domingo, 5 de junho de 2022

Muda, Supremo!

Decisões revertendo cassações de deputados são apenas sintoma de doença mais grave: o modelo decisório da Corte. Artigo de Joaquim Falcão.

As decisões do ministro Nunes Marques suspendendo a cassação de dois deputados bolsonaristas pelo TSE são apenas sintoma de doença mais grave. Que doença é esta? Como descrevê-la? Tem cura? É a seguinte.

Pela Constituição, o Supremo é um órgão coletivo. Seu poder, legitimidade e independência vêm da coletividade decisória. Da participação de todos os ministros nas decisões. Justamente para evitar o que Nunes Marques fez agora.

Ministros do STF podem revisar decisões que livraram deputados bolsonaristas de cassação

A doença é o modelo decisório que o Supremo se autopratica. Se não mudar o modelo, o sintoma volta. A doença progride. Possivelmente até com ministros uns contra os outros.

O autofágico modelo decisório resulta do exagero de recursos, da estratégia dos advogados e procuradores e do vácuo de prazos decisórios. Tudo junto, permite-se que ministros ajam, cada um, sendo o próprio Supremo.

Resultou nos “onze supremos”. Até mais, se somarmos as turmas, a Presidência e o Plenário. Todos com pelo menos quinze minutos de fama.

Talleyrand, notável político francês, do século XVIII, dizia que “tudo em excesso torna-se insignificante”. É o que acontece. Quando se tem onze ou mais supremos, tem-se supremo nenhum.

Catarina, a Megera Domada de Shakespeare, na tradução de Millôr Fernandes, encerrava a peça dizendo: “Quanto mais queremos ser, menos somos”.

Deu no que deu. No que está dando. Um Supremo de temporários. Onde a decisão de um só ministro é final enquanto dura.

Decisões isoladas de ministros podem ser apenas “fake narrativas processuais”.

Não se trata de discutir se Nunes Marques tem ou não competência para suspender ou revogar decisões do TSE. Nem se estaria abrindo nova porta processual autônoma no Supremo: a “tutela provisória antecipada”. Muito menos sobre qual o prazo para levar ao Plenário.

A questão não é mais de interpretação legal. É de comportamento individual. Como deve se comportar um ministro? Qual sua visão de Supremo? Seus compromissos? Palavras sozinhas não geram independência decisória necessária. Afinal, o que é, para Nunes Marques, o Supremo no Estado Democrático de Direito?

Só o Supremo pode curar o próprio Supremo.

Se o Congresso aprovar lei ou emenda constitucional tentando diminuir os onze supremos para apenas um, como determina a Constituição, o atual individualismo exagerado vai reagir. Vai dizer que o Congresso não pode interferir. Fere a cláusula pétrea de separação e independência dos Poderes.

Na democracia, quem é independente é o Supremo coletivamente. Com este modelo decisório baseado no monocratismo, o Supremo criou o seu próprio vírus.

Muda, Supremo!

Joaquim Falcão, o autor deste artigo, é Membro da Academia Brasileira de Letras, professor de Direito Constitucional e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.06.22

Veja as 22 propostas de Luciano Huck para fomentar debate na eleição presidencial

Em artigo no Estadão, o apresentador de TV e empresário Luciano Huck afirma que há ainda muito jogo pela frente nesta eleição presidencial. Segundo ele, o pleito não está definido, apesar de antever uma campanha presidencial “dura e truculenta”.

Apresentador de TV e empresário afirma, em artigo no ‘Estadão’, que há ainda muito jogo pela frente na campanha, apesar da polarização (Leo Souza/Estadão)

Para fomentar os debates até o dia 2 de outubro, quando os brasileiros escolherão o ocupante do Palácio do Planalto a partir de 2023, Huck lista 22 propostas em áreas como educação, ambiente e seguridade social, elaboradas por um grupo multidisciplinar, de todo o espectro político. Leia abaixo todas elas:

22 propostas para 2022

Tornar fixo amplo programa de renda básica e aperfeiçoar seu cadastro nacional

Revisar produtos da cesta básica e aumentar sua desoneração

Fazer da diplomacia do Brasil referência mundial na pauta climática e ambiental

Punir o desmatamento e premiar o morador da fronteira amazônica que não desmatar e impedir desmatamento

Travar toda e qualquer iniciativa de regularização de grilagem de terras

Retomar o programa de demarcação de reservas indígenas

Multiplicar incentivos à bioeconomia e à agricultura sustentável

Conectar toda a rede escolar pública à internet e acelerar o letramento digital dos alunos e dos professores

Lançar um programa de revitalização do acolhimento à primeira infância

Modernizar e ampliar a oferta do ensino profissional, aderente à economia moderna

Adotar intersetorialidade e territorialidade como pilares de políticas sociais

Estimular a agenda de políticas afirmativas e ampliar a diversidade de atores na sua formulação

Fechar um pacto federativo pela responsabilidade fiscal, vetando aumento de custos recorrentes sem respectivo crescimento das receitas

Aprovar uma reforma tributária ancorada na simplificação e progressividade de impostos

Digitalizar documentos, sistemas de gestão e bancos de dados públicos

Criar uma plataforma social integrada no ambiente digital

Dar transparência à execução das despesas públicas pelos três Poderes

Retomar o cumprimento da Lei de Acesso à Informação e estimular ferramentas de accountability

Acabar com a possibilidade de reeleição para cargos no Executivo

Manter a política de cláusula de barreiras a fim de reduzir número de partidos

Democratizar estrutura e atividade internas dos partidos políticos

Ampliar acesso ao Fundo Partidário e regulamentar uso do fundo eleitoral

Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 05.06.22

O que seria de nós sem a democracia?

O Brasil e o mundo precisam reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres.

Democracia é o termo que caracteriza o regime político contemporâneo da maioria dos países ocidentais e que, literalmente, significa “o governo do povo”.

O conceito veio de longe. Surgiu nas cidades-Estado da Grécia antiga, durante o primeiro milênio antes de Cristo, consolidando-se no auge político da cidade de Atenas e classificada na obra Política, de Aristóteles, dentre as três formas possíveis de governo: a democracia (governo de muitos) se distingue da monarquia (governo de um só) e da aristocracia (governo dos nobres).

Na Idade Média, época da história geral que se inicia no século V, logo após a queda do Império Romano do Ocidente, e termina no século XV, o termo ficou esquecido. Foi um período marcado pela concentração do poder nas mãos de monarcas e pelo grande controle da Igreja Católica, influente não apenas na religião, mas também na sociedade medieval.

Por volta do século 18, quando eclodiram as revoluções burguesas no mundo ocidental, é que a democracia volta à baila, ganhando maior propulsão após as duas guerras mundiais.

Relembrar isso não é mero exercício de aula de História. Tem que ver com muito do que está acontecendo com a democracia em diversos países, inclusive o Brasil.

Assistimos a um perigoso processo de fragmentação das premissas democráticas. É como se houvesse uma espécie de tergiversação do termo democracia por alguns, cada qual bordejando conforme conveniências de momento.

Essa manobra, que enseja questionamentos inoportunos e desnecessários, se constitui em verdadeiro desserviço à democracia. Surgem ruídos nas relações entre as instituições, em detrimento do absoluto e imprescindível respeito que deve haver entre elas.

No Brasil, os Poderes vêm se estranhando. E não é de hoje. Esses atritos respingam para todo lado. Afetam todos nós, indistintamente. Atingem a economia, trazendo enorme insegurança quanto à tomada de decisão, gerando profunda crise de confiança.

É o que se vê, por exemplo, no questionamento a leis democraticamente aprovadas e promulgadas. Na Grécia antiga, quando o povo se reunia nas ágoras para debater e, por maioria, definir alguma coisa, as minorias podiam até não gostar, mas acatavam, atendiam às deliberações.

Por aqui, hoje e cada vez mais, legislações são alvo de sistêmicos questionamentos. Liminares são concedidas sem ponderada reflexão sobre suas consequências. Atividades produtivas são estancadas. No setor imobiliário, obras legalmente aprovadas são recorrentemente embargadas para, anos depois, decisão maior concluir que podem seguir, posto que dentro das leis que a autorizaram. Porém, sem qualquer tipo de ressarcimento financeiro ou moral.

Nos mais diversos campos, a chamada judicialização vem criando entraves ao crescimento econômico. Investimentos são inibidos, quando não simplesmente abortados. E mesmo agora, quando o conflito Rússia-Ucrânia vem induzindo o capital mundial a buscar portos menos voláteis, o Brasil não está no cardápio de opções, como poderia estar. Que garantias pode oferecer uma nação onde leis em vigor são frequentemente questionadas?

A fragmentação da democracia também alcança um de seus maiores símbolos: o voto. A relativização de premissas democráticas impede que a democracia se afirme positivamente.

O Brasil tem nada menos que 32 partidos políticos legalizados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conforme dados de fevereiro deste ano. Se considerarmos a linha de afinidade ideológica, eles poderiam ser três ou quatro. Mas, se consideramos que dentro de cada um deles há alas divergentes, teríamos quase uma centena!

Isso talvez responda por que chegamos às eleições de 2022 com um tímido leque de opções e, até o momento, sem uma terceira via definida. É certo que, até as eleições, muito pode acontecer. É a hora dos “fatos novos” – e também dos factoides. Mas, na cabeça do eleitor, fica cada vez mais difícil de identificar em quem, ou no quê, ele irá votar.

Vem, então, o voto no “menos pior”, situação que se evidenciou nas recentes eleições realizadas na França. Será que Emmanuel Macron foi vontade ou necessidade para manter o país mais “ao centro” e conter a direita radical de Marine Le Pen?

E nós, brasileiros, o que vamos escolher? Será que vamos ponderar o valor da democracia em nossa decisão?

E de que tipo de democracia estamos falando? Será aquela que o mundo ocidental considera como o regime político mais eficaz para promover maior liberdade e direitos para os cidadãos com o mínimo de abuso do poder político?

Difícil resposta. De afirmativo, mesmo, só o fato de que a alternativa que resta são os regimes totalitários, radicais ou autoritários, todos eles dominadores e supressores de direitos e liberdades, impondo, cedo ou tarde, pesada conta aos cidadãos. Como disse Winston Churchill, “a democracia é o pior dos regimes políticos, à exceção de todos os outros que foram tentados”.

Qual, então, a solução? O Brasil e o mundo precisam trabalhar para reafirmar a democracia. Revisitar seus valores e suas premissas. Enfim, reerguê-la para que permaneça como principal instrumento das sociedades livres. Uma tarefa para homens e mulheres que, para além de si mesmos, na política ou fora dela, decidam agir pelo bem comum.

Basilio Jafet, o autor deste artigo, é Vice-Presidente de Relações Institucionais do SECOVI-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.05.22

Párias em seu próprio país

Desmonte de conquistas civilizatórias precede a ‘câmara de gás’ da PRF; há quem ganhe eleições defendendo que certos brasileiros não devem ter direitos

A cena de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, trancado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) tomada por gás lacrimogêneo, correu o mundo. Além da fumaça que saía do veículo, é possível ver a perna de Genivaldo para fora do carro, enquanto dois agentes da PRF diligentemente impedem que a porta se abra. Lá dentro, asfixiado, o homem que minutos antes havia sido abordado por andar de moto sem capacete, agonizava até a morte.

A abordagem policial, em Sergipe, desafia os adjetivos para retratar tamanha barbárie. À medida que as imagens da “câmara de gás” em que se converteu a viatura da PRF passaram a circular, uma onda de perplexidade e indignação espalhou-se pelo País. 

Enquanto a sociedade brasileira, atônita, acompanhava a reação pusilânime e cínica das autoridades, veio do Ministério Público Federal em Goiás (MPF-GO) a notícia de que a Direção-Geral da PRF, no início de maio, havia acabado com as comissões de direitos humanos no âmbito da corporação. Os procuradores recomendaram, então, o imediato restabelecimento das comissões, bem como a retomada da oferta da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação e reciclagem de policiais rodoviários federais.

A iniciativa dos procuradores é louvável. Das forças policiais, espera-se efetividade técnica e operacional no combate ao crime, o que requer preparo para lidar com as mais variadas situações. Quanto mais clareza tiverem sobre o papel da polícia e os limites de sua atuação, melhor será o trabalho dos milhares de integrantes da PRF. Beira a ingenuidade, porém, imaginar que a mera presença em aulas de direitos humanos fosse capaz de mudar o comportamento dos agentes envolvidos na abordagem de Genivaldo.

Infelizmente, o Brasil tem assistido a uma espécie de ataque sistemático contra princípios basilares da vida em sociedade. Na esteira da polarização política, da disseminação de notícias falsas e do florescimento de discursos de ódio, ganhou força uma visão de mundo que se opõe à democracia e ao Estado de Direito naquilo que este último tem de melhor, isto é, a garantia de que o exercício do poder e os conflitos sociais serão regidos pela lei − e não pela violência.

O conceito de direitos humanos foi uma das primeiras vítimas desse verdadeiro desmonte de conquistas democráticas, base para o desenvolvimento de qualquer país civilizado. A partir de uma visão de mundo simplificadora e, por isso, completamente equivocada, disseminou-se a ideia de que defender direitos humanos seria o mesmo que defender bandidos ou ser complacente com a criminalidade. Por óbvio, nada mais falso, uma vez que a aplicação da lei, fundamento do Estado Democrático de Direito, prevê punição e prisão para quem comete crimes − da mesma forma que resguarda direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão. Entre eles, o direito à vida, à dignidade e a um julgamento justo.

Não é democrático nem de direito o Estado que nega a determinados cidadãos a condição de sujeito de direitos. Contudo, há tempos o Estado brasileiro faz essa discriminação, de que são testemunhas os milhares de presos sem julgamento, sem falar nos outros tantos que nem chegam a ser presos, pois são mortos em operações policiais truculentas. Tornou-se trivial considerar que há brasileiros (“bandidos”, como são chamados mesmo antes de qualquer julgamento) que não fazem jus a direitos fundamentais. Não são poucos os que até ganham eleições defendendo a execução sumária desses cidadãos – transformados em párias dentro de seu próprio país, posto que, na prática, não têm os mesmos direitos que seus concidadãos considerados “de bem”

Não é preciso fazer “curso de direitos humanos” para saber que atirar uma pessoa no porta-malas de uma viatura e sufocá-la com gás não é um procedimento policial aceitável num país civilizado. Se os policiais se sentiram à vontade para fazê-lo à luz do dia, diante de incontáveis testemunhas, é porque se sentiram chancelados pelo Estado. Quando o chefe desse Estado é alguém que louva torturadores, tudo faz sentido. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 05.06.22

Sanções, uma bomba-relógio capaz de derrubar a economia russa a partir do verão

Se não chegar a um acordo que diminua a punição ocidental, Moscou enfrenta uma desindustrialização progressiva que reduzirá gradualmente seus níveis de riqueza e emprego, alertam analistas.

Alguns cidadãos passaram em frente a um McDonald's fechado, neste sábado, em Moscou. (YURI KOCHETKOV  - EFE)

A Rússia caminha semana a semana, inexoravelmente, em direção a uma economia de guerra que pode deixá-la muito atrás do Ocidente e da China nos próximos anos. O país inicialmente superou as sanções impostas em retaliação por sua guerra na Ucrânia, mas alguns dos mais renomados economistas do país concordam que a verdadeira crise ameaça estourar nos próximos meses se não houver uma reviravolta em breve.180 graus no conflito. Além disso, não parece haver um plano claro: as críticas se intensificam diante dos problemas para substituir as importações, e o governo passou de uma forte defesa de sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) a um desejo de abandoná-la. O presidente Vladimir Putin insiste que a Rússia continuará fazendo parte da cadeia econômica mundial,

“Elvira Nabiúllina e outras pessoas importantes falam com sinceridade que (a crise) chegará por volta do terceiro trimestre. As sanções estão se acumulando e há reservas nas fábricas para dois ou três meses, mas depois tudo será muito mais difícil”, diz Alexei Portanski, ex-diretor do escritório que conseguiu a adesão da Rússia à OMC na outra ponta de 2012. O professor da Escola Superior de Economia de Moscou mencionou o discurso proferido em abril pelo governador do banco central russo perante o Parlamento. "Acabou o período em que a economia conseguiu viver de reservas", alertou Nabiúllina, anúncio que se aproxima ainda mais depois que a União Europeia acordou uma nova rodada de sanções,desde a proibição parcial de importação de petróleo russo até a punição de Alina Kabaeva, suposta namorada de Putin.

As companhias aéreas russas são um verdadeiro reflexo de sua economia atual. Apesar de terem banido o espaço aéreo europeu, continuam operando dentro do país com suposta normalidade. Mas eles pararam vários aviões para canibalizar suas peças porque nem a Boeing nem a Airbus enviam substituições, com o perigo que isso acarreta. Enquanto isso, a produção do novo Superjet-100 — que já sofreu vários acidentes — é inviável porque seus motores são franceses. As autoridades estão considerando reviver o Tu-214 soviético, que falhou devido à ineficiência.

“A produção não vai parar completamente. O problema é que entramos em um retrocesso, a produção não será baseada em tecnologia moderna, mas antiquada. Será um processo de desindustrialização porque por causa das sanções haverá restrições tecnológicas”, alerta Portanski, que ressalta que isso “aumentará o desemprego, enquanto a qualidade da produção será pior”. "Este será um processo contínuo, não imediato, um caminho de longo prazo", acrescenta o professor.

Três exemplos recentes. Primeiro, Taiwan, o maior exportador de microchips do mundo, acaba de proibir o envio para a Rússia daqueles que excedem 25 megahertz, para que apenas aqueles que usam aparelhos muito básicos possam ser importados. Segundo, um tribunal na cidade russa de Perm pediu permissão especial para comprar computadores Windows em vez de software russo porque seus programas não funcionam. E, finalmente, a Kamchatka Airlines parou de voar porque não pode consertar seus Cessnas, enquanto a S7 confirmou que canibalizará peças de seus aviões. Além disso, a RhZD, empresa ferroviária russa, suspendeu vários trens de alta velocidade por supostas obras logo após seu fabricante, a Siemens, anunciar que está deixando o país e cancelando sua manutenção.

O economista Portanski é cauteloso ao pedir uma previsão para este ano. “Qualquer previsão é prematura, há um fator político enorme. Se algum tipo de acordo for alcançado sobre a Ucrânia, a situação econômica pode ser normalizada. Se o conflito se aprofunda, as piores previsões podem ser cumpridas”, alerta.

Queda do PIB

As previsões de fundos e instituições cobrem quedas de 8% a 30% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, enquanto a inflação oficial ficaria em torno de 18% a 20% atual, embora possa piorar. Além disso, muitos produtos importados, como telefones, se tornarão cada vez mais difíceis de obter. Apesar do mito da aliança entre Moscou e Pequim , gigantes chineses como Xiaomi e Lenovo também suspenderam grande parte de suas exportações.

Após a introdução das primeiras sanções no final de fevereiro, a moeda russa caiu de cerca de 90 rublos por euro para mais de 160. No entanto, o mini-corralito imposto pelo banco central russo e o colapso da demanda por moedas estrangeiras de a incapacidade de importar quase nenhum produto) o fortaleceu para uma taxa de câmbio próxima de 60.

Uma loja fechada no centro de Moscou, em 30 de maio. (KIRILL KUDRYAVTSEV  - AFP)

Mas há um truque. Os dólares e euros adquiridos a partir de 9 de março só podem ser retirados em rublos da conta bancária pelo menos até setembro – e não se sabe o que acontecerá no outono. Ao fazer o teste esta semana com o Sberbank, o maior da Rússia, ofereceu euros a 90 rublos se forem comprados em dinheiro, ou a 70 se ficarem pegando poeira na conta. Ou seja, a mesma mudança que existia antes da ofensiva e sem levar em conta que ainda há parte do minicorralito a ser construído.

"Esse tipo de mudança não vai durar", acredita Portanski. Sua opinião é compartilhada por fundos de investimento russos como LockoInvest e Ingosstraj-Investments. O chefe de Macroeconomia deste último, Antón Prokudin, prevê que a desvalorização do rublo “será perceptível este ano à medida que as restrições forem levantadas, e no próximo devido à queda dos preços das matérias-primas e a plena validade das sanções. ”.

Sem um mercado livre, a taxa de câmbio é relativa. Na década de 1980, a paridade do rublo com o dólar era inferior a 100 copeques (centavos), mas os jeans eram contrabandeados. Agora, Moscou legalizou o contrabando de muitos produtos.

Sem um plano sólido

Antes da guerra, o Kremlin estabeleceu um horizonte de 2030 para que 70% de suas exportações fossem não energéticas. Agora esse objetivo parece um sonho. América do Norte, Europa e parte da Ásia pediram à OMC que exclua a Rússia da cláusula de nação mais favorecida, o que pode levar suas tarifas a 35%, nível alcançado apenas pelo regime norte-coreano de Kim Jong-un .

A delegação russa protestou vigorosamente contra essa discriminação em março e seu Ministério da Economia interrompeu uma proposta parlamentar da formação Just Russia-For Truth para deixar a organização. "A OMC é a única plataforma internacional onde a Rússia pode defender ativamente seus interesses econômicos", respondeu o governo.

Esse curso durou apenas um mês. O porta-voz da Duma, Pyotr Tolstoy, anunciou em 16 de maio que seu país deu os primeiros passos para deixar a OMC e a Organização Mundial da Saúde.

Antes de iniciar a ofensiva, o Kremlin afirmou ter alcançado 90% de seu plano de substituir as importações pela produção russa. Algumas semanas atrás, Putin reduziu a "setores críticos". Ao contrário da campanha militar, políticos e empresários começaram a criticar abertamente o que consideram "um fracasso" do plano de substituição de importações , embora o setor duro peça planos quinquenais, enquanto os empresários imploram a regulamentação do livre mercado.

“É verdade, o programa falhou totalmente. Não há nada além de tagarelice nas instituições. Nosso povo vê isso em bens de consumo e outros setores”, disse Andrei Klishas, ​​presidente do comitê da Câmara Alta para Legislação Constitucional e Construção do Estado, em maio.

Klishas citou a porta-voz do Senado, que pediu a revisão de um plano que ele considerava "muito suave". Eles se juntaram ao presidente do Comitê Anticorrupção, Kiril Kabanov, que pediu a punição dos empresários que não cumpriram os mandatos do Kremlin. "É hora de reduzir o apetite de uma série de atores que colocam seus interesses pessoais antes do Estado com projetos que são irrelevantes hoje, como carros elétricos", acrescentou Kabanov em uma ode ao isolamento.

Em contraste, o empresário Oleg Deripaska, dono da Rusal, a maior multinacional de alumínio do mundo, que a salvou das sanções, exigiu o fim do "capitalismo de estado" russo. Na sua opinião, esta crise será três vezes mais grave do que a de 1998.

Enquanto isso, as escolas russas receberam um manual para ensinar uma nova lição às crianças, de acordo com o meio RBK. O professor deve citar Putin - "A Rússia está sob pressão estrangeira sem precedentes", segundo o presidente - e depois perguntar sobre as medidas do governo contra a punição imposta por "sua operação militar especial na Ucrânia". A conclusão final é que a economia russa está preparada graças às medidas adotadas por Putin nos últimos anos.

JAVIER G. CUESTA, de Moscou para o EL PAÍS. Publicado originalmente em 05.06.22

A Rússia do futuro também se prepara no exílio

A construção de um futuro livre e democrático para aquele país exige que o Ocidente apoie os exilados russos por sua oposição ao Kremlin. Por Bonete Pilar, no EL PAÍS.

Um manifestante segura uma faixa pedindo a prisão do presidente russo Vladimir Putin, aludindo à guerra na Ucrânia, em Belgrado, em 28 de maio. (OLIVER BUNIC - AFP)

O espírito de liberdade, tolerância e prontidão para a sociedade civil na Rússia do futuro estão vivos e bem no exílio - apesar das dificuldades - mais de três meses depois que este país invadiu a Ucrânia. A vitalidade e o poder de coesão desse espírito no contexto da guerra foi testemunhado em Segóvia por um seminário que decorreu de 23 a 27 de maio por iniciativa dos fundadores da Escola de Educação Cívica de Moscovo (EECM), entidade criada em dezembro de 1992 com o apoio do Conselho da Europa, que foi declarado “agente estrangeiro” na Rússia em 2014.

A Fundação Valsaín e o Instituto de Transições Económicas de Estocolmo foram os organizadores deste seminário que visa promover os valores da EECM em torno do projeto global Sapere aude ("ousar saber"), lema usado por Immanuel Kant, que agora é aplica-se a um cenário transfronteiriço turbulento.

Na Rússia, o EECM deixou definitivamente de existir como pessoa jurídica em 2021, quando um tribunal de Moscou classificou a Associação de Escolas de Estudos Políticos como uma "organização indesejável" , que até hoje reúne cerca de vinte instituições de educação cívica em vários países do mundo. Conselho da Europa. Precisamente, o modelo de referência para todas essas escolas foi a extinta EECM, por cujos seminários passaram milhares de intelectuais e políticos de diferentes níveis e territórios da administração russa e também do exterior.

Após a invasão da Ucrânia, as relações entre o Conselho da Europa e a Rússia se romperam, mas do exílio os fundadores da EECM, a especialista em teoria da arte Elena Nemiróvskaya e o filósofo Yuri Senokósov, continuam promovendo encontros e construindo pontes com quem — “do outro lado” – sofrem perseguição e tirania.

Em Segóvia, cerca de cinquenta pessoas se encontraram (principalmente russos, mas também bielorrussos, ucranianos, georgianos e outros estados pós-soviéticos). Por trás do lema "Paz, Liberdade e Responsabilidade" e após os debates sobre questões históricas ou filosóficas, as novas e duras realidades impostas pela guerra e a precariedade dos cidadãos russos que chegam à União Europeia, fugindo da perseguição em seu país para suas idéias ou atividades cívicas.

Ao contrário dos refugiados ucranianos, aos quais os países da UE aplicam a diretiva europeia de proteção temporária desde março passado, os russos forçados ao exílio estão hoje em muitos casos condenados à ilegalidade e à marginalização no Ocidente. Jornalistas, cientistas políticos, ativistas da oposição, intelectuais e professores críticos sobrevivem em diferentes estados da UE com vistos de turista de três meses ou com fórmulas de residência inseguras, a menos que gozem da proteção de alguma entidade ocidental que se responsabilize por eles ou lhes forneça um emprego, como é o caso de vários meios de comunicação de língua russa que se instalaram nos países bálticos após serem expulsos da Federação Russa.

A gama de exilados russos é ampla. Há sortudos, acolhidos com entusiasmo em instituições científicas ou educacionais ou com empregos na sua especialidade; há os que têm soluções temporárias como as bolsas de estudo e há também os condenados a mudar de profissão, acolhidos pela hospitalidade dos amigos ou abandonados por todos. Por sua vez, os países anfitriões se comportam de várias maneiras com os exilados russos. Os Estados Bálticos, talvez por estarem na OTAN, parecem mais flexíveis e mais dispostos a acolher russos e bielorrussos marcados pela oposição a Vladimir Putin ou ao ditador Aleksandr Lukashenko. Fora da Aliança, outros Estados tentam não irritar o Kremlin e relutam em abrir suas portas a pessoas que se distinguem por sua atitude crítica.

Uma característica generalizada nos países de destino da Europa é o transbordamento de serviços burocráticos para processar o status de quem chega. No seminário, que foi realizado de acordo com as regras de confidencialidade da Chatham House, verificou-se que, dado o perigo da presença de agentes do Kremlin entre os migrantes, é necessário encontrar mecanismos seletivos adaptados à realidade atual para acolher aqueles fugindo da Rússia. Contactados online, vários cidadãos russos residentes na Ucrânia contaram a sua experiência pessoal, que os coloca do lado de Kiev. Para eles, na União Europeia, as mesmas regras se aplicam aos refugiados ucranianos.

As previsões de especialistas sobre a eficácia das sanções ou a duração da guerra foram diversas. No primeiro caso, eles variaram de uma transformação da Rússia ao estilo do Irã ou um retorno à URSS e, no segundo, de seis meses a um longo período de atrito. Entre os participantes houve consenso sobre a necessidade de acabar com a guerra e preparar hoje para viabilizar uma Rússia livre e democrática no futuro, embora esse futuro pareça muito distante e pouco desejado pela maioria da população local.

"A construção de uma Rússia democrática precisará de cidadãos educados em valores democráticos", disse Álvaro Gil-Robles, presidente de Valsaín e ex-comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa (1999-2006). “O potencial democrático existente na Rússia foi promovido pela Escola de Educação Cívica de Moscou. O Conselho da Europa tem o dever moral de não abandonar esses lutadores pela liberdade e respeito pelos direitos humanos”, disse Gil-Robles em Segóvia.

Outros temas abordados no seminário foram a trajetória de Putin —de um oportunismo inicial a um senso de missão destrutivo— e as lições das guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2003), o medo da fadiga no Ocidente devido à duração do a guerra na Ucrânia e a necessidade de ajudar os defensores dos direitos humanos e os ucranianos deportados para regiões remotas da Rússia. Constatou-se também que nas reações à invasão russa o emocional ainda predomina sobre o racional.

No inevitável tempo de espera, a EECM pode cumprir a importante missão de unir, apoiar e ser uma plataforma de discussão aberta, mas não filiada a nenhuma das forças políticas no exílio que se opõem ao regime de Vladimir Putin. Hoje, 30 anos após sua fundação, a EECM recupera o papel de refúgio familiar e emerge como uma calorosa extensão da cozinha moscovita na qual Nemiróvskaya e Senokósov receberam amigos e incentivaram discussões de alto nível intelectual até serem forçados ao exílio quando a repressão desencadeada pelo atual regime sufocou a liberdade de expressão na Rússia.

Coincidindo com o seminário de Segóvia, em Moscovo foi submetida à Duma do Estado (Câmara Baixa do Parlamento russo) uma emenda ao Código Penal que inclui punições para os cidadãos russos que colaborarem no estrangeiro com organizações declaradas "indesejáveis" pelo Kremlin.

Bonete Pilar, a autora deste artigo, é jornalista e analista. Durante 34 anos foi correspondente do EL PAÍS na URSS, na Rússia e no espaço pós-soviético. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 03.06.22

Promotores europeus unem forças para levar justiça à Ucrânia

 De Kiev a Haia, passando por jurisdições nacionais: cooperação jurídica entre diferentes tribunais visa colocar líderes russos no banco dos réus por crimes de guerra e outras agressões cometidas na Ucrânia.

A procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova (terceira a partir da esquerda), saúda  cooperação internacional em HaiaA procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova (terceira a partir da esquerda), saúda  cooperação internacional em Haia

Mais de 100 dias de conflito. Mais de 15 mil supostos crimes de guerra, com centenas de outros possivelmente sendo cometidos todos os dias. E para Iryna Venediktova, "todos sabem quem é o responsável por essa guerra, por essas mortes, por tudo que está acontecendo na Ucrânia".

"Foi o presidente da Federação Russa e seu gabinete quem de fato começou essa guerra, para matar civis, estuprar civis, torturar civis", disse a primeira mulher a ocupar o cargo de procuradora-geral da Ucrânia, em entrevista à DW.

Dia após dia, Venediktova acumula mais recursos para levar à Justiça esses oficiais que ela acusa, em nome de toda a humanidade, segundo ela própria diz.

"É o principal objetivo de todo o mundo civilizado, de todas as pessoas que falam sobre Estado de direito, sobre justiça, sobre direito internacional, que as pessoas responsáveis pela morte de outras pessoas, pelo crime de agressão, por invadir um país vizinho e tomar a terra e matar seu povo, sejam punidas de verdade", afirmou a procuradora-geral.

Esse é também o objetivo de uma nova Equipe de Investigação Conjunta (JIT, na sigla em inglês), sediada em Haia, na Holanda, com a coordenação e o financiamento da Eurojust, agência de cooperação judiciária da União Europeia (UE), bem como a participação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e um número crescente de governos individuais, que planejam perseguir casos sob o princípio legal conhecido como "jurisdição universal".

O presidente da Eurojust, Ladislav Hamran, afirmou que essa se tornará a maior operação desse tipo já criada. "Nunca na história dos conflitos armados a comunidade jurídica respondeu com tanta determinação", disse ele a repórteres nesta semana.

Cooperação jurídica internacional

O procurador-chefe do TPI, Karim Khan, afirmou que o esforço conjunto pode se tornar um modelo para outras investigações internacionais.

"Acho que é isso que é necessário para crimes da magnitude que vemos com frequência no TPI. Precisamos construir parcerias", disse Khan a repórteres. "Não há dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não significa competição. Colaboração não significa disputar a independência. Temos que dar as mãos pelo interesse comum da humanidade, como autoridades da corte."

Uma das formas significativas de a Equipe de Investigação Conjunta tentar agilizar e auxiliar os processos judiciais é por meio da centralização do armazenamento de provas na Eurojust, sejam provas colhidas por especialistas na Ucrânia ou em qualquer outra jurisdição.

A Eurojust fornecerá assistência tecnológica à equipe para a recolha de dados sobre crimes de guerra, bem como oferecerá intérpretes e tradutores para os grupos de investigação.

"Vamos garantir que tudo o que for coletado no âmbito dessa Equipe de Investigação Conjunta seja realmente compartilhável com todas as partes envolvidas", disse Hamran, da Eurojust, acrescentando que isso ocorrerá rapidamente e sem a necessidade de solicitações formais e demoradas.

Agir contra a agressão

Mas mesmo com uma cooperação aprimorada, os casos envolvendo crimes de guerra, como os de homicídio ou especialmente de genocídio, geralmente levam anos para serem julgados devido ao ônus da prova extremamente alto.

A advogada de direitos humanos Lotte Leicht sugere haver um caminho mais rápido para a justiça: apostar no crime de "agressão", que processa aqueles que estão no poder por tomarem a decisão de atacar, em vez de aqueles que cumpriram a ordem.

"[Agressão] não é um crime em que você precisa provar que crimes de guerra estão realmente sendo cometidos", explica Leicht. "O próprio fato de você ter lançado a guerra ilegalmente contra outro país já é suficiente. É um crime muito mais fácil de provar e é muito mais direto em termos de quem é o responsável, porque foi anunciado publicamente na televisão [pelo presidente russo, Vladimir Putin]. Não é segredo quem carimbou [a decisão], não é segredo quem são os principais generais que agora a executam."

Segundo a advogada, "cada bomba, cada bombardeio, cada tanque russo" na Ucrânia se qualifica como crime de agressão.

A Ucrânia também poderia julgar esses casos, afirma Leicht, mas a lei proíbe abrir processos contra autoridades atualmente no cargo. Isso significa que outro tribunal internacional deve ser criado para lidar com esses casos, semelhante aos Tribunais de Nurembergue após a Segunda Guerra Mundial, que julgaram os líderes nazistas.

Leicht diz acreditar que isso provavelmente acontecerá sob os auspícios do principal órgão de direitos humanos da Europa, o Conselho da Europa. A Irlanda, atual presidente do conselho, expressou a intenção de criar tal tribunal antes de seu mandato terminar em novembro.

"Queremos responsabilização"

Toda essa cooperação deve fazer com que os membros do Kremlin comecem a ficar um pouco preocupados, afirma a advogada de direitos humanos.

"Quem sempre contou com a impunidade, por crimes muito graves, incluindo o crime de agressão, deveria olhar para a história", diz. "Aqueles que fizeram exatamente os mesmos cálculos na Europa – Milosevic, Karadzic, Mladic – estavam errados. Eles acabaram no tribunal." Leicht se referia a Slobodan Milosevic, Radovan Karadzic e Ratko Mladic, que enfrentaram acusações relativas a crimes perpetrados pelas forças sérvias durante a guerra na Bósnia.

Na última terça-feira em Haia, ao lado dos principais promotores da Lituânia e do TPI, Iryna Venediktova expressou esperança de que também assim terminarão suas batalhas legais.

"Sinto, confio e espero que, com meus colegas internacionais, com a comunidade internacional de advogados, nós possamos falar sobre justiça", disse a procuradora-geral ucraniana. "Precisamos de justiça. Queremos responsabilização."

 Teri Schultz para Deutsche Welle Brasil, em 05.06.22. 

sábado, 4 de junho de 2022

Crueldade

Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos do governo Bolsonaro. Artigo de Miguel Reale Júnior.

Especialmente em tempos cinzentos, é preciso “ter medo do guarda da esquina, mais do que do general”, como alertou Pedro Aleixo quando da instauração do AI-5. Os subordinados adotam com facilidade o abuso do poder se os desmandos não são reprimidos, mas dados como positivos pelos superiores.

Segundo a teoria da aprendizagem formulada por Gabriel Tarde e, depois, estudada por Sutherland, a conduta delitiva se aprende em associação com as pessoas que a consideram positiva, gerando o convencimento de estar a agir de maneira certa. Mesmo em face de condutas cruéis, os freios inibitórios são anulados em decorrência do aplauso ao comportamento malvado vindo de autoridades.

Seria a crueldade inerente à pessoa humana, cujo primitivismo deve ser burilado pelos limites impostos pelo processo educacional? Ou a malvadeza é aprendida nas relações sociais, de acordo com o meio social no qual se está inserido?

Indo mais a fundo: o mal é inerente ao exercício do poder? Será um ingrediente ou um meio pelo qual obrigatoriamente o titular do poder se manifesta para mantê-lo ou para afirmá-lo? Haveria até mesmo com gosto pelo mal?

Essas perguntas tocam no fulcro da questão da violência policial.

As perspectivas – a individual, congênita, e a social – combinam-se, mas sem dúvida têm grande peso o incentivo e o elogio a valores negativos vindos dos superiores. A probabilidade de punição (ou, ao menos, a certeza da reprovação moral da conduta nociva) é essencial para o exercício do poder se dar no limite do respeito aos demais.

Por isso a relação do governante com as polícias que atuam com a força na rua é fator relevante, pois a forma de agir do policial decorrerá do quadro de valores transmitido pela autoridade estatal.

Foi marcante o privilégio com que Jair Bolsonaro tratou a Polícia Rodoviária Federal. Aumentou seu efetivo, garantiu proventos na aposentadoria iguais ao do último salário, compareceu a inaugurações de sedes e visitou postos policiais. Neste ano, repetidamente, mencionou que o aumento salarial da Polícia Rodoviária Federal teria tratamento especial, inclusive equiparando a remuneração de seus quadros superiores à dada à Polícia Federal. A proximidade entre o presidente e a Polícia Rodoviária Federal é manifesta.

A tornar mais significativa essa ligação, Sergio Moro, no Ministério da Justiça, estendeu, inconstitucionalmente, a atribuição da Polícia Rodoviária Federal para além das rodovias, quando é claro o § 2.º, artigo 144 da Constituição, que edita: “§ 2.º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Assim, por portaria ministerial, reiterada em grande parte por André Mendonça como ministro da Justiça, deu-se atribuição para a Polícia Rodoviária Federal atuar em ação conjunta com as polícias militares na área urbana. Ao mesmo tempo, eliminaram-se as aulas de Direitos Humanos previstas no currículo de formação do concursado.

Em consequência, a Polícia Rodoviária Federal, sem expertise para agir em operação policial nas favelas, passou a ser chamada a participar de ações de repressão com o Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro. Veio, destarte, a integrar as forças policiais em duas chacinas na mesma Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em 11 de fevereiro deste ano, com 8 mortos; e recentemente, em 24 de maio, com o saldo aterrorizador de 23 mortos, sendo metade dos assassinados sem antecedentes criminais.

O presidente da República festejou a ação militar, cumprimentando os policiais pelo morticínio, que “neutralizou vinte”. Negou-se a recriminar, contudo, a crueldade praticada por três policiais rodoviários em Sergipe, que malvadamente lançaram gás lacrimogêneo e de pimenta no porta-malas onde aprisionaram Genivaldo de Jesus Santos, que morreu por asfixia, após ter sido seviciado e empurrado com brutalidade para dentro da viatura.

Esses maus policiais, aos gritos e palavrões, agiram com obsessão para afirmar sua superioridade diante de um pobre cidadão, negro, tido por desprezível: uma pessoa “a ser neutralizada”, como disse o presidente em face dos mortos da Vila Cruzeiro.

Assim, Genivaldo de Jesus Santos, parado pelos policiais por trafegar na moto sem capacete, foi cruelmente morto pela soberba do poder sem controle, em boa parte fruto do aplauso às violências anteriores da corporação.

O poder pessoal do “guarda da esquina” deve estar sob monitoramento, contido por lição de respeito ao direito dos cidadãos, pois, do contrário, abre-se a possibilidade de vir a ser cruel ao ter o mal como meio de afirmação de “autoridade”.

Assim, o exercício do poder, sem o bom exemplo e a fiscalização vindos de cima, viabiliza a instauração do instinto de desumanidade, tendo por consequência a crueldade, que, ensina Montaigne, é o extremo de todos os vícios, a nefasta ausência total de piedade.

Não será fácil desaprender o mal que se espalhou no espírito de parcela dos brasileiros nos anos Bolsonaro.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente na edição de 04.06.22

Da ficção à realidade: Israel constrói arma a laser capaz de destruir foguetes e drones

 Arma está em desenvolvimento há anos, mas somente agora apresentou resultados satisfatórios para Israel

O premiê de Israel, Naftali Bennet, fala em proteger o país com uma parede de laser Foto: Gil Cohen-Magen/Pool via REUTERS

Após duas décadas de pesquisa e experimentação, as autoridades de defesa de Israel agora afirmam que desenvolveram um protótipo de arma a laser capaz de atingir foguetes, morteiros, drones e mísseis que estiverem em voo. Segundo as autoridades, o sistema foi bem-sucedido em uma série de testes recentes de tiro ao alvo.

Durante os testes, feitos no sul de Israel, o armamento se provou capaz de destruir um foguete, um morteiro e um drone, provocando uma ovação de pé das autoridades que assistiam à realização. O primeiro-ministro israelense Naftali Bennett descreveu a arma como uma “virada estratégica” e prometeu “cercar Israel com uma parede de laser”. Centenas de milhões de dólares foram gastos no seu desenvolvimento.

Profissionais envolvidos na construção da arma afirmam que deve demorar anos até que ela esteja pronta para operar em conflitos armados. E, segundo especialistas, o uso da arma, quando estiver pronta, pode se limitar inicialmente a proteger Israel de foguetes. Autoridades israelenses não informaram se ela seria eficaz contra os mísseis guiados de precisão que Israel acusa o Hezbollah de desenvolver no Líbano.

Kibutz israelense é alvo de foguete disparado pelo Hezbollah  Foto: Laetitia Vancon/The New York Times

Da ficção à realidade

Ainda assim, as armas a laser passaram dos filmes de ficção científica e da fantasia dos jogos para a realidade. Pelo menos uma arma desse tipo, a Helios, da empresa Lockheed Martin, já começou a ser implantada em navios da Marinha dos Estados Unidos.

“Há muito trabalho promissor com laser em andamento”, disse Thomas Karako, membro sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington. “Isso não é mais ficção científica de ‘Star Wars’.”

De acordo com Karako, o Exército dos EUA também trabalha no desenvolvimento de armas a laser, incluindo armas mais poderosas, capazes de derrubar mísseis de cruzeiro, e se prepara para começar a implantá-las.

No entanto, os feixes de laser conhecidos ainda possuem sérias limitações, como não poder atravessar nuvens. Nenhum desses equipamentos foi testado em batalha até o momento.

Um salto tecnológico

No caso do sistema de defesa aérea a laser de Israel, chamado Iron Beam, as autoridades pretendem utilizá-lo como complemento, e não substituto, de outros equipamentos do arsenal militar do país - incluindo o Iron Dome, conhecido sistema de interceptação de mísseis de curto alcance, e os sistemas de interceptação de mísseis de médio e longo alcance.

O funcionamento dos sistemas existentes é diferente das armas a laser. Enquanto os antigos funcionam disparando pequenos mísseis em direção aos projéteis inimigos, o novo concentra feixes de laser em um ponto específico do projétil - um míssil, por exemplo - para aquecê-lo a ponto dele explodir no ar. O ministro da Defesa de Israel, Benny Gantz, disse que Israel foi “um dos primeiros países do mundo” a desenvolver tal arma.

O general de brigada Yaniv Rotem, chefe da equipe de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Defesa, disse que durante os testes de março a nova arma foi capaz de interceptar as ameaças em segundos após a detecção e a uma distância de até 10 quilômetros. Nos testes anteriores, o tempo de resposta era de minutos.

Busca por armas a laser coleciona fracassos

Em 1983, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, criou a Iniciativa de Defesa Estratégica, amplamente ridicularizada como “Guerra nas Estrelas”, para encontrar uma forma de derrubar mísseis balísticos nucleares. Os militares buscaram o uso da tecnologia a laser, mas abandonaram os esforços em 1993 depois de gastar mais de US$ 200 bilhões em dez anos.

A pesquisa em torno da tecnologia continuou em outros programas. No final da década de 1990, Israel e os EUA tentaram produzir um sistema experimental de laser de alta energia com alcance menos ambicioso, com o objetivo de destruir foguetes em voo. O programa ficou conhecido como Nautilus e foi abandonado em 2005, em parte devido às dificuldades de transportar o sistema e ao baixo desempenho apresentado.

A tecnologia usada antes era do laser químico, que exige produtos químicos corrosivos e tóxicos para induzir um feixe e um maquinário quase do tamanho de um laboratório local. Agora, os sistemas utilizam o laser de estado sólido, que precisa apenas de grandes quantidades de eletricidade para funcionar.

Jovem israelense passa por destroços de foguete lançado de Gaza contra Israel Foto: Dan Balilty/The New York Times

Em um avanço tecnológico recente, os desenvolvedores israelenses dizem que foram capazes de combinar e concentrar muitos feixes de laser, em uma intensidade muito alta, em um único ponto específico de um alvo aéreo.

O Ministério da Defesa de Israel recentemente concedeu um contrato no valor de mais de US$ 100 milhões à estatal Rafael Advanced Defense Systems Ltd., a principal fabricante do sistema a laser. A estatal trabalha com a tecnologia há cerca de 20 anos. Somente nos últimos dois anos, entretanto, conseguiram resolver algumas complicações - como o tamanho e a baixa eficácia.

“Tivemos problema com energia, rastreamento e capacidade de furar a atmosfera”, declarou Michael Lurie, vice-presidente e chefe da Diretoria de Sistemas de Manobra Terrestre da Rafael. “Neste momento, o que enfrentamos são desafios de engenharia. Mas sabemos que o sistema funciona”.

Nova tecnologia tem baixo custo, diz Israel

Autoridades israelenses dizem que a principal vantagem do Iron Beam será o custo. Segundo Bennett, a cada interceptação do Iron Beam serão gastados cerca de US$ 3,50 por tiro. Em comparação, os sistemas atuais de defesa custam dezenas de milhares de dólares para cada míssil disparado.

Além disso, o Iron Dome é fortemente subsidiado pelos Estados Unidos, que alocaram um bilhão de dólares adicionais para a arma no orçamento de 2022, no momento em que a ajuda militar dos EUA a Israel se torna cada vez mais controversa. Israel também compartilha o conhecimento do sistema a laser com os americanos, disseram autoridades israelenses.

Segundo general Yaniv Rotem, o preço gasto com o Iron Beam é equivalente à quantia gasta por inimigos - com munições, artilharias e outros armamentos - ao longo de duas semanas de conflito. A tecnologia seria primeiro alocada ao redor da Faixa de Gaza, afirmou o general, e depois ao longo de todas as fronteiras hostis de Israel.

O professor Gabi Siboni, especialista em estratégia militar do Instituto de Estratégia e Segurança de Jerusalém, um centro de pesquisa israelense, avaliou que Israel nunca abandonou a ideia da tecnologia a laser. “Será mais barato, mais seguro e dependente menor do rearmamento”, declarou.

Aumento de confrontos em Jerusalém pressiona governo de coalizão de Israel

Primeiro-ministro tenta manter unidade da coalizão enquanto partido árabe-israelense suspende participação na aliança

Para o futuro, Israel trabalha em uma nova tecnologia capaz de interceptar ameaças acima das nuvens. O sistema atual, por enquanto, é ineficaz em condições nebulosas e nubladas - e por isso vai servir como um complemento aos outros sistemas de defesa.

Entretanto, o custo real para implantar e operar o Iron Beam ainda é uma dúvida para os especialistas. Ao contrário de um lançador tradicional, que pode enviar vários mísseis contra diversos alvos simultaneamente, as armas a laser precisam se concentrar em um alvo antes de passar para outro, de acordo com a avaliação de Tal Inbar, especialista independente em espaço e mísseis e pesquisador sênior na Missile Defense Advocacy Alliance, uma organização americana.

Isso leva a uma necessidade de vários equipamentos a laser - o que eleva o custo. “Mesmo que sejam descritos como muito baratos porque precisam apenas de eletricidade”, disse Inbar.

Entretanto, o barato é relativo. No ano passado, por exemplo, Israel utilizou caças F-35, os aviões de guerra mais sofisticados do país. para interceptar dois drones do Irã no espaço aéreo de um país vizinho, disse um alto oficial militar sob anonimato. Ele destacou que os custos dos israelenses em casos como esses, em que os alvos são foguetes e drones relativamente baratos, são discrepantes com os gastos inimigos. Com o Iron Beam, as autoridades israelenses esperam corrigir esse desequilíbri

Isabel Kershner, de Jerusalém para o New York Times. Texto traduzido e reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, e, 04.06.22

3 fatores que explicam por que mulheres serão decisivas na eleição de 2022

As mulheres são maioria entre eleitores de todas as faixas etárias, têm preferências eleitorais marcadamente diferentes das dos homens na disputa para presidente e compõem a maior proporção dos eleitores ainda indecisos. Esses três fatores fazem com que elas sejam encaradas como grupo decisivo na disputa de 2022.

Mulheres são, pela primeira vez, maioria entre eleitores de todas as faixas-etárias (Rovena Rosa / Ag. Brasil)

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, conforme a vantagem entre os dois principais candidatos à Presidência, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, se reduz nas pesquisas de intenção de voto, as eleitoras que ainda não definiram o voto se tornarão o principal alvo das campanhas.

"Esses três elementos — as mulheres serem maioria no eleitorado, terem intenção de voto diferente dos homens e serem maioria entre os indecisos — torna o eleitorado feminino muito importante nessas eleições", disse à BBC News Brasil a cientista política Malu Gatto, professora da University College London, no Reino Unido, e especialista em participação feminina na política.

Entenda como cada um desses três fatores pode influenciar o resultado da eleição para presidente da República.

Diferença numérica entre eleitores homens e mulheres

Já faz um tempo que há mais eleitores mulheres que homens. Mas, neste ano, elas são, pela primeira vez, maioria em todos os grupos etários, inclusive entre quem tem 16 anos. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, mulheres são 56% dos eleitores de 16 anos e homens são 42%, o que pode revelar um engajamento maior das jovens em voluntariamente participar dessas eleições, já que o voto só é obrigatório para maiores de 18 anos.

Há 20 anos, a população total de eleitoras era 2 pontos percentuais maior que a de eleitores homens. Agora, essa diferença é de 6 pontos percentuais — elas são 53% dos eleitores e eles, 47%.

Mulheres também são a grande maioria num segmento considerado chave nas eleições de 2022: o de eleitores evangélicos. Elas são quase 60% dos evangélicos no Brasil.

Como pensam evangélicas, que podem definir eleição para presidente

Em 2018, esse segmento votou em peso em Jair Bolsonaro — quase 70% dos evangélicos apoiaram o atual presidente no segundo turno contra o candidato do PT, Fernando Haddad. Neste ano, pesquisas de intenção de voto mostram que homens dessa religião continuam com Bolsonaro, enquanto mulheres estão praticamente divididas entre ele e Lula.

Pesquisa Genial/Quaest de maio aponta que 33% das evangélicas atualmente votam em Bolsonaro, enquanto 31% preferem Lula. De olho nesses votos, os dois candidatos têm tentado firmar alianças com pastores e dialogar com fiéis.

"O primeiro fator que faz com que as mulheres sejam relevantes nessa eleição é o númerico. A tendência que a gente está vendo nos dados é de uma diminuição da diferença, em pontos percentuais, na vantagem entre Lula e Bolsonaro ao longo da campanha. Quanto mais essa vantagem diminuir, mais essa diferença numérica fará diferença, assim como o fato de as mulheres serem maioria entre os eleitores indecisos, que podem fazer a diferença ao se incorporarem a um ou outro candidato", destaca Gatto.

"Então, as mulheres podem, sim, decidir essas eleições."

Divisão de preferência por gênero começou em 2018

Durante mais de 20 anos, não havia grande diferença no voto para presidente quando se fazia um recorte por gênero. Mas a candidatura de Bolsonaro em 2018 e agora em 2022 provocou um racha na preferência masculina e feminina (Reuters / Amanda Perobelli)

O segundo fator relevante quando se fala no papel das mulheres na eleição de 2022 é o fato de elas apresentarem preferência muito diferente da dos homens na escolha do candidato à Presidência.

De acordo com a cientista política Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco, de 1989 a 2014, não havia uma diferença acentuada na preferência eleitoral de homens e mulheres nas eleições para presidente. Os principais candidatos neste período receberam proporções semelhantes de votos de homens e mulheres.

Mas a partir de 2018, quando Jair Bolsonaro se candidatou à Presidência pela primeira vez, começou a haver uma divisão clara entre intenções de voto de mulheres e homens.

Em relação à disputa presidencial de 2022, as pesquisas têm indicado uma diferença de 11 a 18 pontos percentuais entre homens e mulheres. Por exemplo, pesquisa Genial/Qaest divulgada em maio mostra que 24% das eleitoras pretendem votar no atual presidente, contra 39% dos homens. Já o percentual das mulheres que pretendem votar em Lula é de 50%, enquanto o percentual de apoio entre homens é de 42%.

Além disso, entre as mulheres, 50% têm avaliação negativa do governo Bolsonaro, enquanto essa percepção é compartilhada por 41% dos homens.

"Pela primeira vez, a questão do gênero se destaca na preferência por candidato. Isso surge com a candidatura de Jair Bolsonaro. E, entre mulheres, a rejeição a ele é muito maior que entre homens", destaca Nara Pavão.

Mas por que a gestão de Bolsonaro incomoda um percentual maior de mulheres que de homens?

Para a professora de ciência política Malu Gatto, da University College London, há três explicações para isso: o modelo de masculinidade que Bolsonaro representa e que inclui posições criticadas como machistas; a gestão da pandemia; e o estado atual da economia.

"Essa questão da masculinidade pode estar em indo em ambas as direções, ou seja, diminuindo o apoio das mulheres, mas também aumentando o apoio dos homens. Ele tem uma postura que enfatiza soluções tradicionalmente associadas ao masculino, como uma forma de governar mais agressiva, que inclui o culto à violência e às armas", diz.

"Isso gera identificação com parcela dos homens, mas rejeição entre mulheres. Além disso, muitas vezes o presidente classifica mulheres a partir de critérios estéticos, o que novamente o aproxima de um público masculino, mas pode afastar parte das mulheres."

Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco, também destaca que algumas posições do governo Bolsonaro que geram identificação entre homens, como a política armamentista, incomodam parcela importante das mulheres.

"As mulheres se preocupam muito com o combate à criminalidade, mas não a qualquer custo. Muitas são mães solo e têm filhos que estão na criminalidade ou filhos que podem ser alvo da violência policial nas favelas."

Preocupação com a saúde

Outro tema central para as eleitoras é a saúde e esse pode ser, segundo as especialistas, um dos fatores que acentuam a diferença de gênero na preferência eleitoral.

"Saúde é um tema caro às mulheres, porque boa parte das tarefas de cuidado — e isso está associado a estereótipos de gênero e à forma como somos socializadas — recai sobre elas. E a pauta da saúde não teve centralidade no governo Bolsonaro", diz Nara Pavão.

Gatto também destaca que a gestão do presidente na pandemia pode ter acentuado esse "gap" (distância) na preferência eleitoral de homens e mulheres.

"Dados de opinião pública coletados durante esse período da pandemia mostravam como as mulheres estavam mais preocupadas e mais dispostas a aceitar políticas públicas mais restritivas. Ou seja, as mulheres estão mais propensas a apoiar o uso de máscara, apoiar medidas de distanciamento social do que os homens e, na média, estavam mais preocupadas com a pandemia", diz.

"Então, pode ser que um outro fator impactando a maior rejeição das mulheres a Bolsonaro e sua menor propensão a apoiar Bolsonaro nesse cenário de 2022 seja justamente a maneira como ele atuou durante a pandemia."

O terceiro fator citado como capaz de influenciar a preferência eleitoral das mulheres é a forma como o tema da economia é abordado pelos candidatos a presidente.

Nara Pavão argumenta que, para parcela importante das mulheres, não agrada a defesa de pouca interferência do Estado na economia, corte de gastos públicos, e promessas sobre privatização — discursos muito utilizados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e Bolsonaro em si.

Pavão destaca que as mulheres são, em muitos casos, as provedoras de suas famílias e principal referência de cuidado para filhos e outros parentes. Portanto, adotam uma postura pragmática em relação a propostas sobre economia e se engajam com políticas que representem mudanças diretas no seu dia-a-dia.

"Não é que as mulheres não se preocupem com a economia. Elas se preocupam. Mas elas pensam a economia não em termos de desenvolvimento econômico. Elas pensam em termos de políticas sociais", diz a professora da Universidade Federal de Pernambuco.

"O tema da economia não foi debatido pelo governo Bolsonaro em termos que se conectam com as mulheres. Grande parte delas gosta de gasto social. Ela quer educação, quer saúde, porque precisa desse amparo para dar conta de todo o cuidado que recai sobre si."

Mulheres são mais adeptas à democracia

Mulheres tendem a cumprir mais as regras e normas, e têm maior apreço pela democracia, diz professora da Universidade Federal de Pernambuco (Thomaz Silva / Ag. Brasil)

Nara Pavão acrescenta um quarto elemento possível para a diferença acentuada na opinião de homens e mulheres sobre a eleição presidencial: o fato de as mulheres terem mais apreço pela democracia, segundo pesquisas de opinião.

"As mulheres são muito mais democráticas do que os homens e estão menos dispostas a abrir mão da democracia. Isso se dá porque mulheres, em geral, respeitam mais regras e normas, até porque elas são punidas socialmente num grau muito maior que os homens se desviam das regras", diz a professora.

Para Pavão, o comportamento de Bolsonaro de criticar instituições, questionar o sistema eleitoral e comprar briga com Judiciário e Legislativo é mais mal visto por mulheres que por homens.

"Pensando que o governo Bolsonaro tem flertado com atitudes antidemocráticas, isso pode, sim, ser um ponto de alienação das mulheres", diz.

Mas Malu Gatto destaca que o presidente tem tempo para tentar reverter a rejeição entre mulheres e lembra que a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, já está participando de eventos com eleitoras para tentar conquistar esse público.

"Em 2018, essa diferença por gênero era uma novidade. Agora, Bolsonaro e a campanha dele já têm essa informação e podem trabalhar para minimizar esse impacto até a eleição de outubro", diz.

As mulheres indecisas poderão definir resultado

Por enquanto, pesquisas eleitorais mostram Lula com 44% a 46% das intenções de voto no primeiro turno, e Bolsonaro, com 29% a 32%. Por enquanto, grande parte da movimentação nas pesquisas tem vindo da transferência de votos de candidatos da chamada terceira via que desistiram de disputar, como o ex-juiz Sérgio Moro.

Nesta segunda (23), foi a vez de o ex-governador de São Paulo, João Doria, anunciar que não vai concorrer. Mas, conforme a campanha avança e as candidaturas se consolidam ou deixam de existir, a principal disputa por votos vai se dar no âmbito dos indecisos.

E aí, novamente as mulheres têm papel fundamental. Segundo pesquisa Genial/Quaest de maio, 12% das mulheres ainda não escolheram um candidato. Entre os homens, esse percentual é de 7%.

"A psicologia comportamental fala sobre como mulheres tendem a ser mais avessas a risco do que homens. E isso tem a ver com informação. A gente ainda está em maio e as eleições são em outubro. Então, eu acho que as mulheres estão tentando entender um pouco mais o cenário político e acumular informações para não tomar uma decisão precipitada", avalia Gatto.

"Essa diferença em pontos percentuais entre os indecisos homens e mulheres é importante. Uma das coisas que vários analistas políticos estão falando é que essa eleição vai ser decidida pelas pessoas que ainda não declararam voto e que ainda não têm certeza sobre os seus votos. E, no caso da eleição para presidente, esse público é composto majoritariamente por mulheres."

Nathalia Passarinho, de Londres (UK) para a a BBC News Brasil, em  30 maio 2022

Amazônia gera 26% da energia elétrica do país, mas tem 1 milhão de pessoas no escuro

A Amazônia é o centro das atenções quando o Brasil é assunto no mundo, mas ainda se vê em uma situação de distorções e desequilíbrios em relação ao resto do país.

Comunidade em Cachoeira do Piriá, no Pará, que vivia sem energia elétrica em janeiro de 2021 (Getty Images)

Por que a conta de luz é tão cara no Brasil

Por meio de suas usinas hidrelétricas, a região gera a importante fatia de 26% da energia elétrica consumida em todo o território nacional.

Mas municípios da Amazônia Legal têm 1 milhão de pessoas que não podem contar com luz — recebem fornecimento em apenas algumas horas do dia, através de geradores.

Outros 3 milhões de habitantes da região estão fora do Sistema Interligado Nacional (SIN), que coordena e controla a produção e transmissão de energia elétrica e conecta usinas e consumidores.

Essa população na Amazônia Legal precisa ser abastecida por usinas termelétricas a óleo diesel.

A Amazônia Legal, de acordo com o IBGE, engloba 772 cidades em nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A área da Amazônia legal (5.015.068,18 km²) corresponde a cerca de 58,9% do território brasileiro, segundo o IBGE.

A população da Amazônia Legal aumentou de 8,2 milhões em 1972 para 28,1 milhões de habitantes em 2020, o que representa 13% da população brasileira, segundo o Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de diversas entidades, incluindo o Climate Policy Initiative.

Em 2019, segundo o IBGE, 99,8% da população brasileira tinha acesso à energia elétrica:

Centro-Oeste, Sudeste e Sul possuíam 99,9% de cobertura

esse índice, no entanto, ficava em 99,6% no Nordeste

e, no Norte, recuava ainda mais: 98,8%

"Existe um contraste entre o Brasil da energia renovável e interconectado e o Brasil isolado e abastecido a combustível fóssil", diz estudo do Climate Policy Initiative (CPI), organização focada em políticas ambientais e mudança climática.

"Nós procuramos entender nessa análise como essas condições de fornecimento de energia na Amazônia Legal impactam em todas as características da região", diz Amanda Schutze, coordenadora de avaliação de política pública do CPI, que realizou a pesquisa junto com Luiz Bines e Juliano Assunção.

"Porque, claro, a energia conversa com desenvolvimento", afirma.

Casa flutuante na floresta amazônica; 3 milhões de habitantes da região estão fora do Sistema Interligado Nacional (SIN) (Lightrocket - Getty Images)

A Amazônia Legal participa com apenas 0,17% de fatia no mercado mundial de produtos "compatíveis com a floresta" como cacau, pimenta do reino, peixes, entre outros de potencial subaproveitado, aponta uma outra pesquisa, feita pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon) e pelo Centro de Empreendedorismo da Amazônia e também com participação do CPI.

"Como essa população sem acesso à eletricidade pode acessar programas educacionais ou cursos online para, por exemplo, se informar sobre o melhor uso da terra para algum fim, para aprender a explorar a terra de forma sustentável? Como tudo isso é possível sem acesso à energia? Como existe ainda 1 milhão de pessoas no Brasil sem eletricidade?", questiona a pesquisadora.

Schutze diz que o Sistema Interligado Nacional é "magnífico" porque garante luz para o consumidor final ao gerenciar o transporte de eletricidade de um ponto com condições de ceder energia a um outro que, por exemplo, poderia passar por um período de seca em suas hidrelétricas e enfrentar problemas de racionamento.

Ao mesmo tempo, o sistema apresenta, na Amazônia Legal, uma "grave distorção" na qual populações que vivem próximas de usinas hidrelétricas da região "não estão usufruindo dessa geração de energia, mas sim pessoas, como nós, no Sudeste."

"Uma caracterização desses dois diferentes Brasis", diz ela.

Comunidade em Cachoeira do Piriá, no Pará, que não tem acesso a energia elétrica

A Amazônia Legal participa com apenas 0,17% de fatia no mercado mundial de produtos "compatíveis com a floresta" como cacau, pimenta do reino, peixes, entre outros de potencial subaproveitado (Tarso Sarraf)

A BBC News Brasil entrou em contato com o Ministério de Minas e Energia para obter um posicionamento sobre as questões relacionadas à energia na Amazônia, mas não recebeu resposta.

Em 2020 foi criado o programa Mais Luz para Amazônia, sucessor do programa Luz para Todos, para atender famílias residentes em áreas remotas da região.

A análise do Climate Policy Initiative aponta que a estruturação do programa não estabelece multas ou consequências em caso de não cumprimento de metas e nem possui fiscalização prevista no projeto.

Outra crítica menciona a pouca interação entre as distribuidoras de energia e as comunidades locais, sem que as necessidades das populações cheguem aos órgãos envolvidos.

Todos pagam a conta

Outro importante ponto do estudo passa por um dos principais assuntos no mundo hoje: a transição energética, tanto na arena ambiental quanto na arena econômica.

O diesel, o combustível fóssil e não renovável usado para gerar eletricidade para 4 milhões de pessoas na Amazônia Legal, é mais poluente, mais caro e se tornou uma preocupação global desde que a Guerra na Ucrânia levou a uma redução dos estoques no mundo.

Embora as previsões de economistas não passem por desabastecimento generalizado no Brasil, a cotação do produto segue pressionada.

Estados da Amazônia Legal

Antes mesmo desse momento delicado, a provisão de energia nesses locais fora do Sistema Interligado Nacional por meio do diesel já cobrava um alto preço de todos os brasileiros via encargos na conta de luz. O estudo do CPI aponta que, em 2022, o valor total do subsídio ultrapassará R$ 10 bilhões.

Os pesquisadores recomendam a implementação de energia limpa e renovável — em particular, a solar — que também representaria uma redução dos custos totais.

Eles citam que o custo de operação com diesel chega a R$ 2,3 bilhões em 25 anos, enquanto com a matriz renovável é de apenas R$ 4,4 milhões no mesmo período.

Projeto de lei

O projeto de lei 4248/2020, de autoria do deputado federal Airton Faleiro (PT-PA), estabelece o prazo até o ano de 2025 para universalização da energia elétrica nas regiões remotas da Amazônia.

Foi feito à época da pandemia para estabelecer priorizações de instalações considerando a vulnerabilidade de localidades que não teriam mínimas condições de tratamento de saúde durante o pico da crise da covid-19. O prazo original era 2023 e foi modificado.

O texto está na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e Amazônia (Cindra) e teve parecer favorável do relator da comissão. Ainda não foi a votação.

Shin Suzuki, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 3 junho 2022

4ª onda de covid: o que explica alta de casos no Brasil

Em pouco mais de um mês, o país registrou uma alta de 78,3% nos registros de novos casos. Em 26 de abril, os dados mostravam uma média móvel de 14.600 novos diagnósticos nos últimos sete dias. Já em 31 de maio, o número saltou para 26.032.

O Brasil enfrenta agora o que especialistas consideram a quarta onda de covid. (Getty Images)

"Estamos observando esse processo desde metade de abril, mas com um ritmo maior agora. É o início de uma quarta onda, mas felizmente ainda não se compara ao que o Brasil já passou", diz Fernando Spilki, virologista e coordenador da Rede Corona-Ômica do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), que monitora e sequencia o genoma do vírus circulante no país.

A presença de variantes com alta transmissibilidade, o relaxamento de medidas preventivas e a redução da imunidade contra a covid-19 meses após a vacinação são fatores que explicam o aumento de casos. Ao mesmo tempo, com a vacinação avançada, casos não têm mesma gravidade de ondas anteriores.

O boletim epidemiológico da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) divulgado na quinta-feira (26/5) aponta que quase metade dos registros de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) foi decorrente da covid-19 no período entre 15 e 21 de maio.

De acordo com dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), mais de 40 mil brasileiros foram diagnosticados com covid-19 nas últimas 24 horas. O número, no entanto, pode ser bem maior, segundo especialistas.

"Estamos enfrentando a quarta onda com um processo inédito. Nunca tivemos uma qualidade tão ruim de dados em termos de número de casos registrados. Testa-se e registra-se muito pouco. Além disso, com a possibilidade de autoteste, para evitar burocracias, vários acabam não registrando. Nunca navegamos tão às escuras", aponta Spilki.

Na avaliação de Spilki, há diferentes fatores envolvidos. Entre eles, está a falta de iniciativa — tanto pública quanto individual - para tentar evitar infecções. "Muita gente parou de usar máscara, inclusive em ambientes fechados, então ficamos expostos à elevação de casos.

A médica Vera Rufeisen, infectologista do Vera Cruz Hospital, lembra também que a taxa de proteção das vacinas sofre uma queda alguns meses após a imunização. No entanto, os imunizantes contra a covid-19 continuam a funcionar para aquilo que eles foram desenvolvidos: a prevenção de casos mais graves da doença, que causam hospitalização e morte.

"Além disso, nós não temos imunidade completa contra todas as variantes, e pela mudança de estação, as pessoas, já cansadas de usar máscara, tendem a ficar mais confinadas, em ambientes fechados."

Outro ponto, bastante estudado por Spilki é a presença de variantes com alta transmissibilidade no território brasileiro, como a ômicron.

"Variantes da ômicron, como a BA.2, associada a ondas na Europa, estão circulando em alguns locais, assim como a BA.2.12.1, que não está completamente espalhada em território nacional, mas já pode ser encontrada em alguns nichos e também é responsável por onda fora do país, nos EUA. Fora essas, temos ainda as recombinantes como a 'XQ', uma mistura da variante BA.1.1 E BA.2", explica Spilki.

Essas variantes, de acordo com o especialista, geram preocupação pela capacidade de disseminação. "Elas facilitam o caminho para um processo de maior transmissão. Não esperamos 'chuva de mortes', como aconteceu antes, mas fica o alerta."

Imunizantes continuam a funcionar para aquilo que eles foram desenvolvidos: a prevenção de casos mais graves da doença, que causam hospitalização e morte (Getty Images)

Por que há menos casos graves atualmente

Apesar da forte alta de novos casos, a média móvel de óbitos não tem passado de 200 mortes por semana, de acordo com dados do CONASS — um número expressivamente menor do que os índices observados antes da disponibilização dos imunizantes.

"Nesse contexto, felizmente temos a vacinação. Não tanto em relação de transmissão, que é algo que a vacina não impede, mas sim mas para casos graves e óbitos — algo que o imunizante é capaz de evitar muito bem", afirma Spilki.

Não há estudos recentes que analisem o perfil dos pacientes que vieram a óbito pela covid-19 nos últimos meses, mas pesquisas feitas em diferentes partes do mundo mostram que quem recebeu o esquema completo de imunização tem 20 vezes menos chance de morrer pela doença.

É por isso que o Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz aponta como preocupante a estagnação no crescimento da cobertura vacinal na população adulta, além da desaceleração da curva de cobertura de terceira dose, especialmente pela adesão substancialmente menor de adultos à aplicação da dose de reforço.

"As vacinas e o alívio do sistema de saúde têm contribuído para a redução da letalidade no Brasil e em diversos outros países que alcançaram altas coberturas de vacinação. Importante reconhecer, portanto, que a ampliação da vacinação, priorizando especialmente regiões com baixa cobertura e doses de reforço em grupos populacionais mais vulneráveis, pode reduzir ainda mais os impactos da pandemia sobre a mortalidade e as internações", diz o documento.

Spilki defende que agora "temos que lidar com a pandemia com as ferramentas disponíveis".

"É hora de definir estratégias de combate daquilo que o imunizante não consegue conferir, ou seja, diminuir a transmissão. Ninguém mais fala no Brasil em grandes lockdowns, em cancelamento de eventos ou atividades, mas precisaria repensar se a medida de remover máscaras foi correta. Sabemos que a exposição prolongada de um indivíduo ao outro é a principal forma de transmissão, então por que não usar máscaras?", diz.

A infectologista do Vera Cruz Hospital reforça que, por mais cansadas que as pessoas estejam, é importante manter medidas de precaução.

"O que devemos pedir é que as pessoas voltem a evitar aglomeração, não chegar perto das pessoas e sempre usarem máscaras em ambientes fechados. Caso apresentem algum sintoma respiratório, se ausentem do trabalho, testem e fiquem isoladas para que a gente interrompa a cadeia de transmissão do vírus", recomenda Vera Rufeisen.

Giulia Granchi,  de S. Paulo para a BBC News Brasil em 2 junho 2022

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Putin usa a fome como arma

Depois de agressão à Ucrânia, ameaças nucleares e atrocidades contra civis, Putin quer chantagear o mundo com a fome

Já virou folclore: o “Putin Versteher”, como dizem os alemães. Literalmente, um “entendedor” de Putin. Eles creem poder justificar os motivos e a visão de mundo do autocrata russo e projetam vastos mosaicos geopolíticos para extrair lógica do caos precipitado na Ucrânia. Os mais iconoclastas culpam o Ocidente pela catástrofe, os moderados equiparam as responsabilidades. Alguns condenam a agressão. Mas há sempre um “mas”.

A verdade incontestável é que a guerra foi não provocada. O próprio Vladimir Putin o admite, ao manufaturar o conceito de “agressão preventiva”. E nenhum “realismo” geopolítico pode justificar as atrocidades em Bucha ou Mariupol. Mesmo que, em tese, a guerra fosse inevitável, crimes de guerra nunca deixarão de ser crimes.

Abalos nas cadeias de fornecimento talvez fossem inevitáveis. Mas a escassez de alimentos não era. Putin não precisava usar a fome como arma. Tendo falhado em dominar militarmente a Ucrânia, quer estrangulá-la economicamente, confiscando grãos e maquinários. Mais do que isso, está bloqueando o Mar Negro e retendo grãos na Rússia para chantagear o mundo.

O secretário-geral da ONU prevê um “furacão de fome”. Estima-se que em novembro até 243 milhões de pessoas podem se juntar ao atual 1,6 bilhão em insegurança alimentar, especialmente em países da África e Oriente Médio sem parte no conflito.

Resolver o problema é responsabilidade de todos. As nações devem manter os mercados abertos. A Europa deve ajudar a Ucrânia a escoar seus grãos por terra. Suprimentos emergenciais devem ser dirigidos aos pobres.

O verdadeiro alívio viria do fim do bloqueio. Uma concertação, talvez envolvendo finalmente China e Índia, precisaria garantir que a Turquia permita escoltas navais no Bósforo, e a Ucrânia retire suas minas em Odessa. Mas tudo depende de que a Rússia autorize os embarques.

A julgar, porém, pelo diagnóstico de Boris Bondarev, que até esta semana integrava a missão russa na ONU, há poucas chances de negociação. “Hoje, o Ministério do Exterior da Rússia não trata de diplomacia. É tudo sobre belicismo, mentiras e ódio”, disse, ao renunciar à carreira diplomática. “Aqueles que conceberam esta guerra querem só uma coisa – permanecer no poder para sempre, viver em pomposos palácios de mau gosto, velejar em iates comparáveis em custo e tonelagem à Marinha Russa, gozando de poder ilimitado e impunidade completa. Para isso estão dispostos a sacrificar quantas vidas forem necessárias.”

Bondarev disse que nunca sentiu tanta vergonha. “A guerra agressiva desencadeada por Putin contra a Ucrânia, e de fato contra todo o Ocidente, não é só um crime contra o povo ucraniano, mas também, talvez, um crime ainda mais grave contra o povo da Rússia, com uma grossa letra Z riscando as esperanças e perspectivas de uma sociedade livre e próspera.”

Em meio à guerra de opiniões, o testemunho de alguém credenciado para se dizer um genuíno “entendedor de Putin” é um choque de realidade a ser assimilado pelas lideranças empenhadas em estratégias para mitigar o impacto dos crimes russos, como a fome mundial.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 27.05.22

Datafolha: 54% dizem não votar em Bolsonaro de jeito nenhum, ante 33% em Lula

Índice de rejeição é atrelado ao conhecimento; petista e presidente são os mais conhecidos. Por Carolina Linhares, da Folha de S. Paulo.

 O presidente Jair Bolsonaro (PL) - Adriano Machado - 25.mai.22/Reuters

O presidente Jair Bolsonaro (PL) segue na liderança da maior rejeição entre eleitores, segundo a pesquisa Datafolha. Indicaram que não votariam nele de jeito nenhum 54% dos brasileiros ouvidos pelo levantamento.

O índice se mantém estável em relação à pesquisa anterior, de março, quando 55% dos eleitores afirmaram que não votariam em Bolsonaro. Os dois levantamentos, no entanto, não são comparáveis, já que houve mudanças no cenário com inclusão ou retirada de pré-candidatos.

O segundo pré-candidato mais rejeitado é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 33%. Em março, seu índice de rejeição era maior, de 37%.

No levantamento atual, o terceiro mais rejeitado, com 23%, é o ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB), que desistiu de concorrer à Presidência da República nesta segunda-feira (23).

Ciro Gomes (PDT) tem índice de rejeição de 19%, seguido do General Santos Cruz (Podemos), com 11%.

Os pré-candidatos Vera Lúcia (PSTU), Eymael (Democracia Cristã) e Luciano Bivar (União Brasil) marcaram 10% de rejeição. Com 9%, o Datafolha mostra Pablo Marçal (Pros), Simone Tebet (MDB), André Janones (Avante) e Felipe d'Avila (Novo).

Sofia Manzano (PCB) e Leonardo Péricles (UP) alcançam 8% de rejeição.

O novo levantamento do Datafolha ouviu 2.556 pessoas em 181 cidades do país nesta quarta (25) e quinta (26). A pesquisa tem margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos e está registrada no TSE com o número BR-05166/2022. A pesquisa foi contratada pela Folha.

A rejeição a Bolsonaro, que é de 54% na média, sobe para 65% entre moradores do Nordeste e cai para 40% entre evangélicos.

A rejeição do presidente também é menor do que a do restante da população entre empresários (31%), moradores do Centro-Oeste (43%) e entre quem ganha mais de 10 salários mínimos (47%).

O índice sobe entre jovens de 16 a 24 anos (63%), entre mulheres (57%) e estudantes (62%).

Já Lula, que marca 33% na média, chega a 56% entre quem ganha mais de 10 salários mínimos e tem rejeição de 29% entre estudantes.

O ex-presidente é menos rejeitado entre quem recebe Auxílio Brasil (21%), entre moradores do Nordeste (22%) e entre quem cursou o ensino fundamental (23%).

A rejeição do petista supera sua média entre empresários (56%), evangélicos (46%) e moradores do Centro-Oeste (45%).

O índice de rejeição de um candidato está atrelado ao seu nível de conhecimento pela população. Os nomes mais conhecidos, segundo o Datafolha, são Lula, Bolsonaro e Ciro Gomes.

Entre os entrevistados pelo Datafolha, 99% afirmaram conhecer Lula —70% o conhecem muito bem, 17% o conhecem um pouco e 12% só ouviram falar. Já 1% respondeu que não conhece o petista.

Em relação a Bolsonaro, a taxa de conhecimento é de 98%, enquanto 2% afirmam que não o conhecem. Responderam que conhecem bem o presidente 58% dos entrevistados, outros 23% o conhecem um pouco e 17% só ouviram falar.

Ciro é conhecido por 91%, seguido de Eymael, que tem taxa de conhecimento em 40% —ambos já disputaram a Presidência da República antes.

nes, que tem forte atuação nas redes sociais, atinge um nível de conhecimento de 31%, seguido de Vera Lúcia, com 30%.

Tebet e D'Avila são conhecidos por 29% dos eleitores, indica a pesquisa, enquanto Bivar marca 26%, e Santos Cruz, 24%. Os menos conhecidos são Marçal (17%), Péricles (16%) e Manzano (14%).

Doria, que não está mais na corrida eleitoral, alcançou 81% de conhecimento.

Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 27.05.22