terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ômicron: dados ainda são insuficientes, mas variante tem potencial gigantesco de disseminação, diz virologista

Baixa vigilância sobre variantes na América Latina vira ameaça ao mundo

Após Alfa, Beta, Gama e Delta, ômicron entra na lista das variantes de preocupação do coronavírus mantida pela OMS (Getty Images)

O presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), Flávio da Fonseca, diz que os dados disponíveis até o momento sobre a variante ômicron ainda são insuficientes para prever o impacto que terá, mas aponta que ela tem "potencial de disseminação gigantesco".

"Embora os dados ainda sejam fragmentados, está claro que ela (ômicron) tem potencial de disseminação gigantesco — pelo número alto de mutações e pela rapidez com que já se disseminou", disse em entrevista à BBC News Brasil o virologista, que também é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A variante ômicron do coronavírus, detectada na África do Sul, acendeu o alerta entre autoridades de saúde de todo o mundo nos últimos dias - o que gerou medidas restritivas principalmente relativas a viagens com origem em países do sul da África. As ações foram condenadas pelo governo da África do Sul, que as considera injustificadas (leia mais abaixo).

A quantidade e a variedade de mutações na ômicron, algumas delas inéditas, vêm sendo apontadas como motivos de preocupação por cientistas. A nova variante tem uma longa lista de alterações genéticas — 50 no total. Destas, 32 estão na proteína spike (ou espícula) do vírus — a parte que conecta o microorganismo à célula humana para iniciar a infecção.

Ômicron pode ter efeito como o da delta no Brasil?

Antes de sabermos da existência da ômicron, outra variante levou países da Europa e de outras regiões a registrarem novas ondas de infecções: a delta.


É cedo para prever, diz Fonseca. É que a resposta para esta pergunta depende principalmente de dois pontos que ainda não estão claros: dados sobre como as mutações verificadas na variante afetam ou não a eficácia das vacinas e informações sobre o comportamento da variante em países com cobertura vacinal maior que a verificada no sul da África.

"Neste momento, é difícil dizer se a ômicron teria um impacto mínimo na nossa sociedade como a delta teve", diz Fonseca.

"Na delta, com nossa cobertura vacinal crescendo rápida e adequadamente, e com o fato de que tivemos segunda onda muito intensa com um vírus que também apresentava muitas mutações (gama), isso em conjunto explica o impacto que a variante teve no Brasil quando comparado à Europa."

Em seguida, no entanto, ele alerta que a ômicron apresenta uma "constelação de mutações que vai muito além das existentes na gama ou na delta".

É por isso que cientistas buscam agora entender se as vacinas atualmente em uso são capazes de dar a mesma proteção em relação à ômicron.

Fonseca diz que essa resposta, por sua vez, ajudará a entender o possível impacto da variante no Brasil. Além desse fator, ele reforça que os pesquisadores estão atentos ao comportamento dessa variante em regiões com maior cobertura vacinal do que o sul da África, como alguns países da Europa, para buscar mais elementos para tentar prever impactos em território brasileiro.

Presidente da África do Sul condenou as proibições de viagens decretadas contra seu país e seus vizinhos devido à ômicron (Getty Images)

Diversos países já conseguiram detectar casos da variante, como Reino Unido, Alemanha, Itália, Austrália, República Tcheca, Israel, Bélgica, Honk Kong, Botsuana, além da África do Sul.

No Brasil, ainda não houve divulgação oficial de casos da nova variante.

O governo brasileiro anunciou, na noite de sexta-feira (26/11), o fechamento de voos vindos de seis países do sul da África.

EUA, Canadá, União Europeia e Reino Unido estão entre os que anunciaram uma sequência de restrições a viagens e voos vindos de locais em que já há casos confirmados de infecção desse novo tipo de coronavírus.

Depois do anúncio dessas medidas, o presidente da África do Sul condenou as proibições de viagens decretadas contra seu país e seus vizinhos devido à ômicron.

Cyril Ramaphosa disse estar "profundamente desapontado" com as medidas, que ele descreveu como injustificadas, e pediu que as proibições fossem suspensas com urgência.

A ômicron foi classificada como uma "variante de preocupação" pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e informou que evidências preliminares sugerem que essa variante oferece um risco maior de reinfecção de covid-19 do que suas antecessoras.

A médica sul-africana que primeiro identificou a nova variante ômicron do coronavírus, Angelique Coetzee, diz que os pacientes infectados até o momento mostram "sintomas extremamente leves" — mas mais tempo ainda é necessário para avaliar o efeito em pessoas vulneráveis.

Questionada se os países em que a variante foi identificada estão em pânico desnecessariamente, Coetzee diz que, neste momento, avalia que sim.

"Os casos já devem estar circulando nos países sem serem notados. Então, nesse momento, eu diria que com certeza [o pânico é desnecessário]. Em duas semanas, talvez nossa avaliação mude."

Laís Alegretti - @laisalegretti, de Londres para a  BBC News Brasil, em 30 novembro 2021, 11:21 -03

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Moro diz que está conversando com outros partidos para apresentar um 'projeto de Brasil'

No discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidosNo discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. 

O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidos | Foto Divulgação

Sergio Moro continua requisitado pelo mercado financeiro. Mais do que nunca candidato, gravou no fim de semana, em São Paulo, um vídeo de 40 minutos que será exibido no dia 7 no evento Money Week, da EQI Investimentos.

Nele, Moro anuncia que está conversando com outros partidos políticos para apresentar um "projeto de Brasil" em 2022.

O ex-juiz também mostrou-se enquadrado num novo figurino. E não está se falando do terno, camisa social e gravata preta de seus tempos de magistratura — ele estava de paletó azul marinho e camisa social azul clara. Mas da nítida preocupação com a diversificação dos temas: falou por cerca de dez minutos sobre a importância do meio ambiente.

Moro também reafirma seu compromisso de combater a corrupção, deixa claro que é a favor do livre mercado e defende a venda de estatais. Diz Moro:

— Quero deixar claro que sou a favor das privatizações. O que precisamos avaliar é o modelo. Para não transformar eventualmente um monopólio público em um monopólio privado.

Prudentemente, não antecipa se é favorável a desestatizar o Banco do Brasil e a Petrobras, dois sonhos dourados do mercado financeiro.

No mais, diz aquilo a Faria Lima gosta de ouvir. Reforçou que chamou Afonso Celso Pastore para elaborar o seu plano econômico, que tem preocupação com a responsabilidade fiscal, que a iniciativa privada é mais eficiente que o estado e que ainda o país não venceu o desafio da educação.

Lauro Jardim n'O Globo online, às 17:25 de 29/11/2021 

Variante ômicron representa risco global muito alto, diz OMS

Apesar de incertezas sobre transmissibilidade e gravidade, Organização Mundial da Saúde alerta que nova cepa tem mutações preocupantes e pode ter "consequências graves". Variante já chegou a mais de dez países.

A nova variante ômicron do coronavírus, detectada inicialmente no sul da África e potencialmente mais contagiosa, representa um risco global muito alto, afirmou a Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta segunda-feira (29/11).

A agência da ONU afirmou que a ômicron provavelmente vai se espalhar internacionalmente e pode ter "consequências graves" em algumas áreas. A entidade pediu que países acelerem a vacinação de grupos vulneráveis e tenham "planos de mitigação" para o caso de uma alta nas infecções.

Embora ainda haja incertezas em relação ao quão contagiosa e perigosa seja a ômicron, a OMS ressaltou que a nova cepa tem um número sem precedentes de mutações da proteína spike (ou proteína S) do coronavírus, "algumas das quais são preocupantes por seu potencial impacto na trajetória da pandemia".

"O risco global geral relacionado à nova variante é avaliado como muito alto", afirmou a OMS, alertando para possíveis novas ondas de covid-19 impulsionadas pela ômicron.

A presença de mutações múltiplas da proteína spike sugere que a ômicron pode ter uma alta probabilidade de fuga imunológica da proteção por meio de anticorpos e ser mais transmissível, apontou.

A agência ressaltou, no entanto, que são necessários mais estudos sobre o potencial de a nova variante escapar da imunidade induzida tanto por vacinas quanto por infecções anteriores e que ainda não foram registradas mortes ligadas à cepa.

Variante se espalha pelo mundo

A variante foi detectada inicialmente em amostras coletadas em 11 de novembro em Botsuana e em 14 de novembro na África do Sul. Ela foi reportada pela primeira vez à OMS no dia 24 de novembro pela África do Sul, onde somente 24% da população foi completamente vacinada contra a covid-19 e as infecções vêm aumentando acentuadamente.

"Uma alta dos casos, independentemente de uma mudança na gravidade [da doença], pode significar demandas esmagadoras para sistemas de saúde e pode levar a um aumento da morbidade e da mortalidade. O impacto em populações vulneráveis poderia ser significativo, particularmente em países com baixa cobertura vacinal", alertou a agência da ONU.

Após ser reportada pela África do Sul, a variante ômicron já chegou a mais de dez países, entre eles os europeus Alemanha, Bélgica, Itália, Holanda, Dinamarca, República Tcheca, Reino Unido e Portugal. A Áustria e a França analisam casos suspeitos. O Canadá confirmou duas infecções no domingo. Israel e Austrália também tem um caso confirmado cada.

A Anvisa comunicou neste domingo que um brasileiro que passou pela África do Sul está com covid-19, mas ainda não está claro se a infecção dele é com a ômicron.

Países tentam se blindar

A nova variante levou vários países a anunciar restrições de viagens. O Brasil, o Reino Unido, os Estados Unidos e vários países da Europa impuseram restrições para viagens com origem na África do Sul e países vizinhos.

Nesta segunda-feira, embora ainda não tenha detectado nenhuma infecção pela ômicron, o Japão se juntou a Israel e anunciou o fechamento de suas fronteiras para todos os estrangeiros.

"Estamos adotando esse passo como uma precaução emergencial para evitar o pior caso possível no Japão", anunciou o primeiro-ministro, Fumio Kishida, acrescentando que a proibição entra em vigor nesta terça. "Trata-se de uma medida temporária e excepcional que estamos adotando por segurança até que haja informações mais claras sobre a variante ômicron."

No comunicado emitido nesta segunda, a OMS reiterou que países deveriam adotar "uma abordagem baseada nos riscos para ajustar suas medidas de viagens internacionais" e pediu cautela em relação a proibições de viagens.

"Com a variante ômicron agora detectada em várias regiões do mundo, adotar proibições de viagem mirando a África afronta a solidariedade global", disse a diretora regional da OMS Matshidiso Moeti.

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, apelou a países de todo o mundo para que encerrem logo as restrições a viajantes vindos do sul do continente africano. Ele disse que se trata de uma medida discriminatória, para a qual não há justificativa científica. O chefe de Estado afirmou que o bloqueio apenas prejudica ainda mais a economia e dificulta a capacidade de resposta perante a pandemia de covid-19.

O governo do Reino Unido convocou uma reunião de emergência para esta segunda-feira entre ministros da Saúde dos países que integram o G7, grupo das sete economias mais desenvolvidas do mundo, para debate sobre a variante ômicron.

Deutsche Welle Brasil, em 29.11.21

Escolha de Doria impõe ‘divã’ ao PSDB para curar feridas e ganhar fôlego como terceira via em 2022

Governador paulista é tido como pouco “palatável” e não poupou confrontos na campanha para ser lançado candidato à presidência pelo partido. Com a vitória, terá de refazer laços ao mesmo tempo em que prepara ataques a Lula e Bolsonaro

Ao centro, o governador paulista João Doria comemora vitória nas prévias do PSDB, ao lado do presidente da sigla, Bruno Araújo, e de Eduardo Leite, principal adversário na disputa. (Evaristo Sá / Agencia France Press - AFP)

O maior adversário de João Doria nunca esteve exatamente entre seus pares, por mais que não lhe faltem desafetos dentro e fora de seu partido. O tucano, agora na versão presidenciável, terá que trabalhar o temperamento egocentrado para juntar os cacos que ele ajudou a espalhar dentro do PSDB. A despeito da bem-sucedida campanha de vacinação que encampou desde o início da pandemia de coronavírus e de números razoavelmente positivos da economia estadual, Doria, com vitória apertada nas prévias, terá a tarefa de reconstituir relações internas que serão encaradas numa espécie de divã pré-eleitoral pelas lideranças de seu partido.

O governador de São Paulo precisará alinhar as expectativas e interesses pessoais ao mesmo tempo em que a sua candidatura se depara com o desafio de virar naturalmente uma terceira via. A interlocutores, logo depois do resultado de que fora vitorioso nas prévias, deu a entender que a busca por apoio dentro do partido deve andar de mãos dadas à desconstrução das imagens do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do atual mandatário, Jair Bolsonaro. Mais que isso, Doria entende que o momento é de atrair para sua campanha nomes que disputam com ele furar a bolha do petismo e do bolsonarismo. Sergio Moro será procurado para uma conversa com Doria na próxima semana, ainda que o ex-juiz já tenha se colocado em campo, com viagem marcada para o Nordeste em janeiro, numa extensão da agenda camuflada de candidato que assumiu há pouco mais de um mês.

O desempenho apertado de Doria nas prévias é atribuído por pessoas próximas à dificuldade que ele encontrou para estabelecer novos aliados ou recompor antigas amizades, que, com o tempo, tornaram-se adversários muito além do fogo amigo. Dois deles ajudaram a colocar lama na areia movediça com que o paulista se deparou ao longo do processo para escolha do presidenciável do partido. Depois do fiasco da primeira eleição, no domingo passado, os ex-governadores de Minas Gerais, Aécio Neves, e de São Paulo, Geraldo Alckmin, reforçaram nos últimos dias o que parece ser uma revisitada política do café com leite, àquela que, durante a Velha República, mostrou a briga entre oligarquias paulista e mineira pelo poder nacional.

Agora numa versão exclusivamente tucana, os ex-governadores tiveram influência direta na forma como Doria atuou desde o início do ano, uma vez que procuraram fazer refluir o poder de Doria no partido e, assim, tentar recuperar o espaço que ambos perderam por diferentes motivos: Aécio foi flagrado pedindo propina de 2 milhões de reais para um empresário, enquanto Alckmin foi responsável pelo pior desempenho do PSDB numa eleição presidencial, em 2018, quando ficou em quarto lugar com cerca de 5% dos votos.

Tanto Aécio quanto Alckmin trabalharam nos bastidores a favor do principal adversário de Doria nas prévias, o governador gaúcho Eduardo Leite. Aécio fez jantares com lideranças, em Brasília e Minas, no intuito de atrair simpatizantes. Seus aliados foram a campo. “Estamos fechados com o Leite”, disse o presidente do diretório do PSDB em Minas, que em fevereiro deste ano reuniu 14 parlamentares em um almoço em torno de Leite, em Porto Alegre. Alckmin, padrinho político de Doria, também formou um time contra seu afilhado. Márcio França (PSB), outro ex-governador de São Paulo, aliou-se a Alckmin nas críticas a Doria. “Há tempos que o Doria não governa o Estado, deixou para o Rodrigo (Garcia, atual vice). O projeto do Doria sempre foi chegar a presidente, mas não consegue uma eleição tranquila nem no seu próprio partido.”

Enquanto isso, o governador de São Paulo procurava personificar-se como uma figura central do PSDB, aumentando dia após dia fissuras num partido que anda distante da polarização para 2022 que se avizinha entre o PT de Lula e Jair Bolsonaro, prestes a ingressar no PL. Diante da estatura política ou eleitoral dos adversários, Doria buscou apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que o recebeu em um jantar regado a água com gás em seu apartamento em Higienópolis. FHC gravou um vídeo de apoio ao governador paulista, não sem antes lembrar que Doria precisaria controlar o temperamento intempestivo para que o partido não se tornasse uma armadilha de suas próprias intenções eleitorais.

O tucano ainda enfrentou a prévia com especulações de uma debandada em massa de correligionários do PSDB. Aécio e Alckmin estariam à frente do movimento dissidente na sigla a partir da vitória de Doria nas prévias. Doria precisou dar garantias de espaço aos aliados num eventual Governo, ainda que as pesquisas de intenção de voto não parecem animadoras em ninho tucano, o que tem feito com que parlamentares avaliem um realinhamento de rota. Levantamento do EL PAÍS divulgado um dia após o fiasco da primeira tentativa de eleição, domingo passado, mostrou que pelo menos 13 dos 33 deputados tucanos pensam em deixar a legenda a partir de abril, quando é aberta a janela partidária, para possivelmente ingressar em partidos do Centrão.

Estudiosos da política nacional falam da importância em estabelecer uma relação partidária sem trincas. “Há uma ideologia em torno do petismo e do bolsonarismo, o que o PSDB perdeu em grande medida ao longo dos últimos anos, e isso não é de responsabilidade do Doria. Mas ele terá que rezar na cartilha e buscar apoio de grupos ligados a figuras com as quais estabeleceu uma relação fratricida”, reitera o analista político Rubens Figueiredo.

Ao mesmo tempo em que suava a camisa polo para ganhar apoio nas prévias, seu entourage trabalhou para aplacar o fogo amigo com o discurso da excelência em gestão, o mesmo que o levou à Prefeitura de São Paulo, em 2016, mas que perdeu simpatizantes com o tempo. Doria precisava de musculatura, principalmente contra Eduardo Leite, que, além de exibir o physique du rôle em suas redes sociais, também alardeava uma política de resultados no Rio Grande do Sul, onde sanou dívidas e colocou em dia o pagamento de servidores públicos. A luta contra a pandemia do coronavírus tornou-se bandeira de Doria para tentar fazer dele o único governador responsável por produzir e distribuir vacina para boa parte dos primeiros brasileiros que conseguiram se imunizar. Nem por isso, deixou de avançar sinais. Um trabalho da Agência Lupa, de verificação de dados, mostrou que a redução no número de mortes por covid-19 em São Paulo ocorreu por causa do represamento de dados, e não por políticas de prevenção.

Se é alvo de fogo amigo por conta de suas decisões, o papel de João Doria na campanha de vacinação contra a covid-19 aparece desde já como sua provável principal plataforma eleitoral. Na contramão do Governo federal, que chegou a negar a necessidade de vacina e pregou contra os protocolos de segurança contra a doença, o Governo de São Paulo atuou fortemente para introduzir o imunizante não só no mercado paulista, mas em todo o território. Quando havia cerca de 20% da população vacinada com a primeira dose, a CoronaVac —produzida em parceria entre a chinesa Sinovac e Instituto Butantan, era responsável por quase a totalidade de imunização naquele período.

O empenho do governador rendeu elogios de opositores. No entanto, uma informação vinda à tona na semana passada mostrou que os próprios tucanos tentaram adiar o início da vacinação pelo Governo de São Paulo. Eduardo Leite admitiu ter conversado com Doria a pedido do Governo federal para adiar o início da campanha, sob pretexto de que se fazia necessária uma mobilização nacional. Doria não recuou e no dia ‘7 de janeiro, num evento acompanhado ao vivo pelas emissoras de TV, o Governo de São Paulo deu o pontapé inicial à campanha que ajudou a diminuir os números da doença.

Mesmo orientado a evitar confrontos, o governador continuava comprando briga com personagens importantes do partido pela disputa ao poder. Autoproclamado “um líder confiável, e não palatável”, como repetiu algumas vezes nas últimas semanas, reconhece a dificuldade de interlocução com parte da legenda. Um tucano do alto escalão disse ao EL PAÍS que será necessário colocar o partido numa terapia em grupo para aplacar os traumas.

Dentro do PSDB, o perfil centralizador criou um ambiente indigesto, e restou ao governador correr ele próprio atrás do prejuízo nos últimos meses enquanto nadava contra uma corrente interna. Doria viajou a 21 Estados, reuniu-se com lideranças locais, cobrou lealdade e prometeu empenho para unir o partido. Ligava ele mesmo para cerca de 30 correligionários por dia.

Corrida por votos

A campanha de Doria acompanhou de perto o humor dos filiados. Um núcleo usou um programa de internet que rastreava declarações públicas na imprensa ou posts em redes sociais de vereadores, deputados, senadores, presidentes de diretórios e várias outras faixas de filiados. Telas de TV com a preferência do eleitor foram espalhadas no bunker do tucano. Em azul, mostravam a preferência por Doria, enquanto bolinhas vermelhas indicavam apoio a Leite. Em alguns casos, ao longo das prévias, as bolas mudaram de cor, indicando migração no apoio de uma candidatura para a outra. “Nosso monitoramento mostra desde o início do processo a vantagem do João (Doria). A vitória dele não seria surpresa”, diz Daniel Braga, responsável pelo marketing digital da campanha de Doria.

As estatísticas apontadas no programa de rastreamento indicavam que a briga interna com Eduardo Leite não seria fácil. O humor oscilava, ora a favor de Doria, ora positivamente para o gaúcho. “O João (Doria) fez questão de conversar pessoalmente com muita gente”, diz Marco Vinholi, coordenador de campanha do governador paulista

A agenda de Doria era definida com base na coleta dessas informações, as quais balizavam o mapa de viagens do governador-candidato. Foi num desses encontros, ocorrido no sertão da Paraíba, que Doria discorreu sobre o progresso nos Emirados Árabes. E perguntou: “Alguém aqui já foi a Dubai?”. A sala foi tomada por risadas. Assim que o vídeo viralizou, Doria disse que a pergunta estava inserida num contexto. “Ele é assim, e vai continuar sendo. Doria às vezes parece viver não só fora do ninho tucano, mas em outra dimensão mesmo”, diz um deputado estadual tucano.

A disputa por votos provocou insinuações de que a tesouraria do PSDB havia entrado no jogo. Aliado de Aécio, o deputado estadual Gustavo Valadares (PSDB-MG) publicou no Twitter a informação de que o tesoureiro nacional do partido, César Gontijo, esteve em Belo Horizonte para “pressionar prefeitos que tiveram acesso ao fundo eleitoral em 2020 e cobrando apoio a Doria”. Gontijo não foi encontrado para comentar.

O Estado de São Paulo, embora represente 62% de todos os mais de 1 milhão de filiados registrados no partido (apenas 29.300 votaram), não oferece ainda uma estrada totalmente pavimentada para Doria. O imbróglio no berço tucano acontece justamente com Alckmin no centro do debate. O ex-governador tem intenção de ter seu nome aprovado pelo partido para disputar o Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo paulista, ano que vem. Doria, no entanto, trabalhou para que seu vice, Rodrigo Garcia, deixasse o DEM e, ao ingressar no PSDB, assumisse a corrida à sua sucessão. Na disputa, Doria saiu ganhando e o PSDB confirmou a candidatura de Garcia.

Ao tirar Alckmin da eleição paulista, pelo menos dentro do PSDB, Doria condensou ainda mais os problemas internos. Alckmin tem dito a lideranças que poderá deixar o partido para disputar o posto que já ocupou, ao mesmo tempo em que mantém conversas informais sobre a possibilidade de ser vice na chapa encabeçada por Lula, o que a direção do PSDB tenta evitar. Para isso, dependeria de um realinhamento político pouco provável entre o padrinho e o afilhado. Um ex-secretário do governo paulista hoje influente na Assembleia Legislativa faz um diagnóstico sobre os embaraços impostos ao PSDB nesse processo. “O Alckmin não tem interesse em disputar uma vaga no Congresso, e as conversas no sentido de uma aliança com o PT ainda estão no campo da especulação. Se ele decidir concorrer ao Governo de SP por outro partido, o PSDB perde em força justamente no seu berço político”, diz.

Daqui em diante, Doria seguirá em duas frentes. Além de manter as viagens para angariar o apoio de quem esteve ao lado de Leite, pretende se colocar no espaço ainda esvaziado da terceira via. Para isso, manterá principalmente o embate com Bolsonaro. Assim tem sido nos últimos meses, inclusive com disposição para uma coreografia saltitante no alto de um carro de som numa das manifestações anti-Bolsonaro. Também abraçou publicamente e nas redes sociais os apelidos de “calcinha apertada e coxinha”, como se comum fosse um governante ser tratado dessa maneira até pelo presidente da República. “Ele vai fazer campanha de calça apertada e vai continuar sendo chato”, diz um aliado, lembrando a peça publicitária levada ao ar em que Doria é tido como chato pois cobraria excelência no que faz.

Os tucanos justificaram as prévias como um processo democrático, mas que ao longo do tempo foi contaminada por tentativas dos próprios candidatos de ganhar voto a qualquer preço. Primeiro a tomar um revés foi o próprio Doria. A comissão das prévias do PSDB excluiu o direito ao voto de 92 prefeitos e vice-prefeitos paulistas tidos como próximos de Doria, mas que tiveram filiações contestadas por terem sido feitas foram do prazo limite. Em seguida, foi a vez da campanha do gaúcho ser atingida, enquanto tentava assegurar os votos de outros 34 nomes, que também acabaram foram da eleição pelo mesmo motivo.

Até mesmo o aplicativo de internet que serviria como instrumento de votação foi colocado à prova, criando embaraços para todo o PSDB, enquanto Doria procurava outra saída para a votação. O clima esquentou quando, um dia antes da eleição, um vereador de uma cidade no interior de São Paulo gravou um vídeo mostrando que ele havia conseguido se registrar em nome de um outro filiado escolhido aleatoriamente.

Dias atrás, Doria atacou fortemente o orçamento secreto do Governo Bolsonaro. “Quem manda no orçamento do Governo é o presidente da Câmara. E a gente nunca fez isso na história política do Brasil, exceto agora no Governo Bolsonaro”, disse Doria. O governador, no entanto, também decidiu abrir os cofres e aumentou os repasses de verbas políticas para atender a pedidos de parlamentares. O volume de recursos, considerado inédito entre os políticos, beneficia não só seus aliados na Assembleia Legislativa, mas até mesmo deputados federais. O vínculo de cada parlamentar com as liberações, feitas com recursos públicos, não é divulgado ao público pela gestão tucana. O valor é quase seis vezes o liberado pelo Governo com essa finalidade em todo o ano de 2020 —de aproximadamente 182,9 milhões de reais.

Doria deve permanecer à frente do Palácio dos Bandeirantes até abril do ano que vem, quando terá de deixar o cargo. Até lá, deve manter a rotina frenética de reuniões, visitas, inaugurações e viagens, no papel de governador. Também não abandonará a dieta magra em carboidratos e as aulas de musculação, assim como os polivitamínicos, já apelidados de Vita|D (de Doria, claro), os mesmos que ele distribui para assessores e secretários. O governador de São Paulo entra na corrida à sucessão presidencial com fôlego para uma disputa de 100 metros rasos. Tem pela frente, no entanto, uma corrida quilométrica de obstáculos.

FLÁVIO FREIRE, de São Paulo para o EL PAÍS, em 28 NOV 2021 - 12:24 BRT

Aprovação ao Governo Bolsonaro cai para 19%, nível mais baixo desde que chegou ao Planalto

Pesquisa Atlas mostra que aprovação à figura do presidente também chegou ao índice mais baixo: 29,3% dos brasileiros aprovam seu desempenho. Corrupção, inflação e desemprego são as maiores 

O presidente Jair Bolsonaro durante entrevista coletiva em viagem a Dubai, em 15 de novembro- (AFP)

A aprovação do presidente Jair Bolsonaro alcançou seu índice mais baixo desde o início de seu Governo: 29,3% dos brasileiros aprovam seu desempenho na presidência, enquanto 65,3% o rejeitam, conforme mostra a pesquisa Atlas, realizada pelo AtlasIntel e divulgada nesta segunda-feira. O levantamento também aponta que para 59,7% da população a gestão do mandatário é ruim ou péssima, enquanto 19% a classificam como ótima ou boa. A queda ocorre em meio à crise econômica que atinge o país: 59% dos entrevistados apontaram questões como corrupção, desemprego, inflação, desigualdade social e pobreza como alguns dos principais problemas do Brasil.

A desidratação da popularidade de Bolsonaro já aparecia nas sondagens anteriores, com queda na avaliação positiva do Governo de 36%, em agosto, para 32%, em setembro, para agora não chegar numericamente aos 30%. Já a alta da rejeição evolui de forma menos intensa, passando de 62%, em agosto, para 64% na consulta de setembro —e agora 65%. O levantamento atual ouviu dos 4.921 pessoas de forma on-line, via convites randomizados, entre os dias 23 e 26 de novembro. A margem de erro é de um ponto percentual, para mais ou para menos, e índice de confiança é de 95%.

A primeira pesquisa de popularidade publicada após a conclusão da CPI da Pandemia no Senado —cujo relatório final pede o indiciamento de Bolsonaro por crime contra a humanidade, além de delitos como incitação e propagação da pandemia— aponta um enfraquecimento do núcleo de apoiadores fiéis do bolsonarismo que sempre serviu de flutuador para o Governo em meios às crises que pressagiavam naufrágios. “Esse recorde de impopularidade deveria preocupar o presidente, porque sua aprovação caiu abaixo do que, por muito tempo, considerávamos um piso (30%)”, comenta o cientista político Andrei Roman, CEO do AtlasIntel. Ele destaca que o cenário aponta um fenômeno sustentado, “mais estrutural”, de queda de aprovação, ao lembrar que o presidente só havia despertado proporcional rejeição de forma temporária, quando o noticiário dava conta de escândalos políticos e de corrupção, como o esquema das rachadinhas (que consiste em contratar funcionários fantasmas pelos gabinetes e reter parte de seus salários) no qual sua família é investigada. “Também acontecia quando havia queda de ministros ou de nomes fortes do Governo, mas essa impopularidade agora se dá na ausência de qualquer crise desse tipo”, avalia Roman.

Para o pesquisador, os números indicam que o chamado “núcleo duro do bolsonarismo” não está imune à inflação galopante —os juros já subiram de 2% em janeiro para 7,75% no início de novembro—, ao aumento de preço de mercadorias, como a gasolina, que superou os sete reais, e ao desemprego. Mais de 13 milhões de brasileiros estão sem trabalho (13,2% no último trimestre) e 25 milhões trabalham por conta própria (desde o motorista do Uber ao entregador de comida). A renda do trabalhador despencou 10% no último ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Abaixo da corrupção, citada por 21,4% dos participantes da pesquisa Atlas, aparecem a pobreza e desigualdade social, escolhidas por 19,3% dos respondentes como “o maior problema do Brasil hoje em dia”. Nas pesquisas realizadas em 2020, o indicador “corrupção”, impulsionou a eleição de Bolsonaro em 2018 com a promessa de combatê-la, era citado por 40% das pessoas como o principal problema do país. “A população passou a enxergar a economia como um tema mais importante e 46% acreditam que os preços subiram fora de controle nos últimos seis meses. Essa é uma preocupação que penetra todos os segmentos da sociedade. Enquanto Bolsonaro não controlar a inflação, melhorar os índices de desemprego e gerar crescimento econômico, continuará perdendo apoio”, diz Roman. O cientista político pondera, no entanto, que como o presidente apostou suas fichas no auxílio emergencial distribuído durante a pandemia para chegar a outro eleitorado, tem chance de melhorar sua imagem com a “população que reage a estímulos econômicos”.

A pesquisa Atlas mostra que os desafios econômicos do país devem ser destaque nos debates políticos e eleitorais do ano que vem. “Todos os candidatos terão que demonstrar credibilidade para enfrentar esse cenário. As pessoas acreditavam que, se não com o final, pelo menos com o controle da pandemia a economia poderia melhorar, mas esse horizonte nunca chega.”

Bolsonaro x Moro

A popularidade de Bolsonaro piora no momento em que o xadrez para as eleições de 2022 se movimenta. Enquanto a aprovação de Bolsonaro cai, aumenta a do seu ex-ministro da Justiça —e hoje desafeto— Sergio Moro, recém-filiado ao Podemos e potencial candidato. A pesquisa Atlas aponta que a imagem positiva do ex-magistrado chegou a 30% (era de 25% em setembro), enquanto sua imagem negativa, que chegou a ser de 63% em março deste ano, diminuiu para 55%. “São processos que se retroalimentam”, diz o CEO do AtlasIntel. 

“Na medida em que o Governo enfrenta problemas de diversos tipos, desde gestão incompetente em várias áreas e uma atuação internacional onde fica cada vez mais claro que o Brasil está isolado, Sergio Moro vem se firmando como alternativa ao Bolsonaro dentro do núcleo antipetista da população.”

Quem também teve uma leve melhora de imagem segundo a pesquisa foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: de 46% em setembro para 48%. De acordo com Ronan, isso pode se explicar pela visita do ex-presidente à Europa e o contraste com o tipo de diálogos que Bolsonaro mantêm com líderes globais. O petista discursou no Parlamento Europeu, no dia 15 de novembro, e aproveitou para esboçar uma proposta para a eleição do ano que vem, citando medidas contra a pobreza. Segundo Ronan, a imagem de Lula vem melhorando desde que foram anuladas, em abril, as condenações da Lava Jato que pesavam sobre ele. “44,9% da população é contra a prisão de Lula, mas o mesmíssimo percentual é a favor disso, mesmo depois do processo, e parece quase impossível reverter a opinião desse segundo grupo”, destaca o cientista político, lembrando que os afetos movidos pela figura do ex-presidente também serão uma das dinâmicas mais importantes de 2022.

JOANA OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em  29 NOV 2021 - 06:35 BRT

Os brasileiros que sobrevivem com comida de porco e água suja: 'Um balde para seis tomarem banho'

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

Comunidade da Muvuca, em Maceió, convive ao mesmo tempo com a escassez de alimentos e com a quase total falta d'água (Crédito: Josué Seixas)

Williams Tavares, de 19 anos, interrompe o telefonema com a reportagem para ajudar uma mulher e uma criança a transportar água para dentro da comunidade Muvuca, no Vergel do Lago, uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas. Ele retorna à ligação ofegante.

"Aqui, tudo é precário. Se em alguns dias falta o dinheiro até mesmo para comprar o pão ou a mistura, o que dá para fazer quando falta a água de beber ou de tomar banho?", diz Páscoa, como o morador da comunidade é conhecido.

Há 3,6 mil barracos na Muvuca, diz ele. Em alguns, vivem sete pessoas "espremidas". A BBC News Brasil esteve ali em visita intermediada pelo projeto Consultório na Rua, de acolhimento a pessoas vulneráveis, promovido pela Prefeitura de Maceió.

Era uma tarde, e a comunidade estava em silêncio, com muitos animais e moscas por entre as casas, bicicletas e motos paradas.

Só as mulheres estavam presentes. Os homens saem de casa antes das 7h da manhã para trabalhar. Eles são, em sua maioria, carroceiros e marisqueiros. A maioria volta no fim da tarde.

Não há saneamento básico, e apenas duas torneiras abastecem todas as famílias. Uma das moradoras contou que faz as necessidades fisiológicas em uma sacola, que é descartada na lagoa ou num descampado, hábito comum na região.

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

"Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa", conta Páscoa.

Apesar da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, o preço dos barracos foi inflacionado pela pandemia. Há 12 anos, Alexsandra* pagou R$ 5 mil no dela. Agora, alguns já valem mais de R$ 30 mil.

"As coisas apertaram quando essa pandemia chegou. Meu marido é carroceiro, eu sou dona de casa. Ele vive trabalhando, eu fico aqui ajeitando uma coisa, ajeitando outra", conta ela.

Sem saneamento ou serviços públicos, lixo da comunidade fica jogado e serve de alimento aos porcos. (Josué Seixas).

Água suja

Na casa de Alexsandra, a água chega bem fraquinha. Seu marido, Marivaldo, foi um dos moradores que ajudaram a cavar um buraco a 200 metros da Muvuca, onde fica o "cano-mestre" de água da região.

Graças a doações, os moradores conseguiram interligá-lo a cinco barracos, que daí distribuem a água para os vizinhos.

"Passamos semanas, até um mês, sem água, que não é limpa. É suja. Nós ficamos com dor de barriga, e muita gente fica doente. (Mas) serve para a gente beber, cozinhar e tomar banho. Usamos baldes. Tem dia que um balde serve para cinco, seis pessoas tomarem banho."

Na Muvuca, a distribuição de água é responsabilidade da BRK Ambiental, empresa privada que assumiu os serviços de saneamento na região metropolitana de Maceió em julho deste ano.

A companhia reconhece a falta de uma rede local e explica que "os ramais existentes na localidade e utilizados pela população não fazem parte da rede pública, foram construídos no passado como uma solução informal, não regularizada no município".

A mãe de criança de cinco anos presa há 100 dias por furto de água

A concessionária diz que ainda avalia, junto aos órgãos competentes, como atuará em áreas não regularizadas pelo poder público, mas estima que, até 2027, deve universalizar o acesso à água em toda a Região Metropolitana de Maceió, com investimento de R$ 2,6 bilhões.

Outra moradora, Marleide, de 44 anos, conta que uma forma de contornar a falta de água é pagar a alguém para buscar no Rio do Remédio, que se encontra com a lagoa ali perto. "E nem sempre está boa para beber, viu?"

Marleide ajuda a cuidar da sogra, a ex-marisqueira Maria, de 56 anos, conhecida como Vaninha, que ficou cega por conta da diabetes e passa a maior parte do tempo deitada na cama.

Ela depende da família para ter água para o banho e se sustentar, porque o dinheiro da aposentadoria não tem sido suficiente para comprar comida e remédios.

Há 3,6 mil barracos na comunidade Muvuca, diz ele (Josué Seixas)

'Somos esquecidos'

Páscoa vive em um barraco com a avó e a irmã mais nova. Por não serem marisqueiros ou carroceiros e trabalharem com outras coisas, estão em condições um pouco melhores que a maioria dos moradores da Muvuca.

Antes, quando a família dividia o mesmo espaço entre sete pessoas, ele pedia dinheiro nos sinais de trânsito. Atrasou os estudos por conta disso — hoje, está no segundo ano do ensino médio, e quer cursar Direito.

"Eu fiz um curso de almoxarife, tento fazer bicos, faço um curso técnico de assistente administrativo e quero passar numa faculdade. Dá pra contar numa mão quem tem carteira fichada [emprego CLT] aqui na Muvuca", diz.

"Aqui é a gente pela gente. A Muvuca fica mais afastada de tudo. Não tem médico, remédio, exame, nada. Eu mesmo já fui para uma UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] em cima de uma carroça", conta.

Alexsandra, que estava por perto, completa: "Nós somos esquecidos''.

Como fome vivida no útero e na infância prejudica o corpo por décadas

Páscoa faz a interlocução com os demais moradores da Muvuca e ajuda a coletar água (Crédito: Josué Seixas)

Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em economia regional, diz que, em comunidades como a Muvuca, a pobreza estrutural se soma à dependência de políticas públicas.

"O fenômeno da pobreza não é recente. Podemos dizer que houve uma queda até 2015, mas o processo [de empobrecimento] vem se acentuando desde então."

De acordo com o Ministério da Cidadania, Alagoas tem 689 mil famílias inscritas no CadÚnico de programas sociais federais, das quais 425 mil recebiam o Bolsa Família.

No ano passado, o auxílio emergencial cobriu 1,2 milhão de pessoas no Estado, com um valor que variava entre R$ 600 e R$ 1,2 mil. No segundo semestre, caiu pela metade e, na parcela mais recente, foi fornecido a 717 mil pessoas no Estado, com valores entre R$ 150 e R$ 370.

Como pobreza agrava tragédia 'invisível' de acidentes com queimaduras no Brasil

Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, Alagoas teve mais 38,6 mil pessoas empurradas à pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 89 por mês. O número total chega a quase 1,2 milhão de pessoas, o que corresponde a 35% da população do Estado.

A crise que o país atravessa se revela ainda pior em Alagoas, que tem a quarta maior taxa de desemprego do Brasil (18,8%), acima da média nacional (13,7%), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de agosto.

"Qualquer aumento de desemprego e inflação dificulta muita coisa para essas pessoas. Quando a renda média cai, as pessoas passam necessidade", explica Carvalho.

Amanda, de 25 anos, está grávida e, enquanto segura uma filha, observa outro filho ao seu lado. Na geladeira, tinha só um refrigerante, um saco de banana, um pouco de água e mais dois pacotes de leite em pó.

Eram 15h, e ela ainda esperaria mais três no mínimo até que o marido chegar do trabalho com o pão e uma mistura — ou nada. Ela conta que se pegou chorando ao encarar a geladeira que anos atrás já esteve cheia.

A pandemia foi uma época diferente para Amanda, de 25 anos, e sua família. No começo, por ter dois filhos, recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 1,2 mil e conseguia assim pagar as contas. Beneficiada pelo Bolsa Família por conta dos filhos, Amanda também disse não saber o que seria dela com o fim do benefício.

"Todo dia é assim a luta da gente. Tem dia que Deus manda [comida], tem dia que não manda. Aumentou o preço de tudo, e já estão falando que o gás vai aumentar de novo. Meu Deus do céu, onde a gente vai parar?", diz.

*Os sobrenomes da maioria dos entrevistados foram omitidos para evitar sua exposição.

Josué Seixas, de Maceió (AL) para a BBC News Brasil, em 28 novembro 2021.

Brasil é país com menor rejeição à vacina na América Latina, diz Banco Mundial

Os dados indicam que as repetidas declarações do presidente Jair Bolsonaro que lançam dúvidas sobre a segurança e a eficácia da imunização não encontraram aderência na população brasileira, mesmo entre seus apoiadores.

Enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%

É o que concluiu uma pesquisa feita em parceria pelo Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a partir de ligações telefônicas periódicas a domicílios de 24 países da América Latina. Os dados da segunda fase do levantamento foram apresentados nesta segunda-feira (29/11) em Washington.

Segundo o estudo, enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%. De outro lado, enquanto na média, 51% dos latino-americanos já estão imunizados contra a covid-19, no Brasil, o percentual ultrapassa os 80%.             

No gráfico, em inglês, produzido pelo Banco Mundial, a barra em azul representa o percentual de população vacinada em cada país, em amarelo, a taxa de quem ainda não tomou as duas doses, mas pretende se imunizar, e, em vermelho, a de quem recusa vacina

Bolsonaro é o único líder do G-20 a afirmar não ter se vacinado. O presidente já afirmou, sem qualquer evidência científica, que quem tomasse vacina da Pfizer poderia "virar jacaré", associou o imunizante a desenvolvimento da AIDS e sugeriu que a Coronavac, produzida pelo Butantan em parceria com a China, causava "morte, invalidez, anomalia".

Apesar disso, atualmente o Brasil já supera os americanos e alguns países europeus em cobertura vacinal, graças a forte adesão da população.

Especialistas em saúde pública atribuem o fenômeno à cultura de imunização alimentada por anos em campanhas massivas de vacinação promovidas pelo Sistema Único de Saúde - e em que a figura central era o Zé Gotinha.

Além disso, o fato de o programa de transferência de renda Bolsa Família e as escolas e creches públicas requererem a vacinação para garantir o benefício e as vagas também geram engajamento da população.

Para os estudiosos, no entanto, é preciso estar atento aos possíveis efeitos de longo-prazo de declarações de autoridades contra vacinas. A cobertura vacinal no Brasil vem registrando queda desde 2011 e uma das causas pode ser justamente a hesitação vacinal.

De acordo com o estudo do Banco Mundial, áreas rurais e pobres são hoje as mais afetadas por sentimentos antivacina na América Latina. "Entre os não vacinados, mais da metade afirma que sua indisposição deriva da falta de confiança e uma preocupação com a eficácia da vacina. A hesitação vacinal é particularmente alta entre as famílias rurais e indivíduos com níveis de escolaridade mais baixos. A população do Caribe apresenta os níveis mais altos de hesitação vacinal", afirmam os pesquisadores no relatório.

O Haiti é o país com a menor taxa de vacinação contra o novo coronavírus (menos de 1%) e com a maior proporção de pessoas que dizem se recusar a tomar o imunizante (quase 60%). O Haiti também foi a última nação das Américas a receber doses para iniciar a campanha de imunização, que segue a passos lentos.

Atrás dos haitianos, habitantes de Jamaica e Santa Lúcia são os que mais recusam vacina, com 50% e 43%, respectivamente.

Pesquisa do Banco Mundial sugere que declarações de Bolsonaro que desqualificam imunizantes contra covid-19 não encontraram aderência nem mesmo entre os eleitores do presidente

Saúde melhorou, educação nem tanto

O relatório aponta ainda que o acesso à saúde no continente melhorou e já retornou a níveis pré-pandêmicos.

Enquanto 48% da população latina, em média, buscou atendimento médico emergencial há pouco tempo, percentual semelhante (47%) afirmou ter ido ao médico recentemente por razões preventivas, o que, segundo os autores do estudo, revela que os serviços públicos e privados de saúde já não estão mais sobrecarregados pela pandemia como aconteceu no pico da contaminação na região.

O mesmo, no entanto, não aconteceu em relação ao acesso à educação.

Mais de um ano após o início da pandemia, apenas 23% das crianças em idade escolar na região frequentavam aulas presenciais. No Brasil, o percentual ficou em torno de 40%. A qualidade da educação oferecida à distância e a falta de conexão à internet segura e de qualidade de parte da população geram preocupação sobre o futuro de crianças e adolescentes.

"Menor envolvimento em atividades de aprendizagem e baixo comparecimento face a face representam riscos significativos para os resultados de aprendizagem das crianças e para a acumulação de capital humano. Estimativas recentes revelam que os alunos na região perderam entre 12 e 18 meses de escolaridade. Aqueles de baixo nível socioeconômico foram particularmente afetados, o que sugere efeitos negativos duradouros sobre a mobilidade social e a desigualdade", diz o relatório da pesquisa.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington para a BBC News Brasil em Washington, em 29 novembro 2021, 14:26 -03

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O protesto de ex-escravos no Maranhão que acabou em massacre

Pouco conhecido, episódio ocorrido no Maranhão em 1889 e chamado de "massacre de 17 de novembro" foi motivado pelo receio de que o fim da monarquia e o novo regime republicano significariam a volta da escravidão.

Era ainda bastante precária a comunicação naquele novembro de 1889. Tanto que as notícias de que o Brasil deixava de ser uma monarquia e passava a ser uma república chegaram a São Luís, no Maranhão, apenas na edição de 17 de novembro de 1889 do jornal republicano O Globo — dois dias depois do fato ocorrido no Rio, então capital do país.

Apesar dessa lentidão no fluxo de informações, há algo em comum com os dias atuais: boatos infundados rivalizavam com as notícias verdadeiras e, por vezes, meios de comunicação e jornalistas eram os alvos da ira.

Foi nesse contexto que uma pouco conhecida rebelião ocorreu: entre 2 mil e 3 mil negros, chamados pela imprensa da época de "libertos", "ex-escravos" e "cidadãos de 13 de maio" — em alusão à data da Lei Áurea, proclamada no ano anterior — foram até a praça em frente à sede do jornal, um veículo republicano.

Era um protesto contra a República recém-proclamada e pela volta da monarquia extinta. Mas o que esses militantes queriam, na verdade, era garantir seus direitos. Estavam movidos por uma fake news: a de que o novo regime os "reescravizaria". Na lógica do boato, a explicação estava em dois pontos: fora a monarquia que havia decretado a lei libertadora; e a República tinha na sua base a elite ruralista, ou seja, justamente os escravocratas.

Armados com fuzis, 12 soldados foram destacados para proteger a praça, o jornal, a cidade. E não pestanejaram: dispararam contra a multidão. Oficialmente, foram quatro mortos e dezenas de feridos. Mas historiadores acreditam que o número possa ser ainda maior.

"O massacre de 17 de novembro foi o desfecho violento de um grande protesto de gente negra contra as notícias da proclamação da República", explica o sociólogo Matheus Gato, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e República no Brasil.

"Essas pessoas imaginaram que a mudança de regime podia levar a retrocessos no tocante ao direito de liberdade que muitas delas haviam conquistado pouco tempo antes", acrescenta.

Contribuiu para a confusão o ambiente de profunda desorganização institucional. Conforme conta Gato, as notícias da proclamação no Maranhão foram, naquele momento, veiculadas apenas pelo jornal O Globo — nenhuma instituição oficial havia se posicionado a respeito.

Em artigo publicado no livro História do Maranhão: Novos Estudos, o historiador Luiz Alberto Ferreira afirma que foram mais de 400 os feridos, muito deles com gravidade. E argumenta que os soldados atiraram "para matar", considerando que relatórios da Santa Casa, feitos na época, indicam que muitos "foram alvejados na parte superior do corpo".

O historiador chama o acontecimento de fuzilamento e de massacre.

Assassinato de memórias

A despeito do número relativamente pequeno de mortos, o sociólogo Gato concorda com a definição de massacre porque, além da intenção de matar, a ideia de massacre não seria apenas baseada na "quantidade de vítimas", mas também da maneira como as memórias são assassinadas.

No caso do episódio, eram homens que estavam dispostos a dar suas vidas pelo medo de serem escravos novamente. A ideia de massacre, para o sociólogo, resume então "todo o conjunto de violências e humilhações", a base da "formação do racismo estrutural brasileiro".

Outra evidência encontrada nas pesquisas realizadas por Gato diz respeito ao alto número de amputações realizadas dentre os alvejados que foram atendidos no hospital logo após o incidente. Também se somam aos relatos casos de tortura contra aqueles que acabaram detidos por incitarem a confusão.

O historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador vinculado a Universidade de Estrasburgo, na França, avalia que o episódio tem esse potencial para romper o lugar-comum de que o episódio da proclamação da República foi assistido passivamente pela população brasileira.

"Tem uma importância crucial no entendimento da formação da sociedade moderna por evidenciar esses conflitos em torno da questão política e da disputa de diferentes agentes desse processo político", diz Reis. "Revela muito sobre nossa formação enquanto país e as disparidades existentes entre as regiões, dado que não foi unânime a nossa proclamação da República."

Na opinião dele, na análise do episódio não está em discussão "simplesmente a defesa da monarquia ou da república", mas principalmente a participação popular.

Apagamento histórico

Gato explica que o episódio do massacre de 17 de novembro é pouco conhecido da historiografia porque "houve uma tentativa de banalizar e silenciar o lugar desses revoltosos no período de mudança de regime político".

Ele mesmo conta que se deparou com os relatos pela primeira vez em obras de ficção, como em textos do escritor maranhense Raul Astolfo Marques (1876-1918).

Instigado pelas narrativas, decidiu buscar o contraponto nos jornais da época. "Eu pensei que [essas histórias] se tratassem de ficção. Mas, para minha surpresa, descobri que, sim, o episódio havia mesmo acontecido."

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deutsche Welle, em 17.11.21

Há 125 anos, Canudos escancarou dificuldades do Brasil rural

Milhares de sertanejos, seguidores de Antônio Conselheiro e suas promessas messiânicas, acabaram dizimados pelo Exército. Mais de um século depois, vulnerabilidades da população rural persistem, apontam historiadores.

Foi um chacoalhão e tanto na República, ainda bastante jovem. Entre 1896 e 1897, entraram em conflito armado o Exército brasileiro e a comunidade liderada pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia. A Guerra de Canudos teve sua primeira batalha há exatos 125 anos, em 24 de novembro de 1896.

"Canudos foi o primeiro grande movimento social de contestação da ordem republicana, que provocou derrotas humilhantes para as autoridades brasileiras", define o historiador Paulo César Garcez Marins, pesquisador do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).

"Foi uma demonstração de quanto a população sertaneja, distante das grandes cidades do litoral, poderia forjar uma experiência política e social de grande envergadura, capaz de afrontar o sistema político e também as redes de poder locais e regionais."

Em um contexto de seca, latifúndios improdutivos e muito desemprego, milhares de sertanejos não pestanejaram em seguir Antônio Conselheiro, cujas pregações mesclavam religião e crítica social e se apoiavam na crença de uma salvação milagrosa. Logo, os rumores passaram a ser de que o grupo se preparava para atacar cidades vizinhas e teria um ousado plano de depor o governo republicano e reinstaurar a monarquia no Brasil. E o Exército brasileiro não conseguiu conter os revoltosos facilmente — ao contrário, amargou algumas derrotas.

"Canudos é, e já era para seus contemporâneos, um espanto e uma evidência da força do povo sertanejo, que tentava construir uma outra experiência urbana, econômica, social e política, que escapasse dos quadros tradicionais do mandonismo político das elites regionais do que hoje chamamos Nordeste", analisa Marins.

"O fato de ter, inclusive, derrotado três vezes as tropas enviadas para sua subjugação, colocara a própria autoridade nacional, e o Exército brasileiro, em questão, o que sinalizava a fragilidade institucional do novo regime republicano e também sua brutalidade, dado o elevadíssimo número de mortes e execuções no momento em que finalmente se venceu."

A guerra terminaria apenas em outubro de 1897, na quarta incursão dos militares em Canudos — no total, foram mobilizados 12 mil soldados. O saldo final foi o vilarejo incendiado e quase toda a população executada — estima-se que tenham sido 25 mil mortos. Conselheiro, o líder, havia morrido um mês antes, provavelmente em razão de ferimentos decorrentes da explosão de uma granada.

Revelação das mazelas rurais brasileiras

Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), "Canudos foi uma revelação", e aí reside sua importância histórica.

"De um lado revelava-se uma população, uma paisagem e as duras condições de vida e de trabalho, marcadas pela pobreza extrema, a opressão, a violência e a exploração intensiva da mão de obra pelos grandes proprietários rurais", analisa.

"De outro, o desconhecimento, a indiferença, o preconceito e a discriminação de autoridades civis e militares e da elite cultural e econômica sobre a realidade social do Brasil em sua primeira década de regime republicano", pontua. "A ausência e a manipulação de poderes e de serviços públicos colocou em evidência o caráter oligárquico e autoritário dos governos republicanos, em escala nacional, regional e local."

Antônio Conselheiro morreu pouco antes do fim da guerra, que deixou um saldo estimado em 25 mil vítimasFoto: Flávio de Barros/Public Domain

Na época, o discurso oficial era de que os revoltosos representavam um risco para o regime republicano e a própria ordem econômica e social da nação. À medida que o Exército sofria derrotas em Canudos e percebia-se uma dificuldade de extinguir o movimento, ressentimentos foram acumulados. O objetivo passou a ser um só: "a aniquilação material, social e política" do grupo — nas palavras de Martinez.

Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie, o historiador Gabriel Leite Neres avalia que Canudos, embora tenha sido uma guerra relativamente curta, "representou as contradições e tensões de um Brasil em processo de construção".

"Foi a primeira convulsão social histórica que demonstrou os abismos do período", acrescenta. "A crise de partes da sociedade devido às políticas realizadas pelo regime oligárquico apresentou não um Brasil, mas sim brasis divididos espacialmente."

Sedimentada pelo tempo, a guerra ganhou uma compreensão historiográfica contemporânea —  passou a ser vista dentro de um contexto de insurreições rurais que ocorreram ao longo de toda a segunda metade do século 19.

"É um fato sempre lembrado e muito referido pelo que trouxe ao Brasil e ao mundo naquele momento: a espoliação das populações rurais, a privação que esta sempre enfrentaram na garantia de suas posses, roçados e criações, a exclusão de direitos básicos de cidadania, a começar pela assistência social, direitos trabalhistas e autonomia política", diz Martinez.

Para o historiador, atualmente "Canudos reaparece sempre como o retrato de uma situação que perdurou no tempo e no espaço, lembrando o quanto essa população rural sofreu e sofre nos dias de hoje com a violência social e estatal, as migrações forçadas, as más condições de vida e de trabalho, o desamparo governamental e a exploração de suas fragilidades e necessidades pela manipulação política, ideológica e eleitoral".

Consciência social

Nesse sentido, a revolta simboliza também uma maneira — ainda que originalmente caracterizada como uma seita — de conscientização social. E, conforme atenta o historiador, as privações e vulnerabilidades da população pobre rural não mudaram muito nesses 125 anos, a despeito da modernização da economia agroindustrial.

"[Na verdade, esta] apenas reitera e aprofunda o cenário trágico de pobreza, de violação de direitos e de cidadania", enumera Martinez.

Para Marins, vale ressaltar que a "rápida mobilização" dos que atenderam ao chamado de Conselheiro proporcionaram um movimento de crescimento "rápido e eficaz, ainda hoje sem paralelo no país".

Traços do que motivou Canudos seguiram reverberando em episódios de lá para cá, como a marcha da Coluna Prestes, o cangaço, as Ligas Camponesas e, mais recentemente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deustsche Welle, há 23 horas.

Medina: A nova Lei de Improbidade Administrativa e os processos em curso

Em texto anterior desta coluna, afirmamos que a nova tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, por força do artigo 5º, caput, XL, da Constituição, cumulado com o artigo 1º, §4º, da Lei 8.429/1992 (na redação da Lei 14.230/2021), aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu. Observamos, também, que essa solução se encontra em conformidade com os princípios que vinham sendo firmados na jurisprudência, em relação a temas análogos.

As ações a serem ajuizadas, relacionadas a fatos praticados anteriormente, devem observar as soluções previstas no novo regime legal.

Em se tratando de ações em curso, há de se considerar o que preveem disposições como o artigo 493 do Código de Processo Civil [1]. Assim, antes de proferir sentença, incumbe ao juiz observar as disposições da lei reformada, mesmo que de ofício, intimando as partes para se manifestarem a respeito (cf. artigo 10 do Código de Processo Civil e também parágrafo único do artigo 493 do mesmo código).

Várias hipóteses podem ocorrer. Algumas delas:

O Ministério Público poderá manifestar-se no sentido de que não há interesse no prosseguimento da ação, pois o ato, antes considerado ímprobo, como tal não pode ser considerado, à luz do novo contexto normativo. Se o ato não puder ser caracterizado como ímprobo, a ação será incabível, faltando interesse processual em seu prosseguimento. A perda superveniente de interesse processual conduzirá à prolação de decisão fundada no artigo 485, caput, VI, 2ª parte do Código de Processo Civil, que extinguirá o processo sem resolução do mérito.

Poderá haver situações, eventualmente, em que o Ministério Público acabe por restringir o objeto da ação, podando-o para acomodá-la à nova tipologia normativa dos atos de improbidade. Nesse caso, poderá haver extinção parcial do feito (cf. parágrafo único do artigo 354 do Código de Processo Civil).

Não se pode descartar, ainda, a possibilidade de se requerer a conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública, nos termos do §16 do artigo 17 da lei reformada [2]. Por exemplo, pode-se entender que não cabem as sanções por improbidade administrativa (que se assenta no §4º do artigo 37 da Constituição Federal), mas tem lugar a condenação por indenização (com base no §5º do artigo 37 da Constituição), e que, embora não seja cabível ação de improbidade, tem lugar a ação civil pública com propósito ressarcitório [3].

Nos casos em que a ação tenha sido ajuizada pela Fazenda Pública, será necessário observar a regra de transição prevista no artigo 3º da Lei 14.230/2021. No novo regime legal, a Fazenda Pública não ostenta legitimidade ativa para ação de improbidade administrativa, restrita pelo texto do artigo 17, caput, da Lei 8.429/1992 ao Ministério Público [4]. Nos casos em que a Fazenda Pública tenha promovido a ação, o Ministério Público deve manifestar-se dentro do prazo de um ano da publicação da reforma (que se deu em 25/10/2021) sobre a existência de interesse no prosseguimento do processo, que, nesse período, ficará suspenso. Findo o prazo sem manifestação do Ministério Público, o processo será extinto sem resolução de mérito [5].

Essas soluções, segundo pensamos, são aplicáveis nos casos em que o feito ainda tramita em primeiro grau de jurisdição, antes da prolação da sentença, com base no artigo 493 do Código de Processo Civil, como antes se observou. Mas semelhante solução deve ser observada também quando o caso tramitar em sede recursal. Isso é textualmente previsto pelo artigo 3º, caput, in fine, da Lei 14.230/2021, quanto à possibilidade de o Ministério Público prosseguir com a ação ajuizada pela Fazenda Pública [6]. No entanto, ocorrendo quaisquer das hipóteses suscitadas acima, dentre outras que emergirão da incidência do novo regime, não se poderá julgar o recurso antes de se verificar, por exemplo, se o pedido se fundou em mera culpa (e não em dolo, como exige a nova lei) do agente público, situação em que a ação de improbidade é descabida.

Caso isso seja detectado por ocasião do julgamento do recurso, o Tribunal deverá observar o que prevê o artigo 933 do Código de Processo Civil [7] (além do artigo 493 do código, antes mencionado).

Segundo pensamos, essa postura deverá ser adotada pelo órgão jurisdicional em qualquer grau de jurisdição, inclusive nos tribunais superiores, como já se faz notar em alguns casos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça [8].

Além das situações aqui referidas, outras podem ocorrer, de acordo com as peculiaridades de cada caso. Procuramos apontar, no presente texto, aquelas que, em princípio, tendem a ser as mais comuns.

Outro problema também merece análise cuidadosa: o que fazer nos casos em que há decisão transitada em julgado? Também aqui muitas hipóteses podem ocorrer. Pode-se estar diante de cumprimento de sentença ou de sentença cuja execução já se concluiu; de casos em que há prazo para ajuizamento de ação rescisória (para aqueles que entendem ser esse o meio processual a ser utilizado para se alegar a retroatividade da nova lei) e decisões transitadas em julgado há mais de dois anos (prazo previsto no artigo 975 do Código de Processo Civil para o ajuizamento da ação rescisória). Seria admissível ação revisional, ou, ainda, bastaria peticionar nos autos em que proferida a decisão transitada em julgado, requerendo ao órgão jurisdicional a aplicação do novo regime?

Esses e outros aspectos serão objeto de outro texto, na sequência, nesta coluna.

[1] "Artigo 493 — Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir". A respeito desse e de outros dispositivos processuais, cf. o que escrevemos em Código de Processo Civil Comentado (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021) e em Curso de Direito Processual Civil Moderno (5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), passim (mais informações a respeito aqui).

[2] "Artigo 17 — [...] § 16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985".

[3] Sobre o tema, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (6ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), em comentário aos referidos dispositivos constitucionais (mais informações aqui).

[4] "Artigo 17 — A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei".

[5]: "Artigo 3º — No prazo de um ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso. § 1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no art. 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). § 2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito".

[6] Cf. nota precedente.

[7] "Artigo 933 - Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de cinco dias. § 1º. Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente. § 2º. Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores".

[8] Exemplo: "[...]. Trata-se, na origem, de ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. A Lei n. 14.230/2021 trouxe mudanças significativas procedimentais e materiais. Entre essas alterações, o legislador destacou a natureza sancionatória da Lei de Improbidade, o que implica a aplicação das garantias correlatas, inclusive, retroação do tratamento mais favorável ao réu, como pode acontecer em relação à prescrição: [...]. Ante o exposto, com base no artigo 10 do CPC, intimem-se as partes para se manifestarem sobre a eventual aplicação retroativa da Lei de Improbidade, em especial, as mudanças no que se refere ao aspecto sancionador e prescricional [...]" (STJ, REsp 1662044, relator ministro Og Fernandes, decisão monocrática, DJe 09/11/2021).

José Miguel Garcia Medina, o autor deste artigo, é Advogado e Professor. Publicado originalmente no Consulor Jurídico, em 24.11.21.

José Sarney: O milagre da vacina

A pandemia atingiu toda a Humanidade com um choque assustador. Sentimos que ela poderia desaparecer, ser varrida da face da Terra. As taxas de contaminação e mortalidade eram gigantescas.

A salvação estaria no desenvolvimento de vacinas e medicamentos. O prognóstico não era muito bom: todas as vacinas que haviam sido desenvolvidas até então tinham levado anos. A OMS coordenou as iniciativas e vários governos investiram somas consideráveis nas pesquisas.

Ainda nos primeiros dias surgiram e foram descartados medicamentos existentes e destinados a outras doenças. A cloroquina, um antigo e corrente remédio para alguns tipos de lúpus e artrite, pareceu ser útil, mas logo foi comprovado que não só era ineficaz como podia ser mortal. O mesmo aconteceu com vários outros.

O único caminho era o já trilhado há séculos: diminuir o contágio pelo isolamento dos contaminados. Mas quem eram eles? A doença pode ser silenciosa, o portador do vírus — logo definido como SARS-CoV-2, vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2, um novo integrante da mais mortal família de vírus, a dos coronavírus, responsável pela gripe comum e por algumas das maiores pandemias e epidemias da História — pode não desenvolver a doença, denominada Covid-19. Duas providências foram recomendadas pelos cientistas: a testagem de todos os que pudessem ter estado no local onde a pandemia já estivesse circulando ou ter tido contato com quem estivesse nesse caso, com a busca do círculo de propagação e seu isolamento completo, além do máximo de restrição a contatos interpessoais, com lockdown nas áreas acima de certo nível de risco. Assim, em maior ou menor grau, com maior ou menor sucesso — maior, quando as medidas eram mais efetivas —, foi feito isolamento em todo o planeta.

Os números de contaminados continuaram explodindo. O caso americano, em que o presidente negacionista fez propaganda da cloroquina e menosprezou a ciência, fazendo do país o com maior número de mortos do mundo, foi exemplar: os números despencaram com o novo presidente, que apoia as medidas científicas.

E a vacina chegou. Entre nós o governo de São Paulo se antecipou na produção das primeiras vacinas, disponibilizando-as em janeiro deste ano. O resto do País seguiu seus passos.

Infelizmente nem todos seguiram as orientações, e o Brasil chora hoje a perda de mais de 610 mil vítimas. É a maior catástrofe de nossa História. Todos tivemos parentes ou amigos entre os desaparecidos, todos temos que chorar o imenso desastre.

Mas a realidade agora é outra: a vacinação em massa funcionou. Os números de mortos despencaram. São Paulo alcançou 100% da população vacinada e 70% com o 1º ciclo vacinatório completo — sabemos que virão outros ciclos de vacinação, a guerra ainda não acabou. A maior parte dos Estados já teve dias sem morte por Covid. Em todo o País o número de mortes despencou.

A vacinação funciona. O milagre aconteceu: a Humanidade sobreviverá à pandemia. Graças a Deus!

José Sarney, Jornalista e Advogado, foi Governador do Maranhão e Presidente da República.

'Ou ia pra aula ou comia': como insegurança alimentar está prejudicando universitários brasileiros

Ao sair com sua bicicleta para fazer entregas de comida a serviço de um aplicativo, a universitária Franciele Rodrigues, 29 anos, "reza" para receber algum pagamento em dinheiro — e, com isso, ter ela mesma alguma quantia em mãos para garantir sua alimentação para os próximos dias.

Estudante de fonoaudiologia, Franciele Rodrigues diz que tem dificuldade para comer desde que entrou na universidade, em 2013 — mas situação piorou na pandemia (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Ela concilia a graduação em fonoaudiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) com bicos de entregadora na capital gaúcha porque, desde que deixou de viver com sua família na periferia de Porto Alegre e se tornou universitária, "o bicho pegou" na tentativa de atender sozinha suas demandas de estudo, moradia e sustento.

Tudo isso se reflete em uma situação que ela conta já durar anos: ela vem comendo pouco e mal, o que já gerou consequências para sua saúde.

"Entrar na faculdade representou deixar de trabalhar e deixar de ter cuidado com minha saúde. Quando saí da casa dos meus pais e entrei na universidade, foi a primeira vez que precisei racionar comida para ter por mais tempo e diminuir a qualidade da minha dieta para ter o que comer no dia seguinte", contou Franciele por telefone à BBC News Brasil, dizendo já ter passado alguns dias sem comer nada nessa trajetória, além de ter tido anemia.

"Durante a pandemia, piorou essa questão da alimentação. O preço das coisas aumentou muito."

Para complementar a renda, a universitária Franciele faz entregas de bicicleta (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Situações como a narrada por Franciele, de insegurança alimentar entre universitários, têm ganhado a atenção de pesquisadores no Brasil e no exterior.

Não há dados nacionais ou de diferentes anos que possam demonstrar um aumento recente na insegurança alimentar destes estudantes no Brasil, mas pesquisadores da área sugerem que a piora em indicadores econômicos, cortes orçamentários para as universidades e a pandemia podem ter agravado o problema. Este período trouxe como consequência, por exemplo, o fechamento de restaurantes universitários (RU).

Por isso, diversas instituições anunciaram estar coletando informações e realizando pesquisas com estudantes sobre a questão alimentar deles durante a pandemia, como na Universidade de São Paulo (USP) e nas universidade federais de Uberlândia (UFU), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do Acre (UFAC), Rio Grande do Norte (UFRN), Mato Grosso (UFMT) e Paraná (UFPR).

Algumas resultados já foram publicados. Um artigo científico de março mostrou que 84,5% de 84 estudantes morando no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) entrevistados online tinham algum nível de insegurança alimentar — definida por ao menos uma resposta afirmativa a perguntas como "nos últimos 3 meses, a comida acabou antes que você tivesse dinheiro para comprar mais?", "ficou sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?" ou "sentiu fome, mas não comeu porque não podia comprar comida suficiente?".

Já na dissertação de mestrado da nutricionista Natália Caldas Martins na Universidade de Fortaleza (Unifor), verificou-se que 84,3% de 428 universitários da rede pública da Bahia e do Ceará apresentaram algum grau de insegurança alimentar na pandemia — 35,7% leve, 23,6% moderado e 25% grave.

Estes universitários fazem parte de uma grande parcela da população brasileira em insegurança alimentar: eram 116,8 milhões de pessoas nessa situação no país em 2020, segundo estimou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. De acordo com a pesquisa, a parcela da população afetada cresceu significativamente nos últimos dois anos.

Café em falta e remédio para dormir e não sentir fome

Quando conversou com a BBC News Brasil, Franciele Rodrigues, que mora com o namorado, hoje desempregado, contou que a única proteína que eles tinha em casa naquela semana era ovo — e, mesmo assim, esse estava sendo racionado.

"Ontem, a gente comeu ovo meio-dia e de noite, só um arrozinho com feijão para ter (ovo) no almoço hoje", disse.

Na sua universidade, a UFCSPA, não há um restaurante universitário — a existência deles não é obrigatória por lei. Mas Franciele conta com bolsa alimentação de R$ 300 mensais, além de R$ 400 de auxílio-moradia.

Sem conseguir um emprego por conta da rotina de aulas e estudos e com aluguel e outras despesas a pagar, esse valor é insuficiente para se manter, ela diz.

"No primeiro mês de faculdade, fiquei sem dinheiro porque a bolsa demorou a sair. Teve dias que eu não comi. Ou ia pra aula, ou comia."

'A gente não sabe se vai sair dinheiro no aplicativo', diz estudante de fonoaudiologia sobre os motivos para racionar comida na semana (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Com a pandemia, o namorado, que trabalhava em um restaurante, perdeu o emprego. Sem as aulas presenciais, ela deixou de conseguir vender lanchinhos e sucos que vendia na faculdade, perdendo mais um bocado de renda. Em 2020, a universidade organizou a entrega de cestas básicas mensais para alunos com vulnerabilidades como ela, mas Franciele diz que neste ano deixou de receber a doação.

Hoje, até o café está faltando em casa, e as frutas são raridade. Por outro lado, ovos, salsichas e hambúrgueres congelados passaram a protagonizar as refeições.

"Pulamos o café da manhã. Costumamos almoçar e jantar", conta Franciele, dizendo já ter perdido uma disciplina quando as aulas eram presenciais, por não ter o que comer. "Hoje, vejo que a situação está horrível mesmo para quem não pega assistência estudantil."

Para a estudante de turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Juliana Castro, 21 anos, uma solução para conter a fome devido a refeições puladas tem sido dormir — às vezes através de remédios para isso. Durante sua trajetória universitária iniciada no segundo semestre de 2018, ela recebeu bolsas por alguns meses, não conseguiu empregos para complementar a renda e hoje conta estar endividada. Como essa situação financeira afeta diretamente sua alimentação, ela conta ter perdido quase 20kg nos últimos dois meses.

"Posso te dizer que o semestre passado eu passei acho que porque Deus quis. Eu não consegui ler texto, escrever então era fora de série", conta Juliana, que nasceu na pequena cidade de Palma (MG) e mora hoje em um alojamento da UFJF. "Não consigo me concentrar para fazer as coisas, fico com indisposição, cansaço. Já desmaiei por ficar sem comer. Fico com a barriga e a cabeça doendo de fome."

"Nos dias que eu não como nada, literalmente nada, eu só durmo. Às vezes eu tomo remédio para dormir, porque dormindo eu não sinto fome."

Desde o início da faculdade, a estudante teve a ajuda de amigos, que dividem com ela compras ou emprestam o dinheiro ou o cartão; e recebeu por algum tempo algumas bolsas, sempre com valores abaixo de um salário mínimo.

Juliana conta que durante dois anos recebeu uma bolsa vinculada ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), mas a vigência do benefício acabou. Ela também recebeu por alguns meses uma bolsa bancada por emendas parlamentares destinadas à Diretoria de Imagem Institucional da UFJF, precisando em contrapartida trabalhar em projetos de extensão. Entretanto, os pagamentos desta são irregulares.

Em nota, a UFJF afirmou que "dada a origem dos recursos — emenda parlamentar — o pagamento da bolsa dependia do envio de recursos financeiros pelo Congresso, o que não ocorreu de forma linear e seguindo prazos pré-estabelecidos".

A universidade afirmou que as bolsas pagas a alunos de graduação tinham até junho o valor de R$ 400, mas esses valores precisaram ser reduzidos para R$ 300 "em virtude das restrições orçamentárias às quais as universidades brasileiras foram submetidas".

Já a UFCSPA, onde estuda Franciele Rodrigues, afirmou em nota enviada à reportagem que está construindo um restaurante universitário, com previsão para abertura em 2022: "(…) cabe informar que a UFCSPA se tornou universidade federal em 2008, e desde então esta demanda (por um restaurante) tem sido apresentada pela comunidade universitária, demanda que está sendo encaminhada pela atual gestão."

"Salientamos a importância do PNAES que, mesmo com elevados cortes orçamentários, em conjunto com demais políticas públicas, tem sido um instrumento que colabora na segurança alimentar e na permanência estudantil no ensino superior", acrescentou a UFCSPA.

Origem pobre e saída da casa das famílias torna alguns universitários mais vulneráveis à insegurança alimentar (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado em 2010 e repassa verbas a instituições federais de ensino superior para que estas forneçam, conforme suas políticas internas, assistência aos universitários na moradia, alimentação, transporte, inclusão digital, entre outros.

Entretanto, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, diz que estas ações estão prejudicadas no contexto de "corte de mais de R$ 1 bilhão" no orçamento das universidades federais, citando dado da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre a diminuição de verbas entre 2020 e 2021.

A Andifes diz que os recursos para o PNAES já têm sido insuficientes nos últimos anos, e que idealmente deveriam chegar a R$ 1,5 bilhão. Entretanto, segundo levantamento da entidade, em 2021 houve a maior redução no orçamento para o programa nos últimos cinco anos: o valor executado diminuiu 15,78%, caindo de R$ 1 bilhão em 2020 para R$ 874 milhões em 2021.

Esses valores são nominais — ou seja, não consideram a variação da inflação. Portanto, a diminuição do orçamento é na realidade maior do que 15,78%.

Na outra ponta, isso se reflete na evasão dos estudantes, segundo a presidente da UNE.

"Uma vez que a crise econômica é muito maior agora, e mais estudantes e suas famílias perderam rendas, a verba destinada a esses programas e bolsas não acompanhou a necessidade. Ainda não temos dados sobre a evasão universitária no pós-pandemia, mas com certeza, eles devem se elevar", escreveu Brelaz à BBC News Brasil.

O Ministério da Educação não atendeu ao pedido de posicionamento da reportagem.

Estudante de Direito, Erisvan Bispo, 43 anos, sabe bem o que é o descompasso entre o valor das bolsas e as necessidades. Indígena, ele recebe a Bolsa Permanência no valor de R$ 900 e, no passado, recebia também auxílio moradia e alimentação.

A Bolsa Permanência foi criada em 2013 pelo governo federal. Trata-se de um auxílio financeiro destinado sobretudo a universitários indígenas e quilombolas em instituições federais.

Em 2019, Erisvan precisou optar por alguma das bolsas, pois uma regra da sua universidade, a Federal da Paraíba (UFPB), passou a vedar o acúmulo de auxílios estudantis com a Bolsa Permanência. Perto da sua casa em Mamanguape (PB) e no seu campus, não há restaurante universitário.

"Acompanhando o aumento do preço das coisas, você fica perplexo. Quando você pensa o quanto de dinheiro entra e o quanto tem que gastar, enlouquece", disse Erisvan à reportagem por telefone. "Direito é um curso que eu preciso me dedicar muito. Não é impossível estudar e trabalhar, mas para ficar com um coeficiente de rendimento alto, é difícil."

"Sem trabalho, eu dependo das políticas sociais."

O "preço das coisas", como disse o universitário, realmente tem subido consideravelmente na alimentação, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No acumulado dos últimos 12 meses, a inflação nos alimentos e bebidas, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ficou em 11,7%, conforme registrado em outubro. Entre os 10 alimentos que mais tiveram aumento estão o pimentão (85,37%), açúcar refinado (47,8%), mandioca (40,7%), filé mignon (38%) e tomate (31,99).

Em nota, o professor Alfredo Rangel, pró-reitor de Assistência e Promoção ao Estudante da UFPB, afirmou que a universidade conta hoje com quatro restaurantes universitários e pretende abrir mais uma unidade em Mamanguape no ano que vem.

Ele acrescentou que, embora a UFPB tenha recebido um orçamento menor para assistência estudantil, a universidade conseguiu manter o valor e o número de bolsas normalmente ofertadas.

Também com orçamento apertado, no seu caso para bancar aluguel, moradia, internet, transporte e comida, Erisvan diz ter cortado da alimentação itens que chama de "supérfluos", como iogurte, queijo, biscoito recheado, goma para tapioca e frutas.

"A única carne que consigo comer é hambúrguer, calabresa e salsicha, porque é barato", afirma Erisvan, acrescentando ter perdido peso por conta da combinação falta de renda e estresse por todo este cenário.

Em um futuro próximo, ele diz depositar esperança em oportunidades de estágio remunerado e, a longo prazo, nos frutos que sua carreira pode trazer.

"Às vezes, por conta dos cortes (na educação superior), sinto revolta. Mas também sou muito grato por estar na universidade. Eu não acordo reclamando, lamentando… Eu sei que estou passando dificuldades para ter uma melhoria de vida. Acredito que algo de bom vai acontecer depois que eu me formar, depois da carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)."

Vulnerabilidade da 'primeira geração'

Erisvan diz ter uma origem "paupérrima" e é o primeiro da família a ir para a universidade. Nascido em uma aldeia na serra do Ororubá, em Pernambuco, ele e a família migraram para São Paulo (SP) fugindo de conflitos por terra. Ele morou cerca de 30 anos na capital paulista e depois resolveu voltar a morar e estudar no Nordeste.

Assim como ele, Franciele Rodrigues e Juliana Castro também são da primeira geração de suas famílias a ir para a universidade.

Apesar de vir dos Estados Unidos, um dos maiores estudos já feitos sobre a insegurança alimentar nas universidades mostrou que estudantes de "primeira geração" — ou seja, cujos pais não tinham ensino superior —, aqueles com níveis socioeconômicos mais baixos, além de imigrantes e pessoas trans eram mais vulneráveis ao problema.

A pesquisa publicada em 2019, intitulada College and University Basic Needs Insecurity e realizada pelo Hope Center, entrevistou 86 mil estudantes em 123 universidades. Deste total, 45% foram considerados como sofrendo de insegurança alimentar nos 30 dias anteriores.

Franciele, assim como outros entrevistados, está na primeira geração da família a ir para a universidade (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

A nutricionista Tânia Aparecida de Araújo é uma das autores da pesquisa sobre a insegurança alimentar entre alunos vivendo no Conjunto Residencial da USP (Crusp) durante a pandemia. Ela diz que neste e em outros estudos realizados no Brasil, a baixa renda foi um dos fatores mais importantes para a insegurança alimentar dos universitários.

Dos alunos considerados em insegurança alimentar no Crusp, 92,6% tinham renda considerada insuficiente.

Para Araújo, é justamente a chegada de estudantes de baixa renda à universidade nas últimas décadas, movimento que ela atribui a políticas de inclusão dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), que impulsionou a insegurança alimentar nas universidades como tema de pesquisa.

"A gente tem agora mais pessoas de baixa renda entrando na universidade, o que é muito positivo, porque são ciclos de pobreza que podem ser quebrados. Mas antes, os universitários, principalmente de universidades públicas, eram de uma classe média branca. Agora, a gente realmente tem que dar atenção às políticas públicas para garantir, entre outras coisas, a segurança alimentar e nutricional desses estudantes", diz a pesquisadora, doutora em saúde pública pela USP.

A nutricionista aponta que, além da origem socioeconômica, os universitários ficam mais vulneráveis à insegurança alimentar à medida que deixam de ter redes de apoio como a alimentação e moradia na casa da família. Tendo que se virar sozinhos, muitos apelam às comidas ultraprocessadas como hambúrgueres e macarrão instantâneo porque são rápidas, práticas e baratas.

Ela também ressalta a importância dos restaurantes universitários mas diz que não deve-se esperar que eles contemplem integralmente todas as refeições dos alunos. Desejar comer em outros lugares além deles é legítimo — e em alguns casos necessário, como no caso de Juliana Castro, que teve problemas de intolerância a vários alimentos frequentes no cardápio do RU da sua universidade, como leite e carne de porco.

"A gente acha que a pessoa vulnerável tem que aceitar qualquer coisa, mas todo mundo tem direito de fazer suas escolhas alimentares. Por mais que tenha o restaurante universitário, é muito difícil você manter uma graduação fazendo todas as refeições, almoço e janta em um restaurante", diz Tânia Aparecida de Araújo, apontando para a importância das bolsas de auxílio, além dos RUs.

Para ela, os estudos têm se voltado para as universidades públicas justamente porque estas têm maior propensão a realizar pesquisas científicas — mas aponta que investigar a situação dos estudantes de faculdades particulares é também urgente, já que a presença de alunos de baixa renda nestas é grande, além do forte comprometimento financeiro que as mensalidades e financiamentos representam para eles.

Bruna Brelaz, da UNE, também aponta para diferenças entre os tipos de instituição. Enquanto as universidades federais contam o PNAES e a Bolsa Permanência, mesmo que aplicados de forma insuficiente na sua avaliação, as estaduais têm políticas e ações variando de acordo com a unidade federativa.

"Na nossa opinião, é preciso leis, decretos também estaduais, para garantir a manutenção desses direitos, além da regulamentação e constante fiscalização para as devidas condições de disponibilização deles", diz a presidente da UNE.

"Já nas universidades privadas, temos como realidade a falta de regulamentação, que dessa forma, não garante refeições com preço acessível, por exemplo", acrescenta. "Se alguma universidade privada institui esses restaurantes para estudantes ou vale alimentação é por iniciativa própria, mas sem haver uma regulamentação ou levantamento oficial."

Mariana Alvim -@marianaalvim, de S. Paulo para a BBC News Brasil em 23.11.21