segunda-feira, 31 de maio de 2021

A dúvida é a arma do negócio

Por Marcello Serpa

Nos anos 50, um maço de cigarro nas mãos era tão comum quanto um celular é hoje. Foi quando dois pesquisadores ingleses, Richard Doll e Austin Hill, perceberam que os casos de câncer no pulmão cresceram seis vezes no Reino Unido em apenas 15 anos. Suspeitaram do cigarro e iniciaram uma pesquisa que salvaria muitas vidas, mudaria a história da saúde pública e do marketing político.

Para muita gente, a razão do aumento de casos de câncer estava na fumaça de carros, ônibus e caminhões que se multiplicavam com as novas estradas do Pós-Guerra. Como quase todo mundo fumava, inclusive os pesquisadores e os médicos do sistema de saúde, fazia sentido achar um culpado que não questionasse o sagrado ritual do cigarrinho de cada dia.

O estudo publicado em 1954 provou, de forma irrefutável, que fumar aumentava em 16 vezes a chance de desenvolver câncer de pulmão, além de ser também a causa de um surto de doenças cardiovasculares. Os próprios Doll e Hill deixaram de fumar, assim como os médicos, que, expostos a uma avalanche de dados, foram os primeiros a largar o vício.

Parecia ser questão de tempo para o consumo de cigarros diminuir, mas a lógica é frágil quando bate de frente com os interesses de uma indústria bilionária. Com a publicação dessa primeira pesquisa, começou uma guerra de narrativas que duraria décadas. Os executivos da indústria do tabaco se reuniram para discutir como enfrentar a ameaça à saúde de sua galinha dos ovos de ouro: o cigarro. Durante um desses encontros foi criada a arma psicológica que, se injetada nas cabeças da população, ganharia a guerra: a dúvida.

A indústria não atacava os pesquisadores, mas questionava os dados. Contratava outras pesquisas relacionando a poluição à incidência de câncer, ou as doenças cardiovasculares à má alimentação. Profissionais de relações públicas inundando a mídia com resultados conflitantes e com alarmantes pesquisas sobre qualquer outro vilão da saúde que tirasse o foco do cigarro. A nicotina adicionada ao cigarro era uma aliada, fazendo do fumante um dependente ávido por duvidar de qualquer dado questionando o hábito que lhe dava tanto prazer.

Décadas depois, graças a vários vazamentos de documentos secretos, a indústria do tabaco acabou exposta. Produtos criados para criar dependência, dados e índices manipulados levaram os CEOs das companhias ao Congresso americano, onde confessaram, de cabeça baixa, saber, desde os anos 50, do mal que o cigarro provocava. A dúvida se dissipou, fumar virou pecado e foi proibido em espaços públicos.

Turbinada pela chegada das mídias sociais, a maior arma de manipulação de massas já criada, essa estratégia de marketing de combate renasceu nas mãos dos ideólogos e marqueteiros da extrema-direita, prontos para declarar a guerra santa contra o statu quo.

A tática continua a mesma: questionar certezas para criar dúvidas. Negar a ciência, embaralhar dados, reescrever a história, inundar a rede de fake news oferecendo uma realidade paralela a todos os que têm como hobby desconfiar de qualquer fato que contradiga suas próprias opiniões e certezas. O inimigo agora é a imprensa, a academia, a ciência, o liberalismo, todos parte de uma conspiração da elite intelectual de esquerda, que teria como único objetivo o domínio mundial.

A indústria do petróleo e do carvão gerando pesquisas conflitantes com a opinião unânime da comunidade científica sobre a influência do homem no aquecimento global, colocando a pulga da dúvida atrás das orelhas de muita gente e atrasando políticas para a mudança da matriz energética mundial.

O movimento antivacina e seus médicos de Facebook, criando o mito da cloroquina, da vacina com chips da Microsoft, DNA mutante, efeitos colaterais em números astronômicos, minando a confiança da população na única ferramenta disponível para erradicar a pandemia: a vacina.

O marketing da dúvida não conseguiu salvar a indústria do cigarro. Assistindo na CPI às mentiras de ministros sobre a má-fé do governo na condução da pandemia expostas por cartas, documentos, dados e fatos, não tenho dúvida de que, um dia, ser trumpista, negacionista, obscurantista, terraplanista ou bolsonarista será tão constrangedor quanto acender um cigarro num elevador.

Marcello Serpa é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 31.05.2021

Comissão do PSDB apresenta modelo de prévias com peso maior para quem tem mandato e contraria Doria

Governador defendia que voto de todos os filiados valesse o mesmo, mas proposta de comissão interna dá mais poder a quem foi eleito


João Doria, Eduardo Leite e Tasso Jereissati Foto: Editoria de Arte

A comissão do PSDB criada para discutir o modelo de prévias para escolha do candidato tucano à Presidência da República em 2022 apresentou nesta segunda-feira (31) sua proposta para a eleição interna. Por maioria, os integrantes do grupo escolheram uma proposta em que os votos daqueles que têm mandato eletivo terá peso maior que o dos filiados, que responderão por 25% do colégio eleitoral. O texto ainda precisa ser aprovado pela Executiva Nacional da sigla, o que deve ocorrer até 8 de junho.

O modelo representa uma derrota para as pretensões do governador de São Paulo, João Doria, que vinha fazendo campanha por uma proposta em que os votos de todos os filiados tivesse o mesmo peso. Dirigentes do partido de outros estados viam com preocupação esse projeto, alegando que quase metade dos filiados ativos do partido estão em São Paulo, onde o PSDB tem cerca de um terço das prefeituras e Doria comanda o diretório estadual.

Já o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que também já manifestou o interesse de disputar as prévias defendia um modelo de "equilíbrio federativo", que acabou prevalecendo.

— A decisão da comissão foi por uma proposta democrática que dá voz aos filiados e a todos que têm mandato eletivo no partido. Não beneficia ninguém — disse ao GLOBO o presidente da comissão que definiu o modelo de prévias, o ex-senador José Anibal. 

Aprovado por maioria absoluta dentro da comissão, o modelo apresentado nesta segunda-feira prevê a divisão do colégio eleitoral do PSDB em quatro grupos, sendo que três deles são formados por detentores de mandato - cada conjunto vale por 25% da votação. Segundo documento encaminhado à direção do partido, os candidatos poderiam se inscrever até 20 de setembro e participariam de debates a partir de 18 de outubro. A eleição aconteceria em 21 de novembro. Se houver necessidade de segundo turno, seria no dia 28.

O primeiro grupo, que terá o peso de 1/4, é formado por filiados que se registraram até 31 de maio deste ano. A sigla estima que tenha cerca de 1,3 milhão de filiados, mas que cerca de 500 mil participem ativamente da vida partidária. O segundo grupo, com igual  peso, é o de prefeitos e vice-prefeitos. O grupo 3 é o Vereadores, deputados estaduais e distritais. Por fim, há um grupo destinado a governadores, vice-governadores, senadores, deputados federais, presidente e ex-presidentes da Executiva Nacional.

Este quarto grupo garante que estados em que o PSDB teve melhor resultado eleitoral, elegendo governadores, senadores e deputados, possam influenciar o debate para a escolha do candidato à Presidência.

Além de Doria e Leite, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto também tem interesse em participar das prévias. Recentemente, ganhou apoio dentro do partido o nome do senador cearense Tasso Jereissati, que tem a simpatia da bancada tucana na Câmara e de integrantes da Executiva. O parlamentar já admitiu que pode disputar a eleição interna, mas disse que a escolha deveria ser feita só no ano que vem.

Gustavo Schmitt, O Globo, em 31/05/2021 - 15:35 / Atualizado em 31/05/2021 - 17:07

Esquema do orçamento secreto pode configurar crime de responsabilidade

'Estadão' ouviu 16 advogados, professores e especialistas da área fiscal sobre modelo de compra de apoio no Congresso; parte deles fala em indícios de desrespeito às leis

 O orçamento secreto do presidente Jair Bolsonaro, revelado pelo Estadão, escancarou a permanência de velhos vícios na forma como os recursos públicos são tratados no Brasil. Pela Constituição, o Orçamento deve procurar atender às necessidades da sociedade. Mas Bolsonaro, descumprindo uma de suas mais destacadas promessa de campanha, reabilitou o toma lá, da cá que já produziu vários escândalos no País.

O Estadão entrevistou 16 renomados advogados, professores e economistas especializados em contas públicas para discutir o esquema montado para aumentar a base de apoio de Bolsonaro no Congresso e alternativas para evitar que o Orçamento seja usado pelo Executivo para barganhas com os congressistas. 

Todos defendem investigação rigorosa e, entre eles, incluindo o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, há quem fale em indícios de crime de responsabilidade. A configuração pode levar ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro por infração às leis orçamentárias e à Constituição, que exige transparência, equidade e impessoalidade no manejo das verbas.

Executivo. Mecanismo criado pelo presidente Jair Bolsonaro é questionado por analistas.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Também é unânime a opinião segundo a qual o esquema criado por Bolsonaro é um retrocesso nos avanços obtidos após o escândalo dos Anões do Orçamento, que, na década de 90, desviou recursos de emendas.

Em 2019, Bolsonaro criou um mecanismo que permitiu a um grupo mandar bilhões de reais de emendas de relator (RP9) para suas bases eleitorais, tudo de forma sigilosa. Uma engenharia questionada pelos analistas.

Isso contraria a Constituição, que estabeleceu que o princípio da transparência deve reger a elaboração e a execução do Orçamento. Entre as atribuições do Congresso, uma das mais nobres é a aprovação do orçamento federal. É na lei orçamentária que, a cada ano, o País decide suas prioridades, em termos de alocação de recursos para políticas públicas, na busca do desenvolvimento e da melhoria do padrão de vida de seus habitantes.

'STF deve suspender de imediato'

Heleno Taveira Tôrres, professor de Direito Tributário da USP.  Foto: Twitter/Reprodução

Heleno Taveira Tôrres, professor de Direito Tributário da USP: 

As emendas de relator são todas inconstitucionais. Cabe ao STF, se provocado, suspender de imediato a execução. Por serem regimes excepcionais ao Orçamento, somente poderiam ser permitidas as emendas individuais ou de bancadas de Estados, segundo as limitações previstas no art. 166 da Constituição. 

A LDO não tem competência para criar despesas por ‘emendas de relator’, que só serviram para evitar as restrições quantitativas e materiais, como a de reservar 50% para a Saúde. Agora, com a Portaria 6.145, de 2021, tenta-se ‘salvar’ o impossível, que é a inconstitucionalidade dessas fontes de despesas. 

É tudo parte de uma grande luta eleitoral.

‘Constituição não fala em sigilo, segredo’

Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal.  Foto: André Dusek/Estadão

Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal: O TCU tomou uma boa medida, justa e jurídica (a Corte exigiu do governo acesso aos documentos do orçamento secreto). Queremos saber das coisas do poder. Quando a Constituição fala de maneira detalhada e minudente sobre Orçamento, em nenhum momento fala sobre sigilo. O artigo 165 da Constituição, sobre Orçamento, diz tudo, mas em nenhum momento fala em sigilo, segredo, bastidores, coxia. Quando você transfere recursos públicos a partir de uma postulação, é preciso vir a lume quem tomou a iniciativa do pedido, principalmente, se partiu de um agente público. Como é que um deputado e um senador vão se relacionar com o Executivo em sigilo?

‘Fere-se aqui uma lógica republicana’

Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP.  Foto: Bruna Guerra

Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP: Tudo indica que a tendência moralizadora adotada a partir de 2005, no que se refere às emendas parlamentares, foi alterada com esse mecanismo criado ou ressurgido pelo governo atual. Por isso que várias pessoas apontam esse negócio todo como os Anões do Orçamento, porque já existia lá atrás. 

No geral, é gravíssimo, porque você retira transparência do processo, você retira legitimidade do processo e você acaba colocando o gasto público dirigido para finalidades políticas. Também se fere aqui uma lógica republicana, afinal o recurso público deve ser dirigido para quem mais precisa, e não parece ser o que está acontecendo.

‘Configura crime de responsabilidade’

Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Uerj e advogado.  Foto: André Dusek/Estadão

Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Uerj e advogado: 

O chamado orçamento secreto, com a mera efetivação de transferência voluntária para os municípios sem a prévia publicação dos critérios distributivos, conforme determinado pelo artigo 77 da LDO de 2020, configura a tipificação do crime de responsabilidade.

Comprovada esta, restará também configurado o crime de responsabilidade pela utilização dos seus recursos para influenciar decisões parlamentares, além da própria Constituição, consagradora do princípio da publicidade e do caráter equânime e objetivo da distribuição dos recursos relativos às emendas. Restaria delineado o embasamento legal para o impeachment e a rejeição das contas de 2020. 

‘Ilegais e inconstitucionais’

O economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas Foto: Arquivo Pessoal

Gil Castello Branco, economista, fundador da Associação Contas Abertas: 

As emendas do relator-geral, na forma como estão sendo utilizadas, são ilegais e inconstitucionais. O STF, a meu ver, se provocado, deverá suspender imediatamente a execução dos cerca de R$ 18 bilhões existentes no orçamento de 2021. 

A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 requer que as transferências voluntárias de recursos da União, cujos créditos orçamentários não identifiquem nominalmente a localidade,  estejam condicionadas à prévia  divulgação em sítio eletrônico e tenham aderência aos indicadores socioeconômicos  da população beneficiada pela política pública. 

O artigo 37 da Constituição têm como princípios legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nenhum desses princípios está contemplado na liberação das ementas de relator, tal como ocorreu em 2020. A Portaria Interministerial 6.145, de 24 de maio, especificamente o artigo 40, tentou dar ares de legalidade ao que é flagrantemente ilegal. 

As indicações do Autor da Emenda não podem ser considerados critérios aderentes a indicadores socioeconômicos. 

‘Constituição é violada com falta de transparência’


Irapuã Santana, doutor em Direito pela UERJ.  Foto: Arcevo pessoal

Irapuã Santana, doutor em Direito pela UERJ: 

A falta de transparência no que diz respeito ao orçamento público viola frontalmente o caput do artigo 37. da Constituição Federal (que exige na administração pública a obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade). 

Em uma democracia, é necessário haver o exercício do controle social sobre os atos estatais, tendo em vista que o poder do Estado deva sempre ser limitado. Nessa perspectiva, vemos que a falta de observância desses parâmetros fundamentais fazem surgir crimes de responsabilidade, previstos na Lei 1.079, de 1950, em especial no artigo 7.º, inciso 9, no artigo 10, inciso 4, e no artigo 11, incisos 1 e 2.

‘Liberação não pode ser para aprovar projeto’

Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP.  Foto: Uniceub/Divulgação

Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP: 

O critério para a liberação da emenda ou a liberação de recursos não deve ser o desejo do governo de aprovação de alguma matéria no Congresso, mas a necessidade específica de implementação de políticas públicas. 

Não se admite, no contexto da aprovação da lei orçamentária, remessas ou destinações de receitas que não sejam transparentes. Na medida em que se prove que esse orçamento era secreto e que os critérios de distribuição de recursos não estavam públicos e são pouco republicanos, pode-se dizer que não houve observância da condição estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

‘Emendas não têm a devida transparência’

Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio.  Foto: FGV/Divulgação

Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio: 

Com mudanças na Constituição entre 2015 e 2019, de um lado, as emendas individuais trouxeram avanço, transparência, aspecto equitativo e imparcialidade na distribuição de recursos pelo governo.

Mas, de outro lado, apesar de todos os esforços, a Lei de Diretrizes Orçamentárias ampliou a possibilidade das emendas de relator-geral, não trazendo a transparência devida. 

É prematura, por ora, eventual pretensão de enquadramento do presidente em crime de responsabilidade fiscal, pois devemos aguardar a prestação de informações, em respeito à ampla defesa e ao contraditório. Mas eu diria que há indícios dignos de uma investigação acurada.

‘Transparência é princípio da administração’

Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU).  Foto: Marcos Brandão/Senado Federal

Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU): O Orçamento avançou nos últimos dez anos com a equalização das emendas impositivas, porque isso dá ao Parlamento a independência que ele tem que ter. 

Essa novidade do empoderamento extraordinário ao relator tem que ser discutida porque, se você inclui esse tipo de diferenciação, efetivamente, você desequilibra aquilo que passou tanto tempo para conquistar. 

Mas o Congresso tem que se autorregular neste momento. Pode e deve fazer uma discussão. A transparência, para mim, é princípio da administração pública, em qualquer situação. Se você não tem uma postura, um exercício de transparência, você tem que efetivamente buscá-la.

‘Orçamento é usado para a reeleição’

Élida Graziane, procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo.  Foto: Michael Paz/Ag}encia ALRS

Élida Graziane, procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo: 

Se, de fato, a liberação de recursos atendeu a ofícios de parlamentares, sem transparência e critérios técnicos, frustrou-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Uma erosão das regras editadas desde 2015, em retrocesso que remonta os Anões do Orçamento. 

Retomar a lógica paroquial e obscura burla as regras impessoais de emendas individuais e de bancada impositivas. Sem observância ao devido processo legislativo orçamentário e sem planejamento, prevalecem o curto prazo eleitoral dos agentes políticos e o trato patrimonialista dos recursos públicos. 

Infelizmente, o Orçamento é tratado apenas como meio de assegurar a reeleição dos que já estão no poder.

‘É inequívoca a transgressão à lei orçamentária’


Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.  Foto: Iara Morselli/Estadão

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda: A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 exige transparência e critérios justificadores da transferência de recursos, como as condições socioeconômicas. A transgressão a ela é inequívoca. Essas liberações foram feitas ao arrepio da lei orçamentária. No processo no TCU, pode ficar evidenciado que a distribuição e a aplicação de emendas do relator ocorreram sem a observância de princípios orçamentários sadios e previstos na Constituição e nas leis. Neste caso, pode-se arguir a transgressão de normas orçamentárias e, assim, justificar um processo de impeachment, o qual dependerá de condições políticas. Foi assim no caso de Dilma Rousseff.

‘Congresso tem de rever prática distorcida’



José Maurício Conti, professor de Direito Financeiro da USP.  Foto: Wilton Junior/Estadão

José Maurício Conti, professor de Direito Financeiro da USP: Na evolução do processo orçamentário, o artigo 77 da LDO 2020 trouxe critérios importantes para aperfeiçoar a distribuição justa dos recursos, mas há indicativos de que possa não ter sido ainda efetivamente implementado. É importante verificar se houve efetivamente falhas nesse processo, onde e quem as cometeu, para apurar as responsabilidades e melhorar o sistema. E a sistemática de distribuição dos recursos pela Comissão Mista de Orçamento por meio das emendas de relator, pelo que se divulgou, evidencia uma prática distorcida que o Congresso Nacional precisa rever, para que o processo orçamentário seja totalmente transparente.

‘Problema é mais sério e profundo’

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente: A ideia do RP9 é um equívoco. Se o Congresso e o Executivo acham que deve haver mais espaço para emendas parlamentares, isso deveria ser feito por meio da ampliação da fatia das emendas individuais, que estão bem regulamentadas na Constituição. 

Da forma como está, o processo orçamentário distorce a lógica, a liturgia e a transparência. 

O RP9 não foi apenas para parlamentares, mas para abarcar demandas do próprio Executivo. Então, por que a PLOA de 2020 já não contemplou esse espaço? Claro, porque o teto não permitia. Estamos diante de um problema muito mais sério e profundo: a confusão do processo orçamentário e fiscal.

‘Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei’

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil.  Foto: Gute Garbelotto/CMSP

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil: 

O orçamento é secreto porque o critério é desconhecido. Parlamentares indicaram recursos, contrariando a lei, e não está na transparência ativa quais são os parlamentares que indicaram cada recurso. O debate sobre o orçamento depende da transparência. 

Eu não acho que é um problema fazer acordos políticos, desde que haja transparência e que se respeitem critérios técnicos mínimos. Para mim, de tudo o que é mais grave desse episódio é o desrespeito ao planejamento orçamentário. Porque a Lei de Diretrizes Orçamentárias é importante para esse planejamento. 

Se o governo veta um artigo da lei, que permitiria aos parlamentares escolher os beneficiários, não pode descumprir. Na minha visão, a Lei de Diretrizes Orçamentárias foi descumprida e, assim, é possível caracterizar crime de responsabilidade. Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei, está completamente errado.

‘É preciso apuração dos órgãos de controle’

O analista do Senado e especialista em contas públicas Leonardo Ribeiro Foto: Divulgação/Agência Senado

Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em contas públicas: 

Há indícios de ilegalidade no ‘tratoraço’ que podem ensejar crime de responsabilidade - caso fique comprovado que recursos do orçamento federal foram transferidos desrespeitando limites ou condições previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias. 

O poder executivo federal não pode direcionar verbas do orçamento para emendas parlamentares com o intuito de influenciar a tramitação de proposições legislativas no Congresso Nacional. Nesse caso, a transparência deve ser máxima, inclusive no tocante aos critérios da distribuição dos recursos. 

Portanto, é importante que os órgãos de controle apurem o que aconteceu para que a sociedade tenha clareza do como os recursos públicos estão sendo aplicados. Me parece que o Tribunal de Contas da União está se movendo nesse sentido. 

Falta de transparência nas emendas é incompatível com princípio republicano

O procurador do Estado do Espírito Santo Evandro Maciel Barbosa, doutorando em Direito Financeiro pela USP

Evandro Maciel Barbosa, procurador do Estado do Espírito Santo e doutorando em Direito Financeiro pela USP: 

A construção anual das leis orçamentárias requer ampla transparência durante seu processo de elaboração, o que inclui as emendas apresentadas ao orçamento, sendo incompatíveis com os princípios republicano e democrático qualquer ideia de sigilo ou falta de transparência na condução dos processos de emendas parlamentares. 

Um outro aspecto que chama a atenção é o fato de que a aprovação das emendas, ato de competência do Poder Legislativo, impõe que eventuais emendas ao orçamento sejam compatíveis com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme artigo 166, § 3º da Constituição. É ilógico o chefe do Executivo propor o projeto de lei de diretrizes, o Parlamento votá-lo, e posteriormente tais atores inobservem norma legal por eles mesmos estruturada, por ocasião da elaboração do orçamento. 

É preciso enfatizar que as leis orçamentárias previstas no artigo 165 da Constituição, quais sejam, o plano plurianual, a lei de diretrizes e a lei orçamentária, são normas que possuem uma relação de coordenação entre si, se integram, viabilizando a estruturação das ações governamentais de forma coesa e harmônica. 

Eventual inobservância de determinações previstas na LDO, quando da aprovação de emendas ao orçamento, fere norma constitucional expressa, viola o equilíbrio que deve sustentar o sistema de leis de caráter orçamentário brasileiro, mormente quando os processos de emenda não se revestem da transparência republicanamente exigida.

Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 31 de maio de 2021 

Pazuello respondeu a inquérito por obrigar soldado negro a fazer papel de animal

‘Ele me fez puxar a carroça’, diz recruta; Força Especial, oficial se livrou da acusação de humilhar o jovem      

Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vítor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.

Depois de 16 anos, o antigo soldado ainda se lembra de tudo naquele 11 de janeiro de 2005. Chagas fora escolhido por um tenente para ajudar um colega a carregar uma banheira na carroça. “Ele não tinha como pegar sozinho.” Foi quando Pazuello apareceu. “Eu não estava pilotando o cavalo, estava na carroça. Quem estava era o outro garoto.” Mas foi ele o escolhido para o castigo pelo então tenente-coronel.

Pazuello respondeu a inquérito por obrigar soldado negro a fazer papel de animal

‘Igreja’. Eduardo Pazuello cercou-se no Ministério da Saúde de militares que eram forças especiais (FEs), como os coronéis Élcio Franco e George Divério.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

Ao ser questionado por que Pazuello tomou essa decisão, o ex-soldado disse acreditar em racismo. “Pelo meu tio eu botava para frente (na Justiça), mas eu dei mais ouvido ao meu pai, que é evangélico, por medo de represália. Isso aí agora está nas mãos de Deus, Ele é o Senhor de todas as coisas.”

A história do dia em que Pazuello mandou um jovem puxar carroça no quartel faz parte da carreira militar do homem que está no centro de uma das tantas crises do governo de Jair Bolsonaro: a presença do general de divisão da ativa no palanque montado pelo presidente na República para um ato no domingo, dia 23, no Aterro do Flamengo, no Rio, em apoio ao homem que busca a reeleição em 2022.

Filho de um comerciante de família sefardita estabelecida na Amazônia com uma gaúcha da fronteira, Pazuello considera ter entrado para a vida militar quando tinha 10 anos. Foi quando seu pai o matriculou no Colégio Militar de Manaus.

'FE'

A empresa de navegação da família foi a inspiração para que o cadete da Academia Militar da Agulhas Negras escolhesse o Serviço de Intendência do Exército para seguir a carreira. O futuro ministro se formaria na turma de 1984 e logo pegou um atalho, que teria um grande impacto em sua carreira: o jovem oficial decidiu parar na Brigada Paraquedista e fez o curso de operações especiais, tornando-se ele mesmo um Força Especial (FE), o que garantiu um lugar em uma das mais exclusivas igrejas do Exército.

Foi entre os FEs, a turma da “faca na caveira”, que Pazuello encontraria companheiros que o seguiram até o Ministério da Saúde. São homens como os coronéis Élcio Franco, que se tornaria o secretário executivo da pasta e carregava o broche de FE no terno, e George Divério, o superintendente da Saúde no Rio nomeado por Pazuello e defenestrado após tentar contratar sem licitação empresas para reformar prédios. Foi ainda na Brigada e entre os FEs que Pazuello conheceu o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, outro Força Especial.

Na Brigada, o general conheceu ainda o futuro presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, o homem que 35 anos depois fez dele ministro na maior crise sanitária do século e o demitiu quando o número de mortos atingiu 279 mil, para depois chamá-lo de “nosso gordinho” no palanque no Rio. Ganhou fama de duro entre os subordinados quando estava na 1.ª Região Militar. E, no Depósito de Munições, se viu às voltas com uma investigação sobre o desvio de munição excedente do local para ser vendida como sucata. Foi na mesma época em que o futuro ministro conheceu o recruta Chagas.

Na época, a 1.ª Região Militar resolveu pela abertura do Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a conduta do oficial. O Estadão encontrou o recruta ainda com medo. Não queria falar por telefone, mas tinha consciência de que a situação que colocava Pazuello em evidência também o levaria a ser procurado por jornalistas. “É sobre o general Pazuello?”, questionou Chagas ao atender ao telefonema. Ele tinha receio de contar pelo telefone o que lhe acontecera no quartel há tanto tempo.

Naquele dia, ele estava na carroça com o também soldado Celso Tiago da Silva Gonçalves. No Inquérito Policial Militar do caso, o soldado disse que estava com o ombro machucado e por isso “não poderia cumprir a ordem de puxar a carroça”. “Foi prontamente atendido pelo tenente-coronel”, conforme registrou a procuradora-geral militar Maria Ester Henrique Tavares, que decidiu arquivar o caso.

O episódio seria um ponto fora da curva na carreira do oficial? O Estadão procurou sua defesa e antigos colegas. Poucos se dispuseram a falar – seu advogado, Zoser Hardman, não respondeu à reportagem. Dois oficiais – um colega de turma e outro que foi seu colega na Brigada – demonstraram restrições à narrativa do “especialista em logística” que levou o oficial à Saúde. Disseram que ele tinha uma fama imerecida, que, se não fosse a “Igreja FE”, não teria recebido o comando da 12.ª Região Militar (Manaus), cargo normalmente reservado aos integrantes das Armas, como infantes e artilheiros, e não a intendentes, como Pazuello.

Candidato

As alegadas humilhações ao soldado não impediram Pazuello de seguir sua carreira. Após o depósito, ele comandou o 20.º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista. E seria mandado à Amazônia para coordenar a Operação Acolhida dos imigrantes venezuelanos. No governo de Jair Bolsonaro viraria ministro da Saúde. A exposição pública poderia lhe garantir a candidatura a um governo estadual ou ao Senado.

É que ninguém mais se lembrava do argumento usado pelo tenente-coronel para se livrar do IPM da carroça. Além de dizer que ele tratava os subordinados com “seriedade e dignidade”, a defesa usou depoimentos de outros militares para atestar que Pazuello não quisera impor maus-tratos ao recruta. “Há aspectos pessoais da vida de Pazuello que demonstram sua familiaridade e, sobretudo, amor aos equinos.”

Tudo se resolveu assim. Pazuello não quis humilhar o soldado; só orientá-lo “para a preservação da boa saúde dos cavalos de tração utilizados na OM (organização militar)”. Quinze anos depois, promovido a general de divisão, Pazuello se viu de novo diante dos limites da disciplina. O afeto e a obediência a Bolsonaro – “É simples assim: um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho” – o transformaram em alvo da CPI da Covid.

Um mês antes, Pazuello esteve em evento político

Um mês antes de comparecer ao comício de Jair Bolsonaro no Aterro do Flamengo, no Rio, o general de divisão Eduardo Pazuello participou de evento político do governo, em Manaus, que foi encerrado pelo presidente com seu slogan da campanha eleitoral de 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Tratava-se da inauguração do Centro de Convenções do Amazonas, que se transformou em ato de desagravo a Pazuello e à política do governo na pandemia nas vésperas da abertura da CPI da Covid, no Senado. O ministro do Turismo, Gilson Machado, abriu a cerimônia. Saudou os colegas ministros presentes, como general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), deputados federais e os comandantes militares. Em seguida, disse: “Eu quero fazer uma saudação especial. Cadê o general Pazuello? Cadê ele? Venha cá”. A claque bolsonarista interrompeu Machado aos gritos: “Pazuello! Pazuello!”

O ex-ministro da Saúde havia voltado ao Exército e estava à disposição do Comando Militar da Amazônia – naquele dia seria transferido para a Diretoria-Geral de Pessoal, em Brasília. Já havia, portanto, sido revertido à ativa e, como militar da ativa, não poderia participar de atos político-partidários. Trajando roupas civis, Pazuello foi abraçado por Bolsonaro, que acenava ao público como uma celebridade.

Machado continuou: “Fui testemunha da luta desse homem pela erradicação da doença em nosso país”. Pazuello agradeceu. “Obrigado.” E voltou para seu lugar no palanque. Machado prosseguiu com a defesa da ação do governo na pandemia. Depois, Bolsonaro agradeceu o trabalho de Pazuello no ministério. O evento durou pouco mais de 50 minutos e foi encerrado por Bolsonaro com o slogan da campanha de 2018.

Para o ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, a presença de Pazuello no Aterro do Flamengo não foi a única vez que o militar comparecera a evento político. “Essa não foi a primeira vez.”

O caso está nas mãos do Comando de Exército, que decidirá se pune o general por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército. O comportamento de Pazuello, como sua presença no evento em Manaus, será levado em consideração.

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo, em 30 de maio de 2021. 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Disciplina militar em xeque

A punição ao general intendente Eduardo Pazuello é essencial para mostrar que há uma linha que não pode ser cruzada

O tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), considerou “vergonhoso” o episódio da participação do general intendente Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, em comício do presidente Jair Bolsonaro.

Em entrevista ao Estado, o tenente-brigadeiro Ferolla foi duro em sua avaliação. “Caxias está de luto”, disse, referindo-se ao Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro, também conhecido como “O Pacificador”. “A organização militar pura não aceita o que estão fazendo. Militar não deve entrar na política, e a política não pode entrar no quartel, senão vira bando, acabam a hierarquia e a disciplina”, declarou.

Advertência semelhante foi feita pela ministra do STM Maria Elizabeth Rocha, que faz parte do colegiado em uma das vagas reservadas à advocacia. A atitude do intendente Pazuello, “sem dúvida alguma, coloca em xeque a disciplina do Exército”, disse a magistrada em entrevista à BBC Brasil. E acrescentou: “Não é possível que discursos político-partidários adentrem os quartéis, porque isso pode comprometer toda a cadeia de comando”.

Diante dessas manifestações, embasadas no profundo conhecimento das normas militares, como se exige de quem integra a Justiça Militar, fica claro o tamanho da irresponsabilidade protagonizada pelo intendente Pazuello e pelo presidente Bolsonaro no domingo passado.

A gravidade está não somente no ato em si, mas em suas nefastas consequências. O intendente Pazuello sabia muito bem o que estava fazendo ao afrontar a norma das Forças Armadas que proíbe terminantemente qualquer manifestação de caráter político por parte de militares. Um general não pode alegar desconhecimento desse regulamento; logo, Pazuello o fez de caso pensado. Foi convidado a ir a um ato político do presidente e, estimulado a participar ativamente da manifestação, não hesitou em fazê-lo, sorridente e falante, em cima de um carro de som.

O resultado disso é óbvio: se um general participa de ato político, como fez Pazuello, e não é punido pelo Alto Comando, “acabou a disciplina nas Forças Armadas, porque o tenente, o sargento e o cabo têm sido punidos dentro da lei” e “não pode ser diferente com general”, como explicou o tenente-brigadeiro Ferolla. Quanto mais alta a patente, como é o caso de Pazuello, “mais grave é a indisciplina”, disse Ferolla, porque obviamente é ele quem tem de dar o exemplo para seus subordinados. “Queira ou não queira, isso reflete na organização militar. Se (Pazuello) não for punido, como você vai punir um sargento depois?”, questionou o tenente-brigadeiro.

O afastamento dos militares da política é um imperativo constitucional. Forças Armadas são uma instituição de Estado por definição, razão pela qual não podem tomar partido do governante de turno em suas eventuais disputas políticas. O problema é que, na Presidência de Jair Bolsonaro, é cada vez mais tênue a separação entre as Forças Armadas e o governo.

Até aqui, esse envolvimento se deu pela presença de muitos militares, da ativa e da reserva, em Ministérios e outros órgãos da administração, além de estatais. Ao colocar o intendente Pazuello em seu palanque, no entanto, o presidente Bolsonaro foi muito além disso: tentou mostrar que os militares estão alinhados a ele, e não é à toa que frequentemente chama as Forças Armadas de “meu Exército”.

Mesmo diante da escalada da crise, estimulada por Bolsonaro com objetivos golpistas, as Forças Armadas vêm se mantendo estritamente dentro dos limites constitucionais, e não há razão para crer que não continuarão assim. Isso não significa, contudo, que Bolsonaro, cuja medíocre carreira militar foi marcada pela indisciplina, sossegará; ao contrário, é provável que ele siga tentando arrastar as Forças Armadas para as turbulências que trabalha dia e noite para produzir, na expectativa de submetê-las a seu projeto autoritário de poder.

A punição ao general intendente Pazuello é, por isso, essencial para mostrar que há uma linha que não pode ser cruzada, seja pelo praça, seja pelo comandante supremo das Forças Armadas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 28 de maio de 2021 | 03h00

Covid: por que o Brasil se tornou 'caldeirão de variantes' do coronavírus e qual o perigo disso

A livre circulação do coronavírus no Brasil, um dos países mais afetados do mundo pela covid-19 e um dos poucos a nunca decretar um lockdown nacional, criou as condições ideais para o surgimento de uma "fábrica" de variantes do vírus, o que dificulta e pode prolongar o controle da doença.


Brasil detectou primeiros casos de variante da Índia (Getty Images)

A mais recente é a P.4, descoberta no interior de São Paulo. Ainda não é possível saber se ela é mais contagiosa ou perigosa do que o vírus 'comum'. Some-se a ela dezenas de outras, entre as quais a P.1, identificada em Manaus, a do Reino Unido (B.1.1.7), a da África do Sul (B.1.351) e a da Índia (B.1.617).

Essas quatro últimas são classificadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como "variantes de preocupação" (Variant of Concern ou VOC, na sigla em inglês), uma vez que pesquisas indicam que elas são altamente transmissíveis e capazes de deflagrar casos mais graves da covid. As demais são consideradas "variantes de interesse" (Variant of Interest ou VOI) ou "variantes sob monitoramento" (Variant under monitoring).

Crianças deveriam ou não ser vacinadas contra covid?

5 perguntas-chave sobre a mucormicose, infecção rara que mutila e mata pacientes de covid na Índia
Mais de mil variantes já foram detectadas no mundo - das quais quase 100 circulam no Brasil, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Esse 'caldeirão' de variantes — mutações da cepa original surgidas no país ou importadas — circulando sem medidas restritivas acaba, portanto, por aumentar o número de doentes e lotar os hospitais, levando à saturação do sistema de saúde e a mais mortes.


Nas últimas semanas, saíram as primeiras evidências de que a linhagem P.1 seria mais mortal em jovens. Mas diversos fatores confundem e jogam incertezas sobre essas observações. (Getty Images)

O principal problema disso, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é que, ao deixar o coronavírus circular livremente, o Brasil está jogando uma "roleta russa" epidemiológica, ao gerar circunstâncias propícias para que uma nova variante surja e seja resistente às vacinas atualmente disponíveis — o que, por enquanto, ainda não aconteceu, ressalvam.

"Mas pode acontecer. O Brasil vive uma pandemia descontrolada. Nunca ouvimos falar da variante da Nova Zelândia, da variante da Austrália, da variante do Vietnã. Por quê? Porque o pré-requisito para que essas variantes surjam é a livre circulação do vírus. Como no Brasil a pandemia está sempre descontrolada, porque o país não toma as medidas recomendadas pela ciência, é natural que apareçam uma série de variantes", diz à BBC News Brasil Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas).

"Por isso, usamos o termo 'fábrica de variantes'. Porque a variante surge em locais onde o vírus está circulando de forma mais descontrolada."


Surgimento de novas variantes do coronavírus ajuda a explicar colapso do sistema saúde, mas culpa recai sobre ausência de medidas restritivas rígidas, como lockdown

Mas qual é o perigo disso?

Algumas dessas variantes, como a P.1 ou da África do Sul, são mais contagiosas, com transmissão de 60% a 70% superior ao Sars-CoV-2 original, o vírus que causa a covid, observa Hallal.

"Isso faz com que a epidemia se acelere. É quase como se fosse um turbo de um carro da Fórmula 1", diz.

"O outro perigo é que as vacinas existentes não deem conta de alguma variante. Até agora, todos os estudos que têm sido feitos mostraram resultados positivos."

"A melhor forma de não surgirem novas variantes é controlar a disseminação do vírus e, para isso, precisamos implementar medidas, como lockdown, e acelerar o programa de vacinação", acrescenta.

Hallal destaca que o Brasil nunca fez lockdown.

"Provavelmente, o mundo não sabe, mas o Brasil nunca fez lockdown. O que o Brasil fez foram medidas restritivas 'meia-boca' de longuíssima duração, que estão destruindo nossa saúde pública e nossa economia", diz.

Denise Garrett, infectologista e vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, em Washington (EUA), concorda. Ela trabalhou durante mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC), órgão ligado ao Departamento de Saúde dos EUA (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil)


Denise Garrett trabalhou mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA (Arquivo pessoal)

"A alta transmissão no país, o que implica em altas taxas de replicação do vírus, é um terreno fértil e muito propício para o vírus sofrer mutações", diz ela à BBC News Brasil.

Por trás disso, há uma explicação biológica. Garrett lembra que as mutações "favorecem o vírus, não a nós".

"E as que o favorecerem mais, vão predominar. Por exemplo, uma que transmite mais rápido, ou que escala imunidade natural e, eventualmente, uma que escape a imunidade vacinal", explica.

"Geralmente, as mutações que tornam a doença mais severa não são muito favoráveis ao vírus, porque 'matam o hospedeiro'", acrescenta.

Em entrevista à BBC News Brasil em dezembro do ano passado, Tulio de Oliveira, o cientista brasileiro responsável por descobrir a variante sul-africana, compartilhou da mesma preocupação sobre o descontrole da pandemia no Brasil. Ele é diretor do laboratório Krisp, na escola de Medicina Nelson Mandela, na Universidade KwaZulu-Natal, em Durban, na África do Sul, onde vive desde 1997.

"A principal mensagem é que, se deixarmos esse vírus circulando em nível médio ou alto, damos muita chance para o vírus se adaptar melhor à transmissão nos humanos", afirmou na ocasião.


Tulio de Oliveira descobriu variante sul-africana do coronavírus

Vacinação sem lockdown

Além disso, há outro perigo: a vacinação sem confinamento rígido, como feito por outros países, como Israel e o Reino Unido, pode acabar criando variantes superpotentes, na opinião de cientistas britânicos.

Segundo pesquisadores da universidade Imperial College London e da Universidade de Leicester, lockdowns e outras medidas de contenção são particularmente necessários durante a vacinação de uma população.

Eles explicam que é justamente o contato entre vacinados e variantes que propicia o aparecimento de mutações "superpotentes", capazes de driblar totalmente a ação do imunizante.

Isso porque, ao entrar na célula humana e se deparar com uma quantidade ainda pequena de anticorpos da vacina, a variante, ao se replicar, pode promover mutações mas resistentes a esses anticorpos.

E, no Brasil, há uma combinação explosiva para esse cenário: vacinação ainda em ritmo lento, variante com a mutação E484k e altas taxas de infecção.

Estudos recentes mostraram que essa mutação, presente na variante de Manaus, dribla os chamados "anticorpos neutralizantes". Isso abre a possibilidade de que pessoas que tiveram doença sejam infectadas novamente se expostas ao SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19.

A vacinação no Brasil segue em ritmo lento. Apenas 20% da população recebeu pelo menos uma dose da vacina.

Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, que produz e distribui a Coronavac, vacina mais prevalente no país, disse em entrevista recente à BBC News Brasil que "infelizmente, até setembro manteremos um ritmo lento de vacinação".

Luis Barrucho - @luisbarruch, de Londres para a  BBC News Brasil . 

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Fome vai decidir a eleição de 2022

 A eleição de 2018 se resolveu com o fígado. A de 2022, ao que tudo indica, será decidida pelo estômago. 

A realidade da fome ou da insegurança alimentar de milhões de brasileiros está posta à mesa do debate político. 

Isso explica mais que tudo a dianteira alcançada por Lula nas intenções de votos. E pode determinar o rumo do desgoverno de Jair Bolsonaro daqui por diante.

Por Vera Magalhães

Paulo Guedes continua encenando o papel de um ministro liberal num governo que já não faz questão de disfarçar seu verdadeiro caráter: negacionista na gestão da pandemia, reacionário nos costumes, autoritário na política, populista e fisiológico no trato da coisa pública e alheio a pautas que dizem respeito à inserção do país na agenda econômica e geopolítica do século 21.

O ministro já entendeu que é a eleição a única coisa que interessa a Bolsonaro, e que terá de fazer o jogo se quiser continuar onde está. Diante da cada vez mais delicada situação eleitoral do chefe e da inflação galopante de alimentos, que só faz com que essa situação se deteriore mais, Guedes terá de se dedicar única e exclusivamente a entregar uma versão turbinada e de grande potencial de votos do Bolsa Família lulista.

A volta do auxílio emergencial não resolveu em nada a emergência social do país e ainda teve um efeito contrário do ponto de vista político. “Quem recebia R$ 600 no ano passado e agora recebe R$ 150 ou R$ 250 está com ódio de Bolsonaro”, me disse um político do Centrão.

Não só o valor é nominalmente uma fração do anterior, como tudo aumentou. A inflação do dia a dia do eleitor é muito maior que a medida pelos indicadores oficiais, sobretudo a do prato de comida. É isso, combinado à falta de vacinas (que se traduz também em falta de emprego e de perspectiva de luz no fim do túnel), que explica a draga na popularidade de Bolsonaro.

“Quem comeu lembra o que comeu.” Essa frase me foi dita não por nenhum marqueteiro ou político, mas por um parente próximo, que vive na pele os efeitos do desemprego e da carestia. É essa lembrança de um passado não distante, em que havia proteína animal no carrinho de compras, os filhos tinham acesso a crédito estudantil e existia a perspectiva de ascensão social, que explica por que Lula está sendo perdoado pelo eleitor, ainda que não esteja absolvido pela Justiça, como prega a narrativa petista.

Dirigentes do DEM receberam nesta semana o resultado de uma ampla pesquisa qualitativa que analisa o cenário de 2022 para Bolsonaro, Lula e eventuais candidatos alternativos.

Chamou a atenção quanto a decisão de não votar de jeito nenhum em Bolsonaro está consolidada: 49% a manifestam. A rejeição a Lula também é alta, na casa de 35%.

Quando a pesquisa começa a investigar as preocupações do eleitor, um fator emerge sobre todos os demais: inflação, inflação, inflação. E a força de Lula é associada diretamente ao período em que ela estava controlada. “Os políticos todos roubam, mas pelo menos no tempo do Lula…” é a frase que mais foi colhida, com suas variações.

“A inflação do estômago é o grande cabo eleitoral do Lula”, me disse uma pessoa que analisou a pesquisa. Qualquer marqueteiro consegue trabalhar isso de forma clara, basta lembrar os filmes com a comida sumindo do prato que João Santana fez em 2014 na campanha de Dilma Rousseff, que serviram para fustigar Marina Silva.

Bolsonaro é tudo de ruim, mas não é bobo e não queima cédula de papel. Vem aí a pressão máxima do presidente sobre o Posto Ipiranga para roubar do principal rival esse atributo, nem que seja preciso arrombar o que resta do cofre e implodir qualquer miragem de equilíbrio fiscal. Só por isso, aliás, o Centrão ainda está fazendo hora extra em seu barco prestes a adernar.

Vera Magalhães é jornalista especializada na cobertura de poder desde 1993, com passagens por veículos como "Folha de S.Paulo", "Veja" e "O Estado de S.Paulo". Além de colunista do GLOBO, é âncora do "Roda Viva", na TV Cultura, e comentarista na CBN. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 27.05.2021.

Presidencialismo de submissão

O presidente Bolsonaro abriu mão de vez de qualquer papel na administração

O Ministério da Economia editou uma portaria para dar ares de legalidade às manobras destinadas a permitir que congressistas aliados do governo de Jair Bolsonaro possam determinar o destino de vultosos recursos orçamentários, definição que caberia ao Executivo.

Como o Estado revelou, o governo permitiu que, no Orçamento do ano passado, parlamentares de sua base interferissem diretamente na gestão de R$ 3 bilhões, alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Esse dinheiro se origina das chamadas emendas do relator-geral do Orçamento, conhecidas pela sigla RP9.

Por lei, a RP9 se presta somente a remanejar recursos no Orçamento, com o objetivo de fazer correções na elaboração final, em geral para reparar algum erro técnico. Em nenhum momento essa emenda especifica em quais projetos o dinheiro deve ser empenhado, pois se trata de atribuição do Ministério para o qual a verba foi distribuída.

O Congresso tentou impor a destinação das emendas de relator, mas o presidente Bolsonaro vetou o dispositivo, alegando, com razão, que o texto “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública”. Obviamente, não foi Bolsonaro quem escreveu essa justificativa, e sim algum funcionário com noção mínima do manejo da coisa pública, que o presidente nunca teve.

O veto continua em vigor, mas a natureza bolsonarista também: para driblar sua própria determinação e assim agraciar aliados no Congresso com verbas, o presidente permitiu que se elaborasse um mecanismo pelo qual os governistas pudessem direcionar o dinheiro da RP9 para obras eleitoreiras.

Depois que o esquema veio à luz, gerando justificada e geral estupefação, o governo tentou desmentir o que os documentos atestavam. Sem sucesso, agora baixa uma portaria para regularizar a prática – ou para “legalizar a bandalha”, como bem qualificou o economista Gil Castelo Branco, da Associação Contas Abertas.

O malabarismo normativo do governo não anula a essência do escândalo: o governo entregou dedos e anéis ao Congresso, em particular ao Centrão, hoje senhor do destino de Bolsonaro.

O presidente abriu mão de vez de qualquer papel na administração, assumindo tão somente a função de animador de reacionários e vivandeiras. Como disse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia, o que Bolsonaro vocifera é apenas “coisa de internet”, que não se traduz em ordens ou diretrizes dentro do governo. Quem manda é o Centrão.

Isso ficou claro também no modo como o governo foi apenas coadjuvante, sentado no fundo da sala, nos debates que resultaram no projeto de privatização do sistema Eletrobrás. Permitiu que os parlamentares contrabandeassem “jabutis” que, na prática, determinam como o governo deve gastar parte dos recursos oriundos do negócio. E não é por acaso que uma gorda fatia desse dinheiro ficará sob administração da Codevasf – a estatal do São Francisco que, sob administração do Centrão e com as bênçãos de Bolsonaro, incluiu cidades a centenas de quilômetros do rio e recebeu também boa parte do dinheiro das manobras orçamentárias.

Caracteriza-se assim uma nova etapa na degradação do chamado presidencialismo de coalizão, que marca a política brasileira desde a redemocratização. Depois de ter sido rebaixado a presidencialismo de cooptação com o lulopetismo, agora se transformou em presidencialismo de submissão – em que o presidente se torna vassalo do Congresso.

O modelo bolsonarista nada tem a ver, por exemplo, com a Presidência de Michel Temer, que trabalhou com o Congresso para, de fato, promover reformas requeridas pela nação. Então, a relação era de compartilhamento de poder, reduzindo muito o custo da governabilidade.

Já no caso de Bolsonaro, o presidente decidiu ser mero despachante do Centrão, na expectativa de que o Congresso não o amole enquanto ele brinca de mandão.

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Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 27 de maio de 2021 | 03h00

Pregação de Bolsonaro contra urna eletrônica repete Trump e arrisca judicializar eleição de 2022

Presidente volta a semear a suspeita sobre as garantias do voto eletrônico. Comissão na Câmara debate proposta de alteração no sistema.

Funcionários do Tribunal Regional Eleitoral trabalham no processo para lacrar as urnas de votação eletrônica, em 23 de outubro de 2018. (ERALDO PERES / AP)

Os bolsonaristas que se manifestam de tempos em tempos com a camisa da seleção costumam levar às ruas do Brasil reivindicações variadas: o aval para impor medidas autoritárias camuflado sob o lema “Presidente, eu autorizo” se mistura com críticas ao confinamento, ao Supremo Tribunal Federal e ao que é um orgulho nacional, a urna eletrônica. Há 25 anos os brasileiros deixaram as cédulas para trás. Mas os cartazes que pedem “voto impresso e auditável já” se transformaram em uma constante nas manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro empenhado em semear dúvidas sobre o sistema de votação vigente e agitar as suspeitas de fraude. Faltam 16 meses para as eleições presidenciais.

O sistema de voto eletrônico —e suas garantias— se perfila como um dos terrenos de batalha em uma campanha eleitoral cujo cenário mais provável agora é a busca da reeleição contra seu principal opositor, o ex-presidente Lula. As críticas de Bolsonaro à urna eletrônica não são novas. Na última campanha, o militar reformado já alertou que só aceitaria o resultado se ele ganhasse. Venceu. Sua tese, muito divulgada nas redes sociais e negada pelas autoridades eleitorais, é que o voto eletrônico não é auditável.

O desenlace das últimas eleições dos Estados Unidos deu nova munição a Bolsonaro. A negativa de Donald Trump a aceitar sua derrota e a guerra aberta que empreendeu para tentar demonstrar uma fraude nas urnas da qual as instituições não encontraram indício deram asas a Bolsonaro para emulá-lo. Foi um dos últimos mandatários a parabenizar o hoje presidente Joe Biden e intensificou o discurso de fraude. “Se não tivermos voto impresso em 2022, alguma maneira de auditar o voto, teremos problemas piores dos que nos EUA”, proclamou o ultradireitista em janeiro.

Em suas falas dos últimos meses ganham protagonismo teorias conspiratórias que impediriam sua reeleição. A ideia defendida por Bolsonaro não é voltar ao voto com cédula, e sim manter a urna eletrônica com a novidade de que o eleitor receberá um comprovante impresso de seu voto.

É uma causa que serve como uma luva na estratégia de Bolsonaro, como diz a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getulio Vargas: “Este Governo tem grandes dificuldades para construir projetos, alianças. É um Governo que destrói as coisas, destrói a política ambiental, a política externa... Esta é mais uma oportunidade de gerar o caos que ele aproveitará”.

O discurso bolsonarista teve força suficiente para que a Câmara dos Deputados criasse dias atrás uma comissão para debater uma proposta de emenda constitucional que implantaria esse comprovante impresso do voto. Já foi tentada antes, sempre foi recusada.

Mas o ambiente está tão contaminado que o ministro Luís Roberto Barroso, que preside o Tribunal Superior Eleitoral, lidera uma campanha institucional em defesa do sistema vigente. “Jamais aconteceu nenhum caso comprovado de fraude. Pelo contrário, eliminamos os casos de fraude que eram comuns”, afirma categórico Barroso no vídeo em que detalha em tom didático os segredos da urna. Entre outras vantagens que cita, a rapidez da apuração. Em um país de tamanho continental com 150 milhões de eleitores, o resultado é divulgado na mesma noite.

A Força Aérea Brasileira transporta urnas eletrônicas e equipamentos de votação durante as eleições de 2018. (SARGENTO BATISTA / FUERZA AÉREA BRASILEÑA)

Os brasileiros adoram as novidades tecnológicas. Caem rápido no gosto. Quando a pandemia começou, comércios e empresas se mudaram em um abrir e fechar de olhos ao WhatsApp. O voto eletrônico estreou em 57 cidades nas eleições de 1996, quando somente poucas pessoas navegavam pela internet e os celulares eram novidade.

Os pais da urna foram cinco homens funcionários de institutos públicos de pesquisa e do tribunal eleitoral. Foram apelidados de Os Ninjas porque o projeto era supersecreto e três deles descendiam de imigrantes japoneses.

A cientista política Campello também coloca a estratégia de Bolsonaro em sua imitação constante de Trump, mas afirma que o mandatário está cada vez mais frágil e sustenta que essa tendência aumentará nos próximos meses: “Mesmo sabendo que as instituições norte-americanas tiveram capacidade muito maior de responder a Trump do que as brasileiras têm para responder a Bolsonaro, duvido que um presidente que chega muito enfraquecido à eleição tenha a capacidade de mobilizar pessoas suficientes para criar esse caos”.

Durante 25 anos o Brasil realizou eleições sem grandes sobressaltos. O problema mais recente foi um atraso nas municipais do ano passado atribuído a um ataque digital. De qualquer maneira, o resultado não foi divulgado na hora do jantar, mas veio antes da meia-noite.

Com o passar dos anos a urna foi perdendo peso até chegar aos nove quilos que pesa cada uma das 500.000 distribuídas da última vez. São aparelhos fáceis de usar e resistentes o suficiente para aguentar o calor tropical, travessias amazônicas e baterias para 12 horas se a luz acaba. Em cada eleição a imprensa informa as façanhas dos funcionários eleitorais e dos militares para garantir as votações no Brasil mais remoto. Os resultados são enviados por satélite.

A grande vantagem da urna eletrônica, dizem seus defensores, é que não está conectada à internet, o que a princípio a blindaria de ataques. O aparelho, entretanto, é submetido a outros testes incluindo um aberto ao público. Durante uma semana, técnicos em computação, hackers, policiais e partidos são convidados a atacar o sistema para detectar possíveis vulnerabilidades.

A adoção do voto eletrônico também contribuiu para “dificultar a judicialização da política, possibilidade em que Bolsonaro obviamente está apostando”, frisa a cientista política. O juiz Barroso alertou na sexta-feira que, com o voto impresso, “o resultado eleitoral acabará sendo judicializado”. E afirmou que as mudanças significarão mais gastos, maior risco de quebra do segredo do voto. Em sua opinião, será um retrocesso: “Como precisar ir ao banco para fazer uma transferência e usar fichas nos orelhões”.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, de São Paulo para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 10:51 BRT

Dimas Covas detalhará na CPI documento do Butantan que expõe a demora de Bolsonaro em comprar vacina Coronavac

Planalto demorou ao menos três meses para dar sinal verde ao principal imunizante usado atualmente no país. Oposição quer demonstrar que presidente insiste em tese de imunidade de rebanho, enquanto que governistas tentarão apresentar interesse político de um subordinado de João Doria

O médico Dimas Covas, em julho de 2020. (AMANDA PEROBELLI / REUTERS)

O presidente do Instituto Butantan, o médico Dimas Covas, deverá expor na CPI da Pandemia no Senado, nesta quinta-feira, que o Governo Jair Bolsonaro demorou o quanto pôde para adquirir as vacinas Coronavac, fabricadas pelo órgão público de São Paulo em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. O teor de seu depoimento está delineado em um documento já em posse da CPI em que Covas explica o vaivém de Bolsonaro para a compra do imunizante contra o coronavírus. Entre o primeiro anúncio de venda, vetado pelo presidente, e a assinatura efetiva do contrato passaram-se quase três meses.

“Em relação às 46 milhões de doses oferecidas ao Ministério da Saúde, após diversas reuniões e discussões, o então senhor ministro [Eduardo Pazuello] anunciou a aquisição do mencionado volume de vacinas do Butantan em outubro do ano de 2020. No dia seguinte ao anúncio, conforme manifestado por vossa excelência em seu prezado ofício, o senhor presidente da República foi a público negar que tal aquisição seria feita. Isso tudo em outubro de 2020”, disse Covas em resposta a um requerimento do senador Ângelo Coronel (PSD-BA).

A cronologia do caso é a seguinte: em 20 de outubro do ano passado, o então ministro Pazuello anunciou em reunião com governadores que havia autorização para o ministério comprar a Coronavac. No dia 21, após ver reações negativas de seus militantes nas redes sociais, Bolsonaro rejeitou o acordo. “Não compraremos a vacina da China”, escreveu o mandatário no Facebook. No mesmo dia, em um evento público em Iperó (SP), ele reafirmou: “O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. No dia 22, Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo na internet com Pazuello, quando ele o visitou no hotel de Trânsito do Exército, onde se recuperava de covid-19 e ouviu seu ministro dizer que o presidente estava dando uma ordem, que seria cumprida. “É simples assim: um manda e o outro obedece”, afirmou Pazuello. Enfim, este episódio reforçou a interferência negativa de Bolsonaro na gestão da crise do coronavírus.

No documento entregue à CPI, o representante do Butantan reforçou a demora para a assinatura do acordo. “Após diversas gestões, somente no dia 7 de janeiro de 2021 é que o contrato das 46 milhões de doses foi firmado entre o Ministério da Saúde e o Butantan.” No documento enviado à comissão, no dia 13 de maio, o médico ainda reforçou que desde junho de 2020 o Instituto Butantan negociava a venda dos imunizantes ao Governo Federal.

Nesta quarta-feira, a CPI aprovou que o Butantan terá de fornecer “todos os protocolos de intenção de aquisição da vacina Coronavac pelo Ministério da Saúde e todos os contratos, especificando datas em que foram realizadas as reuniões/tratativas/contatos”. Ou seja, o objetivo, mais uma vez, é expor a demora do Governo Bolsonaro em adquirir vacinas e qual foi o impacto dessa inércia na tentativa de se obter a imunidade de rebanho por meio do contágio massivo da população brasileira.

Por outro lado, os governistas tentarão colar nele a imagem de que teria interesse político em desgastar a imagem do presidente. A razão é que o instituto que Covas dirige é vinculado ao Governo de São Paulo, sob gestão do ex-bolsonarista e pré-candidato à Presidência da República, João Doria (PSDB).

Até o momento, 52% das 90,7 milhões de doses distribuídas pelo país são da Coronavac. O restante se divide entre a Oxford/AstraZeneca (45,4%) e Pfizer (2,5). Os dados são do Ministério da Saúde. Ao todo, o Butantan tem dois contratos assinados com a União, que resultaram na venda de 100 milhões de doses da Coronavac. O instituto ainda está em fase de testes de sua vacina própria, a Butanvac, e de um soro para combater a covid-19.

Dimas Covas será o segundo representante de produtores de vacinas a ser ouvido na CPI. Antes dele, foi o presidente da Pfizer para América Latina, Carlos Murillo, foi interrogado pelos senadores. Na ocasião, ele ressaltou que o Governo ficou mais de dois meses sem responder às ofertas feitas pela farmacêutica e que o próprio Bolsonaro havia sido alertado sobre a demora. Em duas das propostas, havia a possibilidade de entregar ao menos 500.000 vacinas ao Brasil ainda em dezembro de 2020.

Depois de tanta demora, o Brasil assinou dois contratos com a Pfizer. Um em março de 2021 ―ou seja, 234 dias após a primeira oferta da farmacêutica, e outro em maio. Ao total, a Pfizer entregará 200 milhões de doses de seu imunizante ao longo de 2021. Se os primeiros contratos fossem assinados em agosto passado, quando ocorreram as primeiras propostas, o país receberia 18,5 milhões de doses até junho deste ano. O atual acordo prevê a entrega de 13,5 milhões de imunizantes no primeiro semestre. O depoimento de Dimas Covas está previsto para começar às 9h desta quinta-feira.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 17:03 BRT

Em alta tensão, CPI desenha estratégia do Governo Bolsonaro que banalizou a morte na pandemia

Depoimentos até agora corroboram para a aposta da imunidade de rebanho sem vacinas, mesmo sob o alto custo de vidas perdidas. Governistas tentam virar a chave da comissão e empurrar foco aos governadores, mas oposição contorna estratégia. Pazuello e Queiroga falarão de novo

CPI da Pandemia convoca governadores e volta a convocar ex-ministro Eduardo Pazuello e ministro Marcelo Queiroga para depor. (EDISON RODRIGUES / AGÊNCIA SENADO)

O clima mudou na CPI da Pandemia e ganhou ares de maior tensão com o encerramento da primeira fase de depoimentos, quando foram ouvidos os principais responsáveis administrativos no Governo Bolsonaro pela condução de ações na crise sanitária. Os depoimentos à CPI desenham, até agora, uma estratégia que banalizou a morte no Brasil durante a pandemia ao sinalizar que o Governo teria, de fato, apostado na tese de imunidade de rebanho sem vacinas mesmo sob o alto custo de vidas perdidas. Enquanto senadores governistas tentam virar a chave da comissão e empurrar possíveis desgastes em direção aos governadores, a oposição contorna a estratégia com o critério de convocar apenas quem foi alvo de operações da Polícia Federal. Nove governadores serão ouvidos, a maioria deles aliados ou ex-aliados bolsonaristas. O impasse sobre a questão elevou a temperatura entre os senadores e ensejou até um pedido de convocação do próprio presidente Jair Bolsonaro para depor ―um requerimento ainda não avaliado pelo colegiado e repleto de questionamentos jurídicos se o Legislativo pode de fato obrigar o chefe do Executivo a depor.

Em minoria na CPI e empunhando a difícil tarefa de defender ações controversas do Governo para tentar blindar Bolsonaro, a chamada tropa de choque do presidente não conseguiu evitar uma reconvocação do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, e do atual titular da pasta, Marcelo Queiroga. Agora, a oposição deverá trabalhar com as contradições nas ações do Governo e nos depoimentos, além de focar na suposta omissão federal frente ao colapso de Manaus e na existência de um “ministério paralelo da Saúde”. A primeira fase da CPI ouviu principalmente ex-ministros da Saúde e testemunhas que atuaram na gestão da pandemia ou na negociação de vacinas contra a covid-19. Em geral, os depoentes sinalizam que o Governo foi omisso na compra de imunizantes, a única porta de saída da crise sanitária, e incentivou deliberadamente o uso da cloroquina mesmo quando a ciência já apontava sua ineficácia contra a covid-19. Voltada para a atuação errática do presidente na crise, esta etapa culminou em um forte desgaste do presidente, mas poderá nas próximas semanas ter uma guinada na direção com a convocação de governadores.

Em sua segunda ida à CPI, o ministro Marcelo Queiroga, que garantiu ter autonomia para comandar a Saúde no primeiro depoimento diante dos senadores, deverá explicar a saída da infectologista Luana Araújo, que permaneceu apenas dez dias no comando da recém-criada Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19. Enquanto sua reconvocação era aprovada por senadores, Queiroga sinalizava a deputados que ela havia sido barrada pelo Planalto. Segundo ele, Araújo ainda não havia sido nomeada e os cargos de confiança precisam de “validação técnica e política”. “A doutora Luana Araújo é uma pessoa qualificada, que tem condições técnicas para exercer qualquer função pública. E nós encaminhamos para as instâncias do governo”, afirmou Queiroga, sobre a médica que já se posicionou publicamente contra a cloroquina. Os senadores também convocaram a infectologista para depor. Nos primeiros dias de depoimentos da CPI, os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich afirmaram sofrer pressões do presidente por um protocolo do medicamento.

Bate-boca e troca de acusações

Por enquanto, ainda não há datas para os novos depoimentos aprovados nem detalhes se serão feitas acareações para contrapor as afirmações divergentes. Os senadores governistas conseguiram convocar nove governadores cujos testemunhos devem ser usados para tentar empurrar o foco da CPI aos Estados. Entre eles, há opositores, mas majoritariamente aliados de Bolsonaro ―ao menos sete já apoiaram o presidente em algum momento. Desde o início dos trabalhos da comissão, governistas tentam colocar a fiscalização de recursos federais pelos gestores locais no centro da comissão. A estratégia de ampliar o escopo da investigação foi defendida pelo próprio presidente antes da instalação da CPI, em um áudio vazado com o senador Jorge Kajuru no qual pede para ele “fazer do limão uma limonada”, incluindo prefeitos e governadores.

Um embate em torno da convocação de gestores locais, porém, desvelou atritos entre os integrantes da CPI e a falta de coesão dentro do chamado G7 ―o grupo de parlamentares titulares da comissão não alinhados ao Governo. A temperatura do colegiado subiu vertiginosamente na tumultuada sessão desta quarta, aberta exclusivamente para votar requerimentos. Uma reunião secreta de mais de uma hora chegou a ser feita para tentar acordo entre os parlamentares, mas os próprios integrantes do G7 demonstraram divergências. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) fez questão de dizer que não havia concordado com a convocação de governadores, enquanto o presidente Omar Aziz defendia repetidas vezes que havia um acordo feito momentos antes. “Não é da competência do Senado Federal fazê-lo”, bradou Calheiros.

Também contrário à convocação articulada por governistas, Randolfe Rodrigues requereu o depoimento de Bolsonaro e ouviu do senador Marcos Rogério (DEM-RO) que seu pedido era uma “piada”. “Vale para um e não vale para outro?”, questionou Rodrigues. Instalou-se então uma série de bate-boca entre os senadores. Até mesmo Aziz subiu o tom, diferente do que vinha adotando até então, quando foi indagado pelo senador governista Eduardo Girão (Podemos-CE) se os prefeitos de capitais realmente não seriam ouvidos ―no acordo feito na reunião secreta, eles teriam sido retirados por ora. Irritado, Aziz chamou o de “oportunista”. “Toda a sociedade brasileira que tem inteligência sabe que Vossa Excelência está aqui com um único objetivo: é que a gente não investigue por que a gente não comprou vacina. E Vossa Excelência, que não entende patavina de saúde, quer impor a cloroquina na cabeça da população”, disparou, enquanto colegas lhe pediam calma.

Se o clima de tensão persistir, será um divisor de águas nos trabalhos da CPI daqui para frente. Por um lado, os governistas deverão usar governadores para tentar retirar os holofotes de Bolsonaro e conter os danos da CPI. Por outro, a oposição abre uma nova porta para aprofundar a investigação da tese do “ministério da Saúde paralelo” no Governo. Foi convocado, por exemplo, o ex-assessor da Presidência da República Arthur Weintraub, que disse em uma live com o deputado Eduardo Bolsonaro ter sido incumbido pelo presidente pesquisar sobre o uso da cloroquina ―ele teria sido responsável por articular o grupo de médicos em defesa do “tratamento precoce”. O empresário Carlos Wizard, um defensor do medicamento sem eficácia que assessorou Pazuello voluntariamente por cerca de um mês, também será ouvido pelos senadores. Foram convocados ainda o assessor da Presidência da República Filipe Martins, bastante próximo do presidente, e o publicitário e braço-direito de Pazuello, Markinhos Show.

Outro tema que deverá prevalecer nas próximas semanas é a investigação sobre a responsabilidade pelo colapso de oxigênio de Manaus. O governador do Amazonas, Wilson Lima ―um aliado do presidente―, e o diretor da empresa fornecedora de oxigênio White Martins, Paulo Baraúna, também foram convocados pelos senadores. Também estão entre os governadores convocados Helder Barbalho (PA), Ibaneis Rocha (DF), Mauro Carlesse (TO), Carlos Moisés (SC), Marcos Rocha (RO), Wellington Dias (PI), Waldez Góes (AP) e Antonio Denarium (RR). Já os requerimentos para convocação e quebra de sigilo do filho do presidente, vereador Carlos Bolsonaro, e o do próprio presidente não chegaram a ser apreciados pelos senadores.

BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo para o EL PAÍS, em  26 MAI 2021 - 21:06 BRT