sexta-feira, 30 de abril de 2021

400 mil mortes por covid-19? Total já pode ter passado de 514 mil no Brasil, apontam pesquisadores

Oficialmente, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29/04) a marca trágica de 400 mil mortos por covid-19 durante a pandemia. Mas registros hospitalares brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram em decorrência de casos confirmados ou suspeitos da doença no país pode já ter passado de 514 mil.

Cemitério no Brasil (Crédito da foto: Getty Images)

Essa estimativa aparece em duas análises distintas, uma liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e outra pelo engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Ambas se baseiam em dados oficiais de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), um quadro de saúde caracterizado por sintomas como febre e falta de ar.

A legislação brasileira estabelece que todo paciente que é internado no hospital com SRAG precisa obrigatoriamente ter seus dados notificados ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (conhecido como Sivep-Gripe). Esse sistema é utilizado há anos e permite saber quantos casos de infecções respiratórias necessitaram de hospitalização e evoluíram para óbito no país.

No ano inteiro de 2019, foram registrados 5.342 óbitos por síndrome respiratória aguda grave. Em uma semana de abril de 2021, foram registrados 86.651. Até o momento, de todas as pessoas com SRAG e resultado laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com covid. Ou seja, SRAG e covid-19 são praticamente a mesma coisa na pandemia.

Esses dados são considerados bons indicadores por não sofrerem tanto com a escassez de testes ou resultados falsos positivos. Mas há alguns problemas, entre eles o atraso: pode levar bastante tempo até uma internação ou uma morte ser contabilizada no sistema.

Então, como saber o número atual mais próximo da realidade? Como os pesquisadores chegaram à estimativa de 514 mil ou de 540 mil (no caso de Buelta) mortes por doença respiratória grave, ou melhor, mortes por covid-19?

Projeção do agora

Bem, os cientistas fazem o que se chama de nowcasting, que grosso modo é uma projeção não do futuro (forecasting), mas do agora. Isso se faz ainda mais necessário durante a pandemia por causa dessa demora da entrada dos registros de hospitalizações e mortes no sistema digitalizado.

É como se os dados disponíveis hoje no sistema oficial formassem um retrato desatualizado e cheio de buracos. Para preencher e atualizar essa imagem, é preciso calcular, por exemplo, qual é o tamanho desse atraso, de uma morte de fato à entrada do registro dela no sistema, a fim de "prever" o que está acontecendo atualmente.

Bastos lidera análises de nowcasting numa parceria que envolve o Mave, grupo da Fiocruz de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica, e o Observatório Covid-19 BR, grupo que reúne cientistas de diversas instituições (como Fiocruz, USP, UFMA, UFSC, MIT e Harvard).

"(O nowcasting) corrige os atrasos do sistema de notificação vigente, isto é, adianta-se as notificações oficiais futuras pelo tempo médio entre a ocorrência dos primeiros sintomas no paciente e a hospitalização, quando há o registro dos seus dados no sistema de vigilância. Esse tempo abrange várias etapas: desde procurar um hospital, coletar o exame, o exame ser realizado e o resultado do teste positivo para covid-19 estar disponível para ser incluído no banco de dados. O tempo acumulado entre essas etapas do processo causa atrasos de vários dias entre o número de casos confirmados no Sivep-Gripe (plataforma oficial de vigilância epidemiológica) e os casos ainda não disponíveis no sistema, que são compensados somando aos casos já confirmados uma estimativa de casos que devem ser confirmados no futuro", detalha o Observatório Covid-19 BR.

A dificuldade de monitorar em "tempo real" o que acontece durante epidemias é global, e diversos cientistas ao redor do mundo tentam achar soluções para esse problema.

Os cálculos atuais sobre a pandemia no Brasil liderados por Bastos foram feitos a partir da adaptação de um modelo estatístico proposto em 2019 por ele e mais oito pesquisadores.

Para apontar um retrato atual mais preciso da pandemia, essa modelagem estatística (hierárquica bayesiana) corrige os atrasos dos dados incorporando nos cálculos, por exemplo, a partir do conhecimento prévio da ciência sobre o que costuma acontecer durante o espalhamento de doenças como gripe. Mais detalhes no artigo disponível neste link aqui.

Para chegar até o número de 514 mil mortes por SRAG, Bastos explica à BBC News Brasil que são analisados primeiro os dados da semana atual e da anterior, a fim de identificar quantos casos e óbitos tiveram uma semana de atraso.

"Assim, aprendemos a respeito do atraso e usamos isso para 'prever'/corrigir a semana atual e as últimas 15 semanas. O total de 514 mil mortes por SRAG é a soma dos casos observados acumulados até 15 semanas atrás com as estimativas mais recentes corrigidas."

Cemitério no bairro Bom Jardim, em Fortaleza (Crédito da foto: Jarbas Oliveira)

Em sua análise, Miguel Buelta, professor da USP, aponta um número próximo, de 540 mil mortos, ou seja uma diferença de cerca de 140 mil mortes entre o dado oficial divulgado hoje pelo governo federal e o número corrigido (sem atraso) dos óbitos por síndrome respiratória aguda grave.

A subnotificação do atraso, nesse caso, gira em torno de 35%. O cálculo dele se baseia, entre outros pontos, na análise do número de mortes em uma data específica, mas capturada em dois momentos distintos. Ou seja, em 28/2, por exemplo, Buelta registrou o número de mortes naquele dia e fez o mesmo dois meses depois (quando os registros parecem já "normalizados") para saber quantas mortes ocorreram de fato naquele dia.

O professor explica que o fator atual de subnotificação é de 1.33. Ou seja, para saber qual é o número de mortes atualizado hoje, é preciso multiplicar o dado do registro oficial pelo fator. Por exemplo, em 28/04 constavam 398.185, mas o estimado atualizado sem atraso é de 529.533.

Buelta acredita que o valor pode ser ainda maior por causa do caos nos hospitais vivido pelo país nas últimas semanas, quando o número de mortos passou de 4.000 por dia. "A situação atual é muito mais emergencial. É uma tragédia. Vamos todos lutar contra isso. Isolamento social e ajuda emergencial. Fora disso não há solução." Mais detalhes sobre o modelo estatístico usado por ele aqui neste link.

1,9 milhão de internados

Na análise liderada por Bastos, da Fiocruz, estima-se que o Brasil tenha registrado mais de 1,9 milhão de internações durante a pandemia de coronavírus por causa de doenças respiratórias graves. Na pandemia de H1N1, em 2009, o total foi de 202 mil hospitalizações.

Segundo análise da Fiocruz com base em registros de casos de síndrome respiratória aguda grave entre 18/4 e 24/4, há pelo menos cinco estados no país com regiões com tendência de alta nas infecções por covid: Mato Grosso do Sul, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.

Na Bahia, o avanço da doença ocorre nas regiões de Jacobina e Ilhéus. No Ceará, na região do Cariri. O mesmo ocorre no sertão de Pernambuco. Minas Gerais enfrenta situação semelhante no Triângulo Sul e Mato Grosso do Sul em torno de Dourados.

A Fiocruz afirma que começou a desacelerar a queda nas internações por casos confirmados ou suspeitos de covid em estados como Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

"Tais estimativas reforçam a importância da cautela em relação a medidas de flexibilização das recomendações de distanciamento para redução da transmissão da covid-19 enquanto a tendência de queda não tiver sido mantida por tempo suficiente para que o número de novos casos atinja valores significativamente baixos."

Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres, - 25 março 2021, atualizado 29 abril 2021

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Brasil supera os 400 mil mortos por covid

Marca foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país. Normas de distanciamento foram relaxadas e risco segue muito alto, dizem especialistas. Vacinação também segue lenta após governo demorar para comprar doses.

Últimas 100 mil mortes foram registradas no país em apenas 36 dias

O Brasil alcançou nesta quinta-feira (29/04) a marca dos 400 mil mortos por covid-19, equivalente a nove vezes o número de pessoas assassinadas no país no ano passado, ou onze vezes o de pessoas mortas em acidentes de trânsito. Foram 3.001 mortes registradas nas últimas 24 horas, o que elevou o total de óbitos para 401.186, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

A cifra foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país, apenas 36 dias após o Brasil ter registrado 300 mil mortes, e na mesma semana que o Senado instalou a CPI da Pandemia para investigar a atuação do governo Jair Bolsonaro no enfrentamento da covid.

O registro das 400 mil mortes ocorre em um momento da pandemia que pode ser traiçoeiro para o país. Os números mais recentes indicam leve desaceleração do contágio, o que incentivou parte dos governantes e da população a relaxar o distanciamento social. Mas o número de novos casos e mortes segue em patamar muito elevado, assim como a ocupação das UTIs na maior parte do país.

Como resultado, o aumento na circulação de pessoas, enquanto a vacinação completa chegou a apenas 9% da população, tem potencial para reverter a tendência de queda e elevar rapidamente o número de mortes diárias acima do patamar de 4 mil, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Momento da pandemia

Diversos indicadores mostram uma desaceleração recente na contaminação pelo vírus. A média móvel de novas mortes por dia, que nesta quarta era de 2.379, vem em tendência de queda desde 12 de abril, quando estava em 3.125.

A média móvel de novos casos por dia também registrou queda desde 11 de abril, quando era de 71.283, e desde o início desta semana estabilizou-se ao redor de 57 mil novos casos por dia.

A taxa de transmissão (Rt), que chegou a 1,23 em março – o que significa que 100 pessoas com a covid infectavam outras 123 – caiu e está agora em 0,93, segundo monitoramento do Imperial College de Londres. Foi a primeira vez que o número ficou abaixo de 1 em cinco meses.

Boletim divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na quarta também informou que há tendência de "ligeira queda" no número de casos e mortes. No último domingo, o estado de São Paulo registrou redução de 27% no número de pessoas internadas com covid comparado com o mês anterior.

Essa desaceleração se deve a medidas mais duras para restringir a circulação social adotadas por alguns prefeitos e governadores em março, e à parcela da população que, assustada com a escalada da pandemia, reduziu ainda mais as aglomerações.

Em 15 de março, por exemplo, o estado de São Paulo entrou na fase emergencial da restrições, com toque de recolher noturno, proibição de cultos religiosos presenciais e home office obrigatório. Em 26 de março, a cidade do Rio de Janeiro também determinou o fechamento do comércio e de serviços não essenciais.

 "É claro que isso teve algum efeito: há menos gente circulando e menos contatos, e começa a arrefecer a subida no número de casos e mortes", diz Roberto Kraenkel, membro do Observatório covid-19 BR.


Risco alto

Diante da tímida melhora, autoridades começaram a relaxar as normas de distanciamento. Em 12 de abril, o estado de São Paulo saiu da fase emergencial, e no último sábado iniciou a transição para a fase laranja, que autoriza inclusive o funcionamento de bares, restaurantes, academias e cinemas. Desde 9 de abril, bares e restaurantes também podem funcionar na cidade do Rio de Janeiro.

O relaxamento das restrições, associado ao cansaço das pessoas com a necessidade de isolamento, é perigoso neste momento, pois o nível de novos casos e mortes segue muito alto, afirma Marcelo Bragatte, um dos coordenadores da Rede Análise covid-19.

"Estabilizar em 3 mil, 2,5 mil mortes por dia, e normalizar isso, não é normal. Afirmar 'estamos desacelerando, vamos retomar as aulas, flexibilizar o comércio', é uma loucura. Tu estás se afogando numa piscina de dez metros de profundidade, tu tens 1,70 de altura e o nível da piscina baixou para cinco metros. Não vai te salvar", compara.

Na avaliação de Bragatte, se o roteiro de flexibilizações pelo país for mantido, o número de casos e mortes logo voltará a subir e o Brasil voltará a registrar mais de 4 mil novas mortes por dia em junho. "As tendências são muito ruins, estamos num patamar muito alto", diz.

UTIs cheias, mortalidade crescente

Um dos indicadores do perigo da flexibilização neste momento é a taxa de ocupação de UTIs. Nesta segunda-feira, 16 capitais brasileiras e o DF tinham 90% ou mais dos leitos públicos de UTI para pacientes de covid ocupados, contra 14 na semana anterior, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo. Na cidade do Rio de Janeiro, onde bares e restaurantes estão abertos, a taxa de ocupação é de 96%, contra 93% na semana anterior.

Outro dado preocupante é a maior taxa de letalidade da covid neste momento, que mede a parcela das pessoas diagnosticadas com a doença que morre. Segundo o boletim da Fiocruz divulgado na quarta, a taxa de letalidade foi de 4,4% na semana de 18 a 24 de abril, mais que o dobro da do final do ano passado, quando estava em torno de 2%.

A maior letalidade da doença é atribuída ao sistema de saúde trabalhando próximo ou acima de seu limite, e também pode estar relacionada à variante P1, mais transmissível, identificada pela primeira vez em Manaus e hoje predominante no país – essa cepa do vírus já responde por 90% das amostras analisadas no estado de São Paulo.

Letalidade da doença está em 4,4%, mais que o dobro do final do ano passado

Vacinação lenta

A solução duradoura para a pandemia é a vacinação, mas o Brasil demorou a firmar contratos com um rol variado de produtores e a falta de doses tem provocado atrasos e interrupções no plano de imunização. Esse é um dos pontos que serão investigados pela CPI da Pandemia.

"Temos poucas vacinas, e a perspectiva de vacinar a população de forma que a quantidade de pessoas com imunidade seja realmente grande para segurar a pandemia não vai acontecer tão cedo. Enquanto isso não acontecer, sempre poderemos ter novos surtos e subidas de casos", diz Kraenkel, que também lembra da importância de o país incluir em sua estratégia a testagem em massa e o rastreio de quem teve contatos com pessoas infectadas, "algo que nunca entrou na agenda do governo".

O Brasil é no momento o segundo país do mundo com mais mortes pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 574 mil pessoas morreram com covid. A distância entre os dois países, porém, está diminuindo. Nas duas últimas semanas, os americanos, que vêm conduzido um programa de vacinação agressivo, registraram cerca de 700 novas mortes por dia.

Bragatte avalia que a pandemia no Brasil apresenta números "funestos" em parte porque o governo federal decidiu "não levar a sério os avisos que a ciência vinha dando desde o início" e baseou suas decisões em uma falsa dualidade entre preservar a saúde pública ou a economia. "Elas são simbióticas. A economia é alicerçada em pessoas, não em números", diz.

Ele também afirma que a postura de Bolsonaro teve papel decisivo na piora da pandemia. "As lideranças têm um efeito forte. Todos os cientistas do país fazendo divulgação não têm o alcance de um presidente dando um exemplo inadequado", diz.

Deutsche Welle Brasil, em 29.04.2021

O Judiciário passando a boiada

O processo judicial eletrônico iniciou a reforma mais expressiva no sistema de justiça nacional neste século. Práticas obsoletas, morosidade, falta de transparência e gargalos de acesso à Justiça são problemas que a tecnologia prometia enfrentar. 

A distribuição dos serviços judiciários ao cidadão depende de usuários profissionais, dentre os quais, a advocacia. É a única profissão que atua em todos os pontos do sistema de justiça e tem contato direto com os cidadãos que demandam por aqueles serviços. Portanto, pode contribuir de maneira decisiva para aprimorar a justiça. Porém, raramente as opiniões da advocacia são consideradas, quando não tratadas como obstáculo.

Por exemplo, a gravação de audiências sempre foi reivindicação da advocacia. Os juízes resistiam com firmeza à medida, mesmo depois de prevista no artigo 367 do Código de Processo Civil. Na diretoria da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), representamos contra juíza que expediu mandado de busca contra um advogado, para apreender o gravador em que ele havia registrado sua audiência.

Com a pandemia, as audiências por videoconferência tornaram a gravação habitual, defendida pelos juízes e regulamentada com rapidez em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça que tratam da “justiça digital”. Formulado ao arrepio do debate público e valendo-se da situação emergencial, há um arsenal de normas de gabinete estreitando a participação cidadã na administração da justiça.

As regras de audiência online estão sendo definidas conforme interesses exclusivos da burocracia judiciária e, na prática, servem para realizar desejo antigo de parcela expressiva dessa burocracia: distanciar-se dos advogados e, por consequências, da população. 

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus processuais e econômicos excessivos e desiguais para a advocacia, também por omissão da OAB. Partes e testemunhas sem meios técnicos ou ambiente adequado para participar de atos judiciais dependem dos escritórios de advocacia, que se tornaram extensão dos fóruns e, assim, têm garantido a continuidade da prestação jurisdicional.

O ingresso livre nos fóruns e tribunais foi substituído por horas em “salas de espera” virtuais, o botão de mudo usado para cassar a palavra de advogados. Há notícias recorrentes de juízes que não atendem advogados pelos meios eletrônicos ou inviabilizam esse imprescindível contato com regras criativas (envio de sustentação oral gravada, despacho por e-mail etc).

A tecnologia sempre será muito útil no campo jurídico. Porém, há que se observar a necessidade de preservação do espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de custódia, de instrução, depoimentos sensíveis, acareações etc. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas com a solenidade devida que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quando tudo ocorre por vídeo, com perda das percepções pessoais, da comunicação não verbal e da mediação direta entre profissionais do direito e jurisdicionados.

O modelo de justiça digital que está sendo implementado é excludente, disfuncional e formatado apenas sob a ótica da burocracia judiciária. No final dos anos 90 desenvolveu-se o conceito de “justiça de proximidade”. Desde 2020, provimentos estão substituindo-o pela “justiça de distanciamento”.

Para reverter esse processo e não desperdiçar mais uma oportunidade de usar bem a tecnologia é essencial que a justiça digital seja tratada em lei. O Parlamento é a arena pública adequada ao debate republicano. E, isso acontecendo, é preciso que a OAB saia da letargia, pense mais nos problemas da justiça e menos em política eleitoral. 

O debate legislativo deve pautar-se por definições que não constam das centenas de provimentos de tribunais e do CNJ, em especial: quais casos e atos judiciais serão realizados apenas por meio digital; quais aqueles que não poderão ser realizados por meio digital e quais os que poderão ser online diante de concordância das partes, não dos juízes. Esta última categoria, empodera o cidadão e democratiza a administração da justiça, além de se alinhar com o princípio de cooperação adotado por nossa legislação em 2015. Sem que essas definições sejam claras e fruto de um processo que passa pela participação e deliberação de todos, a justiça digital, anunciada como panaceia, não será nada além da repetição online de antigos problemas de uma justiça que segue sobrecarregada, arbitrária e errática.

Leonardo Sica, o autor deste artigo, é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) no biênio 2015-2016 e pré-candidato à presidência da OAB-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.04.2021.

Defesa do governo na CPI da Covid mobiliza milícias digitais

Senadores da comissão dizem ter sido alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais; parlamentares recebem ‘dossiês’ apócrifos contra críticos do Planalto

Com o governo Jair Bolsonaro no foco da CPI da Covid, senadores que integram o grupo dizem ser alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais que tem como origem milícias digitais ligadas ao bolsonarismo. As mensagens incluem desde a disseminação de fake news, como a publicação de declarações descontextualizadas, até ameaças veladas. Em outra frente, parlamentares passaram a receber “dossiês” apócrifos contra adversários políticos do presidente em seus gabinetes.

Nas primeiras 24 horas após a abertura da comissão, anteontem, posts no Facebook com o termo “CPI da Covid” alcançaram mais de 3 milhões de interações (curtidas, comentários e compartilhamentos). Um monitoramento via Crowdtangle indicou que os mais populares partiram de bolsonaristas investigados por compartilhamento de fake news, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que iniciou uma cruzada nas redes e na Justiça para barrar a participação de Renan Calheiros (MDB-AL) na comissão. Crítico do governo Bolsonaro, o senador foi designado relator da CPI.

CPI da Covid em reunião que definiu presidente, vice e relator. (Crédito foto: Edilson Rodrigues/Ag. Senado)

“Você não imagina quantas mensagens grosseiras eu recebi ao longo desses dias. Coisas grosseiras, ameaças perguntando se eu gostava da minha família, xingamentos. É um volume atípico, com robôs. Pagam para fazer isso”, afirmou o senador Otto Alencar (PSD-BA), que se define como independente.

Por trás de algumas das publicações relacionadas à CPI também estão nomes ligados ao chamado “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Revelado pelo Estadão em setembro de 2019, o núcleo costuma dar as diretrizes da atuação digital de bolsonaristas e é influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

O assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz é um dos nomes do grupo. Tércio usou o Twitter para se referir ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta como “genocida”, uma vez que, em várias ocasiões, ele recomendou que pessoas com sintomas leves ficassem em casa, seguindo o que diziam autoridades sanitárias no início da pandemia. A postagem do assessor de Bolsonaro teve mais de 10 mil compartilhamentos. 

Em sua primeira reunião de trabalho, marcada para hoje, a CPI deve analisar um requerimento do senador Humberto Costa (PT-PE) que pede a convocação de três integrantes do “gabinete do ódio”. Além de Tércio, o pedido inclui José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz – todos assessores da Presidência da República – e é fundamentado por informações de que eles são operadores informais das redes bolsonaristas. O requerimento entra no escopo da investigação sobre a atuação da comunicação do governo, suspeita de desinformar e agir contra as medidas em favor da contenção da pandemia. 

‘Dossiês’

Além dos ataques virtuais, Mandetta também passou a ser alvo de “dossiês” apócrifos entregues nesta semana nos gabinetes do Congresso. O Estadão apurou que ao menos três parlamentares receberam envelopes com dados sobre a gestão do ex-ministro e possíveis irregularidades envolvendo contratações da pasta. Os três pediram para não ter os nomes revelados. Embora evitem apontar os autores, senadores que tiveram acesso ao conteúdo afirmaram que apenas pessoas com acesso a informações internas do governo poderiam produzi-los. Mandetta deixou o governo em abril do ano passado por desavenças com Bolsonaro e será o primeiro a ser ouvido pela CPI, na terça-feira. Procurado pelo Estadão, ele não quis se manifestar.

Chefiada pelo general Luiz Eduardo Ramos, a Casa Civil tem coletado informações em várias áreas, sob o argumento de que se trata de uma estratégia para defender o governo na CPI da Covid. A Secretaria de Governo, comandada por Flávia Arruda, também ajuda senadores aliados na comissão com dados e orientações sobre quem convocar. 

A assessora especial da Secretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência, Thais Amaral Moura, é indicada como autora de requerimentos preparados pelos senadores governistas Ciro Nogueira (Progressistas-PI) e Jorginho Melo (PL-SC) na CPI. É possível encontrar o nome de Thais ao acessar as propriedades dos arquivos das solicitações dos senadores. A Secretaria é ligada à Segov. O Planalto não se pronunciou sobre a reportagem.

Relator

A articulação de bolsonaristas nas redes sociais vem sendo acompanhada de perto por Renan e discutida com outros integrantes da comissão.  O relator da CPI escalou sua equipe para produzir e apresentar ao colegiado relatórios periódicos sobre o que realmente é debatido pela opinião pública nas redes sociais. A interlocutores, ele disse que sua intenção é permitir que “ninguém seja influenciado pelo gabinete do ódio” e que os senadores “não apanhem calados”.

O modelo é uma adaptação de um sistema usado pela Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, que serve para filtrar comentários e pressões das redes usando uma espécie de checador. Esse aplicativo leva em conta o comportamento dos perfis, o tipo de postagem, o tipo de nome e a participação nos temas.

Eleito vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) também identificou o acirramento nos ataques virtuais. Um levantamento da assessoria do parlamentar aponta que postagens críticas subiram 40% em relação ao ano passado. Em alguns casos, incluem frases como “Deus tenha misericórdia de você” e “Você não tem medo, não?”. “E é sempre à noite. Acho que tem um horário que os robôs saem e aumentam os níveis das agressões”, afirmou Randolfe.

Vinícius Valfré, Marcelo de Moraes e Lauriberto Pompeu para O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 05h00

Economia da obediência

O fracasso do Ministério da Economia, sem rumo, sem projetos e sem peso político, foi comprovado, mais uma vez, pela rendição de Paulo Guedes a pressões.

O fracasso do Ministério da Economia, sem rumo, sem projetos e sem peso político, foi comprovado, mais uma vez, pela rendição do ministro Paulo Guedes a pressões do Congresso, de outras áreas do Executivo e também do presidente da República. Ao substituir alguns de seus principais auxiliares, como o secretário especial da Fazenda, o ministro cuidou apenas de uma reles acomodação política. Ele nem tentou disfarçar. “O que está acontecendo”, explicou, “é remanejamento da equipe justamente para facilitar negociações com o Congresso.” Negociações para quê? Para garantir a execução de uma ambiciosa política econômica? Até poderia ser, mas nada parecido com essa política foi apresentado em quase dois anos e meio de escassa atividade governamental.

A nova rendição é mais um desdobramento da enorme confusão sobre o Orçamento de 2021. Aprovado só em março, o projeto orçamentário, muito ruim desde a origem, ainda foi destroçado no Congresso para atender aos interesses paroquiais de parlamentares. Emendas foram infladas, gastos obrigatórios foram subestimados e a sanção presidencial foi decidida, enfim, no meio das negociações entre Poderes e de graves divergências dentro do Executivo.

Já desgastado em outros episódios, o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, atraiu novas críticas. Com isso, ficou mais exposto à destituição, enfim anunciada, juntamente com outras mudanças, na terça-feira. Considerado um fiscalista rigoroso, ele chegou a propor, no ano passado, o congelamento de aposentadorias ligadas ao salário mínimo. O presidente reagiu, ameaçou demissões e o ministro aceitou a pressão, embora houvesse admitido, inicialmente, a proposta impopular formulada pelo secretário.

A desarticulação da área econômica, no entanto, é muito mais importante que o conteúdo das polêmicas. O Ministério da Economia negociou mal, e de forma confusa, a forma final do Orçamento. O ministro falhou na escalação do pessoal autorizado a se manifestar e na definição dos temas e objetivos da negociação. Os parlamentares conseguiram, afinal, manter boa parte das emendas infladas. Ficou para o Executivo a missão de completar os ajustes. Cortaram-se verbas destinadas ao censo demográfico, já atrasado, ao programa habitacional e a outras ações de importância econômica e social, em áreas como educação, serviços de saúde e pesquisa médica.

Houve pouca discussão sobre os efeitos desse ajuste, mas o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo apontou possíveis consequências. Os cortes, segundo o sindicato, poderão impedir ou dificultar a produção de cerca de 215 mil unidades habitacionais em todo o País, com perda de “mais de 400 mil empregos diretos e indiretos”.

Especialistas podem debater os detalhes, mas o investimento em habitação é conhecido como importante fonte de empregos e de estímulos a vários setores da indústria – nos segmentos de aço, plásticos, cimento, vidros, guindastes, tratores, tintas e móveis, entre outros. Pode-se perguntar se o governo leva em conta informações como essas ao tomar decisões sobre política orçamentária. A resposta é provavelmente negativa, a julgar pela escassa atenção destinada, habitualmente, às condições de funcionamento da economia, isto é, ao dia a dia da produção e dos negócios.

Essa pouca atenção foi demonstrada na decisão de reduzir o auxílio emergencial a partir de setembro e extingui-lo na virada do ano. O aumento da miséria foi uma das consequências. Depois, aparentemente surpreendido, o governo teve de negociar com o Congresso ações para restabelecer a ajuda. Não houve sequer, em 2020, o planejamento necessário para o enfrentamento continuado da crise. Sem plano e sem prioridades para a economia real, o governo se aproxima de um período eleitoral muito perigoso para as finanças públicas, com o Tesouro sujeito às pressões do presidente e de seus aliados dentro e fora do Congresso. Se nada surpreendente ocorrer, a função do Ministério da Economia será tentar a conciliação dessas pressões.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 03h00

O padrão da infâmia

"Há quem sue a camisa tentando ser mais imoral que os Bolsonaros", enfatiza O Estado de S. Paulo em editorial hoje.

O senador Flávio Bolsonaro saiu ao pai. Tal como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro, o parlamentar ofendeu a inteligência alheia ao discursar na abertura da CPI da Pandemia. Na ocasião, o senador, com vergonhosa caradura – outro traço paterno –, queixou-se do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, por ter autorizado a instalação da CPI. Disse que o senador Pacheco estava sendo “irresponsável” porque estava “assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos desta CPI, acontecerem mortes de senadores, mortes de assessores, mortes de funcionários desta Casa, em função da covid”, já que “as sessões vão ter que ser presenciais, no momento em que nem todos estão vacinados”. E arrematou: “Por que não esperar todo mundo se vacinar e fazer com responsabilidade esses trabalhos? Por que essa insistência agora, atropelando protocolos, ignorando a questão sanitária? Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer. Vamos orar para que não aconteça”.

É um acinte. Desde o início da pandemia, os Bolsonaros, com o presidente Jair na vanguarda, fazem campanha sistemática contra os “protocolos” mencionados pelo senador Flávio. O presidente estimula aglomerações, desdenha da vacinação e jamais demonstra preocupação com os doentes nem respeito pelos mortos. Por fim, é Bolsonaro, e não o presidente do Senado, quem defende o fim das medidas de restrição adotadas pelos governadores e prefeitos no momento em que nem mesmo o chamado “grupo de risco” da população está vacinado.

“Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer”, disse Flávio Bolsonaro, referindo-se a eventuais mortes no Senado em razão do trabalho presencial. Mas “algo” já aconteceu: são quase 400 mil mortes desde o início da pandemia, muitas delas perfeitamente evitáveis, e é justamente para encontrar os responsáveis por esse crime monstruoso que a CPI foi instalada.

O comportamento do senador Flávio Bolsonaro não surpreende. É o padrão da infâmia no governo Bolsonaro – a tal ponto que, numa inconfidência gravada, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, de 64 anos, revelou ter tomado a vacina “escondido”, porque “a orientação era para não criar caso”.

Não se sabe bem a que “orientação” o ministro se referiu, mas, ao dizer que teve que tomar a vacina “escondido”, deixou claro que alguns ministros do governo Bolsonaro não ficam à vontade para se imunizar, pois esse gesto contrariaria a campanha do presidente contra a ciência e contra a vacinação.

“Mas tomei mesmo, não tenho vergonha, não”, continuou o ministro Ramos, que estava numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar. “Eu, como qualquer ser humano, quero viver. E se a ciência, a medicina, fala que é a vacina (...), quem sou eu para me contrapor?” E ainda acrescentou que está tentando convencer Bolsonaro a se vacinar, pois o presidente estaria correndo risco de vida. Ou seja, um ministro de Bolsonaro candidamente confirma que, no governo, quem decide alinhar-se à ciência e preservar a vida deve fazê-lo discretamente, para não embaraçar o negacionista militante ocupante da silha presidencial.

Na mesma reunião estava o ministro da Economia, Paulo Guedes, que também teve sua oportunidade para confirmar o assustador padrão do governo. “O Estado quebrou”, disse o ministro Guedes, acrescentando que “todo mundo vai procurar o serviço público” de saúde, pois “todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130”, e “não há capacidade instalada no setor público para isso”. Ou seja, para o ministro que se diz liberal o problema da saúde pública é que os brasileiros desejam viver mais.

A solução para esse problema, segundo o ministro Guedes, seria instituir um “voucher” para que o paciente procure tratamento no sistema privado de saúde. “Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser”, explicou o ministro, numa escancarada defesa do desmonte do Sistema Único de Saúde – estrutura sem a qual o desastre da pandemia seria muitas vezes maior.

Como se vê, nesse campeonato de desfaçatez, há quem esteja suando a camisa para ser ainda mais imoral que os Bolsonaros. É difícil, mas eles seguem tentando.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 03h00

Em nova derrota para o Planalto, CPI da Covid convoca Queiroga e ex-ministros da Saúde

Colegiado aprovou requerimentos para ouvir Marcelo Queiroga, atual ministro, e seus antecessores no governo Bolsonaro: Eduardo Pazuello, Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta; todos devem prestar esclarecimentos semana que vem.

 Os integrantes da CPI da Covid no Senado aprovaram nesta quinta-feira, 29, os requerimentos para convocação dos ex-ministros da Saúde do governo Jair Bolsonaro e do atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga. Todos devem ser ouvidos pelo colegiado na semana que vem. O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, também foi convocado a prestar depoimento durante a segunda reunião do grupo, que foi marcada mais uma vez por tentativas de obstrução por parte dos governistas. 


Omar Aziz (sentado), presidente da CPI da Covid; Randolfe Rodrigues, vice (esq.); e o relator Renan Calheiros. (Crédito da foto: Edilson Rodrigues/Ag. Senado)

Requerimentos de senadores governistas na CPI foram feitos no Planalto

As primeiras convocações representam uma derrota para o Palácio do Planalto,pois colocam a gestão federal no foco inicial das investigações. Aliados do presidente Jair Bolsonaro criticaram a atuação da comissão e tentaram, sem sucesso, votar ao mesmo tempo requerimentos de interesse direto do presidente. 

Em meio a um clima tenso, os senadores governistas só conseguiram adiar a convocação do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten, cujo pedido teve sua avaliação adiada para a próxima terça-feira, 4. A expectativa, no entanto, é que esse requerimento também seja aprovado e Wajngarten possa ser ouvido na segunda semana de maio.

Todos os requerimentos foram aprovados para que as autoridades sejam ouvidas como testemunhas. Ninguém ainda é formalmente investigado pela CPI da Covid. 

Os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich devem ser ouvidos dia 4. Na quarta, 5, a CPI vai coletar o depoimento de Eduardo Pazuello, que ficou mais tempo à frente da pasta durante a pandemia de covid-19 e é um dos principais alvos da investigação.

Na sequência, dia 6, os senadores querem ouvir o depoimento do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres. As autoridades podem recusar a convocação ou até mesmo ficarem caladas durante a audiência. 

Informações

A CPI aprovou ainda uma série de pedidos de informações propostos pelo relator, Renan Calheiros (MDB-AL). O Ministério da Saúde terá cinco dias úteis para enviar dados sobre o enfrentamento da pandemia, aquisição de vacinas, medidas de isolamento social e distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada, além do repasse de verbas para Estados e municípios.

Autoridades do Amazonas também serão intimadas para o envio de informações sobre o colapso no sistema de saúde de Manaus. Além disso, os senadores vão pedir documentos da CPMI das Fake News do Congresso. 

O foco dos primeiros requerimentos foi criticado pela tropa de choque do presidente Jair Bolsonaro. Governistas pediram para que todos os pedidos fossem aprovados ao mesmo tempo, inclusive aqueles de interesse direto do Executivo federal. Alguns deles foram, inclusive, assinados por uma assessora da Secretaria de Governo da Presidência da República, conforme informação revelada pelo jornal O Globo e confirmada pelo Estadão/Broadcast.

"Não podemos aprovar requerimentos para tirar o foco da investigação", afirmou Renan, em debate com os governistas. "O foco da CPI não pode ser aquele dado pelo relator", retrucou Marcos Rogério (DEM-RO), aliado de Bolsonaro. O comentário provocou reação da oposição. "Também não pode ser o que veio do Palácio do Planalto", disse Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Após o bate-boca, a sessão foi suspensa por meia-hora. 

Um dos autores dos requerimentos que tiveram a digital do Planalto, Ciro Nogueira (PP-PI) afirmou que os pedidos são de autoria formal dos senadores e precisam ser analisados. "Vamos votar os que foram assinados por senadores. O senhor não vai impedir. Vote contrário", disse Ciro a Renan Calheiros.

O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que todos os requerimentos de informações serão analisados, mas que, neste momento, é preciso focar naquilo que será necessário para  levantar dados durante os depoimentos na próxima semana.

Daniel Weterman e Vinicius Valfré para O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 11h36. / Colaborou Lauriberto Pompeu.


Waak: O milagre da permanência

Bolsonaro cedeu a outras forças políticas o terreno que era seu

Jair Bolsonaro está ganhando fácil a corrida para saber qual ocupante do Palácio do Planalto conseguiu perder mais rápido o capital político conquistado numa eleição direta e plebiscitária. É curioso observar como ele mesmo “trabalhou” para criar um vácuo político imediatamente ocupado. 

De fato, nunca o Executivo brasileiro foi tão controlado, contido ou encurralado pelo Judiciário e Legislativo. Têm razão os generais de pijama que cochicham a Bolsonaro que STF e Congresso extrapolaram suas competências. Mas não se trata, como pretendem Bolsonaro e seus seguidores (em diminuição acentuada) de uma “conspiração”.

A principal responsável é a atuação do próprio Bolsonaro e sua extraordinária incompetência política. No momento em que enfrentar a crise da pandemia e suas consequências para a economia demandaria uma altíssima capacidade de liderança, coordenação e foco estratégico, o “centro” do poder está ocupado por uma curiosa aliança tácita, volátil e fluida de juízes e parlamentares.

Bolsonaro tinha uma grande pauta de mudanças e reformas logo que assumiu que hoje se resume em permanecer onde está. Cedeu instrumentos de poder real e efetivo (como o controle do Orçamento) e foi obrigado a respeitar limites de atuação política (estipulados pelo STF) pela mesma razão: não ter visão, capacidade de condução e muito menos entender o que é a política, embora tivesse passado 27 anos no fundo da Câmara dos Deputados.

Ele sabe muito bem, por outro lado, que o jogo dos donos do poder em Brasília obedece aos fatores de longa memória, a saber: compadrio, patrimonialismo, corporativismo, teias de laços pessoais e oligárquicos, acomodação de interesses à custa dos cofres públicos, clientelismo. Nessa rede que se revelou indevassável (que o diga a Lava Jato) Bolsonaro está manietado, pessoal e politicamente.

Sua mais recente “cartada” é jogar o jogo dos donos do poder no Judiciário, por meio das nomeações que terá de fazer para tribunais superiores e na Procuradoria-Geral da República. É ocupar por dentro instâncias decisivas de poder político, como tem sido o Judiciário brasileiro (e o MPF). O caminho é o mesmo que movimentos como o chavismo percorreram, por exemplo, até desfigurar o que existia de democracia (a base disso é a lealdade ao chefe e não à lei ou instituições).

No caso do Brasil o perigo dessa “marcha por dentro das instituições” é muito menor. O chamado “sistema” continua intacto. E, ao contrário de outros “ismos” da nossa história política (varguismo, ou lulismo), o bolsonarismo é um conjunto de propostas e ideias sem definição clara, rumo definido, coordenação eficaz e com escasso domínio dos instrumentos clássicos de poder ou coerção. Bolsonarismo é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa.

Talvez a única “base social” nítida do bolsonarismo seja a ligação de seus expoentes políticos com as denominações políticas e religiosas evangélicas – mas, aqui, cabe lembrar aos seguidores do “mito” (um atributo que está resvalando para o ridículo) que o conjunto de forças evangélicas é fracionado, dividido entre si e alguns de seus principais nomes apoiaram todos os governos anteriores e provavelmente o farão no futuro. Não acham que devam “lealdade” ao presente chefe.

Por último, esse “estado de espírito” bolsonarista – o da polarização, defesa da ignorância, intolerância e boçalidade política geral – está construindo depressa no grande e movediço terreno das atitudes das pessoas um movimento contrário caracterizado por indignação, cansaço, tristeza e falta de esperanças nesse “mito” e, por enquanto, em qualquer outro candidato (o que inclui Lula). 

Mas esse candidato surgirá: a demanda foi criada por Bolsonaro, assim como ele mesmo atendeu a uma clara demanda. Segue convencido de ter sido beneficiado por um milagre (sobreviveu à facada) e que só Deus pode tirá-lo de onde o colocou. Ignora-se se as forças diversas do chamado Centrão, às quais Bolsonaro entregou seu futuro político, o fazem por acreditar em desígnios divinos. O fato é que, no momento, acham mais conveniente deixá-lo por lá.

Wiliam Waack  é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.04.2021

Renan Calheiros, o insólito novo líder da oposição a Bolsonaro

Político camaleão e hábil interlocutor na câmara alta, senador envia recado: “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), durante a sessão da CPI da Covid. (Crédito da foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado).

Nunca uma CPI começou com tantos sinais de crime

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

Inaugurada nesta terça-feira, a CPI da Covid já demonstrou quem será o segundo principal adversário político de Jair Bolsonaro pelos próximos meses, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Não é o principal, pois, como usualmente se diz em Brasília, o papel de maior opositor do Governo Bolsonaro cabe ao próprio presidente e a seus ministros, com as crises autoinfligidas e declarações que provocam conflito com outros poderes e países ―nesta terça-feira foi a vez de Paulo Guedes (Economia) irritar Pequim dizendo que o “chinês inventou o vírus”, sem saber que estava sendo gravado. Antes desta gafe, foi o discurso de Calheiros como relator da comissão parlamentar de inquérito que trouxe os primeiros indícios do caminho que o experiente senador de Alagoas pretende trilhar e do barulho que a CPI pode causar.

Em sua primeira participação, Calheiros provocou incômodo no primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O herdeiro do presidente reclamou que as sessões presenciais da CPI poderiam resultar na contaminação de mais servidores da Casa e até na morte de parlamentares ―três senadores já morreram de covid-19 desde o ano passado. “Acho que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”, disse Flávio. Indagado por repórteres sobre esta fala, Calheiros ironizou. “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros”, afirmou.

Em seu primeiro discurso na CPI, o senador não citou diretamente Bolsonaro em nenhuma ocasião. Mas enviou recados incômodos. “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”, disse. Ele prometeu ser imparcial em seu relatório, do qual disse querer ser um sintetizador, um redator. E alegou ainda que prezará sempre pela ciência. É um contraponto à rejeição dos preceitos científicos de Bolsonaro e de seus asseclas. “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo, ao negacionismo sepulcral responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano.”

Crítico da operação Lava Jato, Calheiros reforçou essa postura também no discurso inicial da CPI. “[A comissão] tampouco será um cadafalso com sentenças pré-fixadas ou alvos selecionados. Não somos discípulos nem de Deltan Dallagnol nem de Sérgio Moro”, disse em referência ao procurador e ao ex-juiz que atuaram na operação em Curitiba. “Não arquitetaremos teses sem provas ou Power Points contra quem quer que seja. Não desenharemos o alvo para depois disparar a flecha”. 

Ataques nas redes processos judiciais

Assim que passou a circular a informação de que o emedebista seria o relator da comissão, interlocutores do Governo o procuraram para tentar aliviar o relatório para Bolsonaro. Na conta, estaria um eventual apoio ao seu grupo político na eleição estadual do ano que vem. O cenário em Alagoas ainda não está claro. O Estado é governado por Renan Calheiros Filho (MDB), que, em seu segundo mandato, tem dois ou três pré-candidatos a sua sucessão. O apoio de Bolsonaro, no momento, não é bem recebido pelos emedebistas. Por enquanto, eles preferem estar ao lado do lulismo do que do bolsonarismo.

Seja como for, Renan Calheiros é um camaleão político que ocupa cargos públicos e eleitorais há 42 anos. Desde a redemocratização, já foi da base governista de todos os presidentes. De Fernando Collor (PROS) a Michel Temer (MDB). Em alguns momentos foi mais defensor do presidente da ocasião. Em outros, como no de Dilma Rousseff (PT), foi um conciliador que deixou de apoiá-la na reta final de processo de impeachment, mas conseguiu manter os direitos políticos da petista em um grande acordo parlamentar. Por essa razão, é bem-quisto pelos petistas, principalmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Após ser derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência do Senado em 2019, Calheiros atuou nos bastidores contra a gestão Bolsonaro. Fugiu dos holofotes por um período para se defender dos 12 processos aos quais responde no Supremo Tribunal Federal e, agora, volta com todas as cargas contra o presidente e já enfrenta a ira das redes bolsonaristas. 

A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) tentou impedi-lo, por meio de uma ação judicial, retirá-lo da relatoria. Conseguiu, em primeira instância, mas viu na segunda, viu a decisão cair. “Intimidações, e todos os dias nós as vemos sob qualquer modalidade e arreganhos, não nos deterão”, disse. Uma das principais queixas dos bolsonaristas trata exatamente dos elos familiares de Calheiros. “Se for pela questão de interesse, o presidente não deveria nem deixar o Flávio Bolsonaro entrar aqui no colegiado”, disse o líder do PT no Senado, Paulo Rocha.

A característica mutante de Calheiros faz com que ele esteja, hoje, ao lado de quem antes era seu opositor. Agora, caminha de braços dados com Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o senador que liderou o seu partido na Justiça, em 2016, em um movimento para afastar o emedebista da Presidência do Senado. Naquela ocasião, foi a primeira vez que o Senado afrontou uma decisão judicial, dada em caráter liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Próximos passos

Nesta quarta-feira, a CPI deverá receber sugestões de planos de trabalho, que são uma espécie de roteiro do colegiado que inclui as próximas convocações e os documentos que deverão ser entregues para se iniciar a investigação. Três já foram entregues, e o relator espera receber ao menos mais cinco. Antes, contudo, Calheiros já enviou uma série de requerimentos que devem dar o tom dos trabalhos na primeira semana. Na quinta, esses planos de trabalho deverão ser votados pela comissão.

O primeiro a comparecer na comissão, como testemunha, será o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na próxima terça-feira. “Temos a preocupação de começar a cronologia do início, para saber o que foi feito desde o primeiro momento”, disse o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

Mandetta deixou o Governo por discordar da conduta negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Ele defendia medidas de restrição de circulação enquanto o mandatário era contrário. Também havia um confronto sobre o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes no tratamento do coronavírus, sempre propagados pelo presidente.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em  27 ABR 2021 - 21:53 BRT

Biden pede ao Congresso apoio à sua agenda social: “Não podemos parar agora”

Em seu primeiro discurso no Capitólio, prestes a completar 100 dias no cargo nesta quinta-feira, presidente norte-americano pede apoio para taxar alta renda para financiar programas sociais.

100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos

O presidente Joe Biden fez nesta quarta-feira, em seu primeiro discurso perante o Congresso dos Estados Unidos, uma defesa capital do Governo federal em e de seus ambiciosos planos de proteção social e investimento em infraestrutura, que somam quatro trilhões de dólares e que, se efetivados, representarão a maior expansão do Estado de bem-estar social em décadas. 

Às vésperas de seus primeiros 100 dias de mandato, Biden pediu aos republicanos apoio para um novo arcabouço que enterre o credo neoliberal que reina desde os anos 1980 e defendeu as medidas tomadas na Casa Branca: “Os Estados Unidos se movem, estão avançando, não podemos parar agora.“

O discurso do presidente ao Senado e à Câmara dos Representantes, um rito anual da política americana, ocorreu este ano em condições anômalas, como praticamente tudo neste ano pandêmico. Os cerca de 1.600 convidados foram reduzidos, desta vez, para cerca de 200 e a segurança foi reforçada em todo o perímetro do Capitólio, por causa dos alertas ativados desde o assalto sofrido pelo local em 6 de janeiro perpetrado por radicais que estavam precisamente tentando torpedear a chegada de Biden à Casa Branca. 

Nesta noite, ladeado pela primeira vez por duas mulheres ―a presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, e a vice-presidenta do país, Kamala Harris―, o democrata fez uma declaração que dificilmente imaginou que faria durante seus 36 anos como senador, onde conquistou fama de moderado e pacificador. “É hora de fazer crescer a economia de baixo para cima”, sublinhou, em um discurso de pouco mais de uma hora, no qual também fez um apelo pelo fortalecimento do sindicalismo e pela arrecadação de impostos para os mais ricos.

Biden mostrou aquele otimismo que faz parte do DNA do país ―“A América está em movimento novamente. Transformando o perigo em possibilidade. Crise de oportunidades”―, destacou o 1,3 milhão de empregos criados em três meses, um recorde nos primeiros 100 dias para qualquer presidente da história, e pediu mais artilharia. 

O democrata tomou as rédeas do país em um momento inusitado e crítico, diante de um grande desafio, e decidiu aproveitar a crise para lançar um pacote de estímulos e reformas estruturais de grande significado social. 

Em março, conseguiu aprovar um plano de resgate de 1,9 bilhão de dólares que já parecia excessivo aos republicanos, então apresentou um plano de infraestrutura de 2,3 bilhões. Nesta quarta-feira, aproveitou o encontrou entre os norte-americanos e seus legisladores para apresentar um novo programa, dirigido a famílias, que amplia a educação pública, orçado em 1,8 trilhão.

Para financiá-lo, propõe mais recursos para o combate à sonegação fiscal, aumento de impostos para empresas e para cidadãos que ganham mais de 400.000 dólares por ano, de 37% para 39,6%. Qual deve ser o tamanho do governo e a intensidade da intervenção na economia divide os americanos. Os republicanos rejeitam novas medidas de gastos, enquanto os democratas as veem como um investimento. 

Para os republicanos, o aumento dos impostos é um revés, principalmente depois do grande corte aprovado por Donald Trump em 2017. Biden garante que seu foco é apenas “1% mais rico” e que a classe média não vai pagar nada a mais.

Biden enviou uma mensagem cuidadosamente dirigida ao trabalhador de macacão azul, aquele que perdeu nas transformações econômicas das últimas décadas e de quem Trump soube se aproximar. Depois de anos de críticas nos quais os democratas foram acusados de não saberem ler a angústia da América do chão de fábrica, o democrata tentou assegurar-lhe de que pensa nele em todos e em cada um dos planos econômicos que formulou. 

Por exemplo, o presidente apresentou as ambiciosas metas ambientais com as quais os Estados Unidos acabaram de se comprometer como fonte de empregos técnicos e manufatureiros, em vez de a sentença de morte para outras indústrias. 

“Quando penso em mudança climática, penso em empregos”, enfatizou. Não há razão, continuou ele, para que as turbinas para os moinhos de vento “não devam ser produzidas em Pittsburgh, em vez de Pequim”. “Você se sente abandonado e esquecido em uma economia em rápida mudança? Digo que esses empregos são bem pagos e não podem ir para o exterior“, frisou o democrata, que destacou que os “90% dos empregos em infraestrutura não exigem diploma universitário.”

O democrata, em uma guinada muito evidente em relação ao Governo Barack Obama, defendeu o fortalecimento do movimento sindical, destacando: “Wall Street não construiu este país, a classe média construiu este país. E os sindicatos constituem a classe média“. 

E disputou com Trump a bandeira do patriotismo econômico, prometendo que o plano de emprego será baseado “em um único princípio”: “Compre produtos americanos”. “Os dólares dos contribuintes dos EUA serão usados para comprar produtos americanos que criam empregos americanos.”

Biden completou seus primeiros 100 dias no cargo com índices de aprovação razoavelmente bons (59%, de acordo com dados da Pew Research, contra 39% obtidos por Trump por volta das mesmas datas), com a gestão da pandemia como o aspecto mais valorizado e a imigração como o pior. No auge da chegada de migrantes sem documentos à fronteira, o democrata pediu aos legisladores que aprovem seu projeto de lei para aumentar a segurança na fronteira e para fornecer um caminho rumo à cidadania para os cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos que existem nos Estados Unidos.

Ele também se referiu à China e à Rússia, países rivais com os quais o democrata mantém um tom duro. Ele garantiu que não busca uma “escalada de tensão” com o Kremlin, mas alertou que as ações russas ―como interferência eleitoral e ataques cibernéticos― “têm consequências”. Também disse que não busca um “conflito” com Pequim, mas vai lutar contra a concorrência econômica desleal.

O republicano também se referiu à morte do afroamericano George Floyd sob o joelho do agente Derek Chauvin, que foi considerado culpado na semana passada pelo júri em Minneapolis, e pediu ao Congresso que aproveite o aniversário do crime, em 25 de maio, para aprovar uma lei de reforma policial que ajude a prevenir abusos e que leve seu nome.

O último discurso de Donald Trump no Congresso, em fevereiro de 2020, mostrou o clima de hostilidade que prevalece na política americana. Aconteceu um dia antes de ser votado o veredicto do primeiro impeachment, do qual foi absolvido. Logo após iniciar, o republicano se recusou a cumprimentar a presidenta da Câmara dos Deputados, a poderosa democrata Nancy Pelosi. Trump falou por mais de uma hora, defendendo sua gestão e atacando a imigração. Ao terminar, Pelosi se levantou e rasgou os papéis do discurso de Trump com óbvio desprezo. 

Desta vez não houve drama, ninguém rasgou roupas ou papéis, mas os republicanos deixaram a Câmara se dizendo contrários aos planos de expansão do Governo que tinham acabado de ouvir, deixando claro que as negociações no Congresso serão árduas e que a promessa de uma era de cooperação bipartidária será difícil de cumprir.

AMANDA MARS, de Washington para o EL PAÍS, em 28 ABR 2021 - 22:17 BRT

Gilberto Gil: “Um evento drástico como a pandemia ajuda a fortalecer o desejo da humanidade avançar”

Compositor baiano conta que reza para que o presidente do Brasil alcance a compreensão e o acolhimento ao que é diverso a ele num momento em que há uma cultura de destruição. Gil fala da “chuva de partículas tropicalistas” que ficou como legado do movimento que ele integrou

O músico e compositor brasileiro Gilberto Gil. (Reprodução Instagram) 

Gilberto Gil tem vivido sentimentos difusos ao longo da pandemia. A indignação com os casos de fura-fila da vacina e festas clandestinas dão ao compositor uma expressão séria, como se a serenidade que lhe é característica desaparecesse. Mas ele logo se recupera. “Um evento dramático e drástico como esse ajuda a humanidade a fortalecer o seu desejo de avançar”, afirmou em entrevista por chamada de vídeo ao EL PAÍS. Essa dualidade entre o bem e o mal agir é, para Gil, o componente principal da humanidade. “A raça humana é a ferida acesa/Uma beleza, uma podridão”, dizem os versos da canção Raça Humana, de meados dos anos 1980. “Estamos sempre entre a virtude e o pecado, o tempo todo”, comenta. Quando a avaliação recai sobre o presidente Jair Bolsonaro, Gil respira fundo. “Quero que o aperfeiçoamento humano aconteça em todos os indivíduos, inclusive para os que não comungam uma visão generosa da sociedade”, explica. Mas nem só de compaixão vive o homem. “São pessoas que querem nos destruir, que fazem de tudo para fazer prevalecer uma visão maldosa da bondade”, afirma.

O artista analisou a crise no meio ambiente - ele acaba de lançar uma música em parceria com Instituto Terra, do fotógrafo Sebastião Salgado -, a situação da cultura brasileira, onde foi ministro de Lula, e a própria existência quase octogenária, celebrada recentemente com o título de Doutor Honoris Causa do campus em Valência da Universidade de Berklee, com sede em Boston, nos EUA.

Pergunta. Como tem visto a situação da cultura no atual governo? Qual a impressão deixada pelo secretário Mário Frias até aqui?

Resposta. (A cultura) não é uma questão central no governo. Pelo menos não tem sido até agora. Não vejo apreço da mentalidade governamental por esse aspecto da vida do povo. Ou pelo menos eles devem ter uma visão sobre o que é cultura ou o que deve ser cultura, mas essa visão não abrange a todos. Na verdade, é uma monocultura, com uma completa aversão a tudo que não se enquadra nessa caixinha que eles escolheram. Desprezam um modo diverso de ver a cultura, se voltam contra aquilo que foi feito antes e querem um depois que nós não sabemos o que será. É uma dificuldade enorme até para entendê-los e compreendê-los, e até de ajudar se for caso. Mas o que nós vemos é destruição e incapacidade de construir junto com a sociedade e de entender as várias partes do Brasil que precisam ser convocadas para a realização de um projeto. Na verdade, é a falta de projeto. Um projeto cultural brasileiro teria que considerar a grandeza de nossa variedade. Isso que está acontecendo contra nós negros (o repórter é negro) na Fundação Palmares [presidida por Sérgio Camargo], uma visão discriminatória, que quer se fazer prevalecer e dificulta qualquer arranjo. Ficamos sem modos de contribuir e ajudar. E aparentemente não querem. Eles querem insistir num modo de rejeição permanente.

P. Recentemente, quando questionado sobre o presidente Jair Bolsonaro, você disse que rezava por ele e que torcia para que “um ser pleno chegasse até ele e regesse suas energias”. No que consiste a esperança de que ele possa assumir outra forma?

R. Quero que o aperfeiçoamento humano aconteça em todos os indivíduos, não só para os meus familiares, amigos. Quero que essa possibilidade de existência mais amorosa chegue também àqueles que não comungam de uma visão generosa e positiva da sociedade. São pessoas que querem nos destruir, que fazem de tudo para fazer prevalecer uma visão maldosa da bondade. Quando falo do presidente do Brasil, falo de uma dificuldade de assumir considerações sobre a variedade humana e a diversidade. Essa insistência de que o mundo precisa ser do jeito que ele e seus parceiros querem. Fico achando que pode, ou deveria haver, um meio para que ele viesse a compartilhar o ser humano em sua universalidade. Ter capacidade do perdão, da ctr. Quando falo em rezar é nesse sentido: continuar acreditando que somos resultado de uma grande maternidade universal que nos abarca a todos, e que portanto todos deveriam se beneficiar dessa condição de sermos e nos compreendermos. Bolsonaro e qualquer outra pessoa é depositário dessa esperança.

P. Há no ar um autoritarismo muito forte, mas isso é algo da nossa história, com a escravidão e a ditadura militar, por exemplo. É possível nos desvencilharmos disso ou estamos fadados a viver ciclos mais ou menos autoritários?

R. É algo que carregamos desde a colônia, passando pelo Império, pelas repúblicas que se sucederam, todas precárias. Tudo isso é uma fonte evidente de referência nos modos de fazer política e exercer poder. São heranças que nos guiam. Mas, ao mesmo tempo, a palavra democracia entrou em vigência permanente, com seus sentidos e significados cada vez mais firmes na sociedade. Quando nós temos um governo como o de agora, com uma diminuição da visão relativa da importância da democracia, há uma quantidade enorme de pessoas que reclamam. Essas são discussões que estão na pauta brasileira e mundial, dos regimes que adotam um flerte com o autoritarismo e com a intolerância. A vontade da sociedade humana já se dirigiu para esse modo mais amplo de vida que a visão democrática oferece. Isso é irreversível.

P. Você acaba de lançar Refloresta, uma canção sobre meio ambiente, área em que o Brasil é pressionado internacionalmente. Como analisa o cenário atual?

R. O movimento ambientalista, a necessidade de que a gente deve preservar a natureza da nossa própria capacidade predatória, é algo que está aí há 40 anos. São temas que foram ganhando força depois da Segunda Guerra Mundial, com essa capacidade destruidora das armas nucleares, com o descuido que tivemos aos modos de exploração da natureza, da terra para nos nutrirmos e ao devolvermos à natureza essa capacidade de nutrição, e a consolidação de um circuito permanente de tomar e devolver. Tudo isso que a ecologia trouxe também está sendo desprezado pelo atual governo. O respeito ao meio ambiente é algo que está entranhado em parte significativa da sociedade brasileira e que está reagindo não só à inércia, mas à ignorância que tem sido predominante. O movimento ambientalista mundial é uma conquista importante nas últimas décadas no mundo, e quando o Brasil reage dessa maneira insensível a todas essas conquistas, os países exigem essa sensibilidade de volta.

P. O fotógrafo Sebastião Salgado disse que a busca pelo progresso e a extração de bens naturais, com os males advindos daí, eram a contradição da nossa espécie. Como sair desse dilema?

R. Assumindo que é um dilema e que temos que nos dispor a enfrentar isso e entender as variáveis positivas e negativas. Não há um resolver permanente. “Acabou!”. Bom, aí acabou o movimento das coisas, findou-se a humanidade, tudo está resolvido e chegaremos enfim à vida plena em que não há mais sentido, porque não há contraste com nada. Esse contraste entre vida e morte é que vai continuar nos impulsionando a entender os avanços nas formas de pensar e como ajustamos a produção humana a uma produtividade mais sadia. Como nos livramos um pouco mais das guerras entre nós, homens, e também contra outras espécies na natureza. Como nos livrarmos do mal causado pelos sistemas econômicos, com um capitalismo mais solidário e menos submisso à ideia de acumulação sem fim e sem distribuição da riqueza que é produzida por todos. As tentativas que o socialismo fez, frustradas parcialmente. O sistema econômico está em xeque, assim como o sistema tecnocientífico, o existencial, nas formas de relacionamento humano. Isso significa que precisamos programar o próximo movimento no tabuleiro desse grande jogo de xadrez. A questão é: que peça mover? Para onde?

P. Você tem dito que a pandemia trouxe um sentimento aflitivo não só pelo impacto aos seus familiares, mas à humanidade, como algo comum a todos. Ao mesmo tempo, vemos casos de fura fila da vacina e festas clandestinas. Temos sido solidários como pede o momento?

R. A humanidade continua parecida com o que ela tem sido sempre. Um conjunto de seres com personalidades, individualidades, reações variadas aos estímulos da vida e do mundo. Cultivos variados de valores, níveis diferentes de consideração a esses valores, transpassados pelas religiões e filosofias. Nós, os homens, somos pecadores e estamos sempre entre a virtude e o pecado. Numa situação de pressão mais aguda, acerca do que somos e o que devemos ser, essa dimensão da realidade fica mais evidente. Em alguns aspectos há progressos nas relações sociais, mas em outros aspectos não. Continuamos conservadores, reacionários por vezes. No aspecto da solidariedade, que neste momento seria mais exigida, existem aqueles que reagem melhor e outros, pior. A esperança geral é que nós tenhamos condições de avançar em relação a um padrão genericamente aceito de nos relacionarmos. Quando vemos essas festas clandestinas, pessoas furando a fila da vacina, são os velhos modos humanos de ser, sem a empatia que a situação merece. Que possamos melhorar.

P. A pandemia acentuou algo que já vivemos em outros períodos, como o entrave entre o conhecimento científico, em contraposição às crenças da fé, das religiões. Estamos lidando com o dilema da maneira correta?

R. O que é a maneira correta? O justo meio está na igual possibilidade dos extremos. Os extremos do bem e do mal, do bom agir e mal agir, eles continuam aí, estão em diálogo permanente. A expectativa geral é que a humanidade avance. Mas, veja, avançar para onde? Avançar significa se livrar de certas maneiras de ser e adotar outras. Ao mesmo tempo, essas coisas todas dependem de valores que vem da ética, da moral, da dimensão religiosa. Não tem uma resultante universalmente perceptível no sentido de dizer que estamos manifestando uma qualidade nova nas relações humanas ou, pelo contrário, que podemos estar apresentando uma desqualificação mais antiga da humanidade. Desigualdades foram escancaradas em um momento como esse. Há um descompasso muito grande entre as possibilidades de uns e as de outros. O modo como os mais pobres são mais afetados. A pandemia só acentua uma série de questões muito amplas. Ao mesmo tempo, o esforço de avançar continua. Um evento dramático e drástico como esse ajuda a humanidade a fortalecer o seu desejo de querer ir mais à frente e encontrar formas de amparar os mais necessitados.

P. Vivemos um período muito duro do ponto de vista do luto e da solidão em alguns casos. Há aquele verso: “É só o coração dizer não/ quando a mente tenta nos levar pra casa do sofrer”. Você tem um refúgio espiritual que te afasta da casa do sofrer?

R. Tenho. É algo que nós vamos construindo ao longo da existência, é uma busca da vida inteira, no sentido de apaziguamento, pacificação, resignação, capacidade de aceitação e também de superação. É um lugar que me dá conforto para declarar aquilo que penso, nos meus posicionamentos às injustiças da vida e do mundo, em relação às mais variadas formas de dor. No início, com as primeiras notícias de dizimação que os velhinhos estavam sofrendo na Espanha, Itália, nos momentos em que havia uma incerteza sobre o que era a doença, eu fiquei muito aflito. E agora estamos vivendo algo muito difícil no Brasil, que é o epicentro da pandemia, com tantas notícias horríveis nos rodeando. Essa vitimização sobre a humanidade nos traz muito sofrimento. A tentativa de enfrentamento desse sofrer é algo constituído ao longo de uma vida, uma busca que vem dos sofrimentos que nos atingem no cotidiano, os pequenos aborrecimentos. É uma casa que vai sendo reformada com o passar dos anos. Estamos sempre à procura de um telhado mais firme que possa resistir às tempestades mais duras.

P. Você já disse que por estar focado na pandemia não sentia impulso para compor. Fiquei pensando no período em que esteve preso, quando compôs Cérebro Eletrônico, Futurível e Vitrines. Qual foi o impulso criativo que a prisão proporcionou e que a pandemia tem bloqueado?

R. É preciso levar em consideração os dois momentos existenciais. Lá atrás eu era um menino de vinte e poucos anos, com energias novas e em busca de condições de manifestação dessas energias. Agora eu sou um homem velho de quase 80 anos de idade, com outras energias. Aquelas energias antigas estão atenuadas, já se submeteram ao escoamento natural nos afluentes da força juvenil e já desembocaram neste grande estuário que é a condição velha de existir. São exigências muito diferentes de quando estive preso na cela de uma cadeia do momento atual. Por exemplo: naqueles dois meses de prisão eu acabei sendo tomado por uma volúpia mínima de pensar, escrever e exercer a minha condição humana, e isso resultou em algumas canções. Agora é outra história. Eu fico aqui tocando o meu violão, tranquilo. Alguma coisa pode resultar desses períodos vividos um pouco na Bahia, aqui em Itaipava (região serrana do Rio) ou em Copacabana, fruto desse estreitamento da possibilidade de viver. Mas a volúpia, a busca dessa resultante, não é a mesma daquela época. É outra forma de quietude.

P. Já ouvi você dizer que os discos feitos na década de 1970, a partir de Expresso 2222 (1972), são mais tropicalistas do que os feitos na década anterior, servindo de influência para nomes como Ney Matogrosso, Novos Baianos, entre outros. Aquela estética musical e de atitude foi totalmente incorporada à canção brasileira?

R. O mundo explode e as migalhas caem todas sobre Copabacana, como diria Caetano em Superbacana. Está tudo aí. Houve uma chuva de partículas tropicalistas provocadas por aquela nuvem que passou ou por aquela bomba que explodiu. Todos esses meninos que fazem músicas em cultura popular no Brasil, que eventualmente estão no teatro ou no cinema, têm uma herança tropicalista muito nítida. Só que assim, manifestada em fragmentos, às vezes diafanamente espalhadas por aí, essa captação da dimensão tropicalista fica dificultada, por vezes obliterada. Mas aquilo que nós desejávamos e colocamos em prática está aí: diversidade, liberdade, pluralismo, todo um repertório e ideário que era base da Tropicália. Está tudo solto na plataforma do ar, diria Luiz Melodia.

P. Você já fez algumas lives durante a pandemia utilizando o repertório de toda a carreira, definindo-se como um “visitante do seu território criativo”. O trajeto pelo próprio caminho é prazeroso ou há solavancos?

R. Há solavancos, claro, porque são naturais da vida. São momentos da minha existência, quando quis traduzir sentimentos, algumas formas de experiência. Os caminhos são tortuosos, porque são resultado da transformação da minha intensidade interna em linguagem, em expressão, no meu caso como músico e compositor. Esse desejo de me expressar, que é um sintoma natural do estar vivo, se manifesta cheio de contradições. E no meio do caminho há uma expectativa que isso desemboque em novas formas de me comunicar, que se transforme em canções, músicas, encontros. Durante a pandemia, temos tentado fazer isso com lives, e mais adiante, conforme a pandemia vá se desdobrando, isso também vai influenciar nossa poética e o fazer artístico.

GUILHERME HENRIQUE para o EL PAÍS, em 26 ABR 2021 - 22:23 BRT

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Morre Michael Collins, o astronauta "esquecido" da Apollo 11

Collins fez parte da primeira missão do homem à lua, mas, ao contrário de Neil Armstrong e Buzz Aldrin, não saiu do módulo espacial. Ele tinha 90 anos. Nasa afirma que ele foi um "verdadeiro pioneiro".

Collins pilotou a espaçonave na missão Apollo 11

O astronauta norte-americano Michael Collins morreu nesta quarta-feira (28/04), aos 90 anos, devido a um câncer.

Ele ficou conhecido como "o astronauta esquecido” da primeira missão do homem à lua. Em 20 de julho de 1969, Collins permaneceu no módulo de comando da Apollo 11, enquanto seus colegas Neil Armstrong e Buzz Aldrin viajavam à superfície para se tornarem os primeiros humanos a caminharem na Lua.

Collins ficou sozinho pilotando o módulo lunar por mais de 21 horas. Ele perdeu contato com o controle da missão em Houston todas as vezes em que a espaçonave circundou o lado escuro da lua.

"Desde Adão, nenhum humano conheceu tanta solidão quanto Mike Collins", registrou o diário da missão, referindo-se à figura bíblica.

Diferentemente de seus colegas, ele evitou grande parte do frisson midiático com que os astronautas foram recebidos ao voltar à Terra.

"Sei que eu seria um mentiroso ou um tolo se dissesse que tenho o melhor dos três assentos da Apollo 11, mas posso dizer com verdade e equanimidade que estou perfeitamente satisfeito com o que tenho", escreveu Collins em sua autobiografia de 1974, Carrying the Fire..

Sua lembrança mais forte da Apollo 11 foi contemplar a Terra, que ele descreveu parecer "frágil".

"Eu realmente acredito que se os líderes políticos do mundo pudessem ver seu planeta a uma distância de 100.000 milhas, sua perspectiva poderia ser radicalmente alterada”, disse ele. "Aquela fronteira tão importante seria invisível, aquela discussão barulhenta, silenciada."

A Nasa prestou homenagem a Collins, chamando-o de "verdadeiro pioneiro".

"A Nasa lamenta a perda deste piloto e astronauta talentoso, um amigo de todos os que buscam expandir o potencial humano. [...] Seu espírito irá conosco enquanto nos aventuramos em direção a horizontes mais distantes," disse o chefe interino da NASA , Steve Jurczyk, em comunicado.

Buzz Aldrin, agora o último membro sobrevivente da missão Apollo 11, homenageou o amigo pelo Twitter.

"Caro Mike, onde quer que você tenha estado ou esteja, você sempre terá o fogo para nos levar habilmente a novas alturas e ao futuro”

Collins nasceu em Roma, na Itália, em 31 de outubro de 1930. Era filho de um militar americano que servia como adido no país europeu. Ele começou como piloto de testes da Força Aérea, antes de ser escolhido para o programa de astronautas da Nasa, em 1964.

A missão Apollo 11 foi seu segundo e último voo espacial. Mais tarde, se tornou o chefe do Museu Nacional do Ar e do Espaço.

Deutsche Welle Brasil, em 28.04.2021

Cresce aversão ao Brasil no mercado mundial

Empresas que querem exportar ou captar financiamento no exterior vivem momentos difíceis. Visto como pária por sua política ambiental, país é cada vez mais criticado. Opção pelo isolamento vai custar caro à economia.

Reações negativas a discurso de Bolsonaro são um alerta para as empresas brasileiras

É fascinante como nas últimas semanas o empresariado brasileiro vem discutindo aspectos ambientais de maneira séria e intensa. A cúpula sobre o clima promovida pelos EUA na semana passada acelerou isso. Nela, o presidente Bolsonaro quis se apresentar como um ambientalista convertido. Disse que o Brasil será climaticamente neutro já em 2050, que o desmatamento ilegal na Amazônia será zerado até 2030 e que imediatamente dobrará o orçamento para as autoridades ambientais. Mas a tal virada fracassou.

Era evidente que quem falava era o capitão da reserva e não um ambientalista. "Falta credibilidade à coisa toda", diz Fábio Alperowitch, chefe da Fama Investimentos, uma das pioneiras entre os fundos para investimentos sustentáveis ​​no Brasil. Ele diz que Bolsonaro aponta metas distantes, mas sem um plano de ação.

Solidão

Após cerca de dois anos e meio no cargo, Bolsonaro fica cada vez mais solitário no mundo. Depois que Donald Trump deixou o poder nos EUA, ele é o único chefe de governo de um grande país que não dá a mínima para as mudanças climáticas. Mas agora sobretudo o empresariado está incomodado com o papel de pária ambiental do Brasil.

Porque, além da falta de reformas e da fraca gestão da crise, que empurra a esperada recuperação econômica cada vez mais para 2022, existe agora a ameaça de pressão adicional do exterior por causa da desastrosa política ambiental. Isso é algo que já vem sendo sentido por fundos e investidores que dependem de empréstimos externos.

Com isso, o banqueiro Armínio Fraga teve que suspender a captação de um multibilionário fundo de private equity antes do esperado, devido à falta de investidores, principalmente do exterior. "O pessoal está meio em greve", lamenta o ex-presidente do Banco Central.

Aversão ao Brasil

Guilherme Leal, empresário e ex-candidato a vice-presidente do Partido Verde, também sente resistência do exterior. Os investidores não querem mais ir ao Brasil por causa da política ambiental. A controladora da rede de cosméticos Natura teme que a aversão dos consumidores ao redor do mundo aos produtos do Brasil saia do controle. "Parceiros comerciais estão com uma série de ruídos. E existe um risco disso chegar aos consumidores, e aí não tem quem controle", afirma.

Essa crítica cada vez maior ao Brasil acaba ofuscando outros aspectos. Por suas usinas hidrelétricas, biocombustíveis e fontes alternativas de energia como solar, biogás e eólica, o Brasil possui uma das produções de energia mais sustentáveis ​​entre os principais países do mundo.

O Brasil é criticado mundialmente exclusivamente por causa da destruição florestal e do governo que nada está fazendo para evitá-la. "O Brasil tem a matriz energética mais sustentável entre as principais economias do mundo. Poderíamos ser uma referência neste mundo da descarbonização", diz Markos Jank, um dos maiores especialistas em agroindústria do Brasil.

Papel do setor privado

Mas a falta de credibilidade é um obstáculo. Isso também se aplica a parte do próprio empresariado brasileiro. Jank defende, por exemplo, que o setor privado se torne mais ativo na proteção do meio ambiente, que sobretudo os agricultores façam mais para combater o desmatamento ilegal.

Para o investidor financeiro Alperowitch, o discurso nada convincente de Bolsonaro na cúpula do clima e as reações negativas a ele são um alerta para as empresas brasileiras listadas em bolsa de valores. "Greenwashing não ajuda nada, só prejudica!"

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Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch, autor deste artigo, é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. / Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 28.04.2021

Marco Aurélio Mello determina que governo realize Censo em 2021

Para ministro do STF, não realização da pesquisa fere a Constituição e prejudica políticas públicas. Ministério da Economia havia anunciado cancelamento da pesquisa após corte de verbas.

Último censo foi realizado em 2010

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello determinou nesta quarta-feira (28/04) que o governo federal adote "medidas voltadas à realização do Censo". Ele atendeu a pedido feito pelo governo do Maranhão.

Na semana passada, o Ministério da Economia informou que, devido a cortes de verbas, não seria possível realizar o Censo em 2021. Por lei, o levantamento deve acontecer a cada 10 anos - o último foi feito em 2010.

"Defiro a liminar, para determinar a adoção de medidas voltadas à realização do censo, observados os parâmetros preconizados pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], no âmbito da própria discricionariedade técnica", decidiu Marco Aurélio.

Para o ministro, não realizar o Censo fere a Constituição. 

"A União e o IBGE, ao deixarem de realizar o estudo no corrente ano, em razão de corte de verbas, descumpriram o dever específico de organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional – artigo 21, inciso XV, da Constituição de 1988. Ameaçam, alfim, a própria força normativa da Lei Maior", explicou.

Na decisão, Marco Aurélio também destacou que o Censo é fundamental para a análise da realidade brasileira, possibilitando a formulação e implementação de políticas públicas adequadas a cada região.

"Como combater desigualdades, instituir programas de transferência de renda, construir escolas e hospitais sem prévio conhecimento das necessidades locais?", questionou Marco Aurélio.

Durante a tramitação do Orçamento de 2021 no Congresso, os valores que seriam destinados ao Censo foram reduzidos de R$ 2 bilhões para R$ 71 milhões.

Para agravar ainda mais a situação, o presidente Jair Bolsonaro impôs um veto na lei do Orçamento publicada pelo Diário Oficial da União de sexta-feira passada, que reduz esse valor para R$ 53 milhões, impossibilitando a realização da pesquisa.

Os dados do Censo são utilizados para os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e em várias outras transferências da União para estados e municípios. Somente em 2019, em torno de R$ 396 bilhões foram transferidos, sendo que aproximadamente 65% desse valor (R$ 251 bilhões) foram repassados com base nos dados populacionais.

Deutsche Welle Brasil, em 28.04.2021

Butantan começa a produzir nova vacina contra covid-19

Imunizante, batizado de ButanVac, será produzido inteiramente no Brasil, sem a necessidade de insumos importados. Instituto já pediu autorização à Anvisa para começar testes clínicos em humanos.   

Vacina é desenvolvida a partir da inoculação do vírus em ovos embrionados de galinhas

O governador de São Paulo, João Doria, anunciou nesta quarta-feira (28/04) que o Instituto Butantan começou a produzir uma vacina própria contra a covid-19, batizada de ButanVac.

Ao contrário da Coronavac e da AstraZeneca-Oxdord, a principal vantagem do imunizante é que ele pode ser produzido inteiramente no Brasil, sem a necessidade de insumos estrangeiros, já que é desenvolvido a partir da inoculação do vírus em ovos embrionados de galinhas – a mesma tecnologia usada na produção da vacina contra a influenza (gripe).

De acordo com o instituto, além de ser barata e muito disseminada, especialmente em países emergentes, a técnica é uma especialidade do Butantan: o Instituto produz anualmente 80 milhões de vacinas da gripe usando ovos.

"Essa vacina será muito rapidamente produzida aqui no Brasil e não depende de nenhuma importação de matéria-prima", explicou o presidente do Instituto, Dimas Covas, que também garantiu que a fábrica da vacina da gripe está liberada para iniciar a produção da ButanVac

Para começar a produção, o Butantan já recebeu 520 mil ovos. Com esse e novos lotes, a expectativa é ter, no mínimo, 18 milhões de doses prontas até 15 de junho.

"A ButanVac pode fazer diferença a partir do segundo semestre para o Brasil e para os outros países", salientou Covas. A expectativa é ter, já em julho, 40 milhões de doses aguardando o resultado do estudo clínico.

A tecnologia da ButanVac utiliza um vetor viral que contém a proteína Spike do coronavírus de forma íntegra. O vírus utilizado como vetor nesta vacina é o da Doença de Newcastle, uma infecção que afeta aves. Por esta razão, o vírus se desenvolve bem em ovos embrionados, permitindo eficiência produtiva num processo similar ao utilizado na vacina da gripe.

Em contraste com o vírus da influenza, o vírus da Doença de Newcastle não causa sintomas em seres humanos, sendo uma alternativa muito segura na produção. Além disso, o vírus é inativado para a formulação, facilitando sua estabilidade e deixando a vacina ainda mais segura.

Estudo clínico inédito

O Butantan já solicitou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorização para iniciar os testes em humanos. As doses já em produção no Instituto serão armazenadas e fornecidas à população somente após a autorização da Anvisa, o que deve acontecer no segundo semestre.

O estudo clínico que vai atestar a segurança e a resposta imunológica da ButanVac, comparando-a com as demais vacinas em uso, será inédito no mundo.

"O Brasil será o primeiro país a testar uma vacina nessas condições. Nenhum outro país começou um estudo de comparação com as vacinas existentes", afirmou Covas. 

A diferença do estudo de comparabilidade para os estudos clínicos tradicionais é que não é necessário comparar um grupo vacinado e um grupo controle, porque o padrão já foi estabelecido pelas demais vacinas em uso. Ou seja: já se sabe o que esperar de uma vacina contra a covid-19.

"Existem os marcadores imunológicos e os parâmetros de segurança, e nós vamos avaliar a nova vacina de forma comparativa, sempre na perspectiva de que ela possa ser melhor”, ressaltou Covas.

Na fase inicial, será pesquisado se a vacina é segura e não causa efeitos adversos. Em um segundo momento, será estudada a resposta imunológica que os participantes no estudo desenvolverão. Esses resultados serão comparados aos das vacinas já descritas e permitirão avaliar a eficiência da ButanVac.

De acordo com o presidente do Butantan, a partir da 16ª ou 17ª semana do estudo já será possível obter resultados de análise primária e, com eles, solicitar a autorização de uso emergencial da vacina à Anvisa.

A ButanVac é resultado de um consórcio internacional que tem, como produtores públicos, o Butantan, o Instituto de Vacinas e Biologia Médica do Vietnã e a Organização Farmacêutica Governamental da Tailândia. A tecnologia da Butanvac usa o vírus da doença de NewCastle desenvolvido‪ por cientistas na Icahn School of Medicine no Mount Sinai, em Nova York. A proteína S utilizada foi desenvolvida na Universidade do Texas em Austin.

O Butantan é responsável pelo envasamento local da Coronavac, de origem chinesa, a principal vacina contra covid-19 usada no Brasil no momento. O envasamento, que é a última etapa de produção, é feito a partir de matéria-prima importada da China. De acordo com o instituto, o desenvolvimento da ButanVac não afetará a produção da Coronavac. 

Deutsche Welle Brasil, em 28.04.2021