segunda-feira, 29 de março de 2021

Ernesto Araújo se reúne com Bolsonaro para pedir demissão

Ministro passou pouco mais de 800 dias à frente do Itamaraty e vinha sendo contestado dentro e fora do governo

 O embaixador Ernesto Araújo se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro nesta segunda-feira, 29, para entregar seu cargo. A informação foi repassada ao Estadão por pessoas que acompanham a discussão sobre a saída do chanceler. Ernesto passou pouco mais de 800 dias à frente do Itamaraty e vinha sendo contestado dentro e fora do governo.

O chanceler cancelou compromissos nesta segunda-feira com autoridades estrangeiras para discutir seu futuro. E foi chamado de última hora por Bolsonaro no Palácio do Planalto.

Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Auxiliares diretos do ministro consideram que a situação é "irreversível". Ele também cancelou a reunião geral com secretários, depois de ser convocado ao palácio. O encontro estava previsto para ocorrer ao meio-dia, até que o ministro recebeu o chamado presidencial.

Na reunião, segundo aliados, Ernesto disse ao presidente estar disposto a deixar o cargo para não ser mais um problema para o governo na relação com o Congresso. 

A demissão está sendo discutida, mas Bolsonaro ainda não escolheu o substituto. O nome mais forte no Palácio do Planalto é o do almirante Flávio Rocha, atual secretário de Comunicação Social e da Secretaria de Assuntos Estratégicas (SAE). Rocha tem o apoio do ministro das Comunicações, Fabio Faria. Uma ala do do Planalto, porém, defende um político para o cargo, de preferência um senador.

Um outro nome cogitado é o do embaixador do Brasil na França, Luiz Fernando Serra. O diplomata, porém, indicou a colegas que não gostaria de deixar Paris neste momento para voltar ao País.

A pressão sobre Ernesto aumentou neste domingo, depois que o ministro acusou a senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO) de fazer lobby de chineses durante almoço com ele no Itamaraty. Com o gesto, ele forçou novo embate entre o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Presidente da Comissão de Relações Exteriores, a senadora disse que apenas defendeu que não haja discriminação à China no leilão do 5G e chamou o ministro de “marginal”. Ela recebeu apoio expressivo de congressistas que já cobravam a demissão de Ernesto.

A tese dos interesses chineses por trás da queda de Ernesto já vinha sendo apontada nos bastidores por aliados do ministro no governo e por militantes conservadores nas redes sociais.

A declaração do ministro, no Twitter, foi interpretada como gesto “suicida” por diplomatas, e uma forma de construir uma versão para justificar sua saída do cargo. Parlamentares e diplomatas avaliam que o ministro teve apoio do clã Bolsonaro nessa contra ofensiva. Ele tem apoio público do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho do presidente que mais interfere na política externa.  

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 29 de março de 2021 

Sob Bia Kicis, CCJ vira praça de guerra e tem até pedido para que deputada use máscara nas sessões

Principal comissão da Câmara não aprovou nenhum projeto até agora; desempenho contrasta com outros colegiados

 Eleita para comandar a principal comissão da Câmara há 20 dias, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) não conseguiu votar um único projeto desde que assumiu o cargo. De lá para cá, foram cinco sessões do colegiado, todas marcadas por discussões, obstruções e até o registro de reclamação para que a parlamentar utilizasse máscara ao presidir as reuniões - o que não fez no início da primeira.

Kicis é uma das principais aliadas do governo Jair Bolsonaro no Congresso. Sua escolha para comandar a CCJ foi articulada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), em troca do apoio que recebeu do Palácio do Planalto para se eleger ao cargo. 

A deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) Foto: Dida Sampaio/Estadão

A indicação, porém, sofreu resistências até mesmo de aliados de Lira pelo perfil da deputada. Ex-procuradora do Distrito Federal, ela se notabilizou por discursos radicais e é investigada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após promover e participar de atos que pediam o fechamento da Corte, no ano passado. 

Neste fim de semana, ela adicionou mais uma polêmica à sua lista ao incentivar um motim de policiais militares na Bahia, Estado comandado pelo petista Rui Costa. O motivo foi a morte de um PM que atirou contra seus próprios colegas na capital baiana. A paralisação de forças policiais é inconstitucional.

Após a repercussão do caso, ela apagou a postagem e disse ter sido informada que o agente morto pela PM estava em surto. "Aguardarmos as investigações. Inclusive diante do reconhecimento da fundamental hierarquia militar", postou no meio da manhã desta segunda.

Sem tantas polêmicas, outras comissões da Casa têm avançado. A Comissão de Educação, sob o comando da deputada Professora Dorinha (DEM-TO), já aprovou no mesmo período três projetos e 21 requerimentos, como pedidos de audiências públicas. Na de Meio Ambiente, presidida pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP), colega de Kicis, foram nove requerimentos votados e dois projetos aprovados, um sobre o reaproveitamento de dados de licenciamentos ambientais. 

Porta de entrada de projetos no Legislativo, a CCJ tem como sua pauta prioritária neste ano destravar a reforma administrativa. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) é uma promessa de campanha de Bolsonaro, mas que chegou ao Congresso apenas em setembro do ano passado -- 21 meses após o início do governo -- e está parada desde então. O relator do texto, deputado Darci de Matos (PSD-SC), ainda não entregou seu parecer.

No entanto, mesmo que já estivesse com seu relatório pronto, Matos teria de esperar a fila da CCJ andar. Desde a instalação da comissão, no dia 10 de março, o colegiado debateu um único tema: um recurso do deputado Boca Aberta (PROS-PR), que teve sua cassação aprovada pelo Conselho de Ética da Câmara. O caso trava a pauta. O único requerimento votado até agora foi, justamente, para adiar essa discussão para outra sessão.

Máscara e bate-boca. Logo na primeira sessão, Kicis foi advertida pela deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS) para que fizesse o uso de máscara enquanto estivesse à frente dos trabalhos, pois trata-se de obrigatoriedade prevista em lei. Em resposta, a parlamentar, que já gravou vídeo ensinando "truques" para burlar o uso da proteção, disse que estava apenas "tomando chá". A presidente da CCJ é autora de um projeto que torna a proteção facultativa. Após a reclamação, porém, manteve o item no rosto nas reuniões seguintes.

Dias depois, a sessão da comissão se tornou uma praça de guerra, com deputados do PSL e do PT chegando quase a se agredirem fisicamente. Tudo começou quando Paulo Teixeira (PT-SP) chamou Bolsonaro de genocida, por causa da condução do enfrentamento da pandemia de covid-19 no País. Carlos Jordy (PSL-RJ), aliado do governo, rebateu o petista e, exaltado, o chamou de “vagabundo”. Houve bate-boca generalizado e a turma do "deixa disso" precisou entrar em ação para segurar os dois parlamentares.

“Vergonhosa a produtividade da CCJ. Regra básica do parlamento é que oposição fala, governo vota. Os próprios deputados da base do governo parecem não querer votar nada, pois atrasam reuniões com 'questões de ordem' inúteis e perdem tempo batendo boca com a oposição, que ri do amadorismo dos governistas. Parece um governo de oposição”, afirmou o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que faz parte da CCJ.

Também membro do colegiado, o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) pondera que a complexidade do caso de Boca Aberta impôs um ritmo mais lento ao colegiado.  “Eles estão segurando em cima do recurso do deputado Boca Aberta sobre o Conselho de Ética. Este recurso trava a pauta. Enquanto não for votado este recurso a presidente não pode pautar a reforma administrativa”, disse o tucano.

A oposição admite atrasar os trabalhos do colegiado como um protesto contra a reforma administrativa. “O problema é a pauta, com a proposta enviada pelo presidente, que coloca como prioridade uma reforma que ataca os servidores públicos. Por isso, fizemos obstrução nas últimas três semanas. Não é razoável termos projeto que ataca direitos no momento em que o povo está sofrendo muito com a pandemia”, disse Melchiona.  

Comparação. O primeiro mês de funcionamento da CCJ em 2021 também destoa das últimas presidências. Nas três primeiras sessões após Felipe Francischini (PSL-PR) assumir, em 2019, a comissão aprovou 15 projetos de lei e de decreto legislativo, requerimentos e fez duas audiências públicas sobre a reforma da Previdência.

Em 2018, quando o ex-deputado Daniel Vilela (MDB-GO) comandava, foram 39 projetos. O hoje presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em 2017, aprovou uma PEC e seis projetos na sua primeira sessão. 

Nesta semana, a CCJ poderá concluir a análise do recurso do deputado Boca Aberta. A fase de discussão foi encerrada, mas falta votar o parecer do relator, deputado João Campos (Republicanos-GO), que recomenda o retorno do processo ao conselho, para que mais testemunhas sejam ouvidas.

Procurada para comentar o desempenho da CCJ e as polêmicas, Kicis não quis se manifestar.

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo, em 29 de março de 2021 

Denis Lerrer Rosenfield: Política e irracionalidade

Pode dar certo um governo que se caracteriza pela falta de atitudes racionais?

O cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno de Lula à cena política.

A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.

Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.

Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.

Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.

O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.

De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi pubicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 29 de março de 2021.

José Sarney: O amor e um mundo de paz

Entre perplexo, revoltado, preso de um medo que cada vez se prolonga mais, o Brasil assiste entre preces e lágrimas ao anúncio dos recordes mundiais que alcançamos em mortes provocadas pela Covid.

O que podemos fazer? Acho que ninguém deixa de estar disposto a ajudar. O problema tornou-se uma tragédia global pelas circunstâncias que cercaram a pandemia. Primeiro o caráter de surpresa com que a quase totalidade do mundo foi tomada — apenas alguns milhares de cientistas e estudiosos sabiam que ela viria a qualquer momento. Aliás o inesperado caracteriza as catástrofes. Nos seus bilhões de anos a nossa Terra, como o universo, é marcada por acasos, nas contorções que lhe dão desde a forma geográfica — com a criação de oceanos, montanhas, vulcões, destruição de cidades — até à criação da vida e ao aparecimento e à extinção das espécies. A própria prevalência da espécie homo sapiens foi fruto do desaparecimento dos seus parentes mais próximos, como os neandertais, que chegaram a misturar-se ao próprio sapiens.

Não deixemos de considerar que somos uma espécie extremamente recente, de cerca de trezentos mil anos, que teve em sua adaptação e predominância a vantagem decisiva da linguagem, esta talvez há apenas setenta mil anos.

Criamos várias civilizações, convivemos com vários tipos de sociedade e chegamos à modernidade e à pós-modernidade. Conseguimos desvendar o mundo dos genes e das proteínas, o mundo das partículas de alta energia, como o bóson de Higgs — a que chamaram de “partícula de Deus”, por concluir o “Modelo Padrão” que explica a estrutura do universo.

E assim o bicho homem desfruta de um mundo extraordinário — o dos sentimentos —, que nos dá a sublimação da alegria, do prazer, do sentimento do amor e também da tristeza, da dor. Aquilo que Bergson chamava de “sentimento da alma”.

Pois bem, isso que nos traz a alegria de viver dá ao homem também a desgraça da maldade, do ódio, da inveja, da destruição. As nações se organizam e, em vez de construir um mundo de paz, de convivência pacífica, de uma Humanidade sem armas, sem ódio, sem competição, marcha em busca de armas cada vez mais potentes, capazes de destruir países e até a vida na Terra.

Mas se esquece que a natureza é mais forte que todos esses atos. E ela reage de maneira aleatória, como o passado mostrou tantas vezes, trazendo as pestes, a destruição de espécies, e nos ameaça com aquilo que Helmut Schmidt dizia — repito ainda uma vez — ser a maior ameaça ao futuro da Humanidade: as doenças desconhecidas. A nossa geração já conhece duas: a Aids e a Covid.

A presença do acaso em absolutamente todos os fatos da natureza levava Einstein a dizer que sua ideia de Deus era formada por sua “profunda convicção na presença de um poder superior, que aparece no universo incompreensível”.

A desgraça da Covid que nos ameaça, que não sabemos como começou e como vai terminar, nos leva a pensar no início da filosofia, o de onde viemos e para onde vamos, de Platão.

Eu, que sou cristão, penso no amor, na solidariedade e na construção, depois dessa tragédia, de um mundo melhor, mais humano e de paz.

José Sarney foi Governador do Maranhão e Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição de 28.03.2021

A bactéria comedora de carne que ameaça se espalhar pela Austrália


A úlcera de Buruli é causada por uma infecção bacteriana que pode destruir tecidos moles se não for tratada (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Adam Noel achou que era apenas uma picada de mosquito. Ele notou um leve calombo vermelho na parte de trás do tornozelo cerca de uma semana antes, mas não melhorava. Os médicos atribuíram a algum tipo de irritação na pele. No entanto, mais duas semanas se passaram, e seu calcanhar agora tinha um buraco.

"Há algo muito estranho acontecendo", ele pensou, e decidiu ir até o Hospital Austin, em Melbourne, para ser examinado novamente.

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Era abril de 2020, e a pandemia de covid-19 tomava conta da Austrália. A equipe do hospital estava sobrecarregada. E os médicos disseram a ele que a ferida sararia em breve.

Em vez disso, depois de mais alguns dias, era possível ver seu tendão de Aquiles por meio do buraco do tamanho de uma bola de pingue-pongue em seu calcanhar.

Desta vez, ele foi para o St Vincent's, um dos principais hospitais da Austrália. E ficou internado por cerca de uma semana fazendo biópsias até finalmente confirmarem o diagnóstico: úlcera de Buruli. Uma doença bacteriana que pode causar grandes feridas abertas e, se não for tratada, levar à desfiguração permanente.

Foram cerca de seis semanas desde que Noel percebeu o calombo até fazer uma biópsia definitiva e tomar a medicação certa. Os médicos disseram que ele podia ter perdido o pé.

Antes de notar o que pensava ser uma mera mordida de mosquito, Noel vinha trabalhando muito no jardim, mexendo na terra para abrir espaço para um grande galpão.

"Cortei um monte de árvores que não eram mexidas há 20 anos", diz ele.

"Estou bastante convencido de que [pegar a úlcera] coincidiu com a destruição das árvores e do habitat dos gambás."

Sim, gambás. Os cientistas acreditam que essas criaturas noturnas fofas podem desempenhar um papel fundamental na transmissão da úlcera de Buruli para os humanos.

Eles também sofrem com a doença, e a bactéria do Buruli — chamada Mycobacterium ulcerans — é encontrada em grandes quantidades em suas fezes.

Os gambás perderam grande parte do seu habitat natural para o desenvolvimento urbano nos últimos anos, o que os aproximou dos humanos enquanto as duas espécies competem por espaço e, possivelmente, gerando casos da doença.

Antes restrita aos subúrbios, a úlcera de Buruli está agora se aproximando de Melbourne, e médicos e cientistas estão tentando impedir seu avanço antes que ela atinja a população de cinco milhões de habitantes.

Uma ameaça crescente

Noel mora em Melbourne, mas sua família tem uma casa de praia a cerca de 100 km de distância, na Península de Mornington. É uma área nobre que aparece no mapa como uma perna do continente, com a ponta do dedo do pé apontando para o oeste.

Os gambás podem ser portadores de bactérias que causam uma doença devoradora de carne em humanos (Crédito da foto: Alamy)

É um destino de férias popular entre os moradores da cidade, com suas praias cercadas por cabanas coloridas e passarelas de madeira que serpenteiam as colinas com vista para o mar.

Trilhas levam a lugares como a "Diamond Bay" e o "Millionaire's Walk", onde as casas são grandes e modernas, muitas com piscina e jardins enormes.

Não é exatamente o tipo de lugar em que você esperaria ouvir falar sobre uma bactéria devoradora de carne à solta, mas os casos de úlcera de Buruli no estado de Victoria tendem a ser encontrados nessa região.

Em todo o estado, o número de casos mais do que triplicou nos últimos anos: em 2014, os médicos notificaram 65 casos da doença; em 2019, foram registrados 299, enquanto no ano passado, 218.

Quando há suspeita da doença, o paciente geralmente é encaminhado para o médico Daniel O'Brien, infectologista especialista em úlceras de Buruli que tem uma clínica nas proximidades de Geelong.

Ele começou a fazer a travessia de 40 minutos de balsa semanalmente para ver o número crescente de pacientes com a doença. Ele conta que atende de cinco a dez novos pacientes por semana.

A úlcera de Buruli pode destruir rapidamente a pele e os tecidos moles se não for tratada com uma combinação de antibióticos e esteroides específicos ao longo de semanas e, em muitos casos, meses.

"Não importa o quão pequena ou grande seja a lesão, não há ninguém que não seja significativamente afetado por essa doença", diz O'Brien.

Os impactos físicos são significativos: a úlcera agressiva pode causar desfiguração, exigindo cirurgia e levando à incapacidade de longo prazo.

"Ela pode realmente devorar um membro inteiro", explica O'Brien, cuja lista de pacientes inclui crianças que precisaram de até 20 operações para combater a úlcera.

A doença também tem um impacto econômico. Noel trabalha na novela Neighbours e teve de se ausentar por um mês porque o buraco no calcanhar o impediu de ficar de pé por um longo período de tempo.

Daniel O'Brien atende de cinco a dez novos pacientes por semana com úlcera de Buruli (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Os tratamentos também podem fazer com que as pessoas se sintam muito mal. Foi o caso de Noel com os esteroides.

"Fiquei muito feliz quando paramos", diz ele.

Mas, sete meses depois, ele ainda precisa tomar antibióticos.

Outros pacientes relatam que os antibióticos causam náusea, candidíase vaginal e oral e dor de estômago.

"É difícil. É muito desconfortável e muito desagradável", afirma Cheryle Michael, aposentada que teve úlcera de Buruli no rosto em agosto de 2020 e ainda está tomando medicamentos.

"Os esteroides me deixaram muito deprimida, cansada e desmotivada", acrescenta.

Os antibióticos, por sua vez, provocam problemas estomacais que a deixam nervosa ao sair de casa.

"Para ser franca, prefiro não ficar muito longe do meu banheiro."

A úlcera de Buruli é tratada com uma dose forte de dois antibióticos potentes que precisam ser tomados por várias semanas e, muitas vezes, meses: a rifampicina, que também é usada no tratamento de outras infecções bacterianas graves, incluindo tuberculose e hanseníase, e a moxifloxacina, que pode ser usada para tratar a peste.

Dependendo da gravidade da úlcera, altas doses de esteroides também são necessárias, assim como cirurgia.

"Eu não diria que qualquer tratamento é fácil. [Os pacientes] todos sofrem em um grau significativo", diz O'Brien.

Úlcera desconhecida

Enquanto a úlcera de Buruli devora os tecidos moles dos pacientes, algumas perguntas sem resposta atormentam médicos e cientistas encarregados de tentar impedir que outras pessoas sejam infectadas.

"Não sabemos o suficiente a respeito. Há algumas questões científicas realmente importantes sobre onde ela deixa o meio ambiente, os outros reservatórios animais e como os humanos realmente a contraem", explica O'Brien.

"A menos que obtenhamos respostas para essas perguntas vitais, realmente vamos ter dificuldade para controlar a doença."

Atualmente, os cientistas estão trabalhando com a hipótese de que a bactéria é amplificada por gambás e suas fezes.

Mosquitos e outros insetos que picam transportam então essa bactéria dos gambás ou do ambiente para os humanos, ao perfurar sua pele e deixar a bactéria que vai causar a úlcera de Buruli.

Mas isso continua sendo uma teoria, e ninguém sabe ao certo se os humanos estão contraindo a doença de mosquitos, do solo ou dos próprios gambás.

Kim Blasdell está tentando monitorar os níveis da bactéria em gambás na Península de Mornington (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

A úlcera de Buruli é classificada como uma doença "negligenciada" pela Organização Mundial da Saúde (OMS): não recebe muita atenção e não se sabe muito sobre ela.

Foi descoberta pela primeira vez em 1897 em Uganda, mas como afeta sobretudo comunidades pobres com cuidados de saúde limitados, "simplesmente não havia dinheiro para realmente investir tempo, esforço e recursos na pesquisa", afirma O'Brien.

Sua própria experiência vem de passar anos trabalhando na África Ocidental, tratando de pacientes com úlcera de Buruli e doenças relacionadas: lepra e tuberculose.

Quando a úlcera de Buruli apareceu pela primeira vez no estado de Victoria em 1948, havia apenas um punhado de casos. Mas agora, segundo especialistas, a doença está se tornando mais comum na Austrália.

Ninguém sabe como ela chegou aqui. Até mesmo algumas pessoas que vivem no meio da península dizem que nunca ouviram falar dela, afirma Kim Blasdell, pesquisadora sênior da CSIRO, agência nacional de ciências da Austrália. Ela está liderando um estudo para entender a possível ligação entre gambás, a úlcera de Buruli e os humanos.

"Se há pessoas que vivem nas áreas de foco da doença que não ouviram falar dela, então a maioria das pessoas fora dessas áreas também não terá ouvido falar", diz ela.

Isso pode ser um grande problema: pacientes desinformados que esperam semanas pelo diagnóstico podem ser potencialmente desastrosos, como aconteceu no caso de Noel.

"Então, você realmente quer ser capaz de evitar", afirma O'Brien

Desenvolvimento da doença

Uma parte fundamental da prevenção está em entender o que pode estar acontecendo na região para aumentar o número de casos da doença. Buscar mudanças no ambiente local é vital, de acordo com Blasdell.

"Há muitos empreendimentos em desenvolvimento nas áreas onde houve muitos casos em humanos", diz ela.

Os humanos estão transformando a Península de Mornington desde que os europeus chegaram em 1803 e começaram derrubando grande parte da floresta nativa para fornecer lenha para a recém-criada cidade de Melbourne.

Mas, à medida que a população cresceu nos últimos anos, o desenvolvimento urbano aumentou e cada vez mais habitats naturais foram perdidos.

"Quando as pessoas limpam o terreno para construir uma casa nova ou derrubam a vegetação nativa, isso significa que os animais nativos que vivem naquela terra, inclusive os gambás, migram para a vegetação remanescente daquela área. Isso concentra o número de gambás ", explica Blasdell.

E também pode concentrar a quantidade de Mycobacterium ulcerans em uma pequena área.

Os gambás prosperam na paisagem frondosa dos subúrbios, onde encontram comida abundante nos jardins (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

O desenvolvimento humano também significa que as pessoas estão tendo um contato mais próximo com os animais. Os gambás vivem naturalmente em árvores nativas como as árvores-do-chá, mas essas criaturas fofas podem se adaptar bem a um ambiente mais urbano quando são obrigadas — como o jardim da casa das pessoas.

Em suas novas moradias, os gambás também têm acesso a mais recursos do que teriam em seus habitats naturais.

Essas criaturas têm uma queda por plantas frondosas, desde as folhas dos carvalhos dos parques públicos às rosas, magnólias e árvores frutíferas que são encontradas em abundância nos jardins da região.

Uma planta florida pode ser reduzida a um caule nu por um gambá faminto, para desespero dos jardineiros do subúrbio.

"Muitas casas na região têm muitas espécies nativas [de plantas e árvores]. Os gambás amam; vivem nelas e fazem cocô por todo chão. Eles correm sobre telhados e garagens", diz Blasdell.

Pode parecer um estorvo, mesmo sem a úlcera de Buruli, mas os gambás são espécies protegidas na Austrália — é ilegal matá-los ou feri-los.

Muitas vezes, as pessoas tentam se livrar dos gambás sacudindo as árvores para tirá-los de lá, ou até mesmo usando "spray de pimenta e molho de peixe", diz Blasdell.

Ao fazer isso, eles podem se colocar em contato ainda mais próximo com os gambás, aumentando o risco de contrair doenças.

Além de acabar com seu habitat natural e, inadvertidamente, aproximar animais selvagens e humanos, os novos projetos de desenvolvimento podem estar involuntariamente atraindo doenças, diz Blasdell.

Os novos empreendimentos na Península Bellarine, no lado oposto à Península de Mornington, são repletos de lagos e canais. Pode parecer bacana. Mas não para ela e seus colegas.

Eles pensam imediatamente nos mosquitos que podem estar envolvidos na transmissão do Buruli, além de serem portadores conhecidos de outros patógenos.

Da mesma forma que os empreendedores precisam fazer avaliações de impacto ambiental, diz Blasdell, eles também deveriam levar em consideração os riscos à saúde.

Cheryle Michael, que chegou à região com sua família no início dos anos 1990, notou a diferença.

"Costumávamos dizer que era bom porque não havia mosquitos, mas sem dúvida as populações de mosquitos aumentaram ao longo das décadas", afirma.

Assim como os casos de úlcera de Buruli. "A úlcera de Buruli não fazia parte do ambiente até recentemente. Simplesmente não era algo com que nos preocupássemos", acrescenta..


Os gambás são protegidos na Austrália, mas como vivem próximos ao homem, o risco de doenças está aumentando (Crédito da foto: Getty Images)

A úlcera de Buruli não é o único exemplo. Um relatório de 2018 encontrou muitas relações entre a perda da vegetação nativa e a mudança no uso da terra e o surgimento de doenças na Austrália.

O desenvolvimento de doenças é um processo no qual os humanos estão muito envolvidos, diz Rosemary McFarlane, professora assistente de saúde pública na Universidade de Canberra, na Austrália, e uma das coautoras do estudo.

"Estamos colocando uma pressão incrível sobre os sistemas naturais; temos muito mais humanos e rebanhos do que vida selvagem, mas eles estão todos se sobrepondo enquanto competem por recursos. É um problema que nós mesmos criamos", avalia.

Portanto, o problema não são os gambás em si — é que estamos mais perto deles do que nunca. Parte da razão pela qual não devemos culpá-los. Sem falar que os gambás são uma parte importante do ecossistema australiano, com suas fezes nutrindo o solo.

Além disso, Blasdell destaca que, se o gambá fosse o culpado, era esperado ver úlcera de Buruli em outras partes superdesenvolvidas semelhantes da Austrália, onde também há gambás. Em vez disso, o problema está centralizado perto de Melbourne e Geelong.

Uma combinação de desenvolvimento e outros fatores ambientais parecem estar contribuindo para a propagação desta doença. Entender como e por que a doença existe — tanto em gambás quanto no meio ambiente de Victoria — é vital para saber se vai se espalhar ainda mais pelo país.

Em busca de respostas

Cada vez mais frustrado com o aumento no número de pacientes que sofrem com a doença, O'Brien publicou em 2018 um artigo no Medical Journal of Australia, pedindo financiamento para uma resposta científica urgente ao crescente número de casos.

Por volta da mesma época, uma menina de 13 anos chamada Ella Crofts lançou uma petição pedindo fundos ao governo depois de sofrer com uma úlcera grave no joelho que exigiu três operações e meses de tratamento.

Uma semana após a publicação, O'Brien havia garantido mais de 3 milhões de dólares australianos (cerca de R$ 13 milhões).

Com essa verba, O'Brien tem colaborado com outros especialistas para responder à pergunta fundamental: como acontece a transmissão?

"Essa é uma doença que tem uma interação complexa entre o meio ambiente, os animais e os humanos", afirma.

Mas sem um entendimento melhor da transmissão, sua prevenção continuará difícil.

O'Brien se juntou a pesquisadores ambientais, cientistas de doenças infecciosas e especialistas em comportamento humano para conseguir montar todas as peças do quebra-cabeça e descobrir o que está acontecendo.

Um dos pesquisadores com quem ele tem trabalhado nos últimos dois anos é Blasdell.


Saras Windecker está conduzindo pesquisas noturnas para estimar quantos gambás vivem nos bairros ao redor de Melbourne (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Em uma manhã ensolarada de outubro de 2020, Blasdell vagava pelas ruas do subúrbio da Península de Mornington equipada de máscara, luvas azuis e um saco plástico amarelo. Ela parou ao lado de uma árvore e levantou a cabeça para olhar para sua copa.

A árvore Melaleuca preissiana é um dos pontos de encontro favoritos de gambás e — bingo! — ela avistou um ninho. Na grama logo abaixo, achou rapidamente o que procurava: bolinhas marrom-escuras de cocô de gambá.

De sua sacola plástica, Blasdell tirou um pequeno tubo de ensaio e uma pinça verde. Decantando algumas fezes no tubo, ela colou uma etiqueta nele e guardou na bolsa com outras amostras.

Enquanto isso, sua equipe enviou questionários aos moradores da Península de Mornington — tanto para aqueles que tiveram a doença quanto para aqueles que não tiveram.

Eles querem conhecer seus hábitos: será que usam luvas na jardinagem, por exemplo, e moram perto de reservatórios de água parada, que podem atrair mosquitos?

Blasdell e sua equipe também visitaram as casas de alguns moradores e coletaram amostras ambientais para ver se a bactéria se encontrava no solo ao redor de suas residências.

Ao relacionar todas essas informações, eles esperam obter uma imagem mais clara de como a doença está passando do meio ambiente para os humanos.

Depois do pôr do Sol, Saras Windecker e sua equipe se dirigiram para lá. Na escuridão da noite, Windecker, pesquisadora da Universidade de Melbourne, se pôs a caminhar lentamente pelas ruas do subúrbio da península, enquanto a lanterna presa à sua cabeça iluminava as árvores ao redor, e começou a contar. Ela estava fazendo um levantamento para ver quantos gambás existem na região.

Ela começou no norte de Melbourne, onde encontrava cerca de 30 por noite. Mas, à medida que se aproximava da Península de Mornington, "começamos a ver números realmente altos — mais de 100 gambás em uma única noite", diz ela.

Como os cientistas acreditam que os mosquitos provavelmente também desempenham um papel nesta complexa cadeia de transmissão, além de contabilizar os gambás, eles também têm realizado levantamentos de mosquitos.

"Podemos usar isso para criar um mapa espacial de onde o mosquito é mais abundante e em que períodos de tempo", afirma Windecker.

Ao obter todas essas informações —a abundância de gambás, a quantidade de bactérias em suas fezes e no meio ambiente e a profusão de mosquitos —, Windecker pretende criar um sistema de alerta para as comunidades e autoridades de saúde.

"Vamos [criar] um mapa de risco espacial mais amplo de onde a bactéria pode estar em maior risco de infectar mais humanos no futuro", explica.

Mas a importância de encontrar respostas vai muito além da costa da Península de Mornington: quase 3 mil pessoas no mundo todo sofrem de úlcera de Buruli a cada ano.

A pesquisa estava indo bem até a primavera de 2020, mas a pandemia de covid-19 prejudicou seu andamento — e é difícil obter mais financiamento.

Por enquanto, os pesquisadores ainda não descobriram com certeza como a bactéria infecta os humanos.

Diante de uma pandemia global, O'Brien teme que a úlcera de Buruli possa cair no esquecimento mais uma vez. E receia que seria imprudente ignorá-la.

"A covid-19 está nos mostrando que não podemos ver doenças isoladamente. [Os coronavírus] podem ser respiratórios, e [a úlcera de] Buruli bacteriana, mas ambos vêm da natureza, ambos são um alerta sobre nossas interações com a natureza, os dois são imensamente prejudiciais à saúde humana", afirma.

"Aprender as lições de um é muito importante para o outro."

Harriet Constable. da BBC Future, em 28 março 2021

domingo, 28 de março de 2021

Brasileiro quer líder que priorize o País e não as eleições

Diante da politização da pandemia no Brasil, pesquisa global da Ipsos mostra que 42% dos brasileiros esperam que políticos priorizem o interesse coletivo para superar a crise      

“Só um ano de atraso”, foi uma das frases irônicas que invadiram as redes sociais após o anúncio, na quinta-feira passada, da criação de um comitê para discutir e pôr em prática ações integradas de combate à covid-19 no Brasil. Após reunião com os presidentes da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal (STF), alguns governadores e ministros, o presidente Jair Bolsonaro prometeu um trabalho conjunto e disse acreditar que o melhor caminho para tirar o País da crise é “sem qualquer conflito, sem que haja politização”.

A postura e o discurso do presidente, porém, destoam da forma como o Brasil assistiu à condução da pandemia nos 13 meses anteriores. Em meio a uma crise sanitária sem precedentes e um número cada vez maior de mortos, o período foi marcado por conflitos do presidente – que se opôs a medidas de isolamento e criticou vacinas – com governadores e prefeitos.

Uma consequência desta “pane” federativa pode ser vista num levantamento da Ipsos e do Global Institute for Women’s Leadership publicado neste mês: após um ano conturbado de pandemia, uma parcela majoritária dos entrevistados no Brasil disse querer que seus líderes coloquem os problemas do País como prioridade à frente de suas próprias ambições políticas.

É o que pensa a advogada Valéria Martins, de 35 anos, do Rio de Janeiro, que acompanhou de perto o drama de amigos que perderam familiares para a doença ou que estão desempregados na crise. “Essas brigas políticas só pioram a nossa situação, tanto na questão da saúde, como financeira. Estão pensando nas eleições e não em ajudar o povo”. A mineira Amanda de Paula, que trabalha com administração de empresas, tem o mesmo ponto de vista: “Eu esperava que atitudes tivessem sido tomadas bem antes do caos todo”.

O estudo da Ipsos pediu a mais de 20 mil entrevistados de 28 países que apontassem cinco características prioritárias que esperam de um líder para reverter a crise do coronavírus. Entre os brasileiros, a principal urgência, citada por 42% dos participantes, foi o desejo de que políticos priorizem os interesses do País ao invés de suas próprias carreiras. Esta e outras características como “ser honesto”, “tomar decisões certas na hora certa” e “agir rápido para proteger as pessoas” tiveram, entre os brasileiros, suporte mais alto do que a média dos países pesquisados.

Valéria Martins, advogada, moradora do Rio: 'Estão pensando nas eleições e não em ajudar o povo' Foto: Wilton Junior/Estadão

“Essas questões são mais percebidas como mais importantes por aqui”, disse Marcos Calliari, presidente da Ipsos no Brasil. “A capacidade de enfrentar a pandemia e suas desastrosas consequências, em um país que foi particularmente atingido, requer, no olhar da população brasileira, capacidade de entender os problemas da população e protegê-la, comunicar-se bem e pensar no País.”

Apesar de agora abrandar o tom negacionista e falar que o governo nunca se opôs à vacinação, durante meses Bolsonaro duvidou da eficácia das vacinas, chegando a barrar uma decisão do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de comprar a Coronavac e chamou o imunizante de “a vacina chinesa de João Doria”. Filiado ao PSDB, o governador de São Paulo é um potencial adversário de Bolsonaro na disputa presidencial do ano que vem. “É normal que haja dissenso em alguns pontos do combate à pandemia como houve com o auxílio emergencial acerca do valor e até do auxílio em si, mas a disputa política não pode se tornar algo nocivo ao País e à população. Foi o que vimos com a vacinação”, disse o advogado Augusto Costa, de 25 anos, morador de Sertãozinho, no interior de São Paulo.

Medidas de isolamento social durante a pandemia também estão entre as principais discordâncias de Bolsonaro com gestores estaduais e municipais. Na semana passada, o presidente chegou a ingressar com uma ação no STF para tentar reverter restrições na Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal; o pedido foi negado. Recentemente, governadores e prefeitos de grandes capitais se desentenderam publicamente na adoção de medidas de restrição. Casos como o do prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), e do governador do Estado, Cláudio Castro (PSC), de Doria e do prefeito paulistano, Bruno Covas (PSDB). 

O Supremo assegurou a Estados e municípios a autonomia para tomar medidas contra a propagação da doença, mas não exime a União de realizar ações e de buscar acordos com gestores locais.

“Colocar o País à frente da política é um apelo por responsabilidade coletiva, tomar medidas no tempo certo, sem conflito e sem procrastinação é olhar para as necessidades do povo”, diz o cientista político e escritor Sérgio Abranches. “Hoje vivemos uma ameaça existencial e, em muitos lugares, como o Brasil, governos em completo divórcio com o país, com o povo. Várias lideranças, aqui e em quase todos os países democráticos, já entenderam esse anseio coletivo.”

Para o analista de risco político Creomar de Souza, da consultoria Dharma, a combinação de crises na pandemia – sanitária, política, econômica e social – indica uma tendência de debate político mais focado nas necessidades urgentes do País para o pleito do ano que vem. “As duas grandes tendências de debate são saúde pública e desemprego. O debate eleitoral tende a girar nesses dois temas por causa da pandemia, a dificuldade do governo em atender os doentes e a disponibilização de vacinas.”

O cenário de polarização dialoga com outro dado da pesquisa Ipsos: apenas 4% dos entrevistados brasileiros citaram como prioritária a necessidade de que líderes saibam dialogar e atuar conjuntamente com quem pensa diferente. Nenhum outro país do estudo aparece com uma porcentagem tão baixa neste quesito. “Uma parte do eleitorado brasileiro passou firmemente a acreditar nos últimos anos que dialogar com o diferente é uma corrupção de valores. Isso é ruim para a sociedade”, diz Creomar. 

Para Calliari, da Ipsos, o dado indica que a percepção de prioridade deveria desconsiderar as diferenças ideológicas: “Parece haver a percepção de que trabalhar apesar das diferenças políticas não é importante por si só. Há sinais de que a população vê a polarização política, mas importante é trabalhar para atacar o que o País enfrenta, com honestidade, empatia, transparência e competência, independentemente de qual seu espectro ideológico.”

Matheus Lara, O Estado de S.Paulo, em 28 de março de 2021 

300.000 mortos e um Brasil refém de Bolsonaro

Sem auxílio emergencial, sem plano econômico nacional e emparedados pelo Planalto, governadores e prefeitos se acovardam e repetem erros de meses atrás. Estamos implorando ao Ministério da Saúde, um ano depois, que ao menos não atrapalhe

Bandeira brasileira na praia de Copacabana, fechada por causa da crise sanitária. (Crédito da foto: RICARDO MORAES / REUTERS)

Um ano depois da pandemia e chegando ao imoral marco de 300.000 mortes, o Brasil segue repetindo erros que paga com óbitos e sequelas dolorosas para sobreviventes do novo coronavírus. Vivendo situações “de guerra” e prejudicados por um presidente que age deliberadamente contra o fim da crise, governadores e prefeitos cedem a invencionices e repetem ideias que já não deram certo meses atrás.

O boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz desta quarta-feira é cristalino. Diz que, ao se comparar o Brasil com os países que tiveram mais de 100.000 óbitos por covid-19 durante a pandemia (EUA, México, Índia, Reino Unido e Itália), todos estão em situação melhor que a nossa. Só o Brasil exibe tendência crescente e contínua. Vários especialistas, os secretários de Saúde e a própria Fiocruz já pediram: lockdown nacional já, com regras nacionais de circulação e barreira em portos e aeroportos por ao menos 14 dias. “Mesmo que vários municípios e Estados já venham adotando estas medidas, é fundamental que governos municipais, estaduais e federal caminhem todos na mesma direção”, pede o documento.

Mas essa alternativa de coordenação nacional, com Jair Bolsonaro no poder, não está no horizonte. No máximo, ele vai adotar agora um discurso pró-vacinação, insuficiente para o momento e mais um álibi para seguir falando contra o isolamento social. Então, o que fazer?

O país atravessa a pior fase da pandemia sem auxílio emergencial para os mais pobres ―graças à lentidão do Planalto― e sem ajuda para o comércio e pequenos empreendedores ―pela falta de um plano econômico nacional. Tudo isso aumenta, e muito, o custo político de confinamentos drásticos, sem falar na situação de fome propriamente dita, mesmo na cidade mais rica do país. Aí cada gestor tenta mesclar medidas na direção correta, do ponto de vista epidemiológico, com cálculo político e terceirização de responsabilidades.

O caso mais recente é a reedição na cidade de São Paulo de megaferiadão, desta vez ligado à Semana Santa, para tentar conter a circulação da população. Tudo começa porque, mesmo com São Paulo vivenciando o colapso, o governador João Doria não tem coragem de declarar um lockdown sério, com restrição do que é considerado essencial e restrição de viagens não justificadas. Dada essa primeira omissão, o seu colega tucano, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, faz o mesmo: resolveu dar impulso ao jogo de empurra. Covas decretou novo feriadão na capital, que começa no dia 26. Não há tampouco regra sobre restrição de viagens, o que pressiona litoral e interior, como se essas regiões também não estivessem pagando precariedade com mais mortes. Em alguns lugares, a ação de Covas gerou um efeito cascata: várias cidades da Baixada Santista não tiveram outra escolha que decretar elas mesmas um lockdown, enquanto outras cidades do interior correm para desincentivar o veraneio.

O epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, diz que, apesar das trapalhadas, o feriadão pode ajudar a aumentar as taxas de isolamento, ao menos na capital. Qualquer ponto percentual na redução na circulação, ele diz, vai diminuir contágios e depois, mortes. É pouco? Sim, mas com pessoas morrendo na fila por um leito de UTI não dá para desprezar. O problema é que, com tudo descoordenado e com esse salve-se quem puder político, não se descarta que em outras regiões no interior haja espaço para algum prefeito negacionista brilhar. Na capital paulista, empresas e escolas ainda deliberam se vão ou não acatar o feriadão. Quem pode julgá-los? O feriado existe não para as atividades que já estão remotas, mas para dar um empurrão naquelas que o Governo não tem coragem de fechar. Enquanto mais confusão se instala, aqui e ali ainda se especula na imprensa se Doria vai ou não endurecer as regras para outras atividades econômicas.

Não era hora de inventar a roda, mas somos muito desiguais e tolerantes à morte para qualquer medida horizontal. Na França, há regra clara sobre deslocamento mesmo dentro das cidades. A Espanha, em situação bem melhor do que a brasileira agora, haverá medida duras para a Semana Santa. Mesmo o Chile, onde 20% da população já se vacinou, haverá novas restrições praticamente em todo território. Se o mundo inteiro segue essas regras, por que achamos que vamos nos safar sem elas? Se já chegamos à marca de 3.000 óbitos por dia, o que nos impede de seguir a escalada?

Em vez de estarmos discutindo uma saída para a calamidade nos hospitais, estamos de novo, um ano depois, cobrando o Ministério da Saúde. Implorando, na verdade, que ao menos não atrapalhe os Estados nem mude regras de última hora para complicar a transparência sobre os óbitos. Os dados não são apenas títulos nos jornais, eles são ferramentas de trabalho. É inacreditável que tenhamos transformado a pasta e o SUS, nossa Ferrari em termos de sistema de saúde, numa Veraneio modelo 64, lotada de recrutas zero. A lista de cúmplices é imensa, mas a elite do empresariado que apoiou a eleição de Bolsonaro tem um lugar especial nela. É estarrecedor que só agora o PIB tenha resolvido cobrar o presidente a respeito.

Nesse imobilismo entra o fator dos 30% que apoiam Jair Bolsonaro em seu negacionismo, segundo o Datafolha. O presidente está fazendo um jogo político que tem seu método: não governa para uma maioria, mas para sua minoria suficiente, em torno de 30%, que o permita se blindar contra o impeachment e chegar a um segundo turno em 2022. Vai ser sustentável no tempo? Até agora, tem sido. Então há, no momento, um país refém, com 70% de insatisfeitos, e ninguém governa pensando neles.

FLÁVIA MARREIRO, do EL PAÍS. Publicado originalmente em 24 MAR 2021

Brasil tem 1.656 mortes por covid em 24 horas

País acumula mais de 312 mil vítimas, dos 12,53 milhões de infectados com o coronavírus desde o início da pandemia. Taxa de mortalidade por 100 mil habitantes se aproxima de 149

Homem de máscara sanitária passa diante de lenções estendidos no chão de rua como memorial por vítimas da covid-19

Memorial pelas vítimas da covid-19 montado pela ONG Rio de Paz diante do Hospital Ronaldo Gazolla, no Rio de Janeiro

O Brasil registrou oficialmente 44.326 novos casos confirmados de covid-19 e 1.656 mortes ligadas à doença neste domingo (28/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.534.688, enquanto os óbitos chegaram a 312.206. Ao todo, 10,88 milhões de pacientes se recuperaram da doença, segundo o Ministério da Saúde (o Conass não divulga número de recuperados).

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 148,6 no Brasil, a 17ª mais alta do mundo, desconsiderados os Estados-nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30 milhões de casos, e seguido da Índia, com pouco menos de 12 milhões. É também o segundo em número de mortos por covid-19, depois dos quase 550 mil em solo americano.

Ao todo, mais de 127 milhões já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,78 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença respiratória, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle / Brasil, em 28.03.2021

Centrão e mercado dão ultimato a Bolsonaro

Com agravamento das crises sanitária e econômica no País, Lira e Pacheco alinham discurso com empresários e defendem uma intervenção nos rumos do governo

Arthur Lira chegou a incluir impeachment no discurso na Câmara em que falou em 'sinal amarelo'

Para empresários, é preciso ‘controlar’ o presidente

Uma série de nove encontros da cúpula do Congresso com grandes empresários, representantes de bancos e do mercado financeiro resultou num movimento político pela intervenção nos rumos do governo de Jair Bolsonaro. Os mais de 300 mil mortos na pandemia de covid-19 e a situação cada vez mais insustentável da economia levaram os presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a afinar o discurso com o mercado. Os dois têm colocado o impeachment como possibilidade se as conversas com o governo fracassarem. 

As cobranças mais urgentes do setor econômico são a demissão dos ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A avaliação recorrente nas reuniões é de que Araújo atrapalha as negociações por vacinas e insumos da Índia e da China. Já Salles, que comanda a criticada política ambiental brasileira, é visto como obstáculo na relação com Washington, especialmente agora que o País mira as vacinas excedentes dos Estados Unidos.

Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (à esq.), e do Senado, Rodrigo Pacheco; encontros com empresários Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

Interlocutores de Lira e Pacheco argumentam que, no caso específico, é errada a leitura de que a pressão pela troca dos dois ministros – verbalizada por eles – tenha como objetivo lotear o governo, uma demanda constante do Centrão. O intuito é atender à principal reivindicação do setor econômico e, de quebra, garantir um “ganho de imagem” perante seus novos interlocutores. 

Na noite da última segunda-feira, Washington Cinel, empresário do ramo de segurança privada, recebeu os presidentes da Câmara e do Senado em sua casa na Rua Costa Rica, no Jardim Europa, em São Paulo. Participaram do encontro presencial e remoto Luiz Carlos Trabuco Cappi (Bradesco), Carlos Sanchez (SEM) e André Esteves (BTG Pactual). As conversas à mesa de jantar foram precedidas por discursos breves de Lira e Pacheco, do anfitrião Cinel e dos também empresários Abílio Diniz e Flávio Rocha, que falaram por videoconferência. Uma das manifestações mais duras foi a de Pacheco. Mas, segundo presentes, não houve “tom panfletário” em público.

Os empresários relataram que a crise sanitária bloqueia investimentos externos e atinge diretamente os planos de abertura de capital de empresas, o IPO. “Quem quer fazer IPO não consegue ter grandes resultados, porque ninguém tem segurança de botar dinheiro no Brasil, principalmente pela condição sanitária”, disse o deputado Dr. Luizinho (Progressistas-RJ), presente ao encontro.

Jantares como este ocorrem com regularidade. Os encontros são promovidos uma vez por mês por nomes como Cinel e João Camargo, filho do ex-deputado José Camargo. Segundo um parlamentar que já esteve no convescote, eles se reúnem para tomar vinho e convidam um político para “cantar”. Lira era o convidado principal desta vez. Pacheco já estava em São Paulo e acabou sendo incluído. 

Antes, Lira e Pacheco haviam passado na casa de Claudio Lottenberg, homem forte do Hospital Israelita Albert Einstein. Lá havia um grupo menor de empresários do setor de saúde. A conversa foi sobre a escassez de sedativos e analgésicos, medicamentos usados para intubação de pacientes com quadro grave de covid-19, em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). A falta atinge o SUS e hospitais da rede privada. 

Os dirigentes do Congresso também têm frequentado a Febraban, a Fiesp e participado de agendas fechadas em São Paulo com nomes de peso. No último dia 2, Pacheco esteve com Milton Maluhy Filho (Itaú), Octavio de Lazari Jr. (Bradesco) e Roberto Sallouti (BTG). Um dia antes, os dois políticos falaram na Fiesp para Abílio Diniz e Rubens Menin. Em 25 de fevereiro Lira já havia estado com Sergio Rial (Santander), entre outros. 

Demitir ministros pode ser traumático para Bolsonaro. A substituição de Salles, por exemplo, implica uma ruptura com a faixa média dos ruralistas, justamente o setor que desde o início apoiou a campanha do presidente, em 2018. Os líderes do Centrão têm deixado claro, porém, que a sobrevivência do governo depende das mudanças. 

Vacina

Um outro encontro de Pacheco por videoconferência foi organizado no último dia 11 pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Luiz Antônio França, presidente da entidade que reúne grandes construtoras, afirmou que o objetivo da conversa foi buscar o melhor para a economia. “O que a gente percebe é um alinhamento entre as duas Casas (do Congresso)”, disse França. “E o que é o melhor para a economia? Primeiro, resolver a pandemia. Depois, um país com capacidade de investimento e crescimento”, completou. “A prioridade é vacinar.” 

Uma queixa, em especial, marcou as reuniões com as presenças de Lira e Pacheco. Os empresários destacaram que as medidas para conter o avanço da pandemia dependem do Executivo, razão pela qual, desta vez, não há como tratar Bolsonaro como “café com leite”. Trata-se de uma situação diferente do processo de votação da reforma da Previdência, por exemplo. Na época, o presidente era contra a proposta, mas o Legislativo deu de ombros e aprovou a medida.

Em sintonia com empresários e mercado, líderes do Centrão dizem que, diante do fracasso no controle da pandemia, o presidente não terá mais a tolerância do Congresso. “Bolsonaro está no fio da navalha. Se a coisa fugir do controle, se ele quiser fazer tudo do jeito dele, fora da ciência, não tenha dúvida de que nós vamos atropelar”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).

Pinato advertiu que “ninguém” quer afrontar o presidente, mas ele precisa assumir a liderança dentro de uma “racionalidade mundial”, e não na “destemperança” da ala ideológica. “O impeachment está descartado, desde que ele mantenha esse diálogo construtivo. Se tiver ameaça de choque institucional ou sair da racionalidade no combate à pandemia, ninguém vai pular no buraco com ele, não”, resumiu o parlamentar.

Felipe Frazão e André Shalders, O Estado de S.Paulo, em  28 de março de 2021


A vida de Giuseppe Garibaldi, ‘herói de dois mundos’ que unificou a Itália e lutou no Brasil


"Não há nenhum outro episódio em que o aparecimento no Reino Unido de uma figura pública, nativa ou estrangeira tenha produzido um entusiasmo mais profundo ou universal."

Giuseppe Garibaldi encarnou o mito do herói romântico do século 19 (Crédito da foto: Agostini Picture Library).

Foi assim que o correspondente em Londres do jornal americano The New York Times descreveu a chegada, em 16 de abril de 1864, de um italiano na casa dos cinquenta anos, de aspecto carismático, com uma barba que adornava um rosto oval e roupas coloridas.

Em outro texto sobre o evento, um repórter do jornal britânico The Guardian descreveu como milhares de pessoas se reuniram no centro de Londres para ver o italiano, gritando seu nome: "Garibaldi! Garibaldi para sempre!"

A carruagem que transportava o general Giuseppe Garibaldi da estação ferroviária de Nine Elms para a Residência Lancaster, onde ele era o convidado de honra do duque e da duquesa de Sutherland, levou mais de cinco horas para percorrer uma distância de menos de quatro quilômetros.

"A aristocracia disputava (sua atenção) com as pessoas comuns", comentou o The New York Times, "e os homens da mais alta posição oficial estavam orgulhosos de receber o revolucionário de camisa vermelha."

Não foi a primeira vez que Garibaldi despertou paixões no Reino Unido. Ele já havia visitado o país alguns anos antes e teve um biscoito com o seu nome comercializado no país. Na época, o recém-fundado time de futebol de Nottingham Forest decidiu adotar o vermelho para suas camisas, em homenagem às tropas do general italiano.

"Foi como se os músicos do U2 fossem às ruas hoje", diz à BBC Mundo o historiador Carmine Pinto, diretor do Istituto per la Storia del Risorgimento (instituto da história da unificação italiana, em português), em Roma.

Hoje, 160 anos depois dessas visitas, tanto o biscoito quanto os uniformes ainda existem, e o mito de Garibaldi, o "herói do velho e do novo mundo", como o batizou o escritor francês Alexandre Dumas, permanece praticamente intacto.

"Garibaldi encarna perfeitamente o herói romântico do século 19, com sua luta idealista pelas causas nacionais, seu carisma e sua liderança", afirma Arianna Arisi Rota, professora de História Contemporânea da Universidade de Pavia."E todo o século 19 se encaixa em sua vida."

Garibaldi foi recebido em Londres por uma multidão entusiasmada (Crédito da foto: Ilustrated London News).

Cidadão do mundo

Giuseppe Garibaldi nasceu em 1807 em Nizza (Nice, hoje pertencente à França), em uma família de marinheiros de Gênova, então principal porto do Reino da Sardenha.

Muito jovem, começou a trabalhar aprendiz e depois como marinheiro em navios comerciais que navegavam no Mediterrâneo e no Mar Negro. No navio, entrou em contato com as ideias políticas reformistas que inflamaram a Europa do século 19.

Em 1833, Garibaldi tinha 26 anos e estava prestes a partir do porto de Marselha para a Rússia com o navio mercante "Clorinda".

Naquela época, Constantinopla (atual Istambul) era capital da Turquia e funcionava como um refúgio para exilados políticos europeus. O navio Clorinda fez uma parada na cidade para desembarcar treze passageiros, seguidores das teorias socialistas do filósofo Henri de Saint-Simon. Nessa viagem pelo Mediterrâneo, o líder desse grupo, Emile Barrault, ilustrou a Garibaldi algumas das ideias que defendiam: pacifismo, igualitarismo, equidade entre homens e mulheres e amor livre.

Anos depois, Garibaldi explicaria ao escritor francês Alexandre Dumas, que escreveria as memórias do general italiano, como um conceito de Barrault foi particularmente decisivo para sua formação política.

"O homem que defende seu país ou que ataca outro não passa de um soldado", disse Garibaldi ao autor do romance O Conde de Monte Cristo.

"Por outro lado, o homem que, ao se tornar cosmopolita, adota a humanidade como sua pátria e vai oferecer sua espada e seu sangue a todos os que lutam contra a tirania, é mais que um soldado: é um herói", afirmou.

A bordo daquele navio, "sob um céu estrelado e sobre um mar cuja brisa parece carregada de generosas aspirações", como diria nas suas memórias, Garibaldi compreendeu que queria ser esse herói e que dedicaria o resto da vida a isso.

De volta à Itália, ele se juntou ao grupo de La Giovine Italia (Jovem Itália), uma sociedade secreta formada por Giuseppe Mazzini para promover a unificação do país.

Garibaldi participou de uma tentativa de insurreição em Gênova, mas a revolta fracassou e ele foi forçado a se refugiar em Marselha, onde recebeu a notícia de que havia sido condenado à morte.

Anita Garibaldi tinha 18 anos quando se apaixonou pelo guerreiro italiano (Crédito da foto: Dea Picture Library).

Revolução Farroupilha

Garibaldi continuou viajando pelo Mediterrâneo com nome falso, até que em 1836 pegou um navio para o Rio de Janeiro.

No Brasil, Garibaldi passou a comercializar macarrão, consolidou sua formação política, entrou para a maçonaria e conheceu o militar e líder separatista Bento Gonçalves da Silva.

Quando Bento Gonçalves foi nomeado presidente da República do Rio Grande, que desejava se separar do Brasil imperial, ele acabou sendo preso por se rebelar.

Sua prisão deu início à Revolução Farroupilha, também conhecida como Guerra dos Farrapos (1835-1845) no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.

Garibaldi foi importante na Revolução Farroupilha (Crédito da foto: Dea Picture Library).

Em 1837, Garibaldi, "cansado de arrastar uma existência inútil", como explicou em carta a um amigo, obteve uma procuração de Bento Gonçalves e começou a comandar sua frota de guerra contra a marinha brasileira.

"A contribuição de Garibaldi foi fundamental sob dois pontos de vista", explica a historiadora Maria Medianeira Padoin, professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

"Por um lado, ele contribuiu com seu conhecimento militar, empregando táticas eficazes de combate na água, tanto no mar como no rio, e contribuindo para a formação de estaleiros militares na região."

"Por outro lado, graças à sua personalidade carismática, difundiu os seus ideais de igualdade e de luta pela liberdade", afirma Padoin.

Annita Garibaldi Jellet, jurista, historiadora e bisneta de Giuseppe e Anita Garibaldi. (Crédito da foto: Annita Garibaldi).

Durante os quatro anos em que lutou na Revolução Farroupilha, Garibaldi foi capturado e torturado, sofreu um naufrágio e conheceu aquela que seria o amor de sua vida, Anna Maria Ribeiro da Silva, a Anita Garibaldi.

Anita tinha 18 anos e era casada quando se apaixonou pelo guerrilheiro italiano.

Ela deixou o marido, passou a usar roupas masculinas para poder andar a cavalo e lutou ao lado de Garibaldi em todas as campanhas militares no Brasil.

Casaram-se em 1842 e tiveram três filhos: Menotti, Teresita e Ricciotti.

"A história dos meus bisavós foi uma história muito romântica", diz Annita Garibaldi Jallet, neta de Ricciotti, historiadora e presidente da Associazione Nazionale Veterani e Reduci Garibaldini (associação nacional de veteranos e sobreviventes garibaldianos) na Itália.

Os guerreiros que lutavam com Garibaldi (na pintura) ficaram conhecidos por suas roupas vermelhas (Crédito da foto: LeeMage)

A consagração militar no Uruguai

Por volta de 1841, Garibaldi parou de lutar na Revolução Farroupilha e se estabeleceu em Montevidéu, no Uruguai, onde havia uma grande comunidade de exilados e imigrantes italianos.

Pouco depois, ele se envolveu na guerra civil do Uruguai, um longo e complexo conflito entre os partidos "blanco" e "colorado", cada lado apoiado por um partido diferente da Argentina.

O conflito teve a intervenção diplomática e militar do Brasil, da França e do Império Britânico, além da participação de forças estrangeiras.

Garibaldi aliou-se ao presidente recém-eleito do Uruguai, Fructuoso Rivera do partido colorado. Então criou a Legião Italiana, que sob sua liderança conquistou vitórias em diversas cidades.

O pesquisador argentino Mario Etchechury afirma que "por muito tempo Garibaldi foi considerado um herói mais do Partido Colorado do que do país".

O fato de o primeiro monumento da guerra civil em Montevidéu ser de Garibaldi, explica,

"justifica-se por um lado pela sua importância, mas também porque naquele ano o governo era do partido colorado, que ainda preserva um retrato do italiano em sua sede ".

A Legião Italiana se caracterizava por um elemento que logo invadiria o imaginário popular como símbolo de coragem e dedicação às causas patrióticas: suas camisas vermelhas.

Segundo vários historiadores, é provável que esse símbolo das tropas de Garibaldi se devesse a uma remessa de pano vermelho destinada aos operários das fazendas de produção de charque de Montevidéu que o general italiano comprou a baixo custo.

"Da experiência na América do Sul, Garibaldi certamente tirou a consciência de ser um comandante carismático e as táticas de guerrilha que usaria com eficácia nas batalhas em solo italiano nos anos seguintes", afirma Padoin.

Mas o treinamento de Garibaldi no "novo mundo" não foi apenas político e militar. Em suas memórias conta como as imensas pradarias dos Pampas e o modo de vida livre e independente de seus habitantes, os gaúchos, o cativaram.

Nelas ele possivelmente viu a encarnação de suas ideias de liberdade popular e resistência, e tirou inspiração para suas campanhas militares na Itália.

Foi nessa época que nasceu o mito do "herói de dois mundos" e a fama de Garibaldi começou a circular também na Europa.

Garibaldi foi influenciado pelo italiano Giuseppe Mazzini; na ilustração os dois se encontram na cidade de Marselha (Crédito da foto: Keystone - France).

"Ou criamos a Itália ou morremos"

O que conhecemos hoje como Itália, na época de Garibaldi era uma região dividida entre os Estados Pontifícios (uma aglomerado de territórios sob o poder da Igreja Católica na região de Roma) e diversos reinos independentes entre si — alguns ocupados por outros impérios.

Com a chegada do Papa Pio 9 ao poder nos Estados Pontifícios, em 1846, foi proclamada uma anistia para que os exilados italianos retornassem para casa.

Garibaldi então voltou para a Europa com sua família e alguns dos homens que lutaram ao seu lado na América.

Ele participou de várias batalhas na primeira guerra de independência do Reino de Sardenha contra o Império Austro-Húngaro (1848-1849) e mais tarde na defesa da República de Roma contra os franceses (1849).

"Foram esses episódios que o tornaram em um símbolo do romantismo da época", explica o historiador Carmine Pinto. "Embora as batalhas que ele lutou tenham sido perdidas pelos italianos, suas ideias venceram a guerra de ideias."

Em 1849, quando a família fugia de Roma após a derrota contra os franceses, Anita morreu de malária. Nos meses seguintes, Garibaldi decidiu voltar para a América.

Ele foi primeiro para Nova York, nos Estados Unidos, onde trabalhou em uma fábrica de velas, depois para o Caribe, e depois para o Peru, onde trabalhou com o comércio de guano (excremento de ave usado como fertilizante) para a China.

Em meados da década de 1850 ele retornou à Europa. E em 1859 ganhou várias batalhas decisivas na Segunda Guerra da Independência Italiana (1859) com seu exército de voluntários chamado "caçadores dos Alpes"

Mas foi no ano seguinte que sua fama como estrategista militar atingiu o auge, com a chamada Expedição dos Mil.

Também conhecida como expedição camisa vermelha, consistia em um contingente de 1089 voluntários que saíram de uma praia perto de Gênova e desembarcaram na Sicília.

Em poucos meses, seu batalhão conquistou todo o Reino das Duas Sicílias, que levou à sua dissolução e anexação pelo Reino da Sardenha, um passo importante na criação do Reino da Itália.

Com o encontro entre Giuseppe Garibaldi e o rei Victor Emmanuel II em Teano, perto de Nápoles, em 26 de outubro de 1860, a Expedição dos Mil foi concluída.

Seis meses depois, em 17 de março de 1861, o rei proclamou o nascimento do Reino da Itália e Garibaldi foi consagrado definitivamente como um "herói da pátria".

Pintura a óleo romântica retratando soldados na batalha de Calatafimi. Seu batalhão de mil homens ficou famoso no mundo todo (Crédito da foto: Dea / A. Rizzi).

Um mito em vida

Nos anos seguintes Garibaldi participou de outras lutas: pela libertação de Roma (1862), que ainda fazia parte do Estado pontifício; na Terceira Guerra da Independência (1866), e a favor da República Francesa contra as tropas prussianas (1871).

Dois anos antes de sua visita a Londres, o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, desesperado com as derrotas contra o exército confederado durante a Guerra Civil Americana, ofereceu o comando das forças do norte ao general italiano.

Garibaldi respondeu que estava disposto a aceitar sua oferta, mas com uma condição: que o objetivo declarado da guerra fosse a abolição da escravidão.

Mas, nessa fase, Lincoln ainda não queria fazer essa declaração, temendo o agravamento de uma crise agrícola, e o acordo com Garibaldi nunca se concretizou.

Nos últimos anos de sua vida, o guerrilheiro alternou a atividade política com a aposentadoria na pequena ilha de Caprera, onde morreu em 2 de junho de 1882.

Durante seus 75 anos de vida, foi preso nove vezes pela polícia de diferentes países e condenado à morte pelo Reino da Sardenha. Foi atacado por piratas e gravemente ferido várias vezes em batalha. Foi membro de vários parlamentos e general de vários exércitos.

Foi casado três vezes e teve pelo menos oito filhos. Escreveu romances, poemas e várias memórias.

Mas, acima de tudo, tornou-se um pilar inabalável da retórica patriótica italiana: ainda hoje Garibaldi é o segundo na lista dos nomes de ruas e praças mais comuns na Itália, atrás apenas de Roma.

"O caso de Garibaldi é um caso único no mundo da construção de um mito em vida", comenta Arisi Rota, autora de um livro sobre a unificação italiana.

"No imaginário popular, ele se tornou um ícone quase cristão. Havia até estatuetas que o representavam crucificado."

Controvérsias

Nos últimos anos, porém, tem emergido uma leitura não canônica da unificação italiana por nomes que negam a retórica patriótica que acompanha o processo e seus protagonistas.

O jornalista Pino Aprile publicou em 2010 um ensaio provocativamente chamado Terroni (a forma depreciativa com que os italianos do sul são apelidados), que se tornou um best-seller na Itália.

A tese de Aprile é que a unificação da Itália prejudicou o sul e transformou seus habitantes em italianos de segunda categoria.

"Eles fizeram com o sul da Itália o que os espanhóis fizeram para conquistar a América Latina", diz Aprile. "Garibaldi foi um homem complexo, de sua época, e com certeza ele teve muita paixão para alcançar a unidade da Itália."

"Mas ele também era um cara muito inteligente! Ele não só foi empregado no tráfico de escravos entre a China e o Peru, mas também lutou pelos interesses dos poderosos às custas do povo e, portanto, acumulou enormes fortunas pessoais."

As afirmações de Aprile, no entanto, foram acusadas de ter pouco ou nenhum fundamento por grande parte da comunidade acadêmica e historiadores italianos consultados pela BBC Mundo descreveram sua tese como "não confiável".

"Alguns acreditam que Garibaldi foi um herói, enquanto outros não concordam com suas ideias e posições", diz bisneta Annita Garibaldi Jellet, que não chegou a conhecer Garibaldi. "O que eu gostaria era de ter tido um bisavô de carne e osso para brincar comigo."

Angelo Attanasio, da BBC News Mundo, em 27 março 2021

sábado, 27 de março de 2021

Juan Arias: As instituições do Estado e os poderes de fato começam a abandonar Bolsonaro?

Aquelas que pareciam anestesiadas pelo mito fascista, incapazes de reagir ao genocídio sofrido pelo país, parecem ter despertado para dizer “agora chega!”

O presidente Jair Bolsonaro após uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. (Crédito da foto: Ueslei Marcelino / Reuters).

A popularidade de Bolsonaro nas redes sociais é a mais baixa desde sua eleição, segundo a agência de análise de dados e mídias MAP. De 1,4 milhão de postagens feitas, apenas 10,8% contêm menções positivas. E a proporção de brasileiros a favor da vacina subiu para 86%, apesar da campanha do presidente para desencorajar as pessoas de se vacinar.

E finalmente as instituições do Estado, o Congresso, o STF, a maioria dos governadores, economistas e empresários e o mercado também se deram conta da gravíssima situação sanitária do país e decidiram pôr em andamento o que se poderia chamar de impeachment virtual contra o presidente, com a criação de uma comissão encarregada de controlar a pandemia. Dessa forma, praticamente removeram Bolsonaro do controle da saúde, que é o mais urgente neste momento. Se a crise sanitária agravada por seu negacionismo teimoso continuasse em suas mãos, isso poderia provocar uma catástrofe nacional e um enfrentamento popular.

Dessa forma, Bolsonaro fica, na prática, fora da gestão da saúde. Continua no cargo de presidente, mas sob controle. Seu último discurso à nação foi patético e acompanhado pelo maior panelaço sofrido até agora, em meio a gritos de assassino e genocida vindos das janelas.

Seu discurso, no qual se apresentou como o maior defensor da vacina, foi tão desastroso que foram detectadas até 14 mentiras nele, se comparado com todas as suas declarações anteriores em que zombou da pandemia, dos mortos e da vacina — sobre a qual dizia que, se a tomassem, os homens poderiam virar jacaré e as mulheres poderiam ganhar barba. E ele já havia antecipado que não se vacinaria.

Não sabemos se aquele que tantas vezes ameaçou com golpes militares percebeu que ele é que foi objeto do que se poderia chamar de golpe branco parlamentar, apoiado por todas as outras instituições do Estado e dos chamados poderes de fato.

Para o Brasil, é realmente uma vergonha constatar a imagem negativa que o país tem no mundo neste momento. A mídia estrangeira, rádios, TVs e jornais, estão qualificando o Brasil como “o pior país do mundo”. Lendo esses relatos, o Brasil lembra as cidades da Idade Média assoladas pela peste da qual todos fugiam.

Os veículos de comunicação estrangeiros ouvem de médicos e enfermeiros relatos de cenas dramáticas, como a do paciente que, diante da falta de anestésico, teve que ser amarrado à cama para que pudesse ser intubá-lo. Ou o caso dos pacientes cujos pulmões tinham de ser bombeados manualmente com válvulas de silicone. Ou o de médicos e enfermeiros atormentados durante o sono por saber que no dia seguinte teriam de escolher a quem salvar e a quem deixar morrer.

A cena de uma filha chorando abraçada à sua mãe que tinha sido escolhida para morrer é dilacerante. Assim como milhares de dramas que arrepiam a alma.

No campo político, o que é mais importante e significativo é que o golpe branco contra o presidente foi levado a cabo sob o total silêncio das forças do Exército, inclusive das que participam diretamente de seu Governo.

Elas têm se mantido em silêncio mesmo diante da forte pressão sofrida no Senado pelo chanceler Ernesto Araújo, um dos ministros de maior peso do Governo, encarregado de representar ao país perante as demais nações do mundo. Houve até senadores que pediram aos gritos que ele renunciasse ao cargo, pois se revelou incapaz de cumprir sua importante missão e está criando graves problemas para o Brasil com as grandes potências mundiais.

Todas as instituições que pareciam anestesiadas pelo mito fascista, incapazes de reagir ao genocídio sofrido pelo país, parecem ter despertado para dizer “agora chega!”. E encontraram a fórmula para conter um presidente que parecia insensível à dor da nação e à crise econômica que castiga duramente os mais pobres, com uma inflação galopante que os deixa até sem alimentos para seus filhos.

Será preciso ver nas próximas semanas se Bolsonaro entendeu que foi colocado à margem da gestão da pandemia e qual será sua reação. Se tentar se rebelar, restará ver como reagirão as forças que o abandonaram. Por enquanto, até seu pupilo, o presidente da Câmara, Arthur Lira, já deu a entender que o impeachment parlamentar para retirá-lo do poder, para o qual existem mais de 50 pedidos, pode ser desengavetado a qualquer momento.

É um sinal claro de que líderes até agora próximos do presidente viram que seu barco começa a naufragar e já pensam em abandoná-lo com medo de morrer politicamente com ele. Tudo leva a crer que a situação de liderança do país entrou em plena crise nacional e internacional e que até quem protegia o presidente, muitas vezes por interesses pessoais, começa a se distanciar dele.

Resta agora a incógnita sobre como a ala ideologicamente mais extremista do bolsonarismo reagirá ao ver seu mito transformado em refém das outras instituições. De qualquer forma, esse setor terá de entender que seu ídolo está perdendo sua batalha e que os outros poderes perderam o medo no qual pareciam estar presos.

As próximas decisões serão cruciais para o bolsonarismo raiz e violento. Em todo caso, os membros dessa ala não poderá deixar de ver que seu mito começou a nadar em águas amargas e perigosas. E o que é mais grave para eles é que os militares não parecem dispostos a entrar em guerra para salvar o capitão, do qual talvez eles mesmos desejem se salvar antes que recaiam sobre suas costas as loucuras daquele que hoje se sente seu chefe, diante do qual todo o Exército deveria se ajoelhar.

Ou será que ainda haverá outras surpresas? O Brasil parece estar à beira de um vulcão em erupção que ameaça devorá-lo. Enquanto isso, as vítimas da pandemia crescem a cada dia e as pessoas morrem sozinhas, abandonadas e asfixiadas nos corredores dos hospitais. E isso em um país que conta com uns dos melhores sistemas de saúde pública do mundo e é especialista em campanhas de vacinação gratuitas. O que está envenenando o país é a negligência política, em relação à qual o país, até ontem, parecia anestesiado.

Talvez a luz comece a aparecer. Esse é o sonho dos 220 milhões de brasileiros que esperam ansiosamente a chegada da vacina que tinha sido paralisada pelas malditas intrigas políticas e ideológicas.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 27.03.2021

Brasil tem 3.440 mortes por covid em 24 horas

Óbitos recuam em relação à véspera, mas país já acumula mais de 310 mil vítimas, dos 12,5 milhões de infectados com o coronavírus desde o início da pandemia. Taxa de mortalidade por 100 mil habitantes se aproxima de 148.


    

Vacinação à noite e ao ar livre em Manacapuru, Amazonas

O Brasil registrou oficialmente 85.948 novos casos confirmados de covid-19 e 3.438 mortes ligadas à doença neste sábado (27/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.490.362, enquanto os óbitos chegaram a 310.550. Ao todo, 10.824.095 pacientes se recuperaram da doença, segundo o Ministério da Saúde. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 147,8 no Brasil, a 17ª mais alta do mundo, desconsiderados os Estados-nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30 milhões de casos, e seguido da Índia, com quase 12 milhões. É também o segundo em número de mortos por covid-19, depois dos 549 mil em solo americano.

Ao todo, quase 127 milhões já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,772 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença respiratória, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle / Brasil, em 27.03.2021