brasil tem nada menos que 32 partidos políticos legalizados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme dados de fevereiro deste ano. Se considerarmos a linha de afinidade ideológica, eles poderiam ser três ou quatro. Mas, se consideramos que dentro de cada um deles há alas divergentes, teríamos quase uma centena!

Isso talvez responda por que chegamos às eleições de 2022 com um tímido leque de opções e, até o momento, sem uma terceira via definida. É certo que, até as eleições, muito pode acontecer. É a hora dos “fatos novos” – e também dos factoides. Mas, na cabeça do eleitor, fica cada vez mais difícil de identificar em quem, ou no quê, ele irá votar.

Vem, então, o voto no “menos pior”, situação que se evidenciou nas recentes eleições realizadas na França. Será que Emmanuel Macron foi vontade ou necessidade para manter o país mais “ao centro” e conter a direita radical de Marine Le Pen?

E nós, brasileiros, o que vamos escolher? Será que vamos ponderar o valor da democracia em nossa decisão?

E de que tipo de democracia estamos falando? Será aquela que o mundo ocidental considera como o regime político mais eficaz para promover maior liberdade e direitos para os cidadãos com o mínimo de abuso do poder político?

Difícil resposta. De afirmativo, mesmo, só o fato de que a alternativa que resta são os regimes totalitários, radicais ou autoritários, todos eles dominadores e supressores de direitos e liberdades, impondo, cedo ou tarde, pesada conta aos cidadãos. Como disse Winston Churchill, “a democracia é o pior dos regimes políticos, à exceção de todos os outros que foram tentados”.

Qual, então, a solução? O Brasil e o mundo precisam trabalhar para reafirmar a democracia. Revisitar seus valores e suas premissas. Enfim, reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres. Uma tarefa para homens e mulheres que, para além de si mesmos, na política ou fora dela, decidam agir pelo bem comum.

Basilio Jafet, o autor deste artigo, é Vice-Presidente de Relações Institucionais do SECOVI-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.05.22

Párias em seu próprio país

Desmonte de conquistas civilizatórias precede a ‘câmara de gás’ da PRF; há quem ganhe eleições defendendo que certos brasileiros não devem ter direitos

A cena de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, trancado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) tomada por gás lacrimogêneo, correu o mundo. Além da fumaça que saía do veículo, é possível ver a perna de Genivaldo para fora do carro, enquanto dois agentes da PRF diligentemente impedem que a porta se abra. Lá dentro, asfixiado, o homem que minutos antes havia sido abordado por andar de moto sem capacete, agonizava até a morte.

A abordagem policial, em Sergipe, desafia os adjetivos para retratar tamanha barbárie. À medida que as imagens da “câmara de gás” em que se converteu a viatura da PRF passaram a circular, uma onda de perplexidade e indignação espalhou-se pelo País. 

Enquanto a sociedade brasileira, atônita, acompanhava a reação pusilânime e cínica das autoridades, veio do Ministério Público Federal em Goiás (MPF-GO) a notícia de que a Direção-Geral da PRF, no início de maio, havia acabado com as comissões de direitos humanos no âmbito da corporação. Os procuradores recomendaram, então, o imediato restabelecimento das comissões, bem como a retomada da oferta da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação e reciclagem de policiais rodoviários federais.

A iniciativa dos procuradores é louvável. Das forças policiais, espera-se efetividade técnica e operacional no combate ao crime, o que requer preparo para lidar com as mais variadas situações. Quanto mais clareza tiverem sobre o papel da polícia e os limites de sua atuação, melhor será o trabalho dos milhares de integrantes da PRF. Beira a ingenuidade, porém, imaginar que a mera presença em aulas de direitos humanos fosse capaz de mudar o comportamento dos agentes envolvidos na abordagem de Genivaldo.

Infelizmente, o Brasil tem assistido a uma espécie de ataque sistemático contra princípios basilares da vida em sociedade. Na esteira da polarização política, da disseminação de notícias falsas e do florescimento de discursos de ódio, ganhou força uma visão de mundo que se opõe à democracia e ao Estado de Direito naquilo que este último tem de melhor, isto é, a garantia de que o exercício do poder e os conflitos sociais serão regidos pela lei − e não pela violência.

O conceito de direitos humanos foi uma das primeiras vítimas desse verdadeiro desmonte de conquistas democráticas, base para o desenvolvimento de qualquer país civilizado. A partir de uma visão de mundo simplificadora e, por isso, completamente equivocada, disseminou-se a ideia de que defender direitos humanos seria o mesmo que defender bandidos ou ser complacente com a criminalidade. Por óbvio, nada mais falso, uma vez que a aplicação da lei, fundamento do Estado Democrático de Direito, prevê punição e prisão para quem comete crimes − da mesma forma que resguarda direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão. Entre eles, o direito à vida, à dignidade e a um julgamento justo.

Não é democrático nem de direito o Estado que nega a determinados cidadãos a condição de sujeito de direitos. Contudo, há tempos o Estado brasileiro faz essa discriminação, de que são testemunhas os milhares de presos sem julgamento, sem falar nos outros tantos que nem chegam a ser presos, pois são mortos em operações policiais truculentas. Tornou-se trivial considerar que há brasileiros (“bandidos”, como são chamados mesmo antes de qualquer julgamento) que não fazem jus a direitos fundamentais. Não são poucos os que até ganham eleições defendendo a execução sumária desses cidadãos – transformados em párias dentro de seu próprio país, posto que, na prática, não têm os mesmos direitos que seus concidadãos considerados “de bem”

Não é preciso fazer “curso de direitos humanos” para saber que atirar uma pessoa no porta-malas de uma viatura e sufocá-la com gás não é um procedimento policial aceitável num país civilizado. Se os policiais se sentiram à vontade para fazê-lo à luz do dia, diante de incontáveis testemunhas, é porque se sentiram chancelados pelo Estado. Quando o chefe desse Estado é alguém que louva torturadores, tudo faz sentido. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 05.06.22

Sanções, uma bomba-relógio capaz de derrubar a economia russa a partir do verão

Se não chegar a um acordo que diminua a punição ocidental, Moscou enfrenta uma desindustrialização progressiva que reduzirá gradualmente seus níveis de riqueza e emprego, alertam analistas.

Alguns cidadãos passaram em frente a um McDonald's fechado, neste sábado, em Moscou. (YURI KOCHETKOV  - EFE)

A Rússia caminha semana a semana, inexoravelmente, em direção a uma economia de guerra que pode deixá-la muito atrás do Ocidente e da China nos próximos anos. O país inicialmente superou as sanções impostas em retaliação por sua guerra na Ucrânia, mas alguns dos mais renomados economistas do país concordam que a verdadeira crise ameaça estourar nos próximos meses se não houver uma reviravolta em breve.180 graus no conflito. Além disso, não parece haver um plano claro: as críticas se intensificam diante dos problemas para substituir as importações, e o governo passou de uma forte defesa de sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) a um desejo de abandoná-la. O presidente Vladimir Putin insiste que a Rússia continuará fazendo parte da cadeia econômica mundial,

“Elvira Nabiúllina e outras pessoas importantes falam com sinceridade que (a crise) chegará por volta do terceiro trimestre. As sanções estão se acumulando e há reservas nas fábricas para dois ou três meses, mas depois tudo será muito mais difícil”, diz Alexei Portanski, ex-diretor do escritório que conseguiu a adesão da Rússia à OMC na outra ponta de 2012. O professor da Escola Superior de Economia de Moscou mencionou o discurso proferido em abril pelo governador do banco central russo perante o Parlamento. "Acabou o período em que a economia conseguiu viver de reservas", alertou Nabiúllina, anúncio que se aproxima ainda mais depois que a União Europeia acordou uma nova rodada de sanções,desde a proibição parcial de importação de petróleo russo até a punição de Alina Kabaeva, suposta namorada de Putin.

As companhias aéreas russas são um verdadeiro reflexo de sua economia atual. Apesar de terem banido o espaço aéreo europeu, continuam operando dentro do país com suposta normalidade. Mas eles pararam vários aviões para canibalizar suas peças porque nem a Boeing nem a Airbus enviam substituições, com o perigo que isso acarreta. Enquanto isso, a produção do novo Superjet-100 — que já sofreu vários acidentes — é inviável porque seus motores são franceses. As autoridades estão considerando reviver o Tu-214 soviético, que falhou devido à ineficiência.

“A produção não vai parar completamente. O problema é que entramos em um retrocesso, a produção não será baseada em tecnologia moderna, mas antiquada. Será um processo de desindustrialização porque por causa das sanções haverá restrições tecnológicas”, alerta Portanski, que ressalta que isso “aumentará o desemprego, enquanto a qualidade da produção será pior”. "Este será um processo contínuo, não imediato, um caminho de longo prazo", acrescenta o professor.

Três exemplos recentes. Primeiro, Taiwan, o maior exportador de microchips do mundo, acaba de proibir o envio para a Rússia daqueles que excedem 25 megahertz, para que apenas aqueles que usam aparelhos muito básicos possam ser importados. Segundo, um tribunal na cidade russa de Perm pediu permissão especial para comprar computadores Windows em vez de software russo porque seus programas não funcionam. E, finalmente, a Kamchatka Airlines parou de voar porque não pode consertar seus Cessnas, enquanto a S7 confirmou que canibalizará peças de seus aviões. Além disso, a RhZD, empresa ferroviária russa, suspendeu vários trens de alta velocidade por supostas obras logo após seu fabricante, a Siemens, anunciar que está deixando o país e cancelando sua manutenção.

O economista Portanski é cauteloso ao pedir uma previsão para este ano. “Qualquer previsão é prematura, há um fator político enorme. Se algum tipo de acordo for alcançado sobre a Ucrânia, a situação econômica pode ser normalizada. Se o conflito se aprofunda, as piores previsões podem ser cumpridas”, alerta.

Queda do PIB

As previsões de fundos e instituições cobrem quedas de 8% a 30% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, enquanto a inflação oficial ficaria em torno de 18% a 20% atual, embora possa piorar. Além disso, muitos produtos importados, como telefones, se tornarão cada vez mais difíceis de obter. Apesar do mito da aliança entre Moscou e Pequim , gigantes chineses como Xiaomi e Lenovo também suspenderam grande parte de suas exportações.

Após a introdução das primeiras sanções no final de fevereiro, a moeda russa caiu de cerca de 90 rublos por euro para mais de 160. No entanto, o mini-corralito imposto pelo banco central russo e o colapso da demanda por moedas estrangeiras de a incapacidade de importar quase nenhum produto) o fortaleceu para uma taxa de câmbio próxima de 60.

Uma loja fechada no centro de Moscou, em 30 de maio. (KIRILL KUDRYAVTSEV  - AFP)

Mas há um truque. Os dólares e euros adquiridos a partir de 9 de março só podem ser retirados em rublos da conta bancária pelo menos até setembro – e não se sabe o que acontecerá no outono. Ao fazer o teste esta semana com o Sberbank, o maior da Rússia, ofereceu euros a 90 rublos se forem comprados em dinheiro, ou a 70 se ficarem pegando poeira na conta. Ou seja, a mesma mudança que existia antes da ofensiva e sem levar em conta que ainda há parte do minicorralito a ser construído.

"Esse tipo de mudança não vai durar", acredita Portanski. Sua opinião é compartilhada por fundos de investimento russos como LockoInvest e Ingosstraj-Investments. O chefe de Macroeconomia deste último, Antón Prokudin, prevê que a desvalorização do rublo “será perceptível este ano à medida que as restrições forem levantadas, e no próximo devido à queda dos preços das matérias-primas e a plena validade das sanções. ”.

Sem um mercado livre, a taxa de câmbio é relativa. Na década de 1980, a paridade do rublo com o dólar era inferior a 100 copeques (centavos), mas os jeans eram contrabandeados. Agora, Moscou legalizou o contrabando de muitos produtos.

Sem um plano sólido

Antes da guerra, o Kremlin estabeleceu um horizonte de 2030 para que 70% de suas exportações fossem não energéticas. Agora esse objetivo parece um sonho. América do Norte, Europa e parte da Ásia pediram à OMC que exclua a Rússia da cláusula de nação mais favorecida, o que pode levar suas tarifas a 35%, nível alcançado apenas pelo regime norte-coreano de Kim Jong-un .

A delegação russa protestou vigorosamente contra essa discriminação em março e seu Ministério da Economia interrompeu uma proposta parlamentar da formação Just Russia-For Truth para deixar a organização. "A OMC é a única plataforma internacional onde a Rússia pode defender ativamente seus interesses econômicos", respondeu o governo.

Esse curso durou apenas um mês. O porta-voz da Duma, Pyotr Tolstoy, anunciou em 16 de maio que seu país deu os primeiros passos para deixar a OMC e a Organização Mundial da Saúde.

Antes de iniciar a ofensiva, o Kremlin afirmou ter alcançado 90% de seu plano de substituir as importações pela produção russa. Algumas semanas atrás, Putin reduziu a "setores críticos". Ao contrário da campanha militar, políticos e empresários começaram a criticar abertamente o que consideram "um fracasso" do plano de substituição de importações , embora o setor duro peça planos quinquenais, enquanto os empresários imploram a regulamentação do livre mercado.

“É verdade, o programa falhou totalmente. Não há nada além de tagarelice nas instituições. Nosso povo vê isso em bens de consumo e outros setores”, disse Andrei Klishas, ​​presidente do comitê da Câmara Alta para Legislação Constitucional e Construção do Estado, em maio.

Klishas citou a porta-voz do Senado, que pediu a revisão de um plano que ele considerava "muito suave". Eles se juntaram ao presidente do Comitê Anticorrupção, Kiril Kabanov, que pediu a punição dos empresários que não cumpriram os mandatos do Kremlin. "É hora de reduzir o apetite de uma série de atores que colocam seus interesses pessoais antes do Estado com projetos que são irrelevantes hoje, como carros elétricos", acrescentou Kabanov em uma ode ao isolamento.

Em contraste, o empresário Oleg Deripaska, dono da Rusal, a maior multinacional de alumínio do mundo, que a salvou das sanções, exigiu o fim do "capitalismo de estado" russo. Na sua opinião, esta crise será três vezes mais grave do que a de 1998.

Enquanto isso, as escolas russas receberam um manual para ensinar uma nova lição às crianças, de acordo com o meio RBK. O professor deve citar Putin - "A Rússia está sob pressão estrangeira sem precedentes", segundo o presidente - e depois perguntar sobre as medidas do governo contra a punição imposta por "sua operação militar especial na Ucrânia". A conclusão final é que a economia russa está preparada graças às medidas adotadas por Putin nos últimos anos.

JAVIER G. CUESTA, de Moscou para o EL PAÍS. Publicado originalmente em 05.06.22

A Rússia do futuro também se prepara no exílio

A construção de um futuro livre e democrático para aquele país exige que o Ocidente apoie os exilados russos por sua oposição ao Kremlin. Por Bonete Pilar, no EL PAÍS.

Um manifestante segura uma faixa pedindo a prisão do presidente russo Vladimir Putin, aludindo à guerra na Ucrânia, em Belgrado, em 28 de maio. (OLIVER BUNIC - AFP)

O espírito de liberdade, tolerância e prontidão para a sociedade civil na Rússia do futuro estão vivos e bem no exílio - apesar das dificuldades - mais de três meses depois que este país invadiu a Ucrânia. A vitalidade e o poder de coesão desse espírito no contexto da guerra foi testemunhado em Segóvia por um seminário que decorreu de 23 a 27 de maio por iniciativa dos fundadores da Escola de Educação Cívica de Moscovo (EECM), entidade criada em dezembro de 1992 com o apoio do Conselho da Europa, que foi declarado “agente estrangeiro” na Rússia em 2014.

A Fundação Valsaín e o Instituto de Transições Económicas de Estocolmo foram os organizadores deste seminário que visa promover os valores da EECM em torno do projeto global Sapere aude ("ousar saber"), lema usado por Immanuel Kant, que agora é aplica-se a um cenário transfronteiriço turbulento.

Na Rússia, o EECM deixou definitivamente de existir como pessoa jurídica em 2021, quando um tribunal de Moscou classificou a Associação de Escolas de Estudos Políticos como uma "organização indesejável" , que até hoje reúne cerca de vinte instituições de educação cívica em vários países do mundo. Conselho da Europa. Precisamente, o modelo de referência para todas essas escolas foi a extinta EECM, por cujos seminários passaram milhares de intelectuais e políticos de diferentes níveis e territórios da administração russa e também do exterior.

Após a invasão da Ucrânia, as relações entre o Conselho da Europa e a Rússia se romperam, mas do exílio os fundadores da EECM, a especialista em teoria da arte Elena Nemiróvskaya e o filósofo Yuri Senokósov, continuam promovendo encontros e construindo pontes com quem — “do outro lado” – sofrem perseguição e tirania.

Em Segóvia, cerca de cinquenta pessoas se encontraram (principalmente russos, mas também bielorrussos, ucranianos, georgianos e outros estados pós-soviéticos). Por trás do lema "Paz, Liberdade e Responsabilidade" e após os debates sobre questões históricas ou filosóficas, as novas e duras realidades impostas pela guerra e a precariedade dos cidadãos russos que chegam à União Europeia, fugindo da perseguição em seu país para suas idéias ou atividades cívicas.

Ao contrário dos refugiados ucranianos, aos quais os países da UE aplicam a diretiva europeia de proteção temporária desde março passado, os russos forçados ao exílio estão hoje em muitos casos condenados à ilegalidade e à marginalização no Ocidente. Jornalistas, cientistas políticos, ativistas da oposição, intelectuais e professores críticos sobrevivem em diferentes estados da UE com vistos de turista de três meses ou com fórmulas de residência inseguras, a menos que gozem da proteção de alguma entidade ocidental que se responsabilize por eles ou lhes forneça um emprego, como é o caso de vários meios de comunicação de língua russa que se instalaram nos países bálticos após serem expulsos da Federação Russa.

A gama de exilados russos é ampla. Há sortudos, acolhidos com entusiasmo em instituições científicas ou educacionais ou com empregos na sua especialidade; há os que têm soluções temporárias como as bolsas de estudo e há também os condenados a mudar de profissão, acolhidos pela hospitalidade dos amigos ou abandonados por todos. Por sua vez, os países anfitriões se comportam de várias maneiras com os exilados russos. Os Estados Bálticos, talvez por estarem na OTAN, parecem mais flexíveis e mais dispostos a acolher russos e bielorrussos marcados pela oposição a Vladimir Putin ou ao ditador Aleksandr Lukashenko. Fora da Aliança, outros Estados tentam não irritar o Kremlin e relutam em abrir suas portas a pessoas que se distinguem por sua atitude crítica.

Uma característica generalizada nos países de destino da Europa é o transbordamento de serviços burocráticos para processar o status de quem chega. No seminário, que foi realizado de acordo com as regras de confidencialidade da Chatham House, verificou-se que, dado o perigo da presença de agentes do Kremlin entre os migrantes, é necessário encontrar mecanismos seletivos adaptados à realidade atual para acolher aqueles fugindo da Rússia. Contactados online, vários cidadãos russos residentes na Ucrânia contaram a sua experiência pessoal, que os coloca do lado de Kiev. Para eles, na União Europeia, as mesmas regras se aplicam aos refugiados ucranianos.

As previsões de especialistas sobre a eficácia das sanções ou a duração da guerra foram diversas. No primeiro caso, eles variaram de uma transformação da Rússia ao estilo do Irã ou um retorno à URSS e, no segundo, de seis meses a um longo período de atrito. Entre os participantes houve consenso sobre a necessidade de acabar com a guerra e preparar hoje para viabilizar uma Rússia livre e democrática no futuro, embora esse futuro pareça muito distante e pouco desejado pela maioria da população local.

"A construção de uma Rússia democrática precisará de cidadãos educados em valores democráticos", disse Álvaro Gil-Robles, presidente de Valsaín e ex-comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa (1999-2006). “O potencial democrático existente na Rússia foi promovido pela Escola de Educação Cívica de Moscou. O Conselho da Europa tem o dever moral de não abandonar esses lutadores pela liberdade e respeito pelos direitos humanos”, disse Gil-Robles em Segóvia.

Outros temas abordados no seminário foram a trajetória de Putin —de um oportunismo inicial a um senso de missão destrutivo— e as lições das guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2003), o medo da fadiga no Ocidente devido à duração do a guerra na Ucrânia e a necessidade de ajudar os defensores dos direitos humanos e os ucranianos deportados para regiões remotas da Rússia. Constatou-se também que nas reações à invasão russa o emocional ainda predomina sobre o racional.

No inevitável tempo de espera, a EECM pode cumprir a importante missão de unir, apoiar e ser uma plataforma de discussão aberta, mas não filiada a nenhuma das forças políticas no exílio que se opõem ao regime de Vladimir Putin. Hoje, 30 anos após sua fundação, a EECM recupera o papel de refúgio familiar e emerge como uma calorosa extensão da cozinha moscovita na qual Nemiróvskaya e Senokósov receberam amigos e incentivaram discussões de alto nível intelectual até serem forçados ao exílio quando a repressão desencadeada pelo atual regime sufocou a liberdade de expressão na Rússia.

Coincidindo com o seminário de Segóvia, em Moscovo foi submetida à Duma do Estado (Câmara Baixa do Parlamento russo) uma emenda ao Código Penal que inclui punições para os cidadãos russos que colaborarem no estrangeiro com organizações declaradas "indesejáveis" pelo Kremlin.

Bonete Pilar, a autora deste artigo, é jornalista e analista. Durante 34 anos foi correspondente do EL PAÍS na URSS, na Rússia e no espaço pós-soviético. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 03.06.22

Promotores europeus unem forças para levar justiça à Ucrânia

 De Kiev a Haia, passando por jurisdições nacionais: cooperação jurídica entre diferentes tribunais visa colocar líderes russos no banco dos réus por crimes de guerra e outras agressões cometidas na Ucrânia.

A procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova (terceira a partir da esquerda), saúda  cooperação internacional em HaiaA procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova (terceira a partir da esquerda), saúda  cooperação internacional em Haia

Mais de 100 dias de conflito. Mais de 15 mil supostos crimes de guerra, com centenas de outros possivelmente sendo cometidos todos os dias. E para Iryna Venediktova, "todos sabem quem é o responsável por essa guerra, por essas mortes, por tudo que está acontecendo na Ucrânia".

"Foi o presidente da Federação Russa e seu gabinete quem de fato começou essa guerra, para matar civis, estuprar civis, torturar civis", disse a primeira mulher a ocupar o cargo de procuradora-geral da Ucrânia, em entrevista à DW.

Dia após dia, Venediktova acumula mais recursos para levar à Justiça esses oficiais que ela acusa, em nome de toda a humanidade, segundo ela própria diz.

"É o principal objetivo de todo o mundo civilizado, de todas as pessoas que falam sobre Estado de direito, sobre justiça, sobre direito internacional, que as pessoas responsáveis pela morte de outras pessoas, pelo crime de agressão, por invadir um país vizinho e tomar a terra e matar seu povo, sejam punidas de verdade", afirmou a procuradora-geral.

Esse é também o objetivo de uma nova Equipe de Investigação Conjunta (JIT, na sigla em inglês), sediada em Haia, na Holanda, com a coordenação e o financiamento da Eurojust, agência de cooperação judiciária da União Europeia (UE), bem como a participação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e um número crescente de governos individuais, que planejam perseguir casos sob o princípio legal conhecido como "jurisdição universal".

O presidente da Eurojust, Ladislav Hamran, afirmou que essa se tornará a maior operação desse tipo já criada. "Nunca na história dos conflitos armados a comunidade jurídica respondeu com tanta determinação", disse ele a repórteres nesta semana.

Cooperação jurídica internacional

O procurador-chefe do TPI, Karim Khan, afirmou que o esforço conjunto pode se tornar um modelo para outras investigações internacionais.

"Acho que é isso que é necessário para crimes da magnitude que vemos com frequência no TPI. Precisamos construir parcerias", disse Khan a repórteres. "Não há dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não significa competição. Colaboração não significa disputar a independência. Temos que dar as mãos pelo interesse comum da humanidade, como autoridades da corte."

Uma das formas significativas de a Equipe de Investigação Conjunta tentar agilizar e auxiliar os processos judiciais é por meio da centralização do armazenamento de provas na Eurojust, sejam provas colhidas por especialistas na Ucrânia ou em qualquer outra jurisdição.

A Eurojust fornecerá assistência tecnológica à equipe para a recolha de dados sobre crimes de guerra, bem como oferecerá intérpretes e tradutores para os grupos de investigação.

"Vamos garantir que tudo o que for coletado no âmbito dessa Equipe de Investigação Conjunta seja realmente compartilhável com todas as partes envolvidas", disse Hamran, da Eurojust, acrescentando que isso ocorrerá rapidamente e sem a necessidade de solicitações formais e demoradas.

Agir contra a agressão

Mas mesmo com uma cooperação aprimorada, os casos envolvendo crimes de guerra, como os de homicídio ou especialmente de genocídio, geralmente levam anos para serem julgados devido ao ônus da prova extremamente alto.

A advogada de direitos humanos Lotte Leicht sugere haver um caminho mais rápido para a justiça: apostar no crime de "agressão", que processa aqueles que estão no poder por tomarem a decisão de atacar, em vez de aqueles que cumpriram a ordem.

"[Agressão] não é um crime em que você precisa provar que crimes de guerra estão realmente sendo cometidos", explica Leicht. "O próprio fato de você ter lançado a guerra ilegalmente contra outro país já é suficiente. É um crime muito mais fácil de provar e é muito mais direto em termos de quem é o responsável, porque foi anunciado publicamente na televisão [pelo presidente russo, Vladimir Putin]. Não é segredo quem carimbou [a decisão], não é segredo quem são os principais generais que agora a executam."

Segundo a advogada, "cada bomba, cada bombardeio, cada tanque russo" na Ucrânia se qualifica como crime de agressão.

A Ucrânia também poderia julgar esses casos, afirma Leicht, mas a lei proíbe abrir processos contra autoridades atualmente no cargo. Isso significa que outro tribunal internacional deve ser criado para lidar com esses casos, semelhante aos Tribunais de Nurembergue após a Segunda Guerra Mundial, que julgaram os líderes nazistas.

Leicht diz acreditar que isso provavelmente acontecerá sob os auspícios do principal órgão de direitos humanos da Europa, o Conselho da Europa. A Irlanda, atual presidente do conselho, expressou a intenção de criar tal tribunal antes de seu mandato terminar em novembro.

"Queremos responsabilização"

Toda essa cooperação deve fazer com que os membros do Kremlin comecem a ficar um pouco preocupados, afirma a advogada de direitos humanos.

"Quem sempre contou com a impunidade, por crimes muito graves, incluindo o crime de agressão, deveria olhar para a história", diz. "Aqueles que fizeram exatamente os mesmos cálculos na Europa – Milosevic, Karadzic, Mladic – estavam errados. Eles acabaram no tribunal." Leicht se referia a Slobodan Milosevic, Radovan Karadzic e Ratko Mladic, que enfrentaram acusações relativas a crimes perpetrados pelas forças sérvias durante a guerra na Bósnia.

Na última terça-feira em Haia, ao lado dos principais promotores da Lituânia e do TPI, Iryna Venediktova expressou esperança de que também assim terminarão suas batalhas legais.

"Sinto, confio e espero que, com meus colegas internacionais, com a comunidade internacional de advogados, nós possamos falar sobre justiça", disse a procuradora-geral ucraniana. "Precisamos de justiça. Queremos responsabilização."

 Teri Schultz para Deutsche Welle Brasil, em 05.06.22. 

sábado, 4 de junho de 2022

Crueldade

Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos do governo Bolsonaro. Artigo de Miguel Reale Júnior.

Especialmente em tempos cinzentos, é preciso “ter medo do guarda da esquina, mais do que do general”, como alertou Pedro Aleixo quando da instauração do AI-5. Os subordinados adotam com facilidade o abuso do poder se os desmandos não são reprimidos, mas dados como positivos pelos superiores.

Segundo a teoria da aprendizagem formulada por Gabriel Tarde e, depois, estudada por Sutherland, a conduta delitiva se aprende em associação com as pessoas que a consideram positiva, gerando o convencimento de estar a agir de maneira certa. Mesmo em face de condutas cruéis, os freios inibitórios são anulados em decorrência do aplauso ao comportamento malvado vindo de autoridades.

Seria a crueldade inerente à pessoa humana, cujo primitivismo deve ser burilado pelos limites impostos pelo processo educacional? Ou a malvadeza é aprendida nas relações sociais, de acordo com o meio social no qual se está inserido?

Indo mais a fundo: o mal é inerente ao exercício do poder? Será um ingrediente ou um meio pelo qual obrigatoriamente o titular do poder se manifesta para mantê-lo ou para afirmá-lo? Haveria até mesmo com gosto pelo mal?

Essas perguntas tocam no fulcro da questão da violência policial.

As perspectivas – a individual, congênita, e a social – combinam-se, mas sem dúvida têm grande peso o incentivo e o elogio a valores negativos vindos dos superiores. A probabilidade de punição (ou, ao menos, a certeza da reprovação moral da conduta nociva) é essencial para o exercício do poder se dar no limite do respeito aos demais.

Por isso a relação do governante com as polícias que atuam com a força na rua é fator relevante, pois a forma de agir do policial decorrerá do quadro de valores transmitido pela autoridade estatal.

Foi marcante o privilégio com que Jair Bolsonaro tratou a Polícia Rodoviária Federal. Aumentou seu efetivo, garantiu proventos na aposentadoria iguais ao do último salário, compareceu a inaugurações de sedes e visitou postos policiais. Neste ano, repetidamente, mencionou que o aumento salarial da Polícia Rodoviária Federal teria tratamento especial, inclusive equiparando a remuneração de seus quadros superiores à dada à Polícia Federal. A proximidade entre o presidente e a Polícia Rodoviária Federal é manifesta.

A tornar mais significativa essa ligação, Sergio Moro, no Ministério da Justiça, estendeu, inconstitucionalmente, a atribuição da Polícia Rodoviária Federal para além das rodovias, quando é claro o § 2.º, artigo 144 da Constituição, que edita: “§ 2.º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Assim, por portaria ministerial, reiterada em grande parte por André Mendonça como ministro da Justiça, deu-se atribuição para a Polícia Rodoviária Federal atuar em ação conjunta com as polícias militares na área urbana. Ao mesmo tempo, eliminaram-se as aulas de Direitos Humanos previstas no currículo de formação do concursado.

Em consequência, a Polícia Rodoviária Federal, sem expertise para agir em operação policial nas favelas, passou a ser chamada a participar de ações de repressão com o Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro. Veio, destarte, a integrar as forças policiais em duas chacinas na mesma Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em 11 de fevereiro deste ano, com 8 mortos; e recentemente, em 24 de maio, com o saldo aterrorizador de 23 mortos, sendo metade dos assassinados sem antecedentes criminais.

O presidente da República festejou a ação militar, cumprimentando os policiais pelo morticínio, que “neutralizou vinte”. Negou-se a recriminar, contudo, a crueldade praticada por três policiais rodoviários em Sergipe, que malvadamente lançaram gás lacrimogêneo e de pimenta no porta-malas onde aprisionaram Genivaldo de Jesus Santos, que morreu por asfixia, após ter sido seviciado e empurrado com brutalidade para dentro da viatura.

Esses maus policiais, aos gritos e palavrões, agiram com obsessão para afirmar sua superioridade diante de um pobre cidadão, negro, tido por desprezível: uma pessoa “a ser neutralizada”, como disse o presidente em face dos mortos da Vila Cruzeiro.

Assim, Genivaldo de Jesus Santos, parado pelos policiais por trafegar na moto sem capacete, foi cruelmente morto pela soberba do poder sem controle, em boa parte fruto do aplauso às violências anteriores da corporação.

O poder pessoal do “guarda da esquina” deve estar sob monitoramento, contido por lição de respeito ao direito dos cidadãos, pois, do contrário, abre-se a possibilidade de vir a ser cruel ao ter o mal como meio de afirmação de “autoridade”.

Assim, o exercício do poder, sem o bom exemplo e a fiscalização vindos de cima, viabiliza a instauração do instinto de desumanidade, tendo por consequência a crueldade, que, ensina Montaigne, é o extremo de todos os vícios, a nefasta ausência total de piedade.

Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos Bolsonaro.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente na edição de 04.06.22