quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Judiciário passando a boiada

O processo judicial eletrônico iniciou a reforma mais expressiva no sistema de justiça nacional neste século. Práticas obsoletas, morosidade, falta de transparência e gargalos de acesso à Justiça são problemas que a tecnologia prometia enfrentar. 

A distribuição dos serviços judiciários ao cidadão depende de usuários profissionais, dentre os quais, a advocacia. É a única profissão que atua em todos os pontos do sistema de justiça e tem contato direto com os cidadãos que demandam por aqueles serviços. Portanto, pode contribuir de maneira decisiva para aprimorar a justiça. Porém, raramente as opiniões da advocacia são consideradas, quando não tratadas como obstáculo.

Por exemplo, a gravação de audiências sempre foi reivindicação da advocacia. Os juízes resistiam com firmeza à medida, mesmo depois de prevista no artigo 367 do Código de Processo Civil. Na diretoria da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), representamos contra juíza que expediu mandado de busca contra um advogado, para apreender o gravador em que ele havia registrado sua audiência.

Com a pandemia, as audiências por videoconferência tornaram a gravação habitual, defendida pelos juízes e regulamentada com rapidez em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça que tratam da “justiça digital”. Formulado ao arrepio do debate público e valendo-se da situação emergencial, há um arsenal de normas de gabinete estreitando a participação cidadã na administração da justiça.

As regras de audiência online estão sendo definidas conforme interesses exclusivos da burocracia judiciária e, na prática, servem para realizar desejo antigo de parcela expressiva dessa burocracia: distanciar-se dos advogados e, por consequências, da população. 

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus processuais e econômicos excessivos e desiguais para a advocacia, também por omissão da OAB. Partes e testemunhas sem meios técnicos ou ambiente adequado para participar de atos judiciais dependem dos escritórios de advocacia, que se tornaram extensão dos fóruns e, assim, têm garantido a continuidade da prestação jurisdicional.

O ingresso livre nos fóruns e tribunais foi substituído por horas em “salas de espera” virtuais, o botão de mudo usado para cassar a palavra de advogados. Há notícias recorrentes de juízes que não atendem advogados pelos meios eletrônicos ou inviabilizam esse imprescindível contato com regras criativas (envio de sustentação oral gravada, despacho por e-mail etc).

A tecnologia sempre será muito útil no campo jurídico. Porém, há que se observar a necessidade de preservação do espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de custódia, de instrução, depoimentos sensíveis, acareações etc. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas com a solenidade devida que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quando tudo ocorre por vídeo, com perda das percepções pessoais, da comunicação não verbal e da mediação direta entre profissionais do direito e jurisdicionados.

O modelo de justiça digital que está sendo implementado é excludente, disfuncional e formatado apenas sob a ótica da burocracia judiciária. No final dos anos 90 desenvolveu-se o conceito de “justiça de proximidade”. Desde 2020, provimentos estão substituindo-o pela “justiça de distanciamento”.

Para reverter esse processo e não desperdiçar mais uma oportunidade de usar bem a tecnologia é essencial que a justiça digital seja tratada em lei. O Parlamento é a arena pública adequada ao debate republicano. E, isso acontecendo, é preciso que a OAB saia da letargia, pense mais nos problemas da justiça e menos em política eleitoral. 

O debate legislativo deve pautar-se por definições que não constam das centenas de provimentos de tribunais e do CNJ, em especial: quais casos e atos judiciais serão realizados apenas por meio digital; quais aqueles que não poderão ser realizados por meio digital e quais os que poderão ser online diante de concordância das partes, não dos juízes. Esta última categoria, empodera o cidadão e democratiza a administração da justiça, além de se alinhar com o princípio de cooperação adotado por nossa legislação em 2015. Sem que essas definições sejam claras e fruto de um processo que passa pela participação e deliberação de todos, a justiça digital, anunciada como panaceia, não será nada além da repetição online de antigos problemas de uma justiça que segue sobrecarregada, arbitrária e errática.

Leonardo Sica, o autor deste artigo, é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) no biênio 2015-2016 e pré-candidato à presidência da OAB-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.04.2021.

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