quarta-feira, 8 de junho de 2022

Moro indica que não vai recorrer ao TSE e deve disputar vaga ao Senado pelo Paraná

Após o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) negar a sua transferência de domicílio eleitoral para São Paulo, o ex-ministro Sergio Moro (União) afirmou a aliados que não deve recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como poderia. 

O ex-juiz Sérgio Moro (União Brasil). Foto: Alexandre Meneghini/Reuters

Ele (Moro) sinalizou que pretende disputar vaga ao Senado pelo Paraná, seu Estado de origem. Com isso, Moro pode concorrer contra um de seus principais ex-aliados, o senador Alvaro Dias (Podemos-PR), que é pré-candidato à reeleição.

Com a saída de Moro da disputa em São Paulo, o presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo, Milton Leite (União), afirmou que mantém a sua pré-candidatura ao Senado normalmente. Moro também tentava se viabilizar ao posto, mas enfrentava resistências internas na legenda, que preferia que ele se lançasse como “puxador de votos” na eleição à Câmara dos Deputados.

Julia Lindner / O Estado de S. Paulo, em 08.06.22

MDB aceita sair da disputa no RS para apoiar Leite

 Após um impasse que se arrastou nos últimos dias, o pré-candidato ao governo do Rio Grande do Sul pelo MDB, Gabriel Souza, aceitou retirar seu nome da disputa em nome de uma aliança com o ex-governador Eduardo Leite (PSDB), segundo pessoas que acompanham as tratativas.

O acordo foi costurado nesta terça-feira pelo presidente nacional do partido, Baleia Rossi, e pela senadora Simone Tebet (MS), pré-candidata à presidência da República.

Com isso, lideranças emedebistas consideram que o PSDB “não tem mais desculpa” para adiar a formalização da aliança com o partido no âmbito nacional. O encontro dos tucanos está marcado para esta quinta-feira.

Além de Gabriel, a cúpula da legenda recebeu a garantia do presidente do MDB no Estado, Fábio Branco, e do ex-governador Germano Rigotto (MDB) de que aceitam abrir mão da candidatura própria – algo inédito até aqui para a sigla – e que o acordo poderá ser feito no RS. Rigotto e Branco também estiveram com Leite.

Houve uma ponderação, no entanto, de que o anúncio deverá ocorrer “no tempo da política local”. Não há prazo para isso ocorrer. Primeiro, será preciso acompanhar a postura do PSDB na quinta-feira para garantir que o acordo nacional vai, de fato, prosperar.

Em nota, o MDB-RS disse que a candidatura de Gabriel está mantida, mas que “segue dialogando com aqueles que desejam construir uma aliança para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento do Estado”.

Julia Lindner / O EStado de S. Paulo, em 07.06.22

Improviso e demagogia na jogada do ICMS

Em encenação grotesca, em que levou chá de cadeira de Lira e Pacheco, Bolsonaro anuncia medidas inúteis contra alta dos combustíveis e custosas para Estados

Bem alimentado, bem alojado no Palácio do Planalto, bem assistido quando digere mal um camarão e com tempo de sobra para motociatas e passeios de jet ski, o presidente Jair Bolsonaro vem tratando os preços da gasolina e do diesel como os maiores e mais prementes problemas dos brasileiros. Têm relevância, de fato, mas quase desaparecem quando confrontados com o desemprego, a perda de renda, os preços da comida, o custo da saúde, as escolas sem banheiros, a falta de professores, a violência rotineira e as moradias em áreas de risco, para citar apenas os pesadelos mais noticiados no dia a dia. Nenhum desses problemas será resolvido com o mero corte de tributos, como o IPI e o ICMS, mas o presidente, seus ministros e seus parceiros do Centrão insistem nesse remédio – inútil, custoso e desastroso para os governos, para os serviços prestados à população e para a maioria das famílias.

Além de grotesco, foi assustador o espetáculo protagonizado pelo presidente Bolsonaro na segunda-feira à noite, quando anunciou planos de redução de impostos federais e estaduais para baratear combustíveis, energia elétrica, transportes públicos e serviços de comunicação. Reduzida a pronunciamentos de autoridades, embora devesse ter sido uma entrevista coletiva, a manifestação foi um indisfarçável evento eleitoral. Igualmente indisfarçável foi sua improvisação.

Bolsonaro e ministros chegaram em primeiro lugar e esperaram por vários minutos o aparecimento dos presidentes da Câmara e do Senado, numa inversão dos padrões protocolares. Durante a apresentação, o advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, circulou por trás das autoridades e ficou junto de ministros, durante algum tempo. Ninguém explicou sua presença no anúncio-comício. Mas o evento suscitou outras questões importantes para quem se preocupa com os aspectos mais prosaicos da administração pública.

Quanto o governo federal terá de pagar aos Estados para compensar as perdas de receita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)? De onde virá esse dinheiro? Que garantia terão os governadores de receber essa compensação? Nenhuma resposta satisfatória foi apresentada durante as falas das autoridades. O ministro da Economia mencionou, depois dos discursos e já na saída, um possível custo de até R$ 50 bilhões.

O dinheiro poderá sair da receita de privatização da Eletrobras – uma fonte ainda incerta – ou dos dividendos da Petrobras. Esses detalhes confirmam claramente a improvisação do lance eleitoral. Além disso, a transferência da verba aos Estados implicará um rompimento do teto de gastos. Para realizar esse dispêndio, o Executivo federal dependerá da aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – mais um fator de insegurança. A palavra improviso tem um sentido muito menos nobre, neste caso, do que quando aplicada a um lance genial de um grande jogador de futebol ou à execução de um trecho de jazz por um músico de talento notável.

Empenhados em limitar o uso do ICMS pelos governos estaduais, líderes do Centrão, como o presidente da Câmara, participam da jogada eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Também fazem o próprio jogo, é claro, e com isso atropelam os valores federativos e comprometem a capacidade administrativa de governadores e prefeitos (municípios têm direito a uma parte do maior tributo estadual). Podem reduzir temporariamente os preços de combustíveis e de alguns serviços, mas sem impedir novos aumentos, porque estes independem dos impostos indiretos. Quando se considera este ponto, fica ainda mais ostensiva a trapaça envolvida na manobra de Bolsonaro e de seus parceiros.

Se estivessem de fato empenhados em favorecer os mais vulneráveis, presidente e Centrão poderiam formular, por exemplo, um esquema de subsídio ao gás de cozinha ou ao transporte público. Mas, se Bolsonaro tivesse esse tipo de preocupação, o Brasil teria chegado ao quarto ano de seu mandato com desemprego muito menor, inflação mais contida e nenhum centavo consumido num orçamento secreto. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.06.22

terça-feira, 7 de junho de 2022

STF derruba liminar que restabeleceu cassação de deputado bolsonarista pelo TSE

O julgamento foi definido com o voto do ministro Gilmar Mendes, que seguiu a divergência aberta pelo ministro Edson Fachin e acompanhada por Ricardo Lewandowski. Nunes Marques, que na última quinta-feira deu uma liminar devolvendo o mandato ao parlamentar, foi seguido apenas por André Mendonça.

Segunda turma do STF decide sobre cassação de Fernando Francischini pelo TSE — Foto: Divulgação

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por três votos a dois, a decisão do ministro Nunes Marques e manteve a cassação do deputado estadual bolsonarista Fernando Francischini (União-PR) por propagação de fake news contra as eleições. O parlamentar perdeu o mandato após decisão Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em outubro de 2021.

— O discurso de ataque sistemático a confiabilidade às urnas noa pode ser considerado como tolerável no estado democrático de direito, especialmente por um pretende a cargo político com larga votação. Tal conduta ostenta gravidade ímpar, que pode comprometer o pacto social em torno das eleições —, disse Gilmar.

Ao abrir a divergência, Fachin, que já havia votado pela cassação de Francischini no TSE em outubro de 2021, rechaçou os argumentos de que os ataques do deputado às urnas não teriam tido impacto capaz de levar à perda do mandato.

— Não há direito fundamental para propagação de discurso contrário à democracia. O silêncio deste STF diante desta prática configuraria em grave omissão constitucional e descumprimento de suas nobres atribuições — disse Fachin.

Argumentou ainda o ministro:

— A existência de um debate livre não compreende o salvo conduto para agir, falar ou escrever afirmações notoriamente falsas ou sabidamente sem fundamentos que só visam tumultuar o processo eleitoral. Não existe direito fundamental em atacar a democracia — afirmou.

O julgamento foi marcado nesta segunda-feira por Nunes Marques, que também é presidente da Segunda Turma, poucas horas antes do início do julgamento pelo plenário virtual de um recurso que questionava a sua decisão. Essa análise foi paralisada após um pedido de vista do ministro André Mendonça. Ambos foram indicados ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O julgamento de Francischini foi o primeiro em que houve condenação de um parlamentar por fake news no TSE e é considerado um marco para casos parecidos. Na decisão favorável ao deputado, Nunes Marques se posicionou contra, entre outras pontos, à decisão do TSE de aplicar às redes sociais as mesmas regras previstas para uso indevido dos meios de comunicação, ponto trazido pela defesa.

O magistrado também entendeu que faltam elementos que comprovem o comprometimento da disputa eleitoral em decorrência da live do deputado, feita em 2018, na qual afirmou, sem provas, que as urnas eletrônicas estavam fraudadas para impedir a eleição de Jair Bolsonaro.

Mariana Muniz, de Brasília-DF para O Globo, em 07.06.22.

A polarização e o debate político-eleitoral deficitário

A bipolaridade mitológico-maniqueísta enfraquece a democracia e não dá conta da complexidade da nossa sociedade.

Qualquer debate sustentado numa polarização despreza a natureza complexa da realidade, que é um grande meio de campo múltiplo, diversificado e rico de possibilidades históricas. Especialmente na política, isso não dialoga com a potência do amplo leque de ideias, projetos e programas de ação que a vivacidade humana enseja e reclama para a construção da vida civilizada.

Assim, a discussão política reduzida a dois polos fica limitada em meio à constelação de alternativas, constrange, faz pouco-caso da amplitude de oportunidades de viabilizar as transformações socioeconômicas sempre tão urgentes e renovadas pelo andor da história. Como nos lembrou o saudoso geógrafo Milton Santos, a política é a “arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas”. Desse modo, pode-se dizer que política polarizada é política deficitária.

Como alcançar a visão, as conversas abrangentes e densas requeridas pela ação política numa contingência de restrições de perspectiva e limitação de rumos à caminhada? Como, numa realidade de polarização hostil, superar as distâncias entre os polos e construir pontes que nos levem ao virtuoso caminho do meio? Como ir além da esquematização reducionista pautada pelo populismo antidemocrático, de um lado, e pelo populismo anacrônico, de outro?

Em resumo, este é o gigantesco desafio que se apresenta em ano de uma eleição vital para os destinos de nossa nação: escapar das armadilhas populistas que empobrecem o debate político-eleitoral ou, antes, o sequestram da agenda da realidade massacrante.

O populismo afeta democracias mundo afora, não é doença tropical. Mas, dadas as condições de nossa realidade, os estragos causados na cambaleante condição da vida socioeconômica e político-cultural nacional são dramáticos.

Perder a oportunidade de debates consistentes, distanciados de delírios tanto na fabulação de problemas quanto na imaginação de soluções, é algo com repercussões graves para o hoje e para o amanhã. Ao nos alienarmos da vida real, estamos pisando fundo no acelerador de históricas mazelas brasileiras, especialmente a desigualdade, o empobrecimento da população e o desperdício de oportunidades de efetivo desenvolvimento.

Com razão e emoção, os agentes políticos e a sociedade civil precisam estabelecer diálogos em torno de problemas concretos, em busca de soluções modernas e eficazes, tornando tanto o debate quanto a ação política contemporâneos do nosso tempo. Só assim passaremos a trilhar o caminho da transformação de nossos potenciais em prosperidade compartilhada.

Essa agenda, que tenho chamado de “novo início” nacional, só deslancha com a realização de reformas estruturantes. Não dá para seguirmos com um sistema tributário caótico, colocando-se como correntes que aprisionam e impõem uma letargia intolerável e incompatível às nossas possibilidades econômicas. A máquina governativa deve deixar de ser nicho de patrimonialismos e seara de ação corporativista e se atualizar aos padrões do digital.

É urgente investir na educação básica, incluindo tempo integral na escola e formação técnico-profissionalizante no ensino médio. Pela relevância do SUS na pandemia, ficou claro que é preciso reforçar o sistema público da saúde, especialmente nos aspectos gerenciais. A segurança pública é outro assunto urgente a ser tratado. É preciso reorganizar as políticas assistenciais para que sejam efetivamente uma ação de superação da vergonhosa realidade de concentração de renda no País.

São emergenciais a ampliação do mercado de trabalho e a dinamização da economia com incremento de incentivos à pesquisa científica e à inovação. A proteção e a preservação do meio ambiente, em especial a Amazônia, devem compor políticas públicas vigorosas, que incluam o combate a crimes como desmatamento, garimpo ilegal e grilagem de terra, e que ajudem a gerar renda e valor para a população da Amazônia, entre a qual muitos vivem abaixo da linha de pobreza.

Precisamos estar aptos a aproveitar as possibilidades da digitalidade, das demandas por infraestrutura (portos, ferrovias, dados/5G, rodovias, energia, saneamento, entre outros), da ampliação das interfaces econômicas do Brasil com o mundo e da extraordinária janela de oportunidade, para nós, da economia verde.

Essa monumental agenda, tanto de desafios quanto de oportunidades, hoje está sombreada por um debate político-eleitoral empobrecido, esvaziado pela polarização e imantado pelo culto ao personalismo, dia a dia alimentado e, infelizmente, ampliado pelos tentáculos de redes sociais perversamente instrumentalizadas.

O Brasil precisa ultrapassar a cilada da bipolaridade mitológico-maniqueísta, que enfraquece a democracia, não dá conta da complexidade da nossa sociedade, mascara a efetiva potência da política e só fortalece a marcha da insensatez que compromete ainda mais a nossa caminhada histórica rumo a um tempo de justiça social e inclusão econômica de verdade.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, economista, Presidente Executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do RenovaBR, foi Governador do Estado do Espirito Santo por quatro mandatos (2003/2010 e 2018/2021). Publicado originalmente n'O REstado de São Paulo, em 07.06.22

Autoritários temem a imprensa livre

A recessão democrática está intimamente ligada às agressões à liberdade de imprensa, mas o jornalismo seguirá firme em sua missão de viabilizar a democracia

Nunca, desde a redemocratização, foi tão importante celebrar este Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. A crise é global, mas no Brasil é particularmente aguda.

Democracia e liberdade de expressão são tão visceralmente ligadas que é impossível dizer qual é a causa e qual a consequência. Não surpreende que as instituições que as encarnam – o Estado de Direito e a imprensa independente – estejam sob pressão.

Institutos responsáveis por monitorar liberdades apontam unanimemente uma recessão da democracia no mundo. De acordo com a Freedom House, só 13% da população mundial goza de uma imprensa livre. Segundo o V-DEM, as ameaças às liberdades de expressão e imprensa respondem por 8 entre 10 indicadores em declínio no maior número de países na última década.

Superpotências totalitárias como China e Rússia multiplicam arsenais de desinformação e repressão. No Ocidente, a promessa das redes digitais de ampliar a pluralidade e a liberdade de opinião malogrou. A lógica de impulsionamento dos algoritmos favorece o sensacionalismo e a agressividade. Cresce o número de políticos que, auxiliados por tropas de robôs, usam táticas digitais para intimidar adversários e distorcer eleições.

O kit dos populistas iliberais, do México à Hungria e à Índia, inclui pressão financeira sobre a imprensa independente, privilégios a plutocratas alinhados ao regime e abuso das leis contra a desinformação. O assalto ao Congresso dos EUA mostra que a indústria da desinformação pode atingir o coração da democracia mais rica, longeva e poderosa do planeta. A pandemia mostrou que a desinformação pode ser literalmente uma questão de vida ou morte.

No Brasil, segundo o V-DEM, na última década a liberdade de imprensa, num índice de 0 a 1, se contraiu de 0,94 a 0,54. É alarmante – e sintomático – que os dois movimentos políticos que lideram as pesquisas de intenção de voto sejam os mais hostis à imprensa independente da Nova República.

Lula da Silva já disse que o “controle social da mídia” é uma de suas prioridades. Jornalistas que cobrem eventos do PT são ainda hoje hostilizados e agredidos, e não surpreende que o lulopetismo tenha consagrado a expressão “Partido da Imprensa Golpista”.

Tampouco surpreende que Jair Bolsonaro tenha dito que “o maior problema do Brasil não é com alguns órgãos, é a imprensa”. Em seu mandato, a opacidade e a hostilidade à imprensa transformaram-se em políticas de governo. O decreto de sigilos e as restrições à Lei de Acesso à Informação se multiplicaram. Diretores de órgãos de Estado que divulgam dados incômodos são sistematicamente exonerados e vilipendiados. As redes sociais bolsonaristas foram alçadas a instrumentos de consulta pública. Ao mesmo tempo, o governo editou decretos alterando abruptamente regras de publicações de editais e documentos societários assumidamente para prejudicar órgãos de imprensa. Quando o próprio presidente chega a ameaçar “encher” um jornalista de “porrada”, não surpreende que os ataques morais e físicos a jornalistas tenham aumentado.

Nem por isso a imprensa se calou. Dela veio a apuração de esquemas antirrepublicanos, como mensalões, petrolões, rachadinhas e orçamentos secretos. Na pandemia, ela foi obrigada a criar um consórcio para divulgar informações confiáveis. Para as eleições, 42 veículos se uniram no projeto Comprova para checar desinformações.

Mais do que o direito, a imprensa tem o dever de incomodar, não só os donos do poder, como os próprios leitores. Ao contrário das redes sociais, os órgãos de imprensa têm responsabilidades editoriais, acima de tudo com os fatos. Ao contrário dos influencers, os jornalistas têm a missão de lançar luz onde as pessoas não gostam e ouvir opiniões divergentes em um espaço genuinamente plural.

Como disse Hannah Arendt, “o súdito ideal não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso”. Eis o sonho de todo autoritário. A imprensa no Brasil não renunciará à missão de ser o seu pesadelo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07.06.22

segunda-feira, 6 de junho de 2022

A morte

O Brasil vive um período delicado. Um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de ‘brincadeira macabra’.

A morte é o destino dos seres humanos, ao fim de um ciclo natural de vida, que se apresenta como uma espécie de enigma da condição humana. De toda maneira, as pessoas se acostumam gradativamente com essa ideia através da idade e de doenças sucessivas. Logo, passa a ser tida por normal, embora essa normalidade seja a do corpo inerte tomado por bactérias e vermes. A religião veio a ser uma forma de conforto, graças a ideias como a de “salvação”, “outro mundo” e “vida eterna”, entre outras acepções. Pascal, célebre filósofo católico, dizia que a vida era uma forma de “distração”, de “divertimento”, usufruída pelas pessoas procurando esquecer a morte inexorável.

Estados totalitários, aqui, inovaram. Tiraram a morte do seu ciclo natural e conferiram-lhe uma significação propriamente política, de poder, submetendo agrupamentos humanos por raça, religião ou mera diversidade à violência extrema. No nazismo, seres humanos, como judeus, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová, considerados como “subumanos”, terminaram, por via de consequência, seus dias em câmaras de gás e nos crematórios. Extirpados da categoria dos humanos, a morte violenta lhes foi imposta.

Os comunistas não ficaram atrás, decretando a morte violenta pela fome orquestrada, imposta pela violência política a aproximadamente 3,2 milhões de ucranianos num evento que passou a ser denominado de Holodomor, morte por inação, num episódio da fome planejada pela polícia política stalinista nos anos 30 do século passado, com homens e mulheres esquálidos, cadáveres ambulantes, tendo o canibalismo como um de seus efeitos.

O processo civilizatório tem se caracterizado por prolongar a vida, por evitar a morte violenta, em sociedades que se organizam pela segurança pública, por sistemas de saúde públicos e privados, pelo avanço científico e tecnológico. As pessoas se sentem assim seguras, reconfortadas e evitam a morte, tida por uma forma arbitrária e injustificada de violência. Coisas tão simples como remédios e vacinas, além da integridade física que estaria ao abrigo do arbítrio, são manifestações deste progresso, considerado, então, como algo normal. O que ocorre, porém, se cenas de violência, patrocinadas inclusive por forças policiais, põem em xeque tal concepção?

Um cidadão normal, chamado Genivaldo, foi gasificado num porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal no Estado de Sergipe. O espetáculo do horror introduz a morte violenta patrocinada pelo Estado, cuja função – convém sempre lembrar – consiste em proteger a vida e o patrimônio dos cidadãos. Hobbes já dizia que essa é sua função essencial, sem a qual a sociedade recairia num estado de selvageria, denominado por ele de guerra de todos contra todos. A justificativa inicial utilizada pelo arbítrio foi a de um “mal súbito” sofrido pela vítima, expressão que só pode ser considerada como uma piada macabra. Mal, sim, existe, mas o de uma sociedade que começa a se acostumar com tal tipo de arbitrariedade. Súbito, sim, o descaramento e a ausência de compaixão.

A chacina no Rio de Janeiro, com forças policiais agindo impunemente, matando inocentes no máximo arbítrio, expõe essa faceta de uma sociedade que perde controle de si. A polícia, pilar da organização estatal, abandona sua função, fazendo com que pessoas pereçam pela morte violenta. A segurança dos cidadãos não é mais assegurada de uma forma aberta. Nem o disfarce é utilizado. Se o Estado não cumpre mais sua missão, o que podemos esperar, senão a irrupção da crueldade, da selvageria? Há justificativa para isso?

Em Pernambuco, mais de uma centena de pessoas foi vítima de inundações e desabamentos, em outro teatro do horror que apenas escancara o que já vem acontecendo em outras cidades. Nada disso é normal, na acepção de que seria inevitável. Calamidades naturais fazem parte do mundo, mas o que diferencia um Estado de outro são a prevenção e a forma de enfrentamento desse tipo de fenômeno. Sismógrafos foram inventados para prevenir as consequências desastrosas de terremotos, com operações de defesa civil e afastamento da população atingida para outras regiões. Habitações em zonas de risco podem ser solucionadas por políticas habitacionais e outras ações estatais. Foi mais uma vez desastroso o discurso presidencial, ao considerar as catástrofes como “naturais”. Seus efeitos não o são, se houver políticas sociais ancoradas na ciência e na tecnologia.

O Brasil vive um período particularmente delicado, pois estas formas de “morte social” passam a ser tidas por normais. Nem a compaixão se faz mais presente nas ações governamentais. Se o Estado não se impõe, protegendo os malfeitores e relegando os policiais honestos e conscientes, é porque se encaminha para formas autoritárias. Trata-se, na verdade, de um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de “brincadeira macabra”.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na UFRGS, Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Pubicado originalmente em 06.06.22

Um novo Nero entre nós?

Temos assistido ao triste espetáculo diário do incentivo ao conflito e ao armamentismo irresponsável da população brasileira.

As Forças Armadas sempre cumpriram papel crucial, de organismo de defesa do País, protegendo nossas fronteiras e, nas últimas décadas, apoiando o Estado Democrático de Direito. Nossa Constituição coloca o presidente na posição de chefe das Forças Armadas com a clara expectativa de que exerça esse poder pelo povo, para o povo e em nome do povo – jamais permitindo a instrumentalização e o abuso. Aliás, o respeito à Constituição e aos princípios da separação dos Poderes e da prevalência do interesse público é compromisso visceral republicano.

Mas nem sempre foi assim, pois já vivenciamos momentos em que nossos presidentes do passado usaram as Forças Armadas com fins políticos, rompendo a ordem democrática e institucional. O marechal alagoano Deodoro da Fonseca instalou a República por golpe militar em 15 de novembro de 1889. O ex-sargento gaúcho Getúlio Vargas, em 1937, implantou o Estado Novo, governando de forma ditatorial até 1945; e o marechal cearense Castelo Branco foi o escolhido pelos golpistas militares de 1964 para assumir o primeiro governo federal do período da ditadura, que duraria 21 anos.

Eis que, passados 37 anos do fim da ditadura, o capitão paulista reformado, hoje presidente Bolsonaro, tem sinalizado na direção da tirania, ao reapresentar a tese do voto impresso auditável, já examinada pelo Congresso Nacional e rechaçada – parecendo desprezar a votação ocorrida. É ato totalitário pôr em dúvida a realização de eleições em 2 de outubro, assim como questionar a confiabilidade do sistema de urnas eletrônicas, utilizado em mais de 40 nações do mundo, por meio do qual ele mesmo foi eleito oito vezes, sem nunca ter reclamado antes.

Tenta-se construir a teratológica hipótese da apuração eleitoral paralela pelas Forças Armadas, ao arrepio da Constituição, já que a atribuição é exclusiva do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cuja criação foi de importância capital para reduzir a corrupção eleitoral reinante no Brasil e que o projeto de Código Eleitoral em discussão no Senado pretende enfraquecer significativamente. Acaso o presidente da República admitiria que outra autoridade pudesse exercer paralelamente seu poder exclusivo, como o de indicar ministros do STF, do STJ e o procurador-geral da República ou de conceder indultos, como ele propõe ao TSE em relação à apuração dos votos?

Não é a primeira vez que são praticados movimentos em direção a uma hipertrofia militar, neste mandato. Desde o início, seguidores presidenciais repetem à exaustão, sem embasamento constitucional, a tese insustentável de que as Forças Armadas seriam o Poder Moderador, que houve no Brasil, durante o Império, e depois deixou de existir, dando lugar à tripartição do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário.

As Forças Armadas e seus líderes evoluíram ao longo de nossa história republicana e têm como norte o respeito à Constituição. O mesmo vale para a segurança pública, comandada pelos governadores dos Estados, cujos integrantes não se deixarão levar por blefes golpistas nem por narrativas elaboradas a partir de referências apontadas por algoritmos de redes sociais, descoladas do mundo real, para justificar eventual derrota. O compromisso de militares e do corpo da segurança pública é com o respeito à soberania do voto do povo no próximo dia 2 de outubro.

Faltam quatro meses até lá, mas o presidente acaba de se posicionar no sentido de que não comparecerá aos debates de primeiro turno, secundado por Lula, caso aquele efetivamente não compareça. A exemplo das eleições de 2018, os eleitores poderão ser privados do confronto de ideias de todos os candidatos.

Negar informações não surpreende, porque o presidente abusou do poder de tornar sigilosos documentos que deveriam ser públicos, mandando cidadãos aguardarem por cem anos o fim do sigilo – é grave nosso declínio em transparência pública.

O presidente fala em defesa da liberdade, mas tudo não passa de embalagem falsa, narrativa enganosa. Roberto Jefferson e Daniel Silveira, para ficarmos em apenas dois exemplos, pregaram contra o Estado Democrático de Direito, e, obviamente, a imunidade parlamentar não os blinda sem limites – não podem dizer o que quiserem. Da mesma maneira, se um parlamentar for à tribuna e pregar pela morte de judeus, negros ou pessoas homoafetivas, jamais se poderá argumentar que estão cobertos pela inviolabilidade da imunidade parlamentar, que lhes garantiria liberdade de expressão. Pregar pela morte da democracia é conduta ainda mais grave. Conceder o presidente indulto após condenação pelo STF por este crime é estopim incendiário à democracia, ato violador da separação constitucional dos Poderes.

Temos assistido ao triste espetáculo diário do incentivo ao conflito e ao armamentismo irresponsável da população, sob o mantra de que “povo armado não é escravizado”. Muitos obedecem como zumbis ao chamamento, que utiliza linguagem que obscurece verdades e semeia a ideologia de um quase fanatismo. Consegue-se arregimentar, via redes sociais, uma matilha de vândalos que idolatram cegamente seu líder, dispostos a tudo, sob seu comando. Seria ele um novo Nero, retratado em Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, que ateia fogo em Roma apenas para se inspirar, pelo ardor das labaredas, tocando sua lira?

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiç no Ministério Público de O Estado de S.Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, palestrante, idealizador e Presidente do Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado oginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.22.

Urnas eletrônicas: Ministério da Defesa prepara novo documento para rebater TSE

Governo pretende responder às acusações de erros técnicos na análise das Forças Armadas sobre o sistema de voto de 2022; baseado em trabalho do Exército, novo documento terá caráter político

O general de divisão Héber Garcia Portella, do Comando de Defesa Cibernética.

O Ministério da Defesa (MD) prepara nova resposta ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ela será uma tréplica, terá caráter político e rebaterá os comentários apresentados pelos técnicos do tribunal aos questionamentos feitos pela equipe do general Héber Portella a respeito de possíveis fragilidades nas urnas e na totalização eletrônica de votos. Portella é o representante do MD na Comissão Técnica Eleitoral (CTE), criada em 2021, para aprimorar o sistema usado nas eleições de 2022.

O documento será baseado em novo trabalho do Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber). Quem o leu afirma que ele é “suave” e “técnico”. Procura, sobretudo, desfazer a ideia de incompetência e de erros grosseiros que os peritos do TSE apontaram no trabalho dos militares. Os peritos do ComDeCiber dizem que os possíveis erros cometidos por eles nos questionamentos aconteceram porque não receberam todas as informações sobre o sistema eleitoral, nem foram informados sobre a metodologia usada no TSE.

Também vão lembrar que, em outubro de 2021, logo após a primeira reunião da CTE, as Forças Armadas “solicitaram ao TSE” o envio de mais de uma dezena de documentos sobre o sistema, mas eles nunca foram remetidos. Também vão contar que solicitaram a autorização para fazer questionamentos a fim de compreenderem o sistema. Até hoje, alegam os peritos do ComDCiber, não houve reunião técnica nenhuma, somente a troca de documentos, seguidas de interpretações políticas de magistrados do TSE.

Já a cúpula do Exército pretende reafirmar três ideias que considera fundamentais nessa querela. A primeira é que as Forças Armadas consideram terem sido “colaborativas desde o primeiro dia” em que fizeram parte da Comissão de Transparência Eleitoral do TSE. Depois, querem reiterar que não agiram politicamente nem se deixaram instrumentalizar pelo presidente Jair Bolsonaro. Por fim, pretendem mostrar sua competência técnica, arranhada pela resposta dada pelo TSE aos seus questionamentos anteriores.

Há ainda outros pontos que se deseja esclarecer. Afirma-se que o general Héber nunca teve qualquer contato com a área de inteligência em sua carreira. Aqui se quer desfazer qualquer suspeita de uma ação hostil. Conta-se que o MD considerou a possibilidade de haver um representante de cada Força na CTE. Mas se afirma que a ideia foi abandonada porque “a organização mais apta tecnicamente” para liderar o trabalho em apoio ao TSE era o ComDCiber, que reúne militares das três Forças. Por fim, a designação de Héber teria acontecido não em razão de proximidade com Braga Netto, mas por ele chefiar a Defesa Cibernética.

Jair Bolsonaro e Braga Netto, ex-ministro da Defesa; general é apontado como vice do presidente na eleição de 2022.

Existe no Exército a certeza de que não foi o general Héber o responsável pelo vazamento dos questionamentos feitos ao tribunal pelas Forças Armadas. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro usou esses dados em uma live. Todas as suspeitas da cúpula no caso recaem sobre o então ministro da Defesa, o general Walter Braga Netto, que recebera as informações de Héber, na condição de chefe imediato. O general da Defesa Cibernética representava o então ministro na CTE.

Por esse raciocínio, cogitado para ser vice na chapa de Bolsonaro, Braga Netto teria todo o interesse de agradar ao chefe, apesar do compromisso assumido com o TSE de manter em sigilo os questionamentos técnicos entregues à comissão. Ao menos, até serem respondidos pelos peritos da Justiça Eleitoral. Os magistrados têm a mesma desconfiança. “Cui prodest scelus, is fecit”, escreveu Sêneca, em Medeia. Luís Roberto Barroso não é o único a conhecer a máxima, embora tenha sido o primeiro a utilizá-la na Corte.

No STF, o uso político das informações feito por Bolsonaro foi considerado uma deslealdade, como mostrou a repórter Beatriz Bulla, pois rompera com a promessa de reserva assumida por Héber. Em resposta, a cúpula da Força Terrestre procura mostrar aos magistrados não ter interesse em se ver arrastada para a política, principalmente diante do cenário eleitoral que aponta para uma disputa entre as candidaturas de Jair Bolsonaro e de Luiz Inácio Lula da Silva.

Os generais temem que os acontecimentos saiam dos trilhos, com o envolvimento de setores das polícias estaduais, de clubes de atiradores e caçadores e de caminhoneiros. Ao mesmo tempo assistem a uma mobilização maior de movimentos sociais, vinculados à candidatura de Lula, e temem o ressurgimento dos chamados black blocs. Eles consideram que os ponteiros do relógio do caos se aproximam mais da meia-noite cada vez que que uma autoridade resolve escalar a crise, “trazendo as Forças Armadas para o centro do palco”.

Há uma convicção de que, por um erro de cálculo, ministros dos tribunais estão entre essas autoridades. Exemplo disso seria o documento divulgado por Fachin sobre o trabalho da equipe de Héber, que contava com integrantes de outras organizações de TI da Marinha, do Exército e da Força Aérea. O magistrado fazia afirmações que não deviam ser endereçadas ao general, mas ao presidente Bolsonaro. Isso porque em momento algum os militares haviam defendido a contagem paralela de votos ou afirmado a existência de sala escura para apuração no tribunal, termo que constou da resposta dos peritos do TSE ao ComDCiber

'Quem trata de eleições são forças desarmadas’, diz presidente do TSE, Ministro Edson Fachin.

A cúpula do Exército sabe que não consegue mais dissociar sua imagem do governo, mas tenta convencer interlocutores nos demais Poderes e na sociedade civil de que luta para impedir que a Força seja levada à arena política, a fim de servir de instrumento, como dizia Oliveiros S. Ferreira, para “resolver as disputas dos civis” na República. O problema é que diversos atores políticos consideram que as Forças Armadas já se colocaram irremediavelmente no meio do espetáculo. Dizem que elas entraram ali pela obra dos generais que compunham o Alto Comando em 2016 e patrocinaram ou aderiram ao governo Bolsonaro.

O fenômeno atingiu até quem pensava que o capitão seria tão desastroso como Fernando Collor. Mais de 6 mil militares ganharam cargos civis no governo federal. Alguns obtiveram vencimentos que, acumulados, chegam a mais de R$ 100 mil. Fora as vantagens, reajustes salariais, investimentos e prestígio. Por tudo isso, há quem caracterize o período atual do País como o de uma volta dos militares à política, como ocorrera em 1945, com as candidaturas de Eurico Gaspar Dutra e Eduardo Gomes.

Recentemente, o general Francisco Mamede de Brito Filho escreveu em uma rede social que o equívoco por trás do imbróglio com o TSE estava na origem. “Na formulação do convite pelo TSE. E na aceitação do convite pelas Forças Armadas. Não compete às Forças Armadas dar parecer em processo eleitoral. A indesejável politização das Forças Armadas, pretendida pelo governo, já ocorreu no momento da aceitação do convite.”

Assim, as divisões entre os militares agora se dão entre os que procuram manter as Forças Armadas como instituição de Estado e os que se perderam no ar condicionado dos gabinetes de Brasília, abrindo as portas de ministérios a colegas representantes de interesses particulares, sempre em busca da captura do Erário. Se é difícil para quem permaneceu nos quartéis cortar laços e recusar pedidos que parecem inofensivos, mais desafiador ainda é convencer o mundo político de que não se deseja protagonismo nas eleições.

Mesmo os militares admitem que observam alguns atores tentando provocar extravagâncias no Poder Militar, inclusive oficiais da reserva. Em um ambiente conturbado, é fundamental manter a segurança dos candidatos para evitar explosões de fúria e violência que levem ao que os generais classificam como “necessidade de pacificar o conflito”, cenário sombrio em que o “Exército seria obrigado a usar a força”. Enfim, se há canhões apontados contra o Judiciário e para as eleições, eles não seriam os do Exército, dizem os generais.

A questão agora é se o documento que o Exército prepara mais uma vez sairá do terreno do diálogo entre peritos e se transformará em mais um lance da guerra aberta entre os Poderes da República. Nenhum general pode garantir como será a redação final do trabalho, pois o documento do ComDCiber apenas servirá de base para a confecção de outro, de caráter político, que será preparado pelo Ministério da Defesa.

Estará nas mãos do general Paulo Sérgio de Oliveira a decisão sobre a redação final do que será entregue ao TSE na próxima reunião da CTE, marcada para o dia 20. O que não se sabe é se o tribunal tomará conhecimento do documento por meio da Defesa ou por meio de uma nova live do capitão. Cada vez mais encurralado pela perspectiva de perder, não para a oposição, mas para a sucessão de crises e desastres que ajudou a criar ou a aprofundar em seu mandato, Bolsonaro pode usar a oportunidade para negar a realidade que se afigura, pouco a pouco, mais próxima: a derrota de um presidente em busca da reeleição.

Marcelo Godoy, Repórter Especial / O Estado de S. Paulo, em 06.06.22

A guerra de Putin: Zelenski visita tropas ucranianas na linha de frente

Em demonstração de apoio a militares, presidente ucraniano esteve em cidades de Donetsk e Lugansk, onde a Rússia concentra atualmente sua ofensiva.

Zelenski conversa com militares em bunker na linha de frente no Donbass

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, visitou neste domingo (05/06) tropas na linha de frente da guerra na região de Donbass – palco dos combates mais intensos e atual alvo principal da invasão russa – para, segundo ele, mostrar seu orgulho pelos ucranianos estão na resistência.

Zelenski visitou militares em Lysychansk, cidade vizinha de Sievierodonetsk, onde as tropas ucranianas estão combatendo a ofensiva russa, num dos raros momentos em que deixou a capital Kiev desde o início da guerra em 24 de fevereiro.

"Quero agradecê-los por seu grande trabalho, seu serviço protegendo a todos nós e o nosso Estado. Sou grato a todos vocês", afirmou Zelenski. "O que vocês merecem é a vitória, isso é a coisa mais importante, mas não a qualquer custo", acrescentou.

Durante a visita à linha de frente, o presidente também passou por Bakhmut e Soledar, em Donetsk. Lysychansk e Sievierodonetsk ficam na região de Lugansk. Juntas essas regiões compõem o Donbass, o coração industrial da Ucrânia, que a Rússia afirmar estar em missão para libertar. Depois de sofrer derrotas em Kiev e Kharkiv, Moscou concentrou a maior parte de seu poder de fogo no Donbass.

O presidente esteve ainda em Zaporíjia, onde conheceu moradores de Mariupol, que conseguiram deixar a cidade portuária que foi destruída pelos bombardeios russos. Mariupol enfrentou um cerco severo antes de ser tomada por Moscou, que desencadeou uma grave crise humanitária entre os poucos habitantes que permaneceram nela.

Em Zaporíjia, Zelenski visitou refugiados de Mauripol (Foto: UKRAINIAN PRESIDENTIAL PRESS SERVICE/AFP)

"Cada família tem a sua história. A maioria estava sem os homens. Em uma, o marido estava na guerra, na outra preso, outro infelizmente morreu. Uma tragédia. Sem um teto, sem a pessoa amada, mas temos que viver pelos filhos. São verdadeiros heróis", afirmou.

Intensos confrontos em Sievierodonetsk

Após ter conseguido recapturar dos russos partes de Sievierodonetsk, o governador da província de Lugansk, Serguei Haidai, afirmou no domingo que a situação havia piorado para o lado ucraniano, sem dar mais detalhes. Ele disse, no entanto, que as tropas de Kiev ainda mantinham suas posições na cidade.

"A batalha mais feroz é em Sievierodonetsk. A rápida batalha está acontecendo agora", ressaltou Haidai.

O Ministério da Defesa britânico confirmou nesta segunda-feira os confrontos intensos em Sievierodonetsk. Ambos os lados afirmam ter causado enormes baixas na cidade.

De acordo com o estado-maior ucraniano, as forças russas também estão fortalecendo suas posições na região de Kharkiv e realizando intensos bombardeios para manter o território que ocuparam. A Rússia estaria ainda atacando a infraestrutura civil em várias cidades da região. Moscou nega ter como alvo civis.

Militares ucranianos disseram ainda ter repelido sete ataques em Donetsk e Lugansk no domingo, destruindo quatro tanques e derrubando um helicóptero. Agências de notícias não conseguiram verificar esses relatos do campo de batalha.

Progresso lento

A Rússia controla em torno de um quinto do país, cerca de metade disso foi ocupada em 2014 e o restante, capturado desde o lançamento da invasão em 24 de fevereiro.

Para ambos os lados, o ataque maciço da Rússia no leste ucraniano nas últimas semanas foi uma das fases mais mortíferas da guerra, com a Ucrânia dizendo que está perdendo de 60 a 100 soldados todos os dias.

Moscou fez progresso lento, mas constante, pressionando as forças ucranianas dentro de bolsões de resistência nas províncias de Lugansk e Donetsk, mas fracassando em cercá-las. Kiev espera que o avanço russo drene as forças de Moscou o suficiente para que a Ucrânia recapture território nos próximos meses.

A guerra teve um impacto devastador na economia global, especialmente para os países pobres importadores de alimentos. A Ucrânia é uma das principais fontes mundiais de grãos e óleo de cozinha, mas o abastecimento desses produtos foi cortado pelo fechamento dos portos ucranianos do Mar Negro, que impede o escoamento de mais de 20 milhões de toneladas de grãos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 06.06.22 (cn AFP, efe, Reuters)

Como nasceu a Ucrânia - e quais seus vínculos históricos com a Rússia

Desde o dia 24 de fevereiro a comunidade internacional assiste com perplexidade à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Como outras nações vizinhas, os dois países têm tanto laços históricos e culturais que as unem quanto que as separam.

Essa herança em comum remonta ao século 9, quando Kiev, a atual capital ucraniana, era centro do primeiro Estado eslavo, criado por um povo que se autodenominava "rus".

Foi esse grande Estado medieval, que os historiadores chamam de Rus de Kiev, que deu origem à Ucrânia e à Rússia - cuja capital atual, Moscou, surgiu no século 12.

A fé professada era a cristã ortodoxa, instituída em 988 por Vladimir 1º de Kiev (ou São Vladimir Svyatoslavich "O Grande"), que consolidou o reino Rus no território que corresponde hoje a Belarus, Rússia e Ucrânia e se estende até o Mar Báltico.

Mapa de Girolamo Ruscelli mostra Rússia e Ucrânia em 1574 (Getty Images)

Entre os vários dialetos eslavos falados na região, acabaram se desenvolvendo as línguas ucraniana, bielorrussa e russa.

É por causa desse passado compartilhado que o presidente russo, Vladimir Putin, afirma que "russos e ucranianos são um povo, um único todo".

Especialistas apontam, entretanto, que, apesar da origem comum, a trajetória dos ucranianos tomou caminhos diferentes da dos russos pelo menos nos últimos nove séculos, quando estiveram sob domínio de povos diferentes.

Para Andrew Wilson, professor de estudos ucranianos da Universidade College London, é importante ver a Ucrânia, tanto seu território quanto sua identidade, mais como um "quebra-cabeças dinâmico" do que como uma unidade estanque.

Em meados do século 13, a federação de principados de Rus foi conquistada pelo Império Mongol.

Na sequência, no final do século 14, o território acabou dividido entre o Grão-Principado de Moscou e o Grão-Ducado da Lituânia (que mais tarde se juntou à Polônia), que se aproveitaram do declínio do poder mongol para avançarem sobre a região.

Kiev e as áreas adjacentes ficaram sob o domínio da Comunidade Polaco-Lituana - o que deixou a região oeste da Ucrânia mais exposta a influências ocidentais nos séculos seguintes, desde a contrarreforma (a resposta da igreja Católica à reforma protestante) até o renascimento (movimento artístico e cultural inspirado na antiguidade clássica, que rompia com os valores da Idade Média).

A chamada Galícia dos Cárpatos, também no oeste da Ucrânia, chegou a ser governada por um longo período pela dinastia dos Habsburgo, conhecida por estar à frente dos impérios Austríaco e Austro-Húngaro.

Assim, essa porção ocidental do país teve uma história completamente diferente daquela vivida no leste ucraniano, disse Geoffrey Hosking, historiador especializado em Rússia, à revista BBC HistoryExtra.

Muitos de seus habitantes não são católicos ortodoxos, pertencendo à igreja Greco-Católica Ucraniana ou a outras igrejas orientais católicas, que realizam seus ritos em ucraniano e reconhecem o papa como chefe espiritual.

Outra parte da Ucrânia de hoje com um passado bastante particular é a Crimeia, com seus laços com gregos e tártaros e períodos sob o domínio otomano e russo.


Rio Dnieper atravessa a Ucrânia e desemboca no Mar Negro 

Dois lados

No século 17, uma guerra entre a Comunidade Polaco-Lituana e o czarismo da Rússia colocou as terras a leste do rio Dnieper, região que era conhecida como "margem esquerda" da Ucrânia, sob o controle da Rússia Imperial.

Décadas depois, em 1764, a imperatriz russa Catarina, a Grande, desarticulou o Estado cossaco ucraniano que dominava as regiões central e noroeste do território e passou a avançar sobre terras ucranianas até então dominadas pela Polônia.

Durante os anos que se seguiram, uma política conhecida como russificação proibiu o uso e o estudo da língua ucraniana. As populações locais foram pressionadas a se converter à fé ortodoxa russa, para que pudessem constituir mais uma das "pequenas tribos" do grande povo russo.

Em paralelo, o nacionalismo se intensificou nas terras mais a oeste, que passaram da Polônia para o Império Austríaco, onde muitos começaram a se chamar de "ucranianos" para se diferenciar dos russos.

Com o século 20, veio a Revolução Russa e a criação da União Soviética, que fez seu próprio rearranjo do quebra-cabeças ucraniano.

Área histórica de Kiev, que já foi centro do Estado eslavo criado pelo povo russo (Getty Images)

Dominação soviética

A parte ocidental da Ucrânia foi tomada da Polônia pelo líder soviético Joseph Stalin no final da Segunda Guerra Mundial, quando foi constituída a República Socialista Soviética da Ucrânia.

Sob o manto comum soviético, na década de 1950 Moscou atendeu a uma demanda antiga da Ucrânia e transferiu a península da Crimeia para a república.

Localizada no Mar Negro, no sul, a região também tem laços fortes com a Rússia, que mantém até hoje uma base naval na cidade de Sebastopol. A Crimeia voltou para controle russo em 2014, quando a Rússia de Putin a invadiu e anexou.

Durante o período de dominação soviética, a tentativa de submeter a Ucrânia à influência russa se intensificou, muitas vezes a um custo humano elevado.

Milhões de ucranianos que já faziam parte da União Soviética na década de 1930 morreram em uma grande fome - que ficou conhecida como Holodomor - promovida por Stalin como estratégia para forçar os camponeses a se unirem à política comunista de fazendas coletivas.

Stalin chegou a enviar um grande número de cidadãos soviéticos, muitos sem conhecimento do idioma ucraniano e com poucos laços com a região, para tentar repovoar o leste do país.

Mesmo assim, a Moscou soviética nunca dominou culturalmente a Ucrânia.

Decisões econômicas, políticas e militares foram impostas a partir do centro, afirma Hosking, mas a Ucrânia "tinha certa autonomia" nas áreas de cultura e educação.

Embora o russo fosse a língua dominante, as crianças aprendiam ucraniano no ensino primário, muitos livros eram publicados no idioma local e, na segunda metade do século 20, "um forte movimento nacionalista ucraniano protagonizado por pessoas que tiveram uma educação ucraniana" cresceu na União Soviética.

Divisões profundas

Em 1991, a União Soviética entrou em colapso e, em 1997, um tratado entre Rússia e Ucrânia estabeleceu a integridade das fronteiras ucranianas.

Os diferentes legados que caracterizam as regiões do país deixaram, contudo, divisões que muitas vezes parecem abismos.

As regiões de cada um dos lados do rio Dnieper têm contrastes profundos, marcados pela extensão do domínio russo.

A leste, os laços com Moscou são mais fortes, e a população tende mais a seguir a religião ortodoxa e a falar o idioma russo.

Na parte ocidental, os séculos sob o domínio de potências europeias, como a Polônia e o Império Austro-Húngaro, acabam contribuindo para que muitos de seus habitantes fossem católicos e que preferissem falar a língua local.

Cada lado tem seus próprios interesses: alguns anseiam por retornar ao que consideram sua pátria-mãe, enquanto outros anseiam por trilhar caminhos independentes.

Publicado originalmente pela BBC News Mundo, em 27.02.22.

A luta de ucranianos por sua identidade nacional

Após a invasão russa à Ucrânia, muitos ucranianos lutam para manter a identidade do país.

Desde o colapso da União Soviética, a população já viveu mudanças radicais que vão da Revolução Laranja, em 2004, à deflagração de guerra em Donbas, em 2014.

Além de lutarem nos campos de batalha, muitos cidadãos do país também estão refletindo sobre quem de fato são.

Neste vídeo, a correspondente da BBC Zhanna Bezpiatchukk investiga como a ofensiva russa está impactando o sentimento nacional ucraniano.

Confira.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 18.05.22 

A Ucrânia de Clarice Lispector: como nascimento e migração ilustram capítulo sombrio do povo ucraniano

Em solo nordestino, as meninas foram rebatizadas com nomes brasileiros. A caçula, Haia, virou Clarice. E, 20 anos depois, se tornaria a famosa escritora Clarice Lispector — naturalizada brasileira nos anos 1940.

Clarice Lispector (Editora Rocco / Divulgação)

A pequena Haia Pinkhasovna Lispector tinha um ano e três meses quando desembarcou no porto de Maceió, em Alagoas, em 1922. Acompanhada dos pais e das duas irmãs, ela migrou da Ucrânia para o Brasil logo após a Guerra Civil Russa (1918-1921).

De origem judaica, quase toda a família Lispector — não só os pais de Clarice, como também seus tios e primos — chegou ao Brasil fugindo das perseguições contra judeus na Ucrânia no início do século 20.

"Os familiares que não saíram da Ucrânia naquela época certamente morreram. É o caso de um dos avós de Clarice, que teria sido assassinado em um pogrom", afirma a escritora Teresa Montero, uma das maiores biógrafas de Clarice Lispector.

Os "pogroms" foram uma onda de ataques violentos contra judeus, com motivações políticas e religiosas, que varreu a Ucrânia nas décadas de 1910 e 1920.

Os Lispector foram alvo de um pogrom praticado por militares russos na aldeia onde moravam, em Chechelnyk, na província de Podólia, por volta de 1919. O episódio foi descrito no livro Clarice, Uma Biografia, do crítico americano Benjamin Moser.

Segundo a obra, o ataque aconteceu durante uma viagem do pai de Clarice, o comerciante Pinkhas, e a mãe dela, Mania, teria sido estuprada e contraído sífilis.

Clarice foi concebida neste contexto: a família acreditava, segundo uma crença popular, que uma gravidez poderia curar a doença de sua mãe. Não à toa, o nome Haia significa "vida" em ucraniano.

A cura de Mania, contudo, não aconteceu, e ela morreu quando Clarice tinha dez anos. A escritora contou o episódio em uma crônica, publicada no livro A Descoberta do Mundo, de 1968:

"(...) Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei."

"Os anos 1910 e 1920 foram difíceis para toda a Ucrânia, mas particularmente para a população judaica", afirma Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan, nos EUA.

Ele explica que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a maioria dos judeus na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo, eram artesãos ou comerciantes pobres que viviam em pequenas aldeias e sofriam perseguições religiosas e políticas.

"Durante a Primeira Guerra, os militares russos deportaram centenas de milhares de judeus das fronteiras do império russo, temendo que eles pudessem ser recrutados como espiões para os alemães", explica Veidlinger.

A situação piorou a partir de 1917, com a Guerra Civil Russa instaurada com o fim do czarismo e a consolidação da Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques.

"Os pogroms mais letais foram praticados entre 1917 e 1921 por gangues armadas e unidades militares dos exércitos russos, ucranianos e poloneses", diz Veidlinger.

Escritora chegou ao Brasil ainda pequena, quando ainda se chamava Haia Pinkhasovna Lispector (Divulgação)

Estima-se que mais de 100 mil judeus foram mortos durante os pogroms de 1917 a 1921, segundo o professor, e outros 600 mil foram forçados a fugir da Ucrânia.

Com o desmantelamento do Império Russo, a Ucrânia e a Polônia vivenciaram um breve período de independência, mas também passaram por uma guerra civil em que judeus frequentemente eram alvos de saques e perseguições.

"O Exército ucraniano e o Exército Branco [russos contrários à Revolução Russa] atacaram os judeus com a suspeita de que eram leais aos bolcheviques. Já os poloneses acusaram os judeus de serem leais aos ucranianos", descreve Veidlinger.

A maior parte da violência contra os judeus, no entanto, foi cometida sob a acusação de que eles estavam do lado dos bolcheviques.

Clarice e família: de origem judaica, quase todos chegaram ao Brasil enquanto fugiam de perseguição (AMLB-FCRB)

"Os bolcheviques inicialmente atacaram os judeus sob a acusação de que eram capitalistas burgueses. Depois, o Exército Vermelho defendeu os judeus. Vários dos líderes bolcheviques mais visíveis, incluindo o chefe do Exército Vermelho, Leon Trotsky, eram conhecidos por terem origem judaica", completa Veidlinger, lembrando que o próprio Trotsky nasceu na Ucrânia.

Depois do Holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial (1941-1945), os pogroms são considerados o pior episódio antissemita da história.

Memórias da Ucrânia

Teresa Montero lembra que, apesar de Clarice ter falado muito pouco sobre a sua origem, trechos de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, onde foi colunista entre 1967 e 1973, tocam brevemente no tema.

"Na Polônia, eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo", escreve Clarice em uma crônica sobre suas viagens como mulher do diplomata Maury.

A escritora também nunca se manifestou publicamente sobre os episódios políticos que marcaram a Ucrânia e a Rússia.

Uma das hipóteses sobre o silêncio de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

"Não tem nenhum depoimento ou entrevistas em que Clarice tenha falado sobre a vida política da Ucrânia, nem sobre a União Soviética", afirma Montero.

Uma das hipóteses sobre o silenciamento de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada.

"Quando entrevistei a tradutora Tati de Moraes, amiga de Clarice, ela me contou que a escritora tinha medo de ser deportada", lembra a biógrafa.

Contudo, isso não significa que Clarice não tivesse uma postura política.

"Ela [Clarice] foi fichada pela ditadura por ter participado da Passeata dos Cem Mil. Antes, ela já havia sido fichada pelo governo [Eurico Gaspar] Dutra, certamente por ser judia e de origem russa", ressalta Montero.

A Passeata dos Cem Mil foi uma manifestação popular contra a ditadura militar e a favor da democracia, encabeçada por intelectuais, artistas e estudantes, em 1968, no Rio de Janeiro.

Marcos históricos ocorridos na Ucrânia que foram contemporâneos de Clarice:

- 1921: Parte da Ucrânia é incorporada à Polônia.

- 1922: Ucrânia é incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

- 1930: tem início o Holodomor (matar pela fome, em ucraniano), em que Joseph Stalin passa a exigir dos camponeses ucranianos grande parte da produção agrícola. Estima-se que 5 milhões de camponeses morreram de fome na região em pouco mais de três anos.

- 1953: a Ucrânia anexa a Crimeia.

Quem seria responsável por narrar as memórias da família Lispector na Ucrânia seria a irmã mais velha de Clarice, a também escritora Elisa Lispector.

"Elisa nasceu em 1911, era a mais velha das três irmãs. Clarice, a caçula, nasceu em 1920. Então, quem tinha memória do período na Ucrânia era Elisa, que chegou no Brasil já com 10 anos", diz Montero.

No livro Retratos Antigos, publicado postumamente em 2011 (Elisa morreu em 1989, deixando a obra inédita), a escritora conta sobre os pogroms e a vida dos judeus na Ucrânia.

"Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não pudessem dizer", diz ela em um trecho do livro.

Elisa escreve que as cidades permitiam que apenas uma porcentagem de judeus frequentasse a escola e universidade e que, apesar de terem o direito de morar nas cidades, "até nos pequenos vilarejos, nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam segregados e com medo".

Nacionalidade russa

"Hoje, falamos ucraniana, mas, na realidade, a nacionalidade da Clarice é russa, porque, na época do seu nascimento, a região pertencia ao Império Russo", explica Montero.

Ao longo da carreira, Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas (Edirora Roccco - Divulgação)

A questão fica clara na carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas pedindo sua naturalização, em que afirma ser:

"Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo (...) Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças."

Apesar do tom dramático, Teresa lembra que a carta foi escrita às vésperas do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial — o documento é de 3 de junho de 1942, e o país declarou guerra à Alemanha em 22 de agosto do mesmo ano — e que Clarice estava noiva do diplomata Maury Gurgel Valente, mas não podia se casar por ser estrangeira.

"O Itamaraty não permitia que diplomatas se casassem com estrangeiros, e Clarice não era só estrangeira, era também russa", explica a biógrafa.

A naturalização foi concedida um ano após a carta endereçada a Vargas. Cerca de duas semanas depois, Clarice e Maury se casaram.

A escritora morreu em 1977, no Rio de Janeiro, tendo afirmado durante toda a vida adulta ser brasileira.

Lais Modelli, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 05.06.22

domingo, 5 de junho de 2022

Bolsonaro e os poderes da rainha

Desde que se sentou no Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Artigo de Dorrit Harazim n'O Globo hoje.

Faltam 16 domingos para os 150 milhões de eleitores brasileiros se engalanarem no papel de protagonistas da História do país. Por um breve momento — pelo menos enquanto deposita sua esperança na urna eletrônica —, o eleitor tem o direito de se sentir participante do futuro nacional. É uma sensação valiosíssima, mesmo depois de esmaecer com o tempo ou devido a tropeços da vida. O voto democrático e universal, por ser igualitário, não revela quem somos. Revela apenas que existimos como cidadãos, o que é crucial num país de tamanha maioria invisível. Vinte anos atrás, neste mesmo espaço, escreveu-se que eleições são a única coisa com fila única de verdade no Brasil. Não existe título de eleitor gold, premier ou VIP. Nem título “terrivelmente evangélico” ou reservado a militares. O garoto candidato ao desemprego, o idoso esquecido pela vida, a mulher que rala e vota sozinha, o influencer incensado no TikTok, o próprio candidato a presidente — todos valem o mesmo na contagem dos votos. Nenhum Estado de Direito verdadeiramente democrático sobrevive numa sociedade que não leva a sério elementos básicos da vida cívica, como o respeito à verdade, à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da igualdade humana.

Desde que se sentou no Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem se dedicado a minar a até então sólida confiança nacional no sistema de votação brasileiro. Esse comportamento tão pouco republicano está sendo passado a crivo por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Só que inexiste reparação histórica a curto ou médio prazo para o confisco da esperança nacional em eleições incontestes. Qualquer que seja o vencedor em outubro próximo, o dano está feito — o eleitor terá perdido a certeza de seu poder, enquanto o chefe da nação deposita seu voto como combatente de uma guerra particular.

Ainda dois dias atrás, ao discursar na cidade paranaense de Umuarama, Bolsonaro desandou a criticar o que chamou de “nova classe de ladrão”, referindo-se “àqueles que querem roubar a nossa liberdade” —leia-se todos os ministros do STF à exceção dos que nomeou pessoalmente. “Se precisar, iremos à guerra. Mas quero um povo ao meu lado, consciente do que está fazendo e de por quem está lutando… A liberdade não tem preço, e parece que alguns não querem entender”, acrescentou.

(Queiroguinha: Queiroga leva filho candidato a eventos do Ministério da Saúde)

Ah, a liberdade! Poucos ideais da humanidade têm sido invocados com tanto ardor em 2.500 anos de pensamento ocidental. Ao longo da História, o conceito tem representado tanto um meio para alcançar um fim como um fim em si. Os Estados Unidos chegaram a erigir sua identidade nacional em torno desse ideal, por mais que o atropelem sempre que se consideram no direito de fazê-lo. Vale lembrar que o idioma inglês comporta não uma, mas duas palavras sinônimas para a ideia de liberdade: liberty e freedom. A primeira é mais usada para definir o direito individual de agir, crer e se expressar sem restrições, assumindo a responsabilidade por seus atos. A segunda define a condição de independência política, social, as garantias de vida em sociedade comumente associadas à democracia. De Platão a Mano Brown, o tema continua sendo inesgotável.

O uso frequente da palavra “liberdade” por Bolsonaro, em qualquer de suas acepções, deve ser ouvido como incongruência, quase como blasfêmia. Em três anos e meio de governo, o capitão já deu sinais múltiplos de intolerância, de ausência total de empatia e de voluntarismo autoritário. Fosse ele um simples cidadão, apenas intratável, rancoroso e egocêntrico, causaria danos limitados para si e seu entorno. Por se tratar de um presidente acometido de posse no poder, sua ideia de liberdade adquire forma de alto risco nacional.

Em tempos de celebração pelo jubileu de platina da rainha Elizabeth II, que nesta semana festeja seus 70 anos no trono britânico, o mandatário brasileiro talvez tenha ouvido de raspão que a rainha pode tudo — até dirigir sem carteira de habilitação e não pagar impostos (desde 1992, por decisão própria, passou a pagar tributos). Sua Majestade também nunca precisou de (ou teve) passaporte para dar suas 80 voltas ao mundo. Incluído nas “prerrogativas soberanas”, a monarca não pode ser presa nem julgada. Tem direito a duas festas de aniversário ao ano (uma na data do nascimento, outra em comemoração à coroação). Para o jubileu atual, 16 mil festas foram programadas só na Inglaterra. Soa bom, não? Em compensação, a rainha está proibida de expressar qualquer opinião política em público. Abriu raríssima exceção dois anos atrás quando, já vacinada contra a Covid-19, alertou sobre a dificuldade de muitos antivacinas em pensar nos outros. Tampouco pode votar ou ser eleita, direito assegurado a qualquer plebeu brasileiro.

Convém que seja mantido intacto.

Dorrit Harazin, a autora deste artigo é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22.

Pandemia pode ter levado Brasil a ter recorde histórico de 919.651 presos

Crescimento de furtos durante a pandemia pode explicar explosão da população carcerária no país. Especialistas temem que, em 2 anos, total de presos chegue a 2 milhões

A combinação de desemprego e fome, que se agravaram com a pandemia de Covid, pode ser um dos principais motivos de um crescimento expressivo da população carcerária brasileira. 

Em dois anos, o total de presos no país aumentou o equivalente a um município de 61 mil habitantes, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em abril de 2020, eram 858.195 pessoas privadas de liberdade contra 919.651 em 13 de maio deste ano, um salto de 7,6%.

'Assassina racista': Mãe de Miguel vai recorrer de sentença contra ex-patroa

Policial youtuber: Conselho da Polícia Civil de São Paulo aprova demissão de delegado Da Cunha

SP: Operação da polícia apreende armas adquiridas para colecionadores em casa de integrante de facção criminos

É a maior população carcerária já registrada pelos sistemas oficiais do país, como o Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que tem a mais extensa série histórica sobre a lotação de presídios brasileiros. Antes do número totalizado pelo CNJ, o recorde do Infopen era 755 mil presos em 2019.

O CNJ atualiza diariamente o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, que reúne dados de mandados de prisão e das Varas de Execuções Penais.

O cenário nos presídios poderia ser ainda pior porque atualmente há 352 mil mandados de prisão em aberto, sendo 24 mil deles de foragidos. Com a marca de 919 mil presos, o Brasil se mantém no terceiro lugar no ranking dos países que mais prendem no mundo, atrás da China e dos Estados Unidos.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro comemorou, em fevereiro, em suas redes sociais, o fato de ter “menos bandidos levando terror à população”, os especialistas veem a intensificação do encarceramento como um indício de que as coisas não vão bem.

— Esse crescimento reflete um conjunto de falhas. No Brasil, havia uma perspectiva de usar prevenção e repressão à criminalidade. Mas o governo Bolsonaro abandonou qualquer política de segurança. Não pode haver só repressão — diz o pesquisador Fábio de Sá e Silva, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que atribuiu a quantidade de presos ao aumento no índice dos chamados furtos famélicos, quando pessoas furtam para comer. — Você coloca a polícia na rua e sai prendendo gente que furtou alguma coisa no supermercado porque estava com fome.

Amazônia: Madeireiros cercam posto policial e queimam ponte após apreensão de escavadeiras em reserva de MT; vídeo

Violência: Joalheria é assaltada no Shopping Ibirapuera, em SP

Número é um marco

Segundo o desembargador Mauro Martins, conselheiro do CNJ e diretor da área responsável por contabilizar a população carcerária, a marca de 919 mil presos é, “sem dúvidas”, a maior da história do país.

— Esse é um número assustador. E qual é o efeito disso na segurança pública do Brasil? Não vejo. Não há relação entre encarceramento e melhoria na segurança pública — afirma ele e destaca ainda que, entre quase um milhão de pessoas encarceradas, 45%, ou aproximadamente 413 mil, são presos provisórios, sem condenação definitiva:

— Acaba virando antecipação de pena. Muitas pessoas estão presas há mais tempo do que ficariam em caso de uma sentença condenatória, ou seja, já cumpriram antecipadamente até uma pena que não foi imposta. É um paradoxo.

A nova contagem feita pelo CNJ inclui 867 mil homens e 49 mil mulheres. Em 2020, o Brasil tinha 405 presos para cada 100 mil habitantes. Este ano, o número saltou para 434 presos para cada 100 mil habitantes.

Comparativamente, o total de 61.456 pessoas presas nos últimos dois anos, segundo o CNJ, equivale à população de municípios como Mirassol (SP), Floriano (PI) ou Barra do Garças (MT). As cadeias enchem em velocidade maior do que o crescimento populacional. Segundo projeções do IBGE, todo mês, em média, são 125 mil novos habitantes, 0,05% do total do país.

O número de presos também avança mais rápido do que o de vagas em presídios. Segundo o Depen, desde o início da gestão Bolsonaro, foram abertas 12.587 novas vagas para se chegar a um total de 453.942. Ou seja, há mais do que o dobro de presos no país do que espaço disponível em carceragens.

Lei anticrime deu impulso

Para a socióloga Ludmila Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o aumento também é fruto das mudanças do pacote anticrime, que tornou mais rigorosas as regras de progressão de regime. Ela estima que, em dois anos, o Brasil poderá estar perto de ter 2 milhões de presos:

— O tempo médio de encarceramento passou de 3 a 5 anos para 6 a 10 anos. Nesse ritmo, um milhão atingimos ainda este ano. A população carcerária vai crescer absurdamente.

'Câmara de gás da PRF': MPF diz que prisão cautelar é medida excepcional e vai 'focar nas provas'

Preconceito: Após denúncia de racismo contra criança de 3 anos fantasiado de macaco, escola se pronuncia nas redes

O Depen contabiliza 692 mil presos porque seus dados vêm de formulários preenchidos à mão por funcionários de unidades prisionais e não incluem presos em delegacias, por exemplo. Já os dados coletados pelo CNJ são abastecidos pelos tribunais e considerados mais próximos da realidade por especialistas.

Em 2019, ao negar a pesquisadores acesso a dados antes detalhados em relatórios que pararam de ser produzidos pelo órgão naquele ano, o Depen alegou que o rodízio de funcionários, imposto pela pandemia, prejudicou o controle interno.

Mulheres no crime

Os dados do Depen, vinculado ao Ministério da Justiça, mostram que o contingente de mulheres encarceradas passou de 5,6 mil, em 2000, para 33 mil em 2021. Segundo o órgão federal, em 2017, quando houve o ápice de presas, 59% tinham sido condenadas por ações ligadas ao tráfico de drogas, ao passo que 8,5% estavam envolvidas em crimes violentos, como homicídio e latrocínio.

No ano passado, o perfil de periculosidade das mulheres começou a mudar: caiu para 57% o total das que estavam encarceradas por tráfico e subiu em 11,6%, segundo o Infopen, as que respondiam por crimes mais graves.

— As mulheres já não realizam só funções burocráticas no crime, mas agem como gerentes. Como os homens estão ficando mais tempo encarcerados, assumem papéis até então masculinos como o de matar — observa a pesquisadora.

Segundo o CNJ, das 98 mil execuções penais de mulheres no país, entre regime fechado e aberto, 24.273 delas (24%) se referem a assalto à mão armada e 18.832 (19%) a tráfico de drogas. Outras 6.874 (7%) foram presas por homicídio.

Bruno Abbud, de Brasília para O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22

Bivar lança candidatura de mentirinha para torrar dinheiro do fundão. Alerta Bernardo Mello Franco, n'O Globo hoje.

Depois da série de desistências na chamada terceira via, a semana terminou com um novo presidenciável na praça. O deputado Luciano Bivar se lançou ao Planalto pelo recém-criado União Brasil. A candidatura serve a muitos propósitos. Curiosamente, nenhum deles envolve vencer a eleição.

O presidente do União Brasil, Luciano BivarO presidente do União Brasil, Luciano Bivar | Jorge William

Bivar é um homem de negócios. Em 1997, arrematou o nanico PSL da família Tuma. Virou dono de partido, uma atividade que sempre rendeu dividendos em época de eleição. Nove anos depois, resolveu testar sua popularidade numa aventura presidencial. Terminou em último lugar com 0,06% dos votos, atrás do folclórico Eymael.

O fiasco não convenceu o empresário a mudar de ramo. Em 2018, sua insistência seria recompensada. Numa tacada de sorte, Bivar alugou a sigla a um deputado do baixo clero que sonhava com a Presidência. Da noite para o dia, viu sua bancada na Câmara saltar de uma para 52 cadeiras.

A ruptura com Jair Bolsonaro não afetou o empreendimento. O deputado manteve o controle sobre a sigla, os recursos do fundão e o tempo de TV. No ano passado, fundiu o PSL ao DEM, formando o União Brasil. A nova legenda se tornou a maior máquina partidária do país. Receberá quase R$ 1 bilhão para gastar em 2022.

Bivar chegou a participar de reuniões para escolher um candidato único da tal terceira via. No fim de maio, admitiu que as conversas não iriam “a lugar nenhum” e partiu para o voo solo, mesmo sabendo que terá o mesmo destino.

A jogada cumpre ao menos três objetivos. O primeiro é sepultar de vez as ambições presidenciais de Sergio Moro. O ex-juiz já havia levado um drible do Podemos. Agora terá que se conformar com uma candidatura a deputado ou senador.

A segunda tarefa é liberar os caciques regionais do União Brasil. Dos quatro governadores da sigla que concorrem à reeleição, três já declararam apoio ao atual presidente. O quarto é o goiano Ronaldo Caiado, que prefere ficar em cima do muro na disputa nacional. Declarar voto em Bivar, que não pontuou no último Datafolha, é a saída perfeita para não se indispor com eleitores de Lula ou Bolsonaro. Este também é o plano de ACM Neto na Bahia.

O terceiro propósito da candidatura de mentirinha está ligado à especialidade de Bivar. Com R$ 956 milhões a receber dos cofres públicos, o deputado poderá torrar uma fortuna na própria campanha sem que falte dinheiro aos aliados nos estados. Se ele for mesmo até o fim, seu fracasso nas urnas será uma experiência lucrativa.

+++

Abre o olho, Guedes

Há duas semanas, Paulo Guedes declarou que pretende continuar onde está se o capitão for reeleito: “É natural que eu apoie, ajude e esteja lá”, disse. Falta saber se ele teria apoio para se segurar na cadeira.

O ministro da Economia já era detestado pelos políticos do Centrão. Agora ganhou um concorrente na visão dos militares que cercam Bolsonaro.

Na sexta-feira, o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Junior, divulgou vídeo em que exalta o “nosso Exército” e diz sentir saudade dos tempos de recruta. Em tom de campanha, o banqueiro encerra a gravação com um aviso: “O soldado 939 continua de prontidão”.

Bernardo Mello Franco é comentarista de politica de O Globo. Publicado originalmente em 05.06.22

Tucano raiz, marqueteiro de Tebet diz que não há ‘elevador’ para 3ª via na corrida presidencial

Enquanto dirigentes do PSDB e do MDB tentam chegar a um acordo para formar palanque único presidencial, a pré-campanha da senadora Simone Tebet (MDB-MS) tem na retaguarda um marqueteiro com relações com o tucanato. Felipe Soutello, de 50 anos, trabalhou em sua primeira campanha aos 15 anos para José Serra, que em 1986 disputou uma vaga de deputado federal.

Felipe Soutello, que já fez campanhas para Serra, FHC e Bruno Covas, diz que senadora irá subir ‘escada’ e aposta na propaganda eleitoral na TV (Foto: Felipe Rau/Estadão)

Ipespe: número de eleitores que dizem não conhecer Simone Tebet cai 13 pontos em um mês

Soutello se filiou ao PSDB, mas hoje nem sequer sabe dizer se sua filiação está ativa no partido. “Minha filiação é de 1989. Fui um dos primeiros na cidade de São Paulo. Não estou na ata de fundação de 1988 porque não tinha idade”, afirmou. Sempre com atuação eleitoral, segue amigo de Serra e de outros tucanos.

Na parede da sua sala na sede de sua produtora, no Alto de Pinheiros, em São Paulo, um cartaz com a imagem do prefeito Bruno Covas com os punhos cerrados se destaca. Soutello conheceu o neto de Mário Covas em 1995, quando Bruno ainda fazia faculdade e morava com o avô no Palácio dos Bandeirantes.

O marqueteiro virou uma espécie de ideólogo do grupo que conheceu na militância da juventude tucana e que mais tarde foi a espinha dorsal da gestão de Bruno. Ele comandou a campanha do tucano em 2020 e hoje é consultor da gestão Ricardo Nunes (MDB).

Depois de ter feito a campanha ao governo de Márcio França (PSB), em 2018, e de Patrícia Vanzolini para a presidência da OAB-SP, no ano passado, Soutello recebeu convite do presidente do MDB, Baleia Rossi, para cuidar da pré-campanha de Simone. A proposta surgiu depois de ter sido sondado por pré-candidatos ao governo paulista, entre eles Geraldo Alckmin, de quem é próximo e hoje é vice do pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Foi Soutello, aliás, quem sugeriu a Fernando Haddad pela primeira vez, em um jantar no apartamento de Marta Suplicy, em maio do ano passado, a ideia de uma chapa de Lula com o ex-tucano.

Ipespe: número de eleitores que dizem não conhecer Simone Tebet cai 13 pontos em um mês. De acordo com o levantamento, esse número, que era de 49% no começo de maio, agora é de 36%.

Programa de Simone Tebet terá ‘Lei de Responsabilidade Social’ do tucano Tasso

Projeto do senador prevê reformular programas, metas de redução da pobreza e cria poupança para vulneráveis; mensagem da pré-candidata é de pacificação do País.

O ex-presidente Michel Temer afirmou que “a história da terceira via” ainda está indefinida e que “não vai ser fácil” viabilizá-la até a eleição presidencial.

Pressão

A missão de Soutello agora é administrar a pressão pelo crescimento de Simone nas pesquisas de intenção de votos e transformar uma pré-candidatura com 2% em um projeto viável. “Em uma campanha de construção de imagem como a da Simone não existe elevador para pegar. Tem escada para subir, degrau por degrau.”

Ele admite não ter expectativa de crescimento “vertiginoso” antes do horário eleitoral gratuito de TV. “Não há instrumentos de comunicação suficientes para isso. A TV é o instrumento de comunicação determinante para estabelecer a agenda política da eleição. Sem ela, o candidato não se coloca, sobretudo os que não são conhecidos do eleitorado.”

Em uma campanha de construção de imagem como a da Simone não existe elevador para pegar. Tem escada para subir, degrau por degrau

Serão 45 dias de exposição – de 15 de agosto ao início de outubro – e aproximadamente 20 programas, além das inserções diárias. Caso feche com o PSDB, Simone terá em torno de 2 minutos e 30 segundos, contra cerca de 3 minutos de Lula e Jair Bolsonaro (PL), cada. O desafio é desenvolver uma empatia do eleitorado e tornar a senadora conhecida sem apelar para ataques. “O eleitor do meio não quer bate-boca.”

Questionado sobre as chances reais de se quebrar a polarização, o marqueteiro recorre aos números: 40% dos eleitores que já optaram pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro “odeiam” essa opção. “É um chute projetar o cenário político de agora com o daqui 30 dias”, disse.

Pedro Venceslau / O Estado de S. Paulo, em 04.06.22