terça-feira, 18 de janeiro de 2022

"Pandemia está longe de acabar", diz diretor da OMS

Tedros Ghebreyesus refuta ideia de que a variante ômicron do coronavírus seja benigna. Diretor-geral também expressa preocupação com baixas taxas de vacinação em alguns países.

A pandemia de covid-19 "está longe de acabar", afirmou nesta terça-feira (18/01) o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), alertando contra a ideia de que a variante ômicron seja benigna.

"A ômicron continua varrendo o planeta. (...) Não se enganem, a ômicron causa hospitalizações e mortes, e mesmo os casos menos graves sobrecarregam as instituições de saúde", disse Tedros Adhanom Ghebreyesus em entrevista coletiva em Genebra, Suíça.

"Esta pandemia está longe de acabar, e dado o incrível crescimento da ômicron em todo o mundo, é provável que surjam novas variantes", acrescentou.

Em 11 de janeiro, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) ponderou que, embora a doença ainda esteja em fase de pandemia, a disseminação da variante ômicron deve transformar a covid-19 em uma doença endêmica com a qual a humanidade pode aprender a lidar.

"À medida que a imunidade aumenta na população – e com a ômicron, haverá muita imunidade natural além da vacinação – avançaremos rapidamente para um cenário mais próximo da endemicidade", disse Marco Cavaleri, chefe da estratégia de vacinas da EMA.

Na Suíça, o ministro da Saúde, Alain Berset, também estimou na semana passada que a variante ômicron poderia ser "o começo do fim" da pandemia.

Mas o chefe da OMS é mais cauteloso e ressaltou que a variante ômicron não é benigna.

"Em alguns países, os casos de covid parecem ter atingido o pico, dando esperança de que o pior desta última onda já passou, mas nenhum país está fora de perigo ainda", disse Tedros Ghebreyesus.

O diretor-geral expressou especial preocupação com o fato de muitos países ainda possuem baixas taxas de vacinação contra a covid. "As pessoas correm mais risco de sofrer de formas graves da doença ou de morrer se não forem vacinadas."

A "ômicron pode ser menos grave em média, mas a narrativa de que é uma doença leve é enganosa (...) e prejudica a resposta geral e custa mais vidas", completou Tedros.

Segundo a OMS, na semana passada foram reportados mais de 18 milhões de novos casos de covid-19 no mundo.

A pandemia de covid-19 provocou mais de 5,5 milhões de mortes em todo o mundo. O número de casos identificados da doença passa de 332 milhões, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Publicado originalmente pela Deustche Welle Brasil, em 18.01.22. / jps/lf (AFP. Lusa, ots)

Desigualdade social, o maior problema do Brasil

Para especialistas, pandemia e governo Bolsonaro somente acentuaram histórica desigualdade brasileira, com aumento exponencial da fome. Melhorar distribuição de renda é tarefa urgente para próximo governo, afirmam.

https://www.dw.com/pt-br/desigualdade-social-o-maior-problema-do-brasil/a-60315722

Com um ano eleitoral pela frente, os mais graves problemas brasileiros precisam ser colocados em debate. Especialistas ouvidos pela DW Brasil apontaram a histórica desigualdade social, a volta ao mapa da fome e a educação precária como pilares fundamentais que precisam ser atacados com políticas públicas e propostas sérias.

"O maior problema do Brasil hoje é o aumento exponencial de pessoas passando fome e de pessoas em situação de insegurança alimentar", afirma a cientista política Camila Rocha, autora do livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 55% da população brasileira vive em situação de insegurança alimentar.

"Isso ocorreu por uma combinação da retração econômica, permeada pelo aumento dos preços de alimentos básicos e gás de cozinha, com a inabilidade de combater a pandemia entre pessoas em situação de vulnerabilidade social", diz Rocha.

Ela defende que as soluções possíveis são a ampliação de programas de transferência de renda e aumento de benefícios. "Porém, isso necessariamente precisa ser acompanhado de uma retomada do crescimento econômico", enfatiza. "Do contrário, tais medidas podem ficar comprometidas a médio prazo.”

O historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de Um País Chamado Brasil, concorda com o ponto de que a fome "voltou a ser um gravíssimo problema nacional". "Milhões estão literalmente passando fome", diz.

"Sucintamente, é a péssima distribuição de renda que aprofunda a desigualdade social", contextualiza ele, que entende como "tarefa primeira, para ontem" a necessidade de que o próximo governante eleito "coloque o dedo na péssima distribuição de renda que gera essa terrível desigualdade social e, por consequência, a fome".

"Este foi o Natal da fome, tristemente. Parece a comemoração, entre aspas, dos três anos do governo [do presidente Jair] Bolsonaro", comenta Villa.

"Desigualdade imoral"

Para o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão, a desigualdade social brasileira sempre foi imoral "e se tornou mais imoral ainda em um ambiente de pandemia sob um governo de extrema direita". "[O problema] é a base de outras questões", explica.

"A pobreza é um componente de qualquer país capitalista. A questão são os níveis de pobreza minimamente aceitáveis", argumenta. "De que maneira governos que se sucedem assumem ou não compromissos mínimos no combate a essa desigualdade?"

Galves afirma que tal esforço depende de "políticas públicas permanentes" e estas foram "brutalmente interrompidas" pela atual gestão. Como a fome não espera, ele cobra uma "retomada imediata e a ampliação dessas políticas públicas de redistribuição de renda". "Sem malabarismos financeiros para turbinar orçamento em ano eleitoral. Precisamos de política social séria e permanente", enfatiza.

O jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), vê a "questão social de pobreza e crescimento da fome" dentro de um contexto de de "crise política e descrença nas instituições".

"Isso dá margem a uma série de violências e também a discursos populistas", comenta. "E 2022 vai ser decisivo porque veremos como vamos lidar com isso. A população vai votar com todos esses riscos institucionais que Bolsonaro representa. Vamos ver se a escolha será pela civilidade ou pela barbárie."

O sociólogo e cientista político Rodrigo Prando, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie contextualiza as mazelas brasileiras a partir da própria formação histórica do país. "Economicamente, [o país foi construído por] essa estrutura social de grandes propriedades de terra, escravidão e monocultura voltada para a exportação", enumera. "Em termos econômicos, isso fez com que o Brasil se tornasse um país pobre, extremamente desigual."

Além disso, por conta do passado colonial e pré-republicano, o país teve um capitalismo tardio, industrializando-se no século 20. "Assim, a sociedade brasileira se desenvolveu ao longo do século 20. E não houve distribuição de renda: a concentração continuou nas mão de uma elite", pontua.

"Resultado: o Brasil ainda apresenta extrema pobreza em algumas regiões e uma desigualdade enorme. Em uma pista de corrida, a esfera econômica avançou, mas a cultura e a educação não se desenvolveram na mesma velocidade", diz ele.

"Educação precária sustenta círculo vicioso"

Nesse sentido, a educação precária perpetua um sistema deficitário. "A pandemia não mostrou nada de novo, apenas agudizou a situação, os problemas que temos ao longo do tempo", comenta Prando. "As crianças pobres das escolas públicas foram mais prejudicadas do que as crianças ricas das particulares, as regiões Norte e Nordeste tiveram crescimento menor do que o Sudeste, os negros foram mais atingidos pela covid e morreram mais. Isso explicitou uma estrutura social bastante desigual."

Para o pesquisador David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e autor do livro Tecnologia do Oprimido: Desigualdade e o Mundano Digital nas Favelas do Brasil, os problemas do Brasil atual têm como base o acesso à educação.

"Infelizmente, temos uma educação, a pública e até mesmo a particular, muito precarizada", diz ele. "E hoje as soluções apresentadas pelo governo para resolver esse problema são péssimas. O governo [federal] pensa em militarizar a educação, o que é inconcebível. Outra agenda que os bolsonaristas e parte do Congresso tentam o tempo todo passar é a do homeschooling [ensino domiciliar]."

Nemer avalia que isso é uma maneira "de o governo retirar verba das escolas públicas", delegando às famílias a responsabilidade financeira do ensino. "E isso é obrigação do Estado, não adianta", acrescenta.

Um terceiro movimento que ele vê é o da "evangelização da educação" — nesse sentido, vale ressaltar que o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. "A educação tem de ser para pensamento livre, crítico o tempo todo, não imposto", defende Nemer. "Mas são essas as soluções que este governo pensa", diz o pesquisador.

E ao trazer a educação para o centro do debate, ele frisa que o acesso ao ensino é a ponta de um iceberg. "A maioria que estuda em escola pública não tem segurança alimentar, não tem segurança física, vive em área de risco e o Estado o tempo todo negligencia essas pessoas", afirma. "A educação precária sustenta o círculo vicioso da desigualdade social."

Corrupção sistêmica

O filósofo Luiz Felipe Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Fundação Armando Álvares Penteado, prefere escolher a própria "política brasileira" como o maior problema do país — citando "as duas mais prováveis opções que teremos para 2022".

"Uma é Bolsonaro, que se revelou uma catástrofe. Outra é o retorno do PT [Partido dos Trabalhadores, do ex-presidente Lula da Silva], que é muito responsável pelo buraco em que a gente está, uma verdadeira gangue que provavelmente vai voltar ao poder porque a outra opção se revelou pior do que ela."

Pondé classifica essa situação como "um problema agudo” e diz que a corrupção "é sistêmica e envolve todos os Poderes". "Solução para isso? Talvez daqui a mil anos", afirma.

Edison Veiga originalmente para a Deutsche Welle Brasil, em 03.0.2022

Porandubas Políticas

Por Torquato Gaudêncio

Ante essa temporada de chuvas, que fazem cair pedaços de cânion, como o que se viu em Capitólio, nas Minas Gerais, cai bem essa historinha contada por Zé Abelha em seu livro A Mineirice.

Lei da Gravidade

A Lei da Gravidade, de vez em quando, dá dor de cabeça aos mineiros. E a lei da gravidez, essa, nem se fala. Na Câmara Municipal de Caeté, terra da família Pinheiro, de onde saíram dois governadores, discutia-se o abastecimento de água para a cidade. O engenheiro enviado pelo governador Israel Pinheiro deu as explicações técnicas aos vereadores, buscando justificar a dificuldade da captação: a água lá embaixo e a cidade, lá em cima. Seria necessário um bombeamento que custaria milhões e, sinceramente, achava o problema de difícil solução a curto prazo, conforme desejavam:

- Mas, doutor - pergunta o líder do prefeito - qual é o problema mesmo?

- O problema mesmo - responde o engenheiro - está ligado à Lei da Gravidade.

- Isso não é problema - diz o líder - nós vamos ao doutor Israel e ele, com uma penada só, revoga essa danada de lei que, no mínimo, deve ter sido votada pela oposição para perseguir o PSD.

O líder da oposição, em aparte, contesta o líder do prefeito e informa à edilidade, em tom de deboche:

"Ah, ah, ah! O governador Israel nada pode fazer, visto ser a Lei da Gravidade de âmbito Federal".

E está encerrada a sessão.

Tragédias anunciadas

O ciclo de chuvas é, em nossas plagas, um tempo de dor e desespero. A chuvarada traz deslizamentos de morros e encostas, inundações, desabrigo de famílias, mortes. Tem sido assim ao longo dos anos. Os sistemas preventivos, quando existem, são descontrolados. E nem se pode dizer, nesses casos, que o Senhor Imponderável acaba de nos fazer mais uma visita. A crônica anunciando tragédias é uma velha senhora conhecida.

Carimbo da irresponsabilidade

A cada estação do ano, o Brasil ganha um carimbo. As intempéries de um ciclo de chuvas, crateras, devastação e mortes, típicos do início do ano na região Sudeste, cedem lugar à descontração, por ocasião do período carnavalesco, na cabal demonstração de que o slogan pátrio nunca foi ordem e progresso, mas o eterno recomeço que a ampulheta do tempo, vira e mexe, impõe como o nosso conceito de devir. O Brasil não leva jeito. Assistimos em pleno ciclo de chuvas, o definhamento de milhares de famílias por falta de alimento adequado.

A devastação

A mãe natureza, porém, não tem culpa. A obra de devastação a cargo do homem, em sua incessante obstinação para apressar o fim do planeta, é a principal responsável por catástrofes. Os homens públicos deveriam ir ao paredão da vergonha por não construírem barreiras preventivas nos espaços que administram. Deixando-se levar por um obreirismo que confere visibilidade e votos, incrementam o Custo Brasil, quando se esforçam para apagar rastros de antecessores e motivar comparações que os favoreçam.

Eterno recomeço

Inexiste coordenação para ajustar as demandas do federalismo cooperativo. Um governo eficaz tem aptidão para prever problemas e antecipar soluções. Deveria usar a técnica da "decalagem" (avanço), a capacidade do atirador, que calculando a distância e a trajetória do alvo móvel, acerta-o em cheio, disparando um pouco à frente do ponto escolhido. Mas a ausência de planejamento se faz ver em toda a parte. Os fatos de hoje se repetiram no passado e se multiplicarão no amanhã. Um eterno retorno, ou, se preferirem, um eterno recomeço.

Jesus, Jesus

E na hora do aperto, resta clamar aos céus. A lancha que abrigava 10 turistas tinha o nome de Jesus. Os incréus parecem dizer: "viu como temos razão"? Esse escriba cristão só pode replicar: eles não sabem o que dizem.

Coincidências

A vida abriga um continuum de coincidências. O desmoronamento de um bloco de rochas nas águas de Capitólio, cidade turística de Minas Gerais, ocorre no aniversário de um ano no capitólio dos EUA, em Washington, por trumpistas, os fanáticos de Donald Trump. Para relembrar: centenas de apoiadores de Trump irromperam pelas portas e janelas do Congresso Nacional, em 6 de janeiro de 2021, que certificava a vitória presidencial do democrata Joe Biden.

Presos

Mais de 725 pessoas foram presas e indiciadas por crimes como invasão e destruição de propriedade pública e lesão corporal a policiais. Cerca de 70 já foram julgadas e 31 delas - entre as quais Jacob Chansley, que ficou conhecido mundialmente pelos adornos de chifre que usava enquanto desfilava pelas salas congressuais - cumprem pena em cadeias pelo país.

Acenos à esquerda?

A gangorra mostra seu movimento, o sobe e desce, o desce e sobe. Na América Latina, acenos à esquerda são os sinais últimos. O Chile é o mais novo país latino-americano a ter um governo de esquerda. O deputado Gabriel Boric Font, do partido de esquerda Convergência Social (CS), derrotou o conservador José Antonio Kast, da Frente Social Cristã, no segundo turno da eleição presidencial. Aos 35 anos e com uma trajetória de sete anos como deputado Federal, Boric terá como missão governar o país entre 2022 e 2026. Terá de negociar com um Congresso fragmentado e manter aliados do centro para fazer avançar seu programa de governo.

Favoritos

O ciclo eleitoral da América Latina, que começou em 2020, exibe a volta ao poder partidos de esquerda. Nas últimas semanas de 2021, Chile e Honduras elegeram presidentes esquerdistas para substituir líderes conservadores. Este ano, três eleições apresentam favoritos à esquerda: Brasil, Colômbia e Costa Rica. Os novos líderes esquerdistas enfrentarão restrições econômicas e oposição legislativa, que podem frear suas ambições, além de terem de lidar com eleitores inquietos e dispostos a punir quem não cumprir as promessas de campanha. Vitórias serão balizadas por raiva contra governos em final de mandato, e não foram resultado de uma adesão a ideias socialistas.

O almirante

O presidente da ANVISA, almirante Antônio Barra Torres, deu um xeque que imobilizou o rei faceiro no tabuleiro: uma resposta dura contra as insinuações de Bolsonaro sobre "interesses de tarados por vacinas", uma acusação contra diretores da Agência, que decidiu vacinar crianças de 5 a 11 anos. Deixou o capitão no tamanho de sua identidade. Colocou o presidente na esfera da difamação e do ultraje. Defendeu os subordinados, desafiando Bolsonaro: prove o que disse. Barra Torres, indemissível, tem mandato até 2025.

Estado laico

As igrejas pentecostais estão atuando forte na frente política. E formam barreiras contra a ciência, propagando o negacionismo. O pastor Silas Malafaia é uma fonte de desinformação. Igrejas evangélicas adentram a esfera do Estado, em clara intromissão inconstitucional. Um post de Malafaia atribuiu à vacinação de crianças "um infanticídio". O Twitter o removeu. A atitude da plataforma ocorreu após usuários levarem a hashtag "DerrubaMalafaia" para o primeiro lugar entre os assuntos mais comentados na rede. Dizia a mensagem: "Vacinar crianças é um verdadeiro infanticídio". A ANVISA concluiu, após análise de estudos, a vacina é segura também para esse público.

No barbeiro

Conversa ouvida no cabeleireiro entre três pessoas:

- Ora, só tomei uma vacina e estou com medo.

- Não me vacinei; essa vacina tem alguns metais, a pessoa acaba morrendo do coração três anos depois de tomar a danada.

- Eu só tomei uma e foi por insistência de minha mulher. Confio mais na palavra de Bolsonaro, que até hoje não se vacinou.

Estupidez

A ignorância é a mãe da estupidez.

O velho-novo Lula

Luis Inácio não se contém. Ensaia uma visita ao centro do arco ideológico, namora com Geraldo Alckmin, com a intenção de puxar o voto de parte da direita, mas o velho Lula palanqueiro fala mais alto: quer derrubar a reforma trabalhista, aprovada no Governo Temer, e, com isso, mostra sua intenção de fazer valer a cartilha petista, que prega uma modelagem inspirada no passado da luta de classes. Dialoga com os espanhóis sobre a contrarreforma que estão fazendo no território do trabalho. Lula promete rever, também, as privatizações. Abre uma discussão nos partidos que abraçariam sua candidatura, entre os quais o MDB e o PSD. Lula, o favorito, começa a queimar as margens do conforto em que, hoje, se abriga. Uma carta assinada por petistas de alto coturno pede que Lula não aceite Alckmin como vice em sua chapa.

Haddad

Fernando Haddad começa a viver seu recomeço. Tem chances de se eleger governador de São Paulo. Se o PT levar a melhor no páreo paulista, implantará as estacas em chão profundo e fará do Estado mais forte da Federação uma fortaleza para resgatar a velha identidade petista, rota e despedaçada.

Até onde irá Bolsonaro?

A continuar sua rede de impropérios, devaneios e acusações sem fundamento, o estoque de adesistas e simpatizantes do capitão tende a se esvaziar. Deu a louca no capitão. Nem os generais conseguem conter seu ímpeto.

Moro e seus namoros

O ex-juiz Sergio Moro mostra apetite político. Corre o Brasil à cata de apoios e ideias. Esteve até com o ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa. A pauta foi substantiva: reforma do Judiciário. Foi ao Nordeste e correrá em outras regiões. Vai se fixando como um pré-candidato forte. Poderia haver acordo com João Doria? Difícil. O governador paulista é um perfil com muita determinação. Este analista acredita que ele irá até o fim.

Fecho a coluna com as alavancas do discurso político.

Há alguns símbolos detonadores e indutores do entusiasmo das massas em, pelo menos, quatro categorias. Ei-las:

1. Alavancas de adesão - Discurso voltado para fazer com que a população aceite os programas, associando-se a valores considerados bons. Nesse caso, o candidato precisa demonstrar a relação custo-benefício da proposta ou da promessa.

2. Alavancas de rejeição - Discurso voltado para o combate à coisas ruins (administrações passadas, por exemplo). Aqui, o candidato passa a combater as mazelas de seus adversários, os pontos fracos das administrações, utilizando, para tanto, as denúncias dos meios de comunicação que funcionam como elemento de comprovação do discurso.

3. Alavancas de autoridade - Abordagem em que o candidato usa a voz da experiência, do conhecimento, da autoridade, para procurar convencer. Sob essa abordagem, entram em questão os valores inerentes à personalidade do ator, suas qualidades pessoais. Quando se trata de figura de alta respeitabilidade, o discurso consegue muita eficácia.

4. Alavancas de conformização - Abordagem orientada para ganhar as massas e que usa, basicamente, os símbolos da unidade, do ideal coletivo, do apelo à solidariedade. É quando o político apela para o sentimento de integração das massas, a solidariedade grupal, o companheirismo, as demandas sociais homogêneas.

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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Teste de covid: as respostas às principais perguntas feitas no Google sobre PCR e antígeno

A busca na internet reflete o recente aumento de casos da doença no país, o que naturalmente leva à maior procura por testes.

Desde o início da pandemia de coronavírus, os brasileiros nunca procuraram tanto no Google por respostas sobre o teste considerado "padrão ouro" para detectar a covid-19. (Getty Images)

Segundo dados da plataforma de buscas fornecidos com exclusividade à BBC News Brasil, este mês de janeiro   registrou o maior volume de buscas sobre o teste PCR desde março de 2020, quando foi declarada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em comparação com dezembro de 2021, o volume de pesquisas sobre o teste mais que dobrou neste mês, com alta de 110%.

De um mês para outro, também cresceram em 240% as buscas sobre testes rápidos de covid-19. Neste mês de janeiro, o interesse no termo "teste rápido" foi o mais alto desde dezembro de 2020.

Na liderança de buscas pelos dois testes, estão os Estados do Rio de Janeiro (1º) e São Paulo (2º).

A BBC News Brasil conversou com dois especialistas e buscou as orientações da OMS, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA para responder a algumas das principais perguntas registradas no Google sobre os testes PCR e rápidos.

A busca na internet reflete o recente aumento de casos da doença no país, o que naturalmente leva à maior procura por testes.

Embora o país já esteja enfrentando há um mês um apagão de dados do Ministério da Saúde relativos à covid-19 — atribuído pelo governo federal a um ataque hacker —, serviços de saúde em várias partes do país estão registrando maior procura por atendimento não só pela covid-19, mas também pelo vírus influenza A.

E os dados mais recentes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), de terça-feira (11/1), mostram que o Brasil voltou a patamares de julho de 2021 nos indicadores de novos casos diários de covid e da média diária de casos dos últimos sete dias. Ou seja, o país se aproxima de uma situação de volume de infecções semelhantes a quando começava a sair da pior fase da pandemia, em meados do ano passado.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou na segunda-feira (10/1) que a expectativa do governo é que o aumento de casos não seja acompanhado por um crescimento significativo no número de óbitos. Especialistas têm apontado que o avanço da vacinação tem se mostrado essencial para evitar mais casos graves da doença.

Vale lembrar que os testes sobre os quais há tanta procura na internet estão escassos em várias partes do país, tanto na rede privada e ainda mais na rede pública. É uma novidade diante do avanço da ômicron, mas não na pandemia como um todo, já que especialistas sempre apontaram a testagem no Brasil como problemática e insuficiente.

Confira abaixo respostas a algumas das perguntas mais feitas por brasileiros no Google nos últimos sete dias.

O que é o PCR?

Literalmente, as letras PCR remetem (em inglês) à "reação em cadeia por polimerase" (polymerase chain reaction), uma técnica que multiplica segmentos de material genético até que se possa analisar se o coronavírus está ali ou não. O nome completo da técnica é RT-PCR, e o RT significa "transcriptase reversa", uma espécie de cópia invertida do material genético fruto da conversão do RNA em DNA.

A infectologista Melissa Valentini, do grupo Pardini (rede especializada em medicina diagnóstica), explica que o PCR é um teste "viral", porque detecta pedaços do vírus, e não anticorpos produzidos por nosso organismo, como fazem os exames sorológicos; e "molecular", por buscar genes do vírus, de preferência pelo menos dois ou três.

Quando fazer o PCR? E o teste rápido de covid?

Tanto o PCR quanto os testes rápidos estão sendo usados para as mesmas ocasiões: o aparecimento de sintomas e/ou contato recente com alguém que teve a covid-19 confirmada.

No entanto, eles são diferentes. O RT-PCR tem alto grau de confiança, mas o resultado costuma demorar. E o antígeno tem resultados menos certeiros, mas a acessibilidade pesa a favor. Veja aqui mais detalhes.

José Eduardo Levi, virologista da rede Dasa (rede de laboratórios e hospitais), diz que, no caso do contato com alguém cuja infecção foi confirmada, a recomendação é fazer testes de três a cinco dias após esse contato.


O RT-PCR exige profissionais bem treinados e equipamentos mais complexos (Getty Images)

"Não adianta fazer imediatamente. Há uma limitação porque tem um tempo até que o vírus entre nas nossas células e comece a se reproduzir. Isso demora em torno de três dias. Antes da variante ômicron, a gente falava de cinco a sete dias depois do último contato, agora reduziu para três porque com ela tudo é mais aceleradinho: começa mais rápido e termina mais rápido também", explica Levi, doutor em microbiologia.

Melissa Valentini lembra ainda que há situações específicas em que o PCR é recomendado, como em pacientes pré-cirúrgicos e antes do embarque em voos internacionais.

Como é feito o PCR para Covid?

A forma mais comum de realização do teste RT-PCR é o uso de um swab nasal (haste semelhante a um cotonete).

José Eduardo Levi, da Dasa, diz que a "melhor amostra" é aquela coletada especificamente na nasofaringe, em que o vírus tende a estar mais presente. Mas há locais que ainda fazem coletas também na orofaringe, o que segundo o especialista é menos eficaz — que continua por ser uma herança de práticas do início da pandemia.

Existe ainda a modalidade do PCR-Lamp, um teste molecular que também investiga a presença do RNA viral na saliva, mas não tem um resultado considerado tão preciso quanto o do RT-PCR.

O que significa PCR positivo?

Um PCR positivo significa simplesmente que uma pessoa está infectada pelo vírus, o que é evidenciado pela presença dele no trato respiratório superior (onde o material para análise é coletado).

Onde fazer o PCR?

Na rede particular, laboratórios realizam o teste sem necessidade de prescrição médica e pagamento avulso. Em caso de convênio médico, costuma ser necessária a prescrição.

Na rede pública, os testes são bem mais difíceis de serem acessados e isso varia por realidade local.

A infectologista Melissa Valentini diz que, na situação atual, é comum que os hospitais públicos estejam reservando os testes para pacientes graves.

PCR positivo, o que fazer?

Isolamento em caso de suspeita ou confirmação de covid é essencial para barrar a transmissão do vírus (Getty Images)

Uma pessoa que teve teste PCR positivo para coronavírus e manifesta sintomas deve observá-los e procurar assistência médica em caso de manifestações mais preocupantes, como dificuldade de respirar, desidratação e dificuldade de comer.

Para casos mais leves ou até assintomáticos, deve ser feito o isolamento. Mas o tempo recomendado para isso, que já foi de 14 dias, tem mudado.

Na segunda-feira (10/1), o Ministério da Saúde anunciou que o tempo mínimo de isolamento passou para 7 dias desde que não haja mais febre e sintomas nas 24 horas finais desse período e nem uso de antitérmicos.

Segundo a diretriz, aqueles que realizarem testagem (RT-PCR ou teste rápido de antígeno) para covid com resultado negativo no 5º dia poderão sair do isolamento antes do prazo de 7 dias - desde que não apresentem sintomas respiratórios e febre há pelo menos 24 horas, e sem o uso de antitérmicos. Se o resultado for positivo, é necessário permanecer em isolamento por 10 dias a contar do início dos sintomas.

Em quanto tempo sai o resultado do PCR?

Existem testes que podem ter seus resultados entregues em poucas horas, no mesmo dia. Alguns deles são comercializados em aeroportos. Mas em geral, na situação de alta demanda hoje no Brasil, o tempo para entrega de resultados tem sido estendido. Na rede Pardini, por exemplo, o prazo atual é de quatro dias, enquanto em outros momentos da pandemia foi de 24h.

O que é teste rápido antígeno?

Melissa Valentini, do grupo Pardini, explica que enquanto os testes PCR procuram pelo material genético do vírus no nosso corpo, os testes rápidos de antígeno buscam proteínas produzidas pelo vírus. Ambos usam o swab nasal.

Assim como apontou José Eduardo Levi, Valentini diz que o PCR é o "padrão ouro" para diagnóstico, mas mesmo assim defende que os testes antigênicos têm seu lugar.

Testes de antígeno e RT-PCR exigem o swab nasal e oral, que envolve inserir uma haste flexível no fundo do nariz e da boca (Getty Images)

"A gente sabe que o teste antigênico tem uma sensibilidade limitada em relação ao PCR, mas ele é positivo, te dá um norte. É um resultado rápido, que faz com que você consiga ter uma ação imediata, isolando aquela pessoa imediatamente", diz a infectologista, definindo sensibilidade como "a chance daquele teste dar positivo em uma pessoa doente".

Para os testes rápidos de antígeno, a situação mais delicada é a dos falsos negativos — resultados negativos para pessoas que na verdade, estão sim infectadas.

"O teste antigênico precisa ser interpretado da seguinte forma: deu positivo, você vai considerar positivo. Se deu negativo mas o paciente tem sintomas e alta chance de ter tido uma infecção por covid-19, o ideal é fazer o RT-PCR e não liberar da quarentena antes disso. Com alta chance de covid, o ideal é fazer o RT-PCR. Todo teste precisa ser interpretado junto com a história epidemiológica", aponta Melissa Valentini.

A vantagem desse teste está no próprio nome — ele é rápido, com padrão de entrega em menos de uma hora — e no seu preço, mais barato que o PCR (um teste de antígeno varia entre R$ 100 e R$ 200 em laboratórios privados).

Em um cenário de muitas infecções como a atual, isso é especialmente valioso, pois permite a resolução de parte considerável dos diagnósticos.

Como funciona o teste rápido de Covid?

A infectologista Melissa Valentini explica que o teste rápido de antígeno é um teste do tipo imunocromatográfico — como aqueles usados para detectar uma gravidez, embora estes não busquem um antígeno, e sim um hormônio.

A plataforma em que esses testes são realizados lembram um cartãozinho. Há um orifício onde será depositada a amostra; um papel de celulose por onde o material vai escorrer; e um pequeno visor onde aparecerão tracinhos indicando o resultado.

Onde fazer o teste rápido de Covid?

Os testes rápidos também estão disponíveis em unidades de saúde e laboratórios, sendo oferecidos mediante regras próprias e pedidos médicos. Outra opção popular também é a realização destes testes em farmácia mediante pagamento avulso. Entretanto, diferente de alguns outros países que permitem os autotestes, apenas alguns profissionais de saúde estão habilitados a aplicar este teste no Brasil.

Mariana Alvim,  da BBC News Brasil em São Paulo, em 12.01.22. Com informações de reportagem de André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Mário Sabino: É preciso matar o Sergio Moro do futuro

Só isso explica a intensidade dos ataques contra um pré-candidato que mostra, neste momento, dificuldade para atrair aliados e crescer nas pesquisas

Foto: Saulo Rolim / Sérgio Lima / Danilo Martins - Podemos

Não canso de me espantar — e de expressar o meu espanto — com a verdadeira caçada que políticos, jornalistas, advogados e juízes promovem contra Sergio Moro (foto). O sujeito prendeu corruptos graudíssimos e mandou a escumalha que roubou bilhões de reais da Petrobras devolver o dinheiro à empresa. Missão cumprida, virou alvo de hackers vagabundos (história mal explicada) que roubaram mensagens do celular do então procurador Deltan Dallagnol e viram-se tratados como heróis nacionais pela imprensa petista ou simplesmente oportunista. Na sequência, foi avacalhado por ministros de tribunais superiores que atuam politicamente e politicamente o consideraram suspeito. 

Por fim, saiu do governo atirando contra a interferência na Polícia Federal. Apesar de tudo isso, ele vem sendo tratado como o pior criminoso do Brasil.

Escrevi “apesar de tudo isso”, mas é claro que não sou ingênuo. Sei que Sergio Moro sofre perseguição justamente por ter-se comportado do modo oposto ao dos que mantêm o sistemão em funcionamento, para a desgraça de muitos e o benefício de poucos — e que o seu grande pecado foi, com esse comportamento, ter colocado no xadrez empresários e chefões políticos poderosos, como Marcelo Odebrecht e Lula. Mas, ainda assim, espanto-me com o despudor da caçada do agora pré-candidato à presidência da República.

Na imprensa, uma penca de colunistas que desonestamente não se declaram petistas ataca Sergio Moro utilizando argumentos fajutos sobre sua suspeição como juiz, como se as sentenças proferidas por ele não tivessem sido chanceladas por outras instâncias e algumas até com agravamento de pena. Fustigam também a sua falta de “profissionalismo” na política, como se o fato de passar por media training, sessões de fonoaudiologia e cercar-se de notáveis interessados em mudar o Brasil fosse sinal de amadorismo. 

Um pré-candidato que precisa de “coaching”, veja só que absurdo. De que “profissionais” essa gente sente falta? De Lula, José Dirceu, Renan Calheiros, Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira, Ciro Gomes, Aécio Neves, Geraldo Alckmin? Do que estamos falando aqui? De alguém forjado num “passado de lutas”? Bem, se há alguém que lutou de verdade, esse alguém foi Sergio Moro, não? Ou a Lava Jato não foi uma luta contra tudo e contra todos? Quanto à capacidade intelectual, o único presidente da República que chegou preparado para ocupar o cargo — o único — na história da Nova República (e, quiçá, da República) foi Fernando Henrique Cardoso. O que, infelizmente, não o impediu de sucumbir à vaidade, fazendo passar a emenda da reeleição, e de dar corda à corrupção de aliados.

Sergio Moroe sua mulher, Rosangela, gravaram uma mensagem de Natal. Eles não formam propriamente um casal Obama, mas foram tratados por essa mesma imprensa — e nas redes sociais — como se destoassem para baixo da média brasileira em termos de comunicabilidade, estética e crenças. Além de criticarem a voz do “marreco”, debocharam da voz da “pata” na mensagem. 

Como se Lula fosse um Pavarotti e Jair Bolsonaro, um José Carreras. Muitos dos que se deliciaram com o que seriam a caipirice do casal não aprenderam nem mesmo a comer direito com garfo e faca (meninos, eu vi). Um dos maiores malas sem alça que conheci classificou Moro de maior mala sem alça de 2022. Seria divertido, se não fosse assustador o ponto a que chegamos.

O braço jurídico do PT, mais conhecido como o clube do charuto e do vinho Prerrogativas, nunca esteve tão ativo nas redes sociais — e nos bastidores. Advogados de corruptos pescados pela Lava Jato repisam que Sergio Moro e os procuradores agiram politicamente quando estavam à frente da operação — e o lançamento da pré-candidatura do ex-juiz só confirmaria que ele agiu fora da lei. 

Para quem olha de fora, parece ser o contrário: se resolveu entrar na política, isso mostra que não fez nada de errado quando vestia toga e, por isso, não teme ter esse telhado de vidro. Acuado por Deltan Dallagnol, um dos integrantes do clube foi obrigado a concordar que a Lava Jato recuperou 15 bilhões de reais de dinheiro de corrupção. O rapaz, no entanto, continua a disparar contra Sergio Moro no Twitter (afinal de contas, pode se candidatar a deputado pelo PT), fazendo gracinhas sem usar vírgula antes de vocativo, como se o seu sobrenome quatrocentão fosse suficiente para abolir a gramática. 

Juntamente com ministros de tribunais superiores, o braço jurídico do partido atua para tentar criar embaraços ao pré-candidato Sergio Moro e quem ousa apoiar o moço. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, agora quer saber quanto o ex-juiz ganhou para sair da empresa de consultoria americana que o empregou nos Estados Unidos, depois de ele sair do governo. O que isso tem a ver com dinheiro da União? Nada, absolutamente nada, mas a alopragem vai ao ponto de ligar o salário de Sergio Moro a um suposto conflito de interesses na condenação da Odebrecht e executivos da empreiteira. 

Os malandros da Brasília querem fazer crer que Sergio Moro quebrou a Odebrecht, cliente da empresa na qual ele viria a trabalhar, para conseguir o emprego. A versão se choca com a outra — a de que ele condenou Lula para eleger Jair Bolsonaro e virar ministro da Justiça –, mas cabe tudo na fantasia brasiliense.

Sergio Moro está num partido sem muito dinheiro de fundo eleitoral, esbarra em imensas dificuldades para atrair aliados e está com 9% nas pesquisas de intenção de voto. O povão praticamente ignora a sua existência, e não está dito que ele terá traquejo para se dar bem em palanques e debates. 

Por esses motivos, não vejo, neste momento, muita possibilidade de a sua candidatura crescer enormemente. Como sempre faço questão de dizer, não sou futurólogo, apenas jornalista. Pode ser que esse quadro vire lá adiante. Mas, independentemente da minha miopia e dos cálculos que estão sendo feitos pelos seus adversários, ainda assim acho a intensidade dos ataques ao pré-candidato do Podemos desproporcionalmente alta e o nível, extremamente baixo. Por que tanto medo de Sergio Moro?

A minha tese é a de que a virulência não visa somente ao presente, mas ao futuro. Assim como políticos, juízes e advogados trataram de inviabilizar juridicamente o surgimento de outra operação Lava Jato, esses mesmos personagens, secundados por seus mercenários na imprensa, agora querem matar na raiz o crescimento de quem se opõe ao sistema que raptou a democracia brasileira. Foi o caminho que restou depois de não conseguirem impedir a entrada dos protagonistas da maior operação anticorrupção da história do país no cenário político, com aquela vergonha de quarentena de 8 anos para magistrados e procuradores. 

Moro é jovem. Completará 50 anos em agosto. Como é presumível que, mesmo que não seja eleito em 2022, continue a fazer política, poderá chegar à presidência em 2026, 2030, 2034 ou qualquer outra data nos próximos 20 anos. Se trabalhar direito e não entrar no desvio, terá condição de criar uma nova, forte e perigosa corrente política que represente um basta no Estado de Dinheiro, que se sobrepôs ao Estado de Direito. Não basta, portanto, matar o Moro do presente. É preciso matar o Moro do futuro.

Mário Sabino, o autor deste artigo, é Editor d'O Antagonista e da revista eletronica Cruzoé. Publicado em 17.01.2022.

Miguel Srougi: Tenham piedade, excelências

Ministro Queiroga, rogo-lhe que abandone a complacência oportunista


O professor de urologia da USP Miguel Srougi durante fórum promovido pela Folha para debater a saúde no Brasil - Daniel Guimarães - 27.mar.14/Folhapress

No início de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que a humanidade estava sob ataque de um vírus ensandecido, espraiado pelos cinco continentes. Explicitamente, anunciou uma nova pandemia e, implicitamente, indicou que esse patógeno não mais abandonaria o nosso planeta.

Como a história e a ciência previram, e em resposta à pressão evolucionária, o coronavírus ancestral de Wuhan, na China, sofreu sucessivas transmutações para se perenizar, culminando agora com o aparecimento da variante ômicron, já disseminada pelo planeta.

Com a mesma velocidade e competência, os nossos cientistas desvendaram os principais mistérios que envolviam esse novo agente com o objetivo de enfrentar o novo desafio. Assim, demonstraram que:

1 - essa infecção tem uma assombrosa capacidade de disseminação: 10 portadores de ômicron infectam, dentro de 2 a 3 dias, 100 pessoas não vacinadas; 

2 - em 8 de janeiro, a variante já era responsável por 98,7% dos casos de Covid no Brasil; 

3 - previsão da Universidade de Washington indica uma escalada incontrolável no número de casos em nosso país, com 1 milhão de pessoas sendo infectadas diariamente dentro de dez dias. Esse número não será reconhecido pelo governo federal, que insiste em subestimar vergonhosamente a prevalência da doença;

4 - as taxas de internações em UTI e de óbitos são de 4 a 5 vezes menores nos pacientes infectados pela ômicron se comparadas aos casos atingidos pelas variantes prévias. Esses índices mais baixos não devem ser menosprezados, já que a disseminação irrefreada da doença talvez mate 400 ou mais brasileiros por dia dentro de três semanas; 

5 - a vacinação com duas doses do imunizante protege entre 10% e 51% das pessoas expostas à ômicron, mas três doses protegem 88%;

6 - a capacidade da ômicron de infectar crianças é duas vezes maior que a das variantes anteriores. Apesar da baixa letalidade, crianças precisam ser vacinadas para não se transformarem em reservatórios perpetuadores da pandemia. E, também, porque baixa letalidade não é baixa se quem morre é um ente querido; 

7 - bobagens têm sido ditas por pessoas que convencem mais quando ficam caladas. A vacina da Pfizer é bastante segura em crianças, e nenhum óbito foi relatado após quase 9 milhões de doses administradas a esse grupo nos Estados Unidos; e 

8 - finalmente, a pandemia pela ômicron só será extinta se pelo menos 90% da população em cada país for imunizada de forma correta e rápida para evitar a emergência de novas variantes agressivas. Como essa meta é utópica, e provavelmente inatingível, o vírus continuará bailando pelo mundo, reescrevendo de forma trágica a nossa história.

Confesso que, neste momento, não consigo disfarçar minha aflição. Vivendo numa nação estraçalhada, com uma rede sanitária inacessível às pessoas mais simples e, pior, com líderes que não prestam, prevejo um futuro tenebroso para os nossos cidadãos. Sem vislumbrar qualquer possibilidade de o nosso presidente modificar suas atitudes imperfeitas e rudes, só me resta fazer um apelo público, aberto e sincero.

Ministro Marcelo Queiroga: você, como membro de uma classe de heróis que recentemente mudou os destinos da humanidade e com uma história pessoal que até há pouco lhe proporcionou o respeito e a admiração dos cardiologistas brasileiros, não tem o direito de manchar sua biografia e envergonhar seu entorno com atitudes que estão contribuindo para aniquilar o Brasil e o nosso povo.

Por isso, rogo-lhe que se coloque ao lado de tantos filhos da nação e assuma o combate irrestrito à pandemia, pautado na ciência, inspirando e apoiando os demais governantes, estimulando a aplicação das medidas sanitárias reconhecidas, fortalecendo os sistemas de suporte à vida, divulgando estatísticas honestas, necessárias para a gestão da crise, e promovendo a vacinação da nossa população de forma abrangente e rápida. Abandone a complacência oportunista e defenda a nação brasileira contra os ataques do vírus e da indecência.

Pedindo desculpas por repetir, termino relembrando Albert Einstein: "O mundo é um lugar perigoso para se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer". Hoje, com duplo sentido.

Miguel Srougi, o autor deste artigo, é Professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP, é pós-graduado em urologia pela Universidade Harvard, membro da Academia Nacional de Medicina e presidente do conselho do Instituto ‘Criança é Vida’. Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 16.01.2022.

‘Judiciário não pode afagar delírios negacionistas’, diz juíza ao negar pedido para prender William Bonner por incentivo à vacinação contra a covid-19

 Gláucia Falsarella Pereira Foley, da Juizado Especial Criminal de Taguatinga, nega representação contra o apresentador do Jornal Nacional da TV Globo e destaca que o pedido, feito pelo advogado Wilson Koressawa, 'reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política'

O jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo. Foto: Reprodução/Instagram

A juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, do Juizado Especial Criminal de Taguatinga, arquivou uma representação que pedia a prisão do jornalista e editor-chefe do Jornal Nacional William Bonner, por ‘incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário’. “O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não”, escreveu em despacho datado deste domingo, 16.

Em seu despacho, a juíza detalhou o pedido feito pelo advogado Wilson Koressawa, para dar a ‘exata dimensão do descabimento’ do mesmo. A magistrada indicou que, para o advogado, o jornalista comete crimes ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da covid-19. Segundo Foley, Koressawa ‘reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política’.

“Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade e consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos”, destacou a magistrada.

A juíza ainda lembrou que o Supremo Tribunal Federal consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Foley também citou o jornalista e professor Eugênio Bucci, que considera que a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Por considerar que o advogado não tem legitimidade para representar por uma prisão e que a análise do pedido não caberia ao Juizado Especial Criminal de Taguatinga, o Ministério Público Federal chegou a defender o envio do caso para uma das Varas Criminais de Taguatinga. No entanto, Foley entendeu que era necessário ‘promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições’.

Leia a íntegra da Decisão judicial:

Poder Judiciário da União

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

Juizado Especial Criminal de Taguatinga

    Número do processo: 0722619-55.2021.8.07.0007

Classe judicial: NOTIFICAÇÃO PARA EXPLICAÇÕES (275)

NOTIFICANTE: WILSON ISSAO KORESSAWA

REQUERIDO: WILLIAM BONNER

DECISÃO

Cuida-se de representação pela decretação de prisão em flagrante ou preventiva de WILLIAM BONNER, formulada por WILSON KORESSAWA.

Aduz o requerente que “o representado, juntamente com diversos outros repórteres da mesma emissora, ao que tudo indica, participa de uma organização criminosa, definida na Lei 12.850/13"; que o  representado está "incurso nas penas dos art. 267 e 270, parágrafo primeiro, e 122, combinados com  art. 29, todos do Código Penal" e requer "O afastamento do representado do cargo ou a proibição de ele incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário; determinação para a prisão em flagrante ou a decretação da prisão preventiva do representado; a  recomendação para a SUSPENSÃO DA VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA EM TODO O PAÍS, principalmente de crianças e adolescentes, bem como da EXIGÊNCIA DO PASSAPORTE SANITÁRIO, até que sejam realizados exames periciais dos componentes de todas as vacinas; a determinação para a realização de exames periciais para se constatar todos os componentes das vacinas e aferir se são benéficas ou prejudiciais à saúde de população, das crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todas as bulas das vacinas para se constatar que não são recomendadas para crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todos os contratos celebrados com todas as empresas farmacêuticas; a determinação para que o referido repórter divulgue toda a verdade sobre as reações adversas, sequelas e mortes decorrentes das vacinas e ouça os Médicos Pela Vida.”

Em manifestação de ID 112807061, a i. representante ministerial consignou que o requerente não possui legitimidade para o pedido de prisão preventiva, vez que os crimes citados são de ação penal pública. Além disso, os pedidos de 1.3 a 1.7 não estão previstas como medidas cautelares penais no CPP. 

Quanto à  competência, a pena privativa de liberdade máxima cominada aos delitos indicados pelo requerente supera o limite de dois anos estabelecido pelo artigo 61 da Lei n.º 9.099/1995, que disciplina a competência dos Juizados Especiais Criminais. Diante disso, pugnou pela declinação da competência e remessa dos autos para distribuição a uma das Varas Criminais de Taguatinga.

É o breve relatório. Decido.

O Ministério Público tem razão ao alertar que a representação em análise, além de ser subscrita por parte  ilegítima, veicula tipos penais formalmente incompatíveis com o procedimento deste Juizado, razão pela qual solicita a remessa dos autos à vara criminal competente.

No entanto, a apreciação deste Juízo deve ir além da questão meramente processual. Trata-se, aqui, de resgatar o mister constitucional do Poder Judiciário – por natureza, independente e contramajoritário –que é o de promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições, incluída a imprensa. Vejamos.

A representação noticia a prática dos tipos penais dos artigos 122, 267 e 270, parágrafo primeiro, combinados com o artigo 29, todos do Código Penal.

Para que se tenha a exata dimensão do descabimento do pedido, é preciso traduzir, em linguagem acessível, o que isso significa: para o signatário da representação, o jornalista William Bonner, em conluio com outros profissionais da imprensa, ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da Covid-19, comete os crimes de indução de pessoas ao suicídio (art. 122 do CP) e de “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” (art. 267); “envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo.”, sujeitando-se à mesma pena quem entrega a consumo ou tem em depósito, para o fim de ser distribuída, a água ou a substância envenenada (art. 270 do CP, parágrafo primeiro).

Como fundamento, reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziand seu texto em mera panfletagem política.

Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade  consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que  foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente  situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de  Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos.

O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não. Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130/DF, consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Para Eugênio Bucci, aliás, mais do que direito do jornalista, a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Para além disso, deve-se consignar que, nos termos do artigo 311 do Código de Processo Penal, “caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente ou por representação da autoridade policial.” Vê-se, pois, que falece legitimidade a representante para pleitear a prisão preventiva do representado, porquanto os crimes citados desafiam ação penal de natureza pública incondicionada e o representante não possui a condição de assistente.

Diante do exposto, em especial, da incontestável atipicidade dos fatos narrados, determino o arquivamento da presente representação, com base no artigo 395, II, do Código de Processo Penal.

Publique-se. Registre-se. Após, arquivem-se.

 TAGUATINGA-DF, 16 de janeiro de 2022

11:42:51.

GLÁUCIA FALSARELLA PEREIRA FOLEY

Juíza de Direito

Pepita Ortega para O Estado de São Paulo, em 17.01.2022

Envelhecer com saúde: hora de desenhar o novo mapa da vida

Encontrar quase centenários independentes e ativos será cada vez mais comum, graças a avanços da ciência e dos recursos da medicina

       Exercícios são necessidade diária e envolvem sentimento estético, afirma Luiz Carlos França, aos 94 anos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 15/12/2021

Aos 94 anos, o engenheiro aposentado Luiz Carlos França Domingues demonstra aquilo que os franceses chamam de “joie de vivre”, a alegria de viver que muitos pesquisadores do envelhecimento saudável apontam como um dos segredos para uma vida longa, produtiva e feliz.

Todas as manhãs, ele salta cedo da cama, faz uma refeição leve e, apesar da preocupação dos filhos, dirige o próprio carro até o Esporte Clube Pinheiros, no Jardim Europa, zona oeste de São Paulo. Não perde as aulas de pilates. “Tenho vontade de viver por causa da serotonina que me traz bem-estar”, diz ele. “Para mim, os exercícios são uma necessidade diária e envolvem um sentimento estético. Gosto da elegância, da postura, da coordenação dos movimentos. Acho tudo isso muito bonito.”

                            

Em poucos anos, encontrar quase centenários ativos e independentes como Domingues deixará de ser surpresa. Metade das crianças que hoje têm 5 anos poderá chegar aos 100 anos nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos. E essa tem chance de se tornar a norma para recém-nascidos em 2050, segundo um relatório lançado recentemente pelo Centro de Longevidade da Universidade Stanford.

O engenheiro aposentado Luiz Carlos França Domingues, aos 94 anos, pratica Pilates todos os dias. Ele impressiona os outros alunos pela postura e exemplar execução dos movimentos. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 15/12/2021

Em três décadas, quase 30% da população brasileira será idosa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um índice três vezes superior ao verificado em 2010. Para que a experiência do envelhecimento seja satisfatória, há muito o que aprender com exemplos como o de Domingues. Com 1,65 metro e 64 quilos, ele mantém o peso há 68 anos. Viúvo há nove anos, mora sozinho e tem boa condição geral de saúde.

A genética contribui para a longevidade – os avós paternos passaram dos 90 anos e o irmão morreu pouco antes de completar um século –, mas o aposentado também colhe os frutos de décadas de alimentação saudável. E de passar longe do cigarro, das bebidas alcoólicas e do sedentarismo. “Para envelhecer bem, é só fazer o básico e ter um casamento feliz como eu tive.”


Domingues não sente dores nem sofre de osteoporose. “Nunca tive problema de coluna. Isso é falta de exercício e de ter uma musculatura abdominal forte”, afirma. “Tomo sol enquanto leio o Estadão na beira da piscina. Quer receita melhor para os ossos?”

Frequentador de vários grupos de terceira idade, ele acha que é importante manter um convívio social ativo. Lamenta quando vê idosos que não saem de casa. “Ficam ranzinzas, emburrecendo com o controle remoto da TV na mão e dizendo que no tempo deles as coisas eram diferentes”, afirma. “O nosso tempo é agora.”

Uma nova vida

Graças aos avanços da ciência e aos recursos da Medicina, viver décadas a mais com qualidade será possível, mas o mundo está preparado para os centenários? Não exatamente, segundo a professora Laura Carstensen, diretora do Centro de Longevidade da Universidade Stanford.

“A nossa cultura evoluiu em torno de vidas com a metade desse tempo”, diz ela. “Isso não funciona mais. Precisamos criar normas sociais que acomodem trajetórias muito mais longas.”

Nos últimos três anos, a equipe liderada por Laura criou recomendações reunidas no relatório O Novo Mapa da Vida. O texto sugere mudanças na educação, nas carreiras e nas transições de vida para que elas sejam compatíveis com existências de um século ou mais.

A vida moderna tem um problema de ritmo, aponta o estudo. A faixa dos 40 anos é um período abarrotado de demandas profissionais e de cuidado dos familiares. Uma fase estressante, principalmente para as mulheres, que suportam uma carga desproporcional de tarefas domésticas e atenção aos dependentes.

Enquanto isso, grande parte dos idosos se vê sem atividade, propósito, conexão ou renda suficiente para viver bem os muitos anos que tem pela frente. Se não fossem precocemente expulsos do mercado de trabalho, esses profissionais maduros poderiam seguir contribuindo para a geração de riqueza.

“A diversidade etária é uma rede positiva. A velocidade, a força e o entusiasmo dos jovens, combinados com a inteligência emocional e a sabedoria prevalente entre as pessoas mais velhas, criam possibilidades para famílias, comunidades e locais de trabalho que não existiam antes”, salienta o relatório.

Com saúde

A grande virada no perfil da população brasileira deve acontecer em 2030, quando o País terá mais pessoas a partir de 60 anos do que crianças e adolescentes de 14 anos. O Brasil precisa criar condições para que essa população seja respeitada e participe ativamente da sociedade.

Um passo importante é combater os mitos que cercam o processo de envelhecimento. “Os idosos não vivem mal. É preciso desmistificar isso”, garante a professora Yeda Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

“Não é verdade que quem envelhece fica doente”, complementa. “O idoso pode ter doenças, mas, se elas forem controladas, ele tem uma vida absolutamente normal.” Como coordenadora do estudo Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe), uma pesquisa que acompanha mais de mil idosos na capital paulista desde 2000, Yeda conhece bem os desafios dessa faixa etária. A amostra foi ajustada de forma a representar a realidade dos mais de 1,8 milhão de idosos que vivem em São Paulo.

“Pouco menos de 25% da população idosa de São Paulo e do Brasil tem alguma limitação funcional”, afirma Yeda. De acordo com ela, a grande maioria é autônoma, independente e contribui para muita coisa em casa, em vez de ser dependente de cuidados. “Na pandemia, muitas famílias puderam sobreviver graças aos idosos”, explica. “Os filhos perderam o emprego e foram mantidos pelas aposentadorias e pensões deles.”

Embora a maioria dos idosos seja saudável, é preciso garantir atenção adequada ao quarto da população que não é. Essas pessoas precisam de cuidadores e de outros recursos de longa duração, mas há poucas políticas públicas e programas municipais para isso. São Paulo e Belo Horizonte oferecem cuidadores no sistema público, mas esses programas são exceção no País.

“Não adianta as pessoas viverem mais de 100 anos, se não criarmos condições para que elas vivam com qualidade”, afirma Yeda. Nesse aspecto, o Brasil precisa evoluir muito, mas na esfera individual há um conjunto de atitudes e escolhas que favorecem o envelhecimento saudável.

Motivação

A partir da meia-idade, muitas pessoas passam por uma reavaliação geral de seus objetivos por novas circunstâncias. Surgem outras metas e funções em relação à família (divórcio ou novo casamento), ao trabalho (mudança de empresa, desemprego ou aposentadoria), à comunidade (mudança de endereço, trabalho voluntário, novos círculos sociais) e à saúde.

“Ao longo do envelhecimento, a motivação é um fator fundamental para o sucesso na mudança de comportamento”, salientam a psicóloga Jutta Heckhausen, professora da Universidade da Califórnia, e colegas em um artigo publicado recentemente no Journals of Gerontology, da Sociedade Americana de Gerontologia.

Segundo o trabalho, as razões para a mudança e a forma como as pessoas desejam realizá-la é altamente variável. Por isso, é preciso focar na identificação individual de objetivos de curto e de longo prazo para facilitar a adoção de novos comportamentos e alcançar os resultados esperados.

“É preciso reavaliar o que é realmente importante na vida, o senso de propósito ou as prioridades”, destacam os autores. “Se houver um declínio geral de energia e vitalidade, por exemplo, talvez seja possível encontrar satisfação em uma ocupação relacionada às habilidades, mas não tão exigente ou que consuma menos horas de trabalho.”

Nova missão

Quando chegou à maturidade, a relações-públicas Adriana Vilhena Townson, de 58 anos, que trabalhava dez horas por dia, fez uma pausa estratégica. “Mergulhei em um autoconhecimento geral. Analisei minhas raízes, fiz terapia, cuidei da alma. Estava em busca de uma missão”, diz.

Ao fazer um trabalho para uma paciente de 95 anos que falava quatro línguas, tinha doutorado na Alemanha e sofria de Alzheimer, Adriana recebeu uma grande lição para as décadas seguintes. “Com ela aprendi a contemplar e a viver o momento presente”, diz ela. Novas necessidades e objetivos vieram à tona. “Hoje, minha meta é seguir a minha missão”, afirma. “Sempre fui muito empática, mas entendi o valor de perceber o próximo.”

Adriana pretende voltar ao mundo corporativo, desde que consiga enxergar sentido no novo trabalho. Paralelamente, está inscrita em uma agência de modelos maduros. “Fiz fotos para demarcar esse meu momento de plenitude. Hoje, me sinto muito bem comigo mesma, visto o que quero”, afirma Adriana.

Como modelo 50+, ela sonha fazer uma campanha com mulheres maduras. “É preciso disparar o movimento de plenitude dessas mulheres. Precisa ser um movimento de massa para que, nessa faixa etária, elas percebam que podem ser plenas e realizadas”, acredita. Para os novos maduros como Adriana, o importante é o que vivemos no presente e o que projetamos de positivo para o futuro. Uma boa forma de chegar bem aos 100 ou até onde a natureza permitir.

Profissional maduro precisará de condições de trabalho adequadas

Ao longo de uma vida de 100 anos, será normal trabalhar por seis décadas, afirmam os pesquisadores do Centro de Longevidade da Universidade Stanford no relatório O Novo Mapa da Vida. Para o bem dos que viverão nesse novo mundo, é preciso redesenhar as condições de trabalho.

Uma das mudanças sugeridas pelo relatório seria permitir que os profissionais aumentassem ou diminuíssem horas de trabalho ao longo de suas carreiras. Um casal que acaba de ter filhos deveria, por exemplo, poder reduzir a jornada por um período. E mais tarde voltar ao período integral. 

Outra mudança sugerida é investir no aprendizado dos futuros centenários. A educação formal não deve continuar concentrada nas primeiras duas décadas de vida, como é hoje, e precisaria haver opções de aperfeiçoamento contínuo.

O tipo de vida sugerido pelo relatório está longe de ser acessível à maioria. É mais fácil alcançar as condições para o envelhecimento saudável se não faltar dinheiro. Outra razão para criar condições para que os maduros sigam ativos e produtivos por mais décadas. 

Como viver melhor

Mexa o corpo: Exercícios ajudam a manter corpo e mente funcionais.

Cuide da alimentação: Coma de forma saudável e não abuse do álcool. 

Durma bem: E procure não fumar.

Aprenda sempre: Vá além da educação formal.

Cultive amizades: Elas ajudam na motivação.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.01.2022 / Cristiane Segatto

A resiliência da democracia

Nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a proteger o regime democrático de ataques cada vez mais audaciosos

 O País chega ao último ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro exaurido após tantos desmandos, tanta incompetência e tantas manifestações de descaso pelas aflições de milhões de brasileiros. No meio dessa travessia acidentada, a eclosão da pandemia de covid-19, que no Brasil matou mais de 620 mil pessoas, lançou luzes ainda mais fortes sobre as flagrantes deficiências administrativas e de caráter do atual mandatário.

A história da República não registra um presidente que tenha rebaixado tanto a instituição que representa. Sob Jair Bolsonaro, o deboche, a mentira, a violência e o linguajar chulo, entre outras descargas de falta de decoro, foram convertidos em instrumentos de governo, vendidos aos incautos e aos convertidos como traços da “simplicidade” ou da “autenticidade” do presidente.

De seu gabinete no Palácio do Planalto, das praias do exuberante litoral brasileiro ou da beira de estradas País afora, Bolsonaro tem trabalhado duro para erodir os pilares do Estado Democrático de Direito e semear a desconfiança entre os cidadãos e entre estes e as instituições democráticas. Seu governo não tem medido esforços para esgarçar ainda mais o tecido social e dividir os brasileiros em falanges. Nunca o grau de confiança dos cidadãos, entre si e em relação ao governo, foi tão baixo, como apontou um recente estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Diante desse cenário de aparente terra arrasada, é compreensível, pois, a falta de confiança de muitas pessoas na capacidade do País de parar, refletir e traçar novas rotas para sair dessa crise de múltiplas dimensões da qual parece ser um prisioneiro. Mas, por incrível que pareça, há razões para otimismo, ainda que cauteloso e vigilante. Há dados objetivos para acreditar que a sociedade será capaz, se quiser, de virar uma das páginas mais sombrias da história nacional.

Nos últimos três anos, a democracia brasileira foi submetida ao maior teste de estresse desde 1985, quando a liberdade foi reconquistada após longos 21 anos de ditadura militar. Nenhum presidente da República desde a redemocratização pregou e atuou com tanto afinco como Bolsonaro para desacreditar o valor do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso, dos partidos políticos, da imprensa livre e profissional, da educação, da ciência e da cultura como elementos essenciais para a construção de um país livre, justo e desenvolvido.

Não obstante as agressões, há vibrantes sinais de resistência que demonstraram a resiliência do regime democrático no Brasil, ora sob ataque. No STF, no Congresso e nas organizações da sociedade civil não foram poucas as ações que se contrapuseram às investidas liberticidas de Bolsonaro e seus esbirros espalhados por diferentes órgãos do governo e fora dele.

No curso da pandemia, foi notável a reação ao negacionismo mortal do presidente empreendida pelo STF, pelo Congresso, pelos entes da Federação e, principalmente, pelos cidadãos. Não é exagero dizer que todas essas instituições reagiram como reagiram porque souberam aferir o pulso dos cidadãos, majoritariamente contrários à “gestão” federal da emergência sanitária.

A agenda reacionária encampada por Bolsonaro, que lhe serviu para angariar votos na campanha eleitoral, teve pouco espaço para avançar na atual legislatura. Bolsonaro é o presidente que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa, mesmo sendo o recordista em pagamento de emendas parlamentares. Com todos os seus erros e acertos, o Congresso está em pleno funcionamento. Sinal mais vigoroso de resistência democrática não há.

Graças à imprensa livre e profissional, a sociedade tomou conhecimento de escândalos que rondam o presidente e pessoas de seu entorno, como as “rachadinhas”, o “orçamento secreto” e as interferências ilegais em órgãos da administração pública e instituições de Estado.

Como já foi dito nesta página, a democracia não se sustenta por si só, apenas pela força de suas virtudes. É preciso batalhar por ela. E diante de tudo o que o País viveu nesses três últimos anos, nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a protegê-la de ataques cada vez mais audaciosos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17 de janeiro de 2022

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A precariedade dos jovens ameaça a democracia

A falta de expectativas no local de trabalho e a imobilidade política estão lançando os jovens de forma alarmante em um novo paradigma anti-sistema, individualista e reacionário. 

Um jovem espera para entrar em um Escritório de Emprego em Valência no ano passado. (Rober Solsona / Europa Press).

Um menino de cerca de 22 anos se aproximou de mim para me perguntar se eu acreditava que a democracia representativa estava "exaurida" para defender os interesses dos jovens, e ao me recuperar do meu espanto pensei que, de repente, as piores previsões que eu havia exposto para eles foram confirmados durante a pré-palestra. Ou seja, a tese de que estamos criando uma geração de jovens anti-sistema , porque eles não se sentem vinculados ao sistema, lançando-os numa espécie de noventayochismo juvenil, que mais cedo ou mais tarde estourará diante de nossa estupidez democrática.

Basta observar o coquetel que nossos jovens vivenciam no dia a dia (niilismo, frustração, raiva, tristeza ...) ao assumir que não existem instituições ou grupos sociais capazes de oferecer uma alternativa à sua precariedade. Esse abandono está se traduzindo gradativamente em um paradigma de para si mesmo que pode , de um individualismo flagrante, não encontrar soluções aplicadas, não para a direita, mas não para a esquerda, onde se refugiar. Embora o segundo, é claro, seja aquele que vai acabar fracassando ainda mais antes da imolação do ideal de progresso comunitário.

Talvez a política espanhola possa encher a boca de ter encontrado remédios eficazes, senão curas paliativas, para o drama das rendas ou do trabalho. Talvez o sindicalismo seja o seu referencial hoje, sabendo que se não se quer certas condições de trabalho, alguém na fila atrás dele as vai querer, cheio de garotos do mesmo grau e desespero. A maioria acenou para mim que não confiava nesses agentes sociais como intermediários.

O problema com a representação juvenil é de tal calibre que até transcende fronteiras. Na Alemanha, abriu-se o debate sobre a redução da idade para votar, como forma de corrigir seu desamparo, por meio de incentivos eleitorais. Não seja ingênuo: se a política investe tanto esforço na previdência, é porque os boomers e os aposentados colocam e levam governos em todo o continente, inclusive na Espanha.

Porém, ser um jovem da classe abastada nunca significará o mesmo que o da classe humilde, porque o primeiro verá sua situação aliviada no longo prazo pelo patrimônio familiar. Embora seja enganoso confiar o drama juvenil a uma mera questão de classe ou status. Há indícios para intuir a formação de uma nova cultura ou socialização entre os jovens, o que até quebra padrões em outra área da vida social como o emprego.

Amostra é o chamado fenômeno da Grande Renúncia. Milhares de jovens deixam seus empregos nos Estados Unidos, atolados em uma mistura entre a exaustão emocional e a falta de sentido de resistir em condições miseráveis. Por que deixar sua pele naquela empresa que não se adapta às suas necessidades por mais tempo ou flexibilidade no ambiente de trabalho, se em troca não terá estabilidade ou garantias de longo prazo. O emprego deixou, portanto, de ser um dos pilares sólidos aos quais se agarrar, mesmo em um contexto de incerteza como a pandemia.

Em nosso país, as consequências desse noventayochismo são evidenciadas pela desconfiança no futuro. Se a nostalgia reacionária prolifera, é porque explodiu a ideia clássica do progresso como motor de obtenção do bem-estar. Poucos jovens hoje pensam que o amanhã será melhor que o presente, por isso olham para o passado na busca incessante daquela prosperidade que uma sociedade que agora lhes dá as costas promete.

Soma-se a isso a suposição de que a política, como eles a conhecem, é irreformável. Apenas 10 anos se passaram desde o 15-M, um marco que com perspectiva deve ser entendido como um apelo reformista final sobre os pilares do nosso sistema político. No entanto, o desapontamento com esse fracasso pode, doravante, assumir outras formas destrutivas. O principal risco é que muitos jovens hoje tomem a democracia como um dado adquirido, borrando o medo de uma possível involução, uma vez que não vivenciaram o clima da Transição.

Apesar disso, há janelas para otimismo. Os jovens lutam coletivamente em causas como o feminismo, as alterações climáticas ... porque aí eles acreditam que o sistema pode ser ainda diferente. Protestos recentes, como o do setor siderúrgico, trouxeram até uma memória comum que estava enterrada, fator fundamental para combater sua atomização social: direitos ou melhorias salariais, antes, eram travados juntos. Embora, a esperança sempre possa ser frustrada.

De repente, a menina que acompanhava o menino interveio. Ambos sugeriram, se não fosse um problema, que a democracia era "cada vez mais uma luta entre grupos de identidade", em detrimento da questão econômica. Eu respondi que se eles tivessem um irmão, um primo, um amigo ou um vizinho que fosse LGTBI ... eles não iriam remar com eles por sua liberdade? Eles acenaram com a cabeça, para meu descanso, porque a reclamação nunca será a reivindicação dos direitos dos grupos vulneráveis.

O verdadeiro perigo é que, uma vez que os nossos jovens sintam que nada podem fazer para melhorar as suas condições materiais de vida ou de trabalho, abraçem aquela anti-política que os convida a lutar contra os diferentes, com medo de continuar a perder alguma coisa. "Pelo menos a identidade que ninguém tira de mim." Talvez assim pensem alguns, de maneira tão errônea quanto falsa, naquele novo paradigma anti-sistema , individualista e reacionário, ao qual os estamos lançando de forma alarmante.

Estefanía Molina, a autora deste artigo, é cientista política e jornalista. Ela é a autora de The political tantrum (Destiny). O texto acima foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de aneiro de 2022.

A ética da responsabilidade dos intérpretes da Constituição

A Suprema Corte e os magistrados constitucionais devem agir de forma que suas resoluções sejam percebidas como justas, e não como resultado de convicções partidárias ou cego voluntarismo doutrinário.

O trabalho dos intérpretes da Constituição está sujeito à observância inequívoca, verificada e incondicional de um conjunto de valores e princípios de natureza material ou substantiva, que constituem a base ideológica do Estado Constitucional, e cuja afirmação está ligada a a definição da Constituição Constituição feita pelos nossos constituintes como “Carta Magna de dignidade, harmonia civil, liberdade e justiça social”.

No preâmbulo da Constituição e nos seus artigos, é proclamado um núcleo de valores, que são expressão dos limites do Estado constitucional, que é estabelecer a justiça, a liberdade e a segurança, promover o bem comum de todos nós que constituem a nação e garantem a convivência democrática dentro da Constituição e das leis de acordo com uma ordem econômica e social justa, que compõem a ideologia coletiva que compartilhamos como membros da comunidade política decorrente de um cenário de liberdade sob a proteção de nossa Lei Básica.

Os valores de liberdade, igualdade, justiça e pluralismo político, consagrados como valores superiores do ordenamento jurídico no artigo 1º da Constituição , enquadram a função hermenêutica dos intérpretes da Constituição, que não podem ignorar ou se furtar a qualquer desses valores na resolução de litígios de qualquer natureza que surjam antes de sua sede.

A par destes valores constitucionais, que estão na base do Estado constitucional, concebido como Estado social e democrático de direito, se descobre no texto constitucional um conjunto de valores, entre os quais vale destacar a dignidade humana, o espírito do a abertura e a tolerância, o Respeito pela liberdade dos outros, a diversidade ideológica e cultural, a solidariedade, a justiça social, a coesão social e territorial, que definem o âmbito de ação de todos os poderes do Estado e a conduta da cidadania.

Mas, para além destes valores, a Constituição estabelece princípios éticos expressamente dirigidos aos chefes das instituições do Estado, constituídas sob a sua tutela, incluindo os órgãos que constituem o aparelho judicial: o princípio da submissão à Constituição e às leis, o princípio da lealdade constitucional, o princípio da transparência, o princípio da responsabilidade ou o princípio da interdição da arbitrariedade, que procuram limitar o exercício da autoridade pública e prevenir o uso abusivo do poder.

A função desses princípios e valores é dignificar as instituições do Estado, na medida em que atuam como guardas que protegem a sobrevivência do sistema democrático, que seria seriamente corroído se comportamentos dos funcionários públicos contrários à Constituição fossem impostos no âmbito político. realidade e estatuto jurídico do Estado de Constituição.

É indiscutível que a democracia constitucional se desenvolve, se fortalece e resiste quando todos os atores constitucionais exercem suas funções conscientes do peso da responsabilidade que assumem no acesso a cargos e cargos públicos. O Estado constitucional falha e a Constituição perece num cenário potencial de flagrante desprezo ou desrespeito pelo círculo virtuoso dos valores éticos referidos às ideias de honestidade, exemplaridade, responsabilidade e responsabilização.

Estes deveres éticos são particularmente exigíveis dos poderes que lhe são conferidos de forma proeminente a missão de interpretar a Constituição, - juízes e magistrados membros do judiciário e magistrados do Tribunal Constitucional - que devem exercer as suas funções jurisdicionais com retidão, temperança, profissionalismo, com extremo rigor jurídico, com sentido de ponderação, para que as suas resoluções sejam percebidas como justas, fruto de um bom trabalho judicial, assente na correta aplicação dos métodos de interpretação do Direito Constitucional, e não como consequência das convicções partidárias, do mero subjetivismo ideológico ou do voluntarismo doutrinário cego.

A caracterização dos intérpretes da Constituição como independentes e imparciais exige uma predisposição para exercer as suas atribuições de forma objetiva, com plena submissão ao Estado de Direito e ao direito, sem estar condicionada pelos interesses das partes no processo ou por terceiros persuadidos. dos deveres legais que implica o cumprimento dessas garantias processuais para preservar a confiança dos cidadãos nas instâncias jurisdicionais.

O espírito de temperança e moderação exige dos intérpretes constitucionais o esforço intelectual de contenção necessário para que suas decisões não contribuam para a politização da justiça ou a indesejável judicialização da política, que degradam o bom funcionamento do Estado democrático.

Em particular, aos juízes constitucionais, que têm a missão de controlar, na perspetiva e na dinâmica jurídica, a submissão à Constituição do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial, através do prosseguimento dos processos constitucionais, em Defesa do A própria ordem constitucional, a comunidade jurídica e a sociedade em geral exigem que exerçam a sua função de vigilância e fiscalização, conscientes de que as possibilidades de intervenção não são ilimitadas - como advertiu o ilustre jurista presidente do Tribunal Constitucional, Manuel García Pelayo-. Os juízes constitucionais estão proibidos de impor seus critérios acima ou fora dos desígnios ou mandatos da Constituição, mas também de usurpar os poderes que correspondem ao poder constituinte.

A justiça constitucional não pode negar ou obscurecer o papel que cabe ao Parlamento e ao Governo, conforme argumentado pelo juiz da Suprema Corte do Reino Unido Jonathan Sumption, no cumprimento dos direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ecológicos reconhecidos no Constituição.

É responsável por construir uma base jurídica sólida o suficiente para construir uma democracia avançada, plena e forte, apoiada na proteção dos direitos humanos, dotada da autoridade necessária para ser governada de forma eficaz na busca do interesse geral e do bem comum.

A ética comunicativa, no sentido de Jürgen Habermas, exige que os intérpretes constitucionais desempenhem suas funções no contexto da racionalidade argumentativa e com total transparência, para que os cidadãos possam ver que a justiça é feita.

O discurso da ética pública fornece aos intérpretes da Constituição uma base legitimadora de suas ações, na medida em que suas resoluções só são lícitas quando se baseiam na busca da extensão da liberdade, da igualdade e da justiça e buscam e promovem a paz social.

Sabendo o que significa a Constituição, o intérprete constitucional deve buscar a defesa da democracia entendida como razão pública, preconizada por Amartya Sen, estando plenamente comprometidos com a ideia de que, ao decifrar o conteúdo dos dispositivos constitucionais e resolver tensões e conflitos, contribuem de forma decisiva caminho para o desenvolvimento e consolidação do Estado constitucional, uma vez que o seu trabalho visa estabelecer o sentido das normas constitucionais, estando em jogo a determinação, o sentido e o conteúdo dos valores democráticos que regulam as condições de liberdade dos cidadãos e definem o poderes dos órgãos constitucionais.

A boa governação do Estado constitucional exige que os órgãos constitucionais com competência para interpretar a Constituição respeitem de forma absoluta os imperativos de natureza substantiva e ética que regem a sua actividade, ajudando assim a iluminar o universo axiológico da democracia, constituído pelos valores da democracia. • a coexistência, o respeito mútuo e a fraternidade e o fortalecimento da democracia jurídica, que constitui um dos componentes do Estado constitucional essencial para garantir a estabilidade institucional, combater a desigualdade e a injustiça e gerar bem-estar e prosperidade.

José Manuel Bandrés, o autor deste artigo, é magistrado do Supremo Tribunal do Reino da Espanha. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de janeiro de 2022.