quarta-feira, 24 de março de 2021

Em manobra dispersiva, Bolsonaro inclui 1º escalão em reunião dos três poderes para esvaziar críticas

A mudança de última hora no formato da reunião no Palácio da Alvorada com os presidentes dos três poderes causou contrariedade entre autoridades do Legislativo e do Executivo.

O presidente Jair Bolsonaro se reúne na manhã desta quarta-feira (24) com chefes de poderes, ministros e governadores para discutir medidas de combate à pandemia. Inicialmente, só os presidentes dos três poderes, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o vice-presidente do TCU, Bruno Dantas, participariam do encontro.

A avaliação é que o presidente Jair Bolsonaro colocou na mesa todo o seu primeiro escalão para criar um ambiente de dispersão e, assim, diluir críticas e sair do foco das cobranças na reação à pandemia da Covid-19 por parte dos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Nesta terça-feira (23), o presidente aumentou a lista dos participantes da reunião e incluiu ministros, governadores e até o ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello.

“O presidente viu que seria emparedado numa reunião mais restrita e decidiu colocar uma tropa de choque para diluir a reunião”, disse ao blog uma autoridade do Legislativo que participou das tratativas do encontro.

Mudanças antes da reunião

Para esvaziar a reunião, o presidente Bolsonaro também mudou na véspera o comando do Ministério da Saúde e deu uma posse escondida para Marcelo Queiroga. Bolsonaro seria cobrado pela transição demorada na pasta no momento mais grave da pandemia.

Ao mesmo tempo, numa resposta antecipada, Bolsonaro fez na noite desta terça-feira (23) um pronunciamento para falar do cronograma de vacinação do país, com distorções e omissões, e não citou os movimentos do governo para recusar e dificultar a aquisição de vacinas em 2020.

Como revelou o blog nesta segunda-feira (22), autoridades do Legislativo e do Judiciário receberam com preocupação o gesto explícito do presidente Jair Bolsonaro de estimular aglomerações neste domingo (21).

A ação foi considerada um movimento claro do presidente para inviabilizar a articulação entre os poderes, a qual visa estabelecer uma espécie de pacto nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 no Brasil.

Por Gerson Camarotti, comentarista político da GloboNews, do Bom Dia Brasil, na TV Globo, e apresentador do GloboNews Política. É colunista do G1 desde 2012.

Bolsonaro mente em pronunciamento sobre a pandemia

Presidente tenta melhorar imagem do governo em meio ao pior momento da epidemia de covid-19 no Brasil. Sem mencionar recorde de mortes, ele distorce dados e mente que sempre defendeu qualquer vacina aprovada pela Anvisa.

Mesmo com o ritmo lento da vacinação no país, Bolsonaro prometeu imunizar toda a população até o final do ano

Em pronunciamento na noite desta terça-feira (23/03) – dia em que o Brasil registrou mais de 3 mil mortes por covid-19 em 24 horas pela primeira vez e em meio ao pior momento da epidemia e ao que foi classificado como o maior colapso sanitário e hospitalar da história do país –, o presidente Jair Bolsonaro tentou defender as ações do governo no combate à crise, mas mentiu e distorceu dados sobre a vacinação.

Na fala de pouco mais de três minutos, apesar de reconhecer que o coronavírus "infelizmente tem tirado a vida de muitos brasileiros", o presidente sequer mencionou o recorde de mortes. Ele afirmou que o governo tomou medidas para combater o coronavírus ao longo de toda a pandemia e que sempre foi a favor das vacinas.

"Em nenhum momento, o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o caos na economia", afirmou o presidente. "Sempre afirmei que adotaríamos qualquer vacina, desde que aprovada pela Anvisa. E assim foi feito."

Na realidade, ao longo de um ano de pandemia, apesar de lançar medidas econômicas, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, combateu medidas de isolamento social, promoveu curas sem eficácia, criticou a vacina e tentou sabotar iniciativas paralelas de vacinação e combate à doença lançadas por governadores e prefeitos em resposta à inércia do seu governo na área.

Em outubro, o presidente afirmou categoricamente que não compraria a vacina chinesa Coronavac – em claro embate com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que impulsionou o desenvolvimento da vacina da Sinovac, da China, em parceria com o Instituto Butantan.

Em meados de dezembro, Bolsonaro chegou a afirmar que não iria se vacinar. "Se alguém achar que minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final", disse em entrevista à TV Bandeirantes. "Esse vírus é igual a uma chuva, vai pegar em todo mundo."

Distorções

No pronunciamento desta terça, Bolsonaro enumerou ações do governo federal para aquisição de vacinas, sem mencionar que inicialmente menosprezou a Coronavac e que inicialmente rejeitou a vacina da Pfizer-Biontech. "Estamos fazendo e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros”, prometeu.

O presidente disse que intercedeu pessoalmente junto à farmacêutica Pfizer para antecipar a entrega de 100 milhões de doses. No entanto, segundou apurou o jornal Folha de S. Paulo, o governo federal rejeitou no ano passado uma proposta da farmacêutica que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano.

Em entrevista à DW, a pesquisadora Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), considerou que o Brasil errou ao não negociar vacinas para covid-19 com mais empresas farmacêuticas no "momento adequado" e que o país agora corre atrás de imunizantes.

Em sua fala desta terça, Bolsonaro afirmou também que o Brasil é o quinto país que mais vacinou no mundo. No entanto, segundo levantamento da plataforma Our World in data, ligada à Universidade de Oxford, o Brasil aparece atrás de mais de 70 países em relação a doses aplicadas a cada 100 habitantes até 22 de março. Foram aplicadas 6,64 doses para cada 100 brasileiros.

O presidente também afirmou que o Brasil tem mais de 14 milhões de vacinados. Na realidade, segundo o Ministério da Saúde, já foram aplicadas 15,2 milhões de doses no país – mas das 11,6 milhões de pessoas vacinadas, apenas 3,6 milhões já receberam duas doses.

O presidente também inflou um pouco os números de doses distribuídas para os estados. Enquanto ele disse que foram 32 milhões, o Ministério da Saúde contabiliza 29,9 milhões. 

O presidente disse ainda que estão garantidas 500 milhões de doses até o fim do ano, apesar de terem havido vários atrasos nas entregas nos últimos dias. Segundo o Ministério da Saúde, a pasta já garantiu mais de 562 milhões de doses de imunizantes até o fim de 2021, mas, como destaca a agência de checagem Lupa, o governo federal vem alterando o cronograma de entrega de imunizantes no país, o que pode alterar as estimativas.

Bolsonaro também destacou que em setembro de 2020, o Brasil assinou um acordo com o consórcio Covax Facility que prevê 42 milhões de doses para o país. No entanto, segundo a Folha, documentos mostram que cada país envolvido na iniciativa poderia optar por doses para 20% da população ou mais, mas que o Ministério da Saúde optou por acordar doses para apenas 10% dos brasileiros. O primeiro lote de imunizantes adquiridos por meio do consórcio chegou ao Brasil no último domingo.

Mesmo com o ritmo lento da vacinação no país, Bolsonaro prometeu imunizar toda a população até o final do ano. "Muito em breve, retomaremos nossa vida normal”, prometeu o presidente.

O discurso é visto como uma tentativa de melhorar a imagem do governo e mudar o tom em meio a pressões por uma coordenação nacional contra a covid-19. Durante a fala do presidente, houve protestos e panelaços em várias capitais. Na semana passada, o Datafolha apontou que a maioria dos brasileiros vê a pandemia fora de controle e que para 43% Bolsonaro é o principal culpado pela grave situação no país.

Deutsche Welle / Brasil, em 24.03.2021

Por que punições contra Moro são improváveis, segundo juristas

O ex-juiz Sergio Moro não deve sofrer punições após a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que ele atuou com parcialidade contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, avaliam juristas ouvidos pela BBC News Brasil.


Por três votos a dois, ministros do STF decidiram que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial nas investigações e processos da Operação Lava Jato relacionados a Lula (Crédito da foto: Reuters)

O julgamento contra Moro foi concluído na terça-feira (23/03). Por três votos a dois, os ministros do STF decidiram que o ex-juiz foi parcial nas investigações e processos da Operação Lava Jato relacionados ao petista.

No início de março, o ministro relator da Lava Jato, Edson Fachin já havia decidido individualmente pela anulação das condenações contra Lula na operação.

Com as duas decisões, Lula retomou seus direitos políticos e poderá disputar a eleição de outubro de 2022, a não ser que seja novamente condenado em segunda instância até o pleito do ano que vem.

Os processos agora terão que ser refeitos na Justiça Federal do Distrito Federal, conforme determinado por Fachin no começo deste mês. As provas produzidas quando Moro era juiz dos casos dificilmente poderão ser reaproveitadas, já que sua conduta foi considerada suspeita.

A decisão desta terça teve como base um recurso apresentado pela defesa de Lula contra Moro no fim de 2018.

As acusações contra o ex-magistrado ganharam peso após o portal de notícias The Intercept Brasil revelar, em julho de 2019, diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em que o juiz agia parcialmente em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF).

Moro abandonou a magistratura em novembro de 2018 para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública no início do governo Bolsonaro, onde permaneceu até abril passado.

"Se ele fosse juiz, poderia sofrer uma série de sanções, (em último caso) até mesmo perder o cargo. Mas como ele não está mais na função, é mais difícil", diz Clara Borges, professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"Ao meu ver, não haverá nenhuma (implicação a Moro). As consequências são a nulidade de todos os atos processuais conduzidos por ele em face do Lula", afirma Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Especialistas apontam que as principais consequências da decisão do STF para Moro estão relacionadas à imagem dele. O fato pode dificultar um bom desempenho dele em uma possível disputa eleitoral no ano que vem.

"Essa suspeição é mais um dado reforçando a sua inviabilidade política, especialmente olhando para um aspecto nacional. É um caminho para aumentar a rejeição a ele", declara o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria.

Medidas contra ex-juiz

Para Borges, o fato de Moro não ser mais magistrado faz com que qualquer punição contra ele seja descartada. Ela aponta que uma possibilidade seria que o ex-juiz respondesse criminalmente por prevaricação — quando um agente público deixa de praticar ou pratica, contra disposição expressa de lei, um ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

"Mas é difícil dizer que ele agiu por interesses pessoais. Precisaria haver mais provas para isso. Podemos dizer que ele abusou, agiu de forma que não condiz com o cargo, mas não podemos dizer que tudo isso foi para se beneficiar de alguma forma", afirma a jurista à BBC News Brasil.

"É preciso que tenha muita prova para acusá-lo de prevaricação (que tem pena de três meses a um ano de detenção) e não vejo que existam essas provas. Não dá pra associar, por exemplo, as ações dele (na Lava Jato) com o cargo de ministro do Bolsonaro, porque tem um tempo muito distante entre os fatos", acrescenta Borges.


Ministra Cármen Lúcia teve voto decisivo, mudando sua posição contrária ao recurso de Lula. (Crédito da foto: Adriano Machado/Reuters)

Glezer declara que as ações de Moro em relação a Lula poderiam ser enquadradas na lei de abuso de autoridade — que define e pune crimes de abuso de autoridade. Medidas como a condução coercitiva de Lula e interceptações de advogados do ex-presidente poderiam ser punidas conforme essa medida.

A lei define que esse tipo de abuso acontece quando um servidor público (policiais, delegados, procuradores e juízes, por exemplo) faz mau uso de seu poder para prejudicar ou beneficiar alguém.

Porém, a medida é recente e foi estabelecida justamente durante a gestão de Moro como ministro.

"As mudanças na lei de abuso de autoridade foram feitas muito depois desses atos (contra o Lula)", ressalta Glezer à BBC News Brasil.

"Fora isso, a suspeição de um juiz ou impedimento não é um ato criminoso em si. É um ato de vício processual. Então, no meu entendimento não tem implicação para o Moro. Não vi nenhuma tese que pudesse imputar alguma responsabilidade, ainda mais que ele está fora (da magistratura)", declara Glezer à BBC News Brasil.

O julgamento do STF nesta terça não causa nenhum impedimento para Moro exercer a advocacia.

A suspeição não impede também que ele continue atuando na consultoria de gestão de empresas internacional Alvarez & Marsal, da qual faz parte desde dezembro passado. A empresa administra o processo de recuperação judicial da Odebrecht, da qual Moro homologou acordo de delatores e condenou executivos e sócios enquanto atuava na Lava Jato — o atual vínculo do ex-magistrado com o processo da Odebrecht é alvo da Justiça.

Custas processuais e alvo de ação na Justiça
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes pediu que Sergio Moro pagasse as custas processuais das condenações anuladas. Essa medida era considerada uma das possíveis punições ao ex-magistrado. Porém, o pedido não foi acolhido pela maioria dos ministros.

Outra medida contra Moro, que foi alvo de comentário nas redes sociais, foi a possibilidade de Lula processar o ex-juiz. Porém, os especialistas afirmam que é difícil que haja algo nesse sentido diretamente ao ex-magistrado.

"A suspeição não me parece fundamento para uma ação de responsabilização pessoal do Moro. No voto da Turma do STF foi explicitado que essa decisão não implica nenhum direito de indenização. E nenhum réu entra (na Justiça) contra um juiz. Se houve alguma decisão ou condenação equivocada, ele entra sempre contra o governo, que pode ser na Justiça Federal ou Estadual. E o Estado pode, se houver um erro grosseiro, entrar com uma ação contra o juiz", detalha Glezer, da FGV.

"Por isso, é difícil ter fundamento para uma ação do Lula contra o Moro. Quando o dano é realizado por um funcionário público, não se processa o funcionário, se processa o governo que ele integra", acrescenta Glezer.

Manifestantes favoráveis ao ex-presidente Lula, incluindo o ex-ministro de governo petista Gilberto Carvalho, protestam em frente ao STF (Crédito da foto: Ueslei Marcelino/Reuters)

Impactos políticos

A principal consequência da decisão do STF nesta terça, segundo os especialistas, é em relação à opinião pública sobre Moro, que sempre se colocou como um exemplo do combate à corrupção e injustiças no país.

"Eu diria que a punição do Moro vai ser pública, a mácula à figura que ele tinha se tornado. E essas irregularidades e absurdos da Lava Jato podem servir de exemplos para as próximas operações do país, para evitar esses absurdos e abusos que ocorreram e foram provados nas mensagens (do ex-juiz com outros membros da operação)", declara Borges, da UFPR.

A imagem do ex-juiz é considerada uma preocupação para ele e seus aliados porque Moro é apontado como um dos possíveis candidatos à Presidência em 2022. Ele não comenta publicamente sobre o assunto, mas pessoas próximas confirmam a possibilidade.

O cientista político Rafael Cortez afirma que a decisão do STF nesta terça agora se junta a outros dois pontos que colaboram para a rejeição ao nome de Moro na disputa presidencial: a participação dele no governo Bolsonaro e o vazamento das mensagens de Moro a outros membros da Lava Jato durante a operação.

"As pesquisas de opinião pública atuais sinalizam uma alta rejeição ao Moro. E com a suspeição, o caminho é que essa rejeição aumente. Me parece que estão diminuindo as possibilidades de o Moro liderar um projeto político nacional", diz Cortez.

"É possível, eventualmente, que ele dispute um outro cargo eletivo, mas do ponto de vista presidencial me parece que o ex-juiz passou a ter um papel menos relevante do que se imaginava que ele poderia exercer", completa.

Vinícius Lemos, da BBC News Brasil em São Paulo, 23 março 2021

terça-feira, 23 de março de 2021

Brasil tem 3.251 mortes por covid-19, novo recorde em 24 horas

É a primeira vez que o número diário de óbitos supera 3 mil no país. Total de vítimas chega agora a 298,7 mil, enquanto soma de infectados vai a 12,1 milhões.

Profissionais de saúde empurram maca dentro de hospital de campanha na Grande São Paulo

O Brasil bateu nesta terça-feira (23/03) um novo recorde de mortes diárias por covid-19 desde o começo da epidemia. Em apenas 24 horas, foram registrados oficialmente 3.251 óbitos ligados à doença, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

É a primeira vez que a cifra diária de mortes supera 3 mil no país. O recorde anterior havia sido registrado em 16 de março, com 2.841 vidas perdidas em 24 horas.

Com o novo balanço, o total de vítimas da doença se aproxima de 300 mil no Brasil, acumulando exatos 298.676 óbitos.

O estado de São Paulo também registrou recorde de mortes nesta terça-feira. Em 24 horas, foram 1.021 óbitos notificados, o equivalente a três mortes a cada quatro minutos.

Em relação aos infectados, o país registrou 82.493 novos casos de covid-19 em 24 horas, somando agora 12.130.019 infecções desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 142,1 no Brasil, a 18ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.507.995 pacientes haviam se recuperado até a segunda-feira.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,9 milhões de casos e mais de 543 mil óbitos.

Ao todo, mais de 123,9 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,7 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 23.03.2021

Segunda Turma do STF declara Moro parcial ao condenar Lula

Ministra Carmen Lúcia altera seu voto e ex-juiz dos processos contra ex-presidente Lula é considerado parcial por 3 votos a 2 no processo envolvendo o caso do tríplex no Guarujá.

Ex-juiz Sergio Moro, à esquerda na foto, foi acusado de parcialidade ao julgar o processo do ex-presidente Lula, à direita

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou por 3 votos a 2 em favor da suspeição de parcialidade do ex-juiz Sergio Moro ao julgar os processos contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba,

O julgamento foi retomado após a análise do caso ter sido interrompida no dia 9 de março  após pedido de vista do ministro Nunes Marques, que afirmou precisar de mais tempo para decidir.

Na sessão anterior, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votaram a favor de que Moro seja declarado suspeito sob o argumento de que o ex-magistrado não tinha a imparcialidade necessária para julgar o petista. Ambos os votos atenderam à demanda do ex-presidente, que chegou a ficar preso por um ano e sete meses e tenta comprovar que seu julgamento não foi justo.

Outros dois integrantes da Segunda Turma, Edson Fachin e Cármen Lúcia, se manifestaram contra a suspeição de Moro, mas ambos ainda podiam mudar seu entendimento até o final do julgamento.

Nesta terça-feira, Nunes Marques devolveu o pedido de vista, o que abriu caminho para a retomada do julgamento. O ministro votou contra a parcialidade do ex-juiz e criticou o uso de habeas corpus para analisar a suspeição do ex-juiz.

Ele também rejeitou o uso das mensagens entre os membros da operação Lava Jato e Sergio Moro que foram hackeadas e divulgadas pelo The Intercept Brasil, em parceria com outros veículos de imprensa.

Nunes classificou que o aproveitamento desse material poderia abrir um precedente perigoso, colocando a sociedade sob um processo "semelhante às piores ditaduras”. "A forma importa nas democracias tanto quanto o conteúdo”, afirmou.

O ministro Gilmar Mendes rebateu as declarações de Marques e disse que seu voto a favor da suspeição de Moro não levou em conta o conteúdo das mensagens vazadas, mas sim, "está calcado nos elementos dos autos” Ele disse que usou as mensagens para "demonstrar o barbarismo em que incorremos”.

Ele ainda questionou a confiabilidade do ex-juiz de dos membros da força-tarefa da Lava Jato. "Algum dos senhores compraria um carro do Moro, um carro do [procurador Deltan] Dallagnol?” perguntou.

Pouco depois, as atenções se voltaram para a ministra Carmen Lúcia. Ela avaliou que novos elementos reunidos no processo comprovariam que a atuação de Moro não foi imparcial, além de ter favorecido a acusação, o que torna o julgamento irregular.

Ela disse que a análise sobre os fatos levantados pela defesa do ex-presidente apontam uma conduta irregular do magistrado, e sublinhou que ninguém deve ser perseguido por um juiz ou tribunal. 

A ministra disse haver sinais de que teria havido uma confusão entre o Moro e o órgão acusador, o Ministério Público, o que compromete a imparcialidade no processo do ex-presidente.

Dessa forma, Moro foi julgado imparcial pela Segunda Turma do STF por 3 votos a 2. 

Anulação das condenações de Lula

O habeas corpus analisado pela Segunda Turma foi impetrado pelos advogados do petista e sua análise estava suspensa desde 2018, quando Gilmar havia pedido vista.

A Segunda Turma retomou a análise do recurso de Lula que pede que o ex-magistrado seja declarado suspeito um dia após o ministro Edson Fachin ter decidido, de forma individual, que Moro não era o juiz competente para analisar as denúncias contra o petista.

Fachin anulou as condenações contra o ex-presidente, que recuperou seus direitos políticos, e determinou o encaminhamento de seus processos para a Justiça Federal do Distrito Federal.

A suspeição atesta a parcialidade do juiz para analisar um caso, enquanto a incompetência conclui que o foro para o julgamento não era o adequado.

A decisão de Fachin, defensor da Lava Jato, despertou controvérsia no meio político e jurídico porque poderia ter como consequência o não julgamento das ações que pedem a decretação da suspeição de Moro.

Se isso ocorresse, a atuação do ex-juiz e da Lava Jato seria preservada, apesar de vazamento de diálogos de Moro com os procuradores da força-tarefa terem levantado suspeitas de conluio na condução de inquéritos e ações penais contra diversos réus.

Fachin argumentou que sua decisão afastaria a necessidade de julgamento da suspeição de Moro, mas Gilmar discordou e decidiu colocar o processo em pauta na 2ª Turma. Fachin ainda tentou levar a análise do caso para o plenário do Supremo, mas foi derrotado por quatro votos a um.

Deutsche Welle / Brasil, em 23.03.2021

Freando Bolsonaro

Os que detêm algum poder devem refrear a irresponsabilidade bolsonarista

O presidente Jair Bolsonaro achou que era o caso de comemorar seu aniversário, no domingo passado, comendo bolo com uma centena de devotos na frente do Palácio da Alvorada. Dizem que com a idade vem a sabedoria, mas não há sabedoria nenhuma em promover aglomeração numa festinha quando os brasileiros precisam ficar em casa, longe de familiares e com dificuldade para estudar e trabalhar, diante da escalada mortal da pandemia de covid-19 e do colapso do sistema de saúde.

No convescote, Bolsonaro aproveitou para reiterar seus reptos à democracia. Chamou os governadores de “tiranetes” por ampliarem as medidas de isolamento social. “Estão esticando a corda”, ameaçou o presidente, para em seguida dizer que fará “qualquer coisa pelo meu povo” – e esse “qualquer coisa”, segundo Bolsonaro, “é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

Traduzindo a glossolalia bolsonarista: o presidente considera que as medidas de distanciamento servem para, em suas palavras, levar o povo à miséria e daí “para o tudo ou nada”, abrindo “o caminho para mergulhar no socialismo”. Esse é o pretexto que Bolsonaro vem invocando nos últimos dias para inventar que a Constituição lhe faculta o poder de decretar, à sua maneira, medidas de exceção, como estado de sítio.

O absurdo da ameaça de estado de sítio é tamanho que levou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, a telefonar para Bolsonaro e cobrar explicações sobre suas declarações. Consta que o presidente negou ao ministro ter cogitado decretar medidas de exceção – o que suas próprias palavras desmentem –, mas o simples fato de que o presidente do Supremo tenha pedido esclarecimentos a Bolsonaro mostra que felizmente há limites institucionais para a desfaçatez.

Há limites políticos também. Reportagem do Estado publicada no domingo mostra que lideranças do Centrão começam finalmente a repensar o apoio que dão a Bolsonaro. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por causa da pandemia”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).

As cobranças estão ficando cada vez mais explícitas. O Centrão pressionou pela troca no Ministério da Saúde para sinalizar uma mudança radical no modo como o governo administra a crise, mas Bolsonaro optou por um novo ministro que já declarou sua disposição de manter tudo como está. “A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes”, demandou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

Não deve ser nada fácil mesmo apoiar um presidente que já trocou de ministro da Saúde três vezes desde o início da pandemia, há um ano. Para piorar, a mais recente substituição, anunciada há uma semana, continua sem ser efetivada porque o novo ministro, Marcelo Queiroga, ainda não cumpre requisitos formais para ocupar o cargo, o que levou à esdrúxula situação de um Ministério da Saúde acéfalo, embora tenha dois ministros – um titular e um trainee.

Há ainda outro complicador. A conduta irresponsável de Eduardo Pazuello, o ex-ministro que ainda é ministro, à frente da Saúde durante a pandemia é objeto de inquérito no Supremo. Caso o intendente perca mesmo o status de ministro e, portanto, o direito a foro privilegiado, seu processo deve ser remetido à primeira instância. Especula-se que Bolsonaro pensa até em presentear seu fiel sabujo com um Ministério – algo que a então presidente Dilma Rousseff tentou fazer com Lula da Silva, para dar ao encalacrado chefão petista direito a foro privilegiado, o que escandalizou o País.

É disso que se ocupa diuturnamente o presidente da República: proteger a si mesmo e a seus chegados. Nada além disso – nem os mais de 2 mil mortos por dia, nem a falta de leitos nos hospitais, nem a lentidão da vacinação, nem o empobrecimento acelerado dos brasileiros – parece capaz de comover Bolsonaro.

Assim, todos os que têm algum poder devem exercê-lo para refrear a irresponsabilidade bolsonarista, seja retirando o apoio ao presidente, seja lembrando-lhe que sua vontade não é a lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021

Projeto de Orçamento dá a militares 1/5 dos investimentos e reajuste salarial

Em vez de sofrer cortes, como outros ministérios, recursos para as Forças Armadas subiram e chegaram a R$ 8,32 bi; para a área de saúde, houve um aumento de apenas R$ 1,2 bi em relação ao projeto que foi enviado no ano passado​

O Orçamento de 2021, previsto para ser votado esta semana com quatro meses de atraso, destina R$ 8,3 bilhões para investimentos do Ministério da Defesa, um quinto (22%) do total para todo o governo federal, segundo relatório do senador Márcio Bittar (MDB-AC) apresentado ontem. Os militares também são a única categoria que deve ser contemplada este ano com reajuste, o que deve consumir outros R$ 7,1 bilhões dos cofres públicos, enquanto todo o restante do funcionalismo está com o salário congelado até dezembro. 

No momento de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo agravamento da pandemia da covid-19, o parecer aumentou em apenas R$ 1,2 bilhão a destinação de recursos para a saúde em relação ao projeto que foi enviado pelo governo no ano passado.

Em vez de sofrer cortes, como outros ministérios, o orçamento de investimentos das Forças Armadas até mesmo subiu de R$ 8,17 bilhões para R$ 8,32 bilhões de um total de R$ 37,6 bilhões previstos no parecer. A lista dos projetos dos militares é extensa e inclui recursos para a construção de submarinos nucleares e convencionais, aquisição de aeronaves de caça, desenvolvimento de cargueiro tático e compra de veículos blindados. 

Além de mais investimentos, militares devem contar com reajuste de soldo no ano. Foto: Gabriela Biló/Estadão

O incremento tímido de recursos para a saúde, na maior crise sanitária da história, põe em xeque o discurso de parlamentares de reforço da área, mas antecipa um movimento de senadores e deputados aliados: a expectativa de que serão editados mais créditos extraordinários para financiar despesas extras para a saúde, que ficam fora do teto de gastos, a regra que trava o crescimento das despesas à inflação.

Mesmo com o Orçamento aprovado, o governo federal pode bloquear gastos não obrigatórios, incluindo os investimentos, como estratégia para cumprir a meta fiscal deste ano, que permite rombo de até R$ 247 bilhões.

Segundo cálculos do assessor no Senado e especialista em gastos de saúde, Bruno Moretti, o orçamento para ações e serviços públicos de saúde, o que é contabilizado para apuração do mínimo e não leva em conta os gastos com aposentadorias e pensões, ficou em R$ 125 bilhões, abaixo do valor inicial do Orçamento de 2020, que foi de R$ 125,2 bilhões, sem os recursos extraordinários da pandemia. “Em meio à pandemia, há queda nominal e real de recursos para o SUS. Se observarmos o Orçamento aplicado em 2020. Incluindo os créditos extraordinários, a queda em 2021, considerando a Lei Orçamentária, é de R$ 36 bilhões”, calcula Moretti. Nesse contexto, afirma ele, serão reduzidas as transferências aos Estados e municípios e as compras centralizadas para aquisição de medicamentos de UTI, manutenção e expansão de leitos, entre outras despesas. 

A presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO), Flavia Arruda, criou uma ação especial do Orçamento para reforçar as emendas e conseguiu cerca de R$ 900 milhões a mais para a área. O problema é que o governo enviou o projeto de Orçamento com a previsão de gastos com o valor do piso constitucional de R$ 123,8 bilhões e colocando na conta as emendas dos parlamentares, o que dificulta o espaço para aumento dos recursos para a saúde.

Ano eleitoral

O Congresso decidiu turbinar as áreas de interesse eleitoral. O volume de recursos com a digital dos parlamentares neste ano vai chegar a R$ 22,2 bilhões. O valor das emendas representa um aumento de quase R$ 6 bilhões em relação ao proposto inicialmente pelo Executivo. Só de emendas indicadas diretamente pelo relator-geral do Orçamento, o valor é de R$ 3 bilhões. 

A maior parte das indicações nas mãos do relator (R$ 1,129 bilhão) ficou vinculada a projetos do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apontados como estratégicos para Bolsonaro recuperar índices de popularidade, além da área social. Na prática, a destinação desse dinheiro poderá ser negociada com parlamentares em troca de apoio ao Executivo. A pasta saiu de um orçamento de R$ 6,5 bilhões para R$ 10,7 bilhões em 2021.

Além de obras, o Senado quer mais recursos para o Pronampe, que financiou micro e pequenas empresas no ano passado em função do novo coronavírus. Recentemente, os senadores aprovaram um projeto para tornar a nova linha de financiamento do programa permanente. Dos R$ 4,8 bilhões solicitados no Orçamento para irrigar o Pronampe, porém, o relator aprovou apenas R$ 1 bilhão. 

Para o consultor da Câmara, Ricardo Volpe, o relator Bittar foi “comedido” no parecer diante da pressão política, mas houve uma revisão de estimativas de receitas para cima, em R$ 14 bilhões, não acompanhada pela revisão nas projeções de gastos. “Diante dessa pressão gerada pelas reestimativas e pela falta de espaço no teto, ele cortou R$ 1,75 bilhão do Censo, que nesse momento de pandemia provavelmente não deve sair de novo”, disse. 

Volpe chama a atenção para o fato de o relatório não ter reestimado o gasto da Previdência. Pelos cálculos, só na Previdência a estimativa de pagamento deveria ser elevada em R$ 8,3 bilhões por causa do impacto do aumento do salário mínimo. Esse quadro já antecipa um bloqueio à vista do Orçamento, que deverá ocorrer em abril.

Adriana Fernandes e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021 


Eliane Cantanhêde: Quanto mais mortes, mais a Nação se une e o bolsonarismo se isola, tosco e incendiário

Ao falar em ‘caos’, ‘ação dura’, ‘esticar a corda’, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais

Montanhas de fake news desvirtuam a internet, vídeos de sujeitos com boinas militares e caras de milicianos ameaçam guerra à bala, o ministro da Justiça usa a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente Jair Bolsonaro... Essas investidas, que não são inocentes nem isoladas, fazem parte da alma autoritária do bolsonarismo e enfrentam crescente resistência de todos os lados.

Centenas de banqueiros, empresários e economistas criticam o governo e rechaçam o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pediu aos EUA para negociarem vacinas excedentes com o Brasil. E 62 dos 81 senadores assinaram uma moção liderada por Kátia Abreu (TO) implorando ajuda à comunidade internacional.

Todos se mexem para cobrir o vácuo do presidente e não dá para acusar de “comunistas”, “esquerdistas” e “petistas” gente como Pacheco e Kátia, Roberto Setúbal, Pedro Moreira Salles, Pedro Malan... Será que são esses os alvos do bolsonarista ignorante, valentão, com pose de militar, mas linguajar de miliciano? Que provoca “esse pessoal da canhota, que quer derrubar o nosso presidente”: “Deixa eu dizer um negocinho pra vocês. Ele não tá sozinho, não, tá? Junta o que vocês tiver de melhor e tenta” (sic sic sic). 

Ao falar em “caos”, “ação dura”, “esticar a corda”, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais. Isso, porém, equivale a demonstrar fragilidade e a afastar a direita consciente, cada vez mais indignada com ele e seu governo na pandemia. Se o desespero de Bolsonaro é porque a realidade ameaça seu pescoço e sua reeleição, o do Brasil é por um motivo nada personalista: o pânico por leitos faltando, oxigênio e remédios escasseando, vacinas devagar, quase parando.

O negacionismo de Bolsonaro e da sua turma não resiste às cenas tétricas de famílias destroçadas pela dor e pelo luto, aos doentes sem leitos e assistência, ao número cada vez maior de jovens mortos, aos cadáveres no chão de hospitais, seja no Piauí, seja no DF, a poucos quilômetros dos palácios de Bolsonaro.

A estratégia dele, porém, continua sendo a de falar absurdos e empurrar a culpa para os outros, insistindo em mentiras: não fez nada (e não fez mesmo...) porque Supremo impediu; só atrapalhou tudo (e atrapalhou muitíssimo...) para tentar salvar a economia; gastou dinheiro público com cloroquina (e gastou bastante, sim...) porque só o “tratamento precoce” salva. O céu está cheio de “salvos” pela cloroquina...

A essa estratégia Bolsonaro adicionou uma aposta: fingir que apoia as vacinas desde criancinha e atrair os louros pelas doses que estão vindo. Como se fosse possível esconder que o Brasil só está realmente vacinando por causa da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”) e que seu governo se pendurou num único imunizante – a Oxford-AstraZeneca, que tem atrasado – e desdenhou de Pfizer, Moderna, Janssen, Sputnik V... 

Assim como o governo fez comemoração patética para receber 2 milhões de doses da Oxford, quer fazer oba-oba político por acertar com a Pfizer nove meses depois – e passando ridículo no mundo: não bastasse ter o quarto ministro na pandemia, Bolsonaro agora tem dois ao mesmo tempo. Quem tem dois não tem nenhum. E o que dizer do capitão criando um ministério para premiar o general pelos péssimos serviços prestados?

A divisão do País não é entre Bolsonaro e Lula, direita e esquerda, mas sim entre um bolsonarismo tosco e incendiário e todo o resto que, independentemente de ideologia, usa outro tipo de armas: inteligência, competência, defesa da economia e da vida. Cada um escolhe o seu lado. E que depois preste satisfações à história e ao Brasil.

Eliane Cantanhêde é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Telejornal GloboNews "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Pauo, em 23 de março de 2021.

'Ele disse que queria o remédio do Bolsonaro', diz filha de paciente que recebeu kit covid

Paciente teve indicação para tomar cloroquina e outros remédios antes mesmo de ter diagnóstico confirmado; medicamento não tem eficácia contra o vírus

Ao longo da pandemia no Brasil, parte dos médicos e de autoridades - incluindo o presidente Jair Bolsonaro - defendeu o uso de remédios sem eficácia contra o novo coronavírus, como a ivermectina e a hidroxicloroquina. Filha de um paciente que morreu de covid mesmo após a opção pelo kit de remédios, C. relata que o pai não ouviu seus apelos para evitar esses medicamentos. "Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro", conta ela. 

"Fui diagnosticada com covid no início de dezembro e meu pai, como morava comigo, decidiu fazer o teste. Ele fez o PCR no dia 5 em uma unidade da Prevent Senior e foi orientado a esperar o resultado em casa. Mesmo sem sintomas nem teste positivo, ele já saiu de lá com o kit covid. Tinha azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide.

Eu e minha mãe também recebemos o kit. Eu cheguei a tomar um comprimido de cloroquina no primeiro dia, mas passei muito mal e decidi parar. Minha mãe também não tomou.

Cloroquina não tem eficácia comprovada contra a covid-19. Foto: LQFEx/Ministério da Defesa

Mas meu pai tomou durante os cinco dias. Eu sabia que esses remédios não têm eficácia comprovada, mas como ele era muito teimoso por questões políticas, nem adiantou eu falar. Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro.

O corticoide eu sabia que, se dado na fase inicial, pode até piorar a resposta imune, mas não adiantava falar. Ele ficava o dia inteiro vendo esses vídeos do Bolsonaro no YouTube, não queria nem ouvir a gente criticando ele.

No dia 13 de janeiro, depois que ele já tinha tomado cinco dias de remédios, ele começou a ter sintomas e fez um novo teste. Esse deu positivo. Deram mais um kit para ele, mas, três dias depois, ele piorou e foi internado.

Ele nem queria ir ao hospital, achava que estava bem. Esse kit dá uma falsa sensação de segurança. A pessoa vê os outros falando que deu certo e acha que vai funcionar para ela também. Mas não tem nada provado que esses medicamentos funcionam. Tanto é que eu e minha mãe não tomamos e evoluímos melhor que ele.

No dia 19 de dezembro, um dia depois da internação, ele teve duas paradas cardíacas e foi intubado. Três dias depois, ele morreu. A causa foi covid, mas a gente sempre fica pensando se esse monte de remédio pode ter diminuído as chances dele." 

Adoção de qualquer terapia é responsabilidade dos médicos, diz Prevent Senior

Questionada sobre o caso do paciente, a Prevent Senior afirmou que ele "lamentavelmente faleceu em decorrência da covid-19 depois de chegar ao atendimento médico com mais de 50% do pulmão comprometido". 

Sobre os remédios prescritos, a operadora disse que "a adoção de qualquer linha terapêutica é de responsabilidade dos médicos" e destacou que, tanto na primeira quanto na segunda consulta e posterior acompanhamento do paciente, "não houve queixa de qualquer alteração ou eventos adversos dos remédios".

A empresa disse ainda que tem monitorado, por meio do seu instituto de ensino e pesquisa, "os resultados e evidências clínicas de mais de 130 mil beneficiários testados para covid-19 nos últimos 12 meses".

A Prevent defende que "os dados trazem evidências robustas que o conjunto de tratamentos com diversas medicações evita o agravamento da covid-19 por reduzir a inflamação provocada pelo vírus". As informações não foram publicadas em formato de artigo científico, mas a empresa afirma que estão disponíveis para "qualquer instituição de pesquisa que queira examiná-los".

Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021 

Após uso de kit covid, pacientes vão para fila de transplante de fígado; pelo menos 3 morrem

Medicamentos sem eficácia contra o vírus, como ivermectina e hidroxicloroquina, trazem riscos de efeitos colaterais; médicos relatam hepatite causada por remédios. Venda dessas drogas subiu até 557%

O uso do chamado kit covid, que reúne medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios, segundo médicos ouvidos pelo Estadão.

Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia.

Medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina não têm eficácia comprovada contra a covid-19 Foto: Gerard Julien/ AFP

Números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. O remédio, indicado para tratar sarna e piolho, não teve sua eficácia contra a covid comprovada. Seu uso contra o coronavírus foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo próprio fabricante do produto, a Merck.

O produto, porém, é um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagnóstico de covid e receberam a prescrição do chamado “tratamento precoce”.

Quatro deles foram atendidos no Hospital das Clínicas da USP e o outro no HC da Unicamp. Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos. 

"Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino”, diz Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade. Sem esses dutos, explica ele, substâncias que podem ser tóxicas ficam na circulação sanguínea, favorecendo quadros infecciosos graves. “O nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes está com mais de 40”, conta ele.

D’Albuquerque conta que, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante no HC, dois tiveram doença aguda e morreram antes da operação.

“É uma combinação de altas dosagens com a interação de vários medicamentos. A substância desencadeia um processo em que a célula ataca outros células, levando a fibroses, que causam a destruição dos dutos biliares”, diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.

Vítima da febre hemorrágica, homem foi atendido em três hospitais, o último deles o Hospital das Clínicas (HC-USP) Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Os dois especialistas explicam que as biópsias do fígado desses pacientes evidenciam que os casos são de origem medicamentosa e não complicações do próprio coronavírus. “A covid pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos”, diz Ilka.

Agora à espera de operação, paciente tinha saúde perfeita antes da covid

H., de 57 anos, é um dos pacientes na fila. Ele conta que tinha a saúde perfeita antes da covid e que nunca tomava remédios. “Nem aspirina.” Ele conta que decidiu tomar os remédios do kit covid por causa de estudos preliminares que mostravam algum benefício da droga. 

“Fiz com acompanhamento médico, mas acho que não imaginavam que isso poderia ocorrer comigo, alguém que não tinha nenhuma doença crônica.”

Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. “Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado remédios do kit.”

O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. “É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia”, diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo.” 

Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. “Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado remédios do kit.”

O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. “É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia”, diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo.”

Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021 

segunda-feira, 22 de março de 2021

Brasil supera 295 mil mortes por covid-19

País registra 1.383 óbitos e 49.293 novos casos da doença em 24 horas e ultrapassa marca de 12 milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus desde o início da epidemia.

Médicos atendem pacientes de covid-19 em hospital em Santo André, São Paulo. Brasil registrou 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo Conass

Brasil registrou 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo Conass

O Brasil registrou nesta segunda-feira (22/03) 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram identificados 49.293 novos casos da doença, de acordo com o Conass. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.047.526, enquanto os óbitos chegaram a 295.425 desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

"Brasil errou ao não negociar vacinas no momento adequado"

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.449.933 pacientes se recuperaram da doença até este domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 140,6 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,8 milhões de casos. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 542 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 123 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,71 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 22.03.2021

Datafolha: 57% consideram justa condenação de Lula, e 51% acham que Fachin agiu mal ao anular decisões da Lava Jato

Pesquisa foi feita entre os dias 15 e 16 março de 2021, com 2.023 brasileiros. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos. Levantamento também apontou que 51% acham que ex-presidente não deve concorrer em 2022; 47%, sim.

Pesquisa Datafolha divulgada pelo jornal "Folha de S.Paulo" nesta segunda-feira (22) mostra que 57% dos brasileiros consideram justa a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá. E 51% acham que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), agiu mal ao anular essa e outras decisões envolvendo o petista em da Operação Lava Jato.

O levantamento foi realizado com 2.023 brasileiros adultos, que possuem telefone celular, em todas as regiões e estados do país, entre os dias 15 e 16 de março. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.

Datafolha: aprovação do trabalho de Moro na Lava Jato cai de 65% para 45% em 5 anos

Datafolha: fatia dos que acham que corrupção vai aumentar sobe de 55% para 67% em 3 meses

Em 2017, o então juiz Sergio Moro condenou Lula a 9 anos e 6 meses de prisão no caso do triplex. A pena foi revista em 2018 para 12 anos e 1 mês na segunda instância. E, em 2019, reduzida para 8 anos e 10 meses no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Depois, em 2019, o ex-presidente foi condenado no caso do sítio de Atibaia. Ele nega ter cometido crimes.

Veja os números da pesquisa sobre a condenação:

57% consideram justa a condenação de Lula no caso do triplex (era 54% em abril de 2018)

38% consideram injusta a condenação de Lula no caso do triplex (era 40% em abril de 2018)

5% não sabem responder (era 6% em abril de 2018)

Anulação de condenações

Em 8 de março, Fachin considerou que a Justiça Federal do Paraná não tinha competência para analisar as investigações contra Lula e anulou as condenações do ex-presidente nos casos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. A decisão atinge ainda dois processos que apuram doações ao Instituto Lula e que ainda não foram.

Entenda a decisão de Fachin que anulou as condenações de Lula e o que acontece agora

Veja os números da pesquisa sobre a decisão de Fachin de anular as condenações:

42% acham que Fachin agiu bem ao anular as condenações de Lula

51% acham que Fachin agiu mal ao anular as condenações de Lula

6% não sabem responder

O levantamento mostra que a maioria da população tem conhecimento sobre a anulação das condenações. Os percentuais são:

37% tem conhecimento e está bem informado

44% tem conhecimento e está mais ou menos informado

7% tem conhecimento e está mal informado

13% não tomou conhecimento

51% são contra Lula concorrer em 2022; 47% são a favor

Com a anulação das condenações, Lula está apto a participar da eleição presidencial de 2022. A pesquisa mostra que os brasileiros se dividem sobre uma eventual candidatura do petista, no limite da margem de erro. Os percentuais são:

51% acham que Lula não deveria concorrer em 2022

47% acham que Lula deveria concorrer em 2022

2% não sabem

Publicado originalmente por G1, em 22 de março de 2021

O dever da CPI se impõe

Omissão na abertura da CPI da pandemia indicaria alheamento da realidade

Frente a tantas e tão frequentes confusões, omissões e escárnios por parte do presidente da República na pandemia de covid-19, há quem se questione até quando o País terá de suportar tal descalabro moral, cívico e administrativo. Em geral, essa pergunta traz implícita a expectativa de que, em algum momento, a população vai reagir de forma explícita e contundente contra a atuação caótica de Jair Bolsonaro. 

Em relação a esses questionamentos, é preciso lembrar que a população não precisa sair às ruas para se manifestar contra o presidente da República, seja porque o País vive um momento dramático em relação à pandemia – a recomendar um cuidadoso isolamento social –, seja porque – eis a principal razão – já existe um caminho para que a população faça valer a sua vontade: o Congresso.

É equivocada a ideia de que o País não dispõe dos meios para enfrentar o descalabro que é o comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia. A Constituição de 1988 proporcionou os instrumentos necessários, que não se restringem, como às vezes equivocadamente se pensa, aos relacionados com o Poder Judiciário ou o Ministério Público. O legislador constituinte atribuiu ao Poder Legislativo, expressão máxima da representação popular no regime democrático, o dever de fiscalizar o Poder Executivo.

Para cumprir a contento essa incumbência, a Constituição previu, entre outros instrumentos, a possibilidade de o Legislativo criar as comissões parlamentares de inquérito, as CPIs. “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”, diz o art. 58, § 3.º da Constituição.

A CPI faz parte do aparato de defesa próprio de um regime democrático, com a instauração de um processo investigativo levado a cabo pelos próprios representantes da população. Tais comissões não são um teatro. Basta ver que a Constituição lhes assegura “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.

Trata-se, portanto, de um instrumento para investigar e, assim, atribuir responsabilidades políticas e jurídicas a quem deu causa aos fatos apurados. Depois de mais de um ano de pandemia de covid-19, não faltam motivos para apurar a atuação do Palácio do Planalto. Basta pensar que, nesse período, o País teve nada mais nada menos que quatro ministros da Saúde.

Num Estado Democrático de Direito, há situações nas quais não basta a atuação do Judiciário ou do Ministério Público, que não são representantes da vontade popular e, em razão de suas competências específicas, devem se pautar por um estrito rigor legal. É preciso que o próprio Legislativo volte sua atenção para tais situações, de forma a dar uma resposta satisfatória à população.

Atualmente, há na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um pedido de abertura de CPI relativo à condução da pandemia pelo governo federal que cumpre todos os requisitos constitucionais, assinado por 31 senadores de 11 partidos políticos. Deixá-lo na gaveta, como se fosse algo politicamente turbulento demais para o momento atual, não é apenas ignorar a Constituição ou ser cúmplice com o descaso do presidente Jair Bolsonaro com a saúde e a vida da população.

Eventual omissão na abertura da CPI da pandemia manifestaria alheamento da realidade humana, sanitária, social, econômica e política do País. Seria uma trapaça com a população, vinda justamente do Legislativo, a quem compete representar de forma plural e efetiva os anseios da população.

Na atual situação do País, não é preciso coragem para abrir a CPI, tampouco é necessária uma sofisticada compreensão dos deveres constitucionais do Legislativo. Basta olhar para o povo brasileiro.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021

Só antibolsonarismo não basta

É preciso aproveitar a convergência na oposição para articular projeto que vá além da interrupção da esbórnia bolsonarista

 A inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia de covid-19 no Brasil, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o governo de Jair Bolsonaro a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.

É prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e têm demonstrado genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia – e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo no País.

“É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos. Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais.

O governador Dias falava como emissário do ex-presidente Lula da Silva, que pretende se incluir no esforço de governadores para obter vacinas – com seu alegado prestígio internacional, o ex-presidente acha que pode ser útil. É claro que, em se tratando de Lula da Silva, não há ponto sem nó, mas, nas atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o chefão petista pelo menos não atrapalhar.

Noves fora as eventuais artimanhas de Lula, o fato é que é raríssimo ouvir da boca de um petista graduado como o governador Dias um chamamento tão claro à superação de divergências com vista ao enfrentamento de uma crise que será sentida por gerações. E o gesto encontrou um lado tucano aparentemente inclinado a colaborar, não apenas contra a pandemia, mas contra a insanidade bolsonarista.

Assim, é parte desse balé político a ordem do governador Doria para investigar ameaças feitas a Lula por um bolsonarista na internet – o tucano, feroz adversário do PT, chegou a ligar para a presidente petista, Gleisi Hoffmann, para comunicar as medidas que tomou. Ele mesmo vítima de delinquentes bolsonaristas nas redes, o governador paulista parece disposto a deixar de lado momentaneamente suas profundas diferenças com o PT em nome do combate ao extremismo liderado pelo presidente.

Nada disso é por acaso. Ocorre em meio à reorganização das peças no xadrez da eleição de 2022, em razão da ressurreição de Lula da Silva como candidato. Tudo, portanto, passa por cálculo político, mas parece haver algo mais do que isso: trata-se de uma tomada de consciência de que não pode haver divergência política insuperável ante o imperativo de impedir a reeleição de Bolsonaro.

Assim, o antibolsonarismo – sentimento crescente no País, conforme atestam as mais recentes pesquisas – tende a ser o pilar da campanha dos candidatos de oposição. É tentador, portanto, oferecer aos eleitores um nome que se apresente como o oposto absoluto do presidente e de tudo o que ele representa.

Pode até servir para ganhar a eleição, mas tal projeto nada diz sobre o futuro do País. Corre-se o risco de repetir o que fez o próprio Bolsonaro, que nos palanques se apresentou como a encarnação do antipetismo e, uma vez no poder, pelo menos até este momento, limitou-se a destruir o que havia, sem erguer quase nada que prestasse no lugar.

É preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que Bolsonaro chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir o País.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021 

Hospitais do DF têm corpos armazenados no chão e fila de 400 pessoas esperando leitos de UTI

Sistema de saúde no Distrito Federal está em situação de calamidade pública

Com o sistema de saúde em situação de calamidade pública no Distrito Federal, corpos de vítimas de covid-19 tem ficado à espera de deslocamento em corredores de hospitais e até dispostos no chão. Imagens gravadas por servidores de unidades localizadas no Guará e em Ceilândia, regiões do entorno de Brasília, mostram um corpo ensacado no piso. Em outra situação, há uma vítima da doença já sem vida enrolada em panos, sobre uma maca.

A rede de atendimento está esgotada. Números atualizados pelo governo do Distrito Federal mostram que, na tarde de segunda-feira, 22, há 411 pacientes que aguardam uma vaga de UTI para tratamento contra o coronavírus. A rede de 432 leitos de atendimento intensivo de hospitais privados está quase toda tomada, com apenas cinco vagas disponíveis. A pressão recai sobre os 409 leitos de covid-19 da rede pública.

Imagem de corpo em corredor no Hospital de Ceilândia Foto: Reprodução

A reportagem do Estadão questionou a Secretaria de Saúde do DF a respeito dos corpos dispostos no corredor e no chão nos hospitais públicos. Sobre o caso ocorrido em Ceilândia, a secretaria de Saúde afirmou que o corpo ficou no corredor porque “houve, sim, um atraso no procedimento em função do volume corporal e a indisponibilidade, naquele momento, de invólucro compatível com as dimensões do corpo”.

Segundo a Secretaria de Saúde, o corpo foi transferido para a área de anatomia, “até a remoção pela funerária em uma urna compatível com o volume corporal”.

A respeito do corpo colocado no chão no Hospital Regional do Guará, a direção do hospital informou que os corpos que aparecem na imagem não estariam no chão, mas sim “sobre um tablado de madeira enquanto aguardavam transição para o serviço funerário”.

“São casos isolados e precisam ser vistos dessa forma para que não sejam divulgadas informações equivocadas para a população do DF”, declarou a Secretaria de Saúde.

Imagem de corpo no chão do Hospital Regional do Guará Foto: Reprodução

Na sexta-feira, 19, o governador do DF, Ibaneis Rocha, prorrogou por mais uma semana as medidas de restrição de funcionamento de atividades não essenciais na capital federal. As medidas que tiveram início no dia 28 de fevereiro tinham validade até esta segunda-feira, 22. Agora, segundo o governador, serão estendidas até o dia 29 de março.

O governo do DF, ao lado do Rio Grande do Sul e Bahia, teve a sua decisão questionada diretamente pelo presidente Jair Bolsonaro, que recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra aquilo que ele definiu como “estado de sítio” determinado pelas unidades da federação.

André Borges, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021

Coronavírus: 'Brasil é exemplo de tudo que podia dar errado', diz infectologista brasileira que trabalhou no CDC dos EUA

"Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar".

"O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão".

Denise Garrett trabalhou mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA (Crédito da foto: Cristy Parry / Arquivo Pessoal)

"O Brasil é o exemplo de tudo que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas. Viramos uma ameaça global."

Essa é a opinião de Denise Garrett, infectologista, ex-integrante do Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA e atual vice-presidente do Sabin Vaccine Institute (Washington).

Com a experiência de quem trabalhou no CDC por mais de 20 anos, Garrett não poupa críticas ao governo federal em relação ao combate à pandemia de covid-19.

No órgão, ligado ao Departamento de Saúde dos EUA (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil), ela atuou como conselheira-residente do Programa de Treinamento em Epidemiologia de Campo (FETP) no Brasil, como líder da equipe no Consórcio de Estudos Epidemiológicos da Tuberculose (TBESC) e como conselheira-residente da Iniciativa Presidencial contra a Malária em Angola.

Especialistas consideram que o Brasil vive o pior momento da pandemia - o país vem registrando nos últimos dias seguidos recordes de mortes diárias.

O Brasil é o segundo país do mundo em número de óbitos (294 mil), atrás apenas dos EUA (542 mil), de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins (EUA).

Garrett falou por telefone à BBC News Brasil. Confira os principais trechos.

BBC News Brasil - Faz um ano que a OMS decretou a pandemia de covid-19 no mundo. Qual é a sua análise a respeito da situação do Brasil?

Denise Garrett - O Brasil é o exemplo de tudo o que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas.

A situação hoje é extremamente preocupante. Temos uma população que está exausta. E fizemos um lockdown 'meia boca'.

Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar.

O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão.

Um fator decisivo para isso, além daqueles sobre os que eu já falei, foi o incentivo do uso de medicações sem nenhuma comprovação cientifica com a população acreditando nelas como uma medida de proteção.

Ou seja, em vez de praticar o distanciamento social e usar máscara, muita gente acreditou no presidente da República e achou que se protegeria com ivermectina e hidroxicloroquina. Não vi nenhum outro país do mundo fazendo isso.

De fato, aqui nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump também chegou, em determinado momento, a recomendar esse medicamento. Mas, no Brasil, houve um protocolo recomendado pelo Ministério da Saúde.

O impacto dessa fake news é imenso - e faz com que até colegas médicos sofram pressão do próprio paciente.

Além de tudo isso, não temos vacina. O governo não fez acordos quando deveria fazer. O presidente disse que não se vacinaria. O estoque que o Brasil tem agora não é proveniente do governo federal.

BBC News Brasil - Muitos especialistas, tanto do Brasil quanto de fora, vêm dizendo que o país se tornou uma ameaça global. A sra. concorda?

Garrett - Claro. O Brasil virou uma grande ameaça global. O país se tornou um caldeirão para novas variantes.

Vírus estão sempre mutando. As mutações que forem favoráveis a ele, quando não há restrição à transmissão, serão selecionadas e vão predominar.

Eventualmente, e isso ainda não aconteceu, uma vez que as novas cepas estão respondendo às vacinas, que protegem contra a forma mais grave da doença, podemos ter variantes que comprometam a eficácia das vacinas.

Claro que num ambiente onde a taxa de vacinação é baixa e a taxa de transmissão alta, como no Brasil, esse risco é muito mais elevado.

Ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Nenhum país vai se sentir seguro enquanto houver um país como o Brasil, onde não há nenhum tipo de controle.

Todos os esforços louváveis de outros países que estão funcionando podem simplesmente ser perdidos por causa de um país que não se importa com a pandemia. E onde não existe uma sensibilização pela vida por parte da liderança do país.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil  (Crédito da foto: Reuters).

Garrett diz que falta liderança ao Brasil em combate à pandemia de covid-19

BBC News Brasil - Neste sentido, a sra. acredita que os brasileiros possam ser mal vistos e até mesmo impedidos de entrar em outros países?

Garrett - Isso é algo que já ocorrendo. E eu vejo isso se intensificando ainda mais. Há restrições contra a entrada de cidadãos brasileiros pelo mundo. Qualquer país de bom senso faria isso. Qualquer país que se preocupa com a saúde de sua população.

É óbvio que os países vão se proteger. As medidas que o Brasil não tomou o restante do mundo tomou. Quando se fala que vai ao Brasil agora é um risco. Antes era o risco de violência, demoramos para mudar essa imagem, agora é a covid-19.

BBC News Brasil - O que a sra. acha que o Brasil deveria fazer neste momento?

Garret - Duas coisas. O Brasil precisa de um lockdown estrito a nível nacional. Passou da hora de um lockdown a nível municipal ou estadual. E quando eu falo em lockdown, eu me refiro a não sair de casa, só em caso de urgência. De esvaziar as ruas, mesmo. Só funcionar serviços essenciais.

Existiu uma época em que poderíamos até fazer confinamentos a nível municipal ou estadual, quando a pandemia no Brasil ainda era "muitas pandemias".

Explico: somos um país enorme e houve um momento em que tínhamos diferentes estágios da pandemia em diferentes localidades. Ou seja, medidas localizadas poderiam ser tomadas.

No estágio atual, essa possibilidade não existe mais. O país inteiro está à beira do colapso. Não adianta fechar um Estado e os outros continuarem abertos. E as pessoas transitando de um para outro.

O Brasil precisa retomar o controle sobre o vírus. O vírus está solto - e isso é urgente. Só assim vamos reduzir os casos e, por consequência, as mortes.

Outra coisa é vacinar a população.

Precisamos de planejamento e estratégia. Mas, infelizmente, não tenho esperança quanto ao governo federal sobre isso.

Luis Barrucho - @luisbarrucho, da BBC News Brasil em Londres.

"Teremos o março mais triste de nossas vidas, e abril será muito grave"

Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz, diz que Brasil errou ao não negociar vacinas para covid-19 com mais empresas farmacêuticas e que atuais números indicam que situação vai piorar nas próximas semanas.

Margareth Dalcolmo: "Não tivemos nenhum episódio de trombose ou embolia pulmonar com a vacina da AstraZeneca"

A pesquisadora Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz, afirmou em entrevista à DW que o Brasil passa pelo pior momento da epidemia de covid-19, com uma taxa de transmissão muito alta e curvas de mortalidade em ascensão.

"Eu temo verdadeiramente, eu declarei isso há algumas semanas, que teríamos o mês de março mais triste de nossas vidas, o que é verdade. Estamos tendo. Eu acho que o mês de abril será, igualmente, muito grave", afirmou na entrevista à DW Latinoamerica.

Ela fez um apelo aos brasileiros. "É necessário não só que as medidas sanitárias necessárias sejam tomadas pelas autoridades, mas que a sociedade civil se conscientize de que o que estamos dizendo e recomendando é o mais adequado e correto para o controle epidêmico", disse.

Ela avalia que o Brasil tomou uma decisão acertada com a vacina da AstraZeneca, mas errou ao não ter negociado, "no momento adequado", com as outras produtoras de vacinas.

Dalcolmo também expressou total confiança na vacina de Oxford. "Nós estamos muito tranquilos e satisfeitos com relação à vacina", declarou.

DW: Quase 12 milhões de casos no Brasil e um número de mortos acima de 2.600 por dia. Hospitais e UTIs lotadas. Ainda assim, não há um lockdown. Como médica, como a senhora avalia a situação atual?

Margareth Dalcolmo: Estamos vivendo o pior momento da pandemia no Brasil, com o aumento dos casos e a segunda onda totalmente estabelecida. Sabemos, através de um levantamento que fazemos na Fiocruz, que em oito estados – incluindo o Amazonas – a cepa P1, de Manaus, é que a produz mais infecções. A chamada cepa P1 é originária do Brasil, do Amazonas, e é responsável por mais de 90% dos casos atuais no estado. Nas grandes capitais, há um colapso do sistema de saúde, sobretudo de hospitais e unidades de terapia intensiva. Algo que nos preocupa é que com a vacinação dos mais velhos, em que já alcançamos uma proporção razoável, temos uma proporção de leitos ocupados por gente muito mais jovem. Estamos observando uma mortalidade que se aproxima cada vez mais da juventude, de pessoas com menos de 50 anos.

O Brasil tem duas vacinas aprovadas: Coronavac e AstraZeneca. Esta última é produzida pela Fiocruz, mas há algumas preocupações. A Agência Europeia de Medicamentos defende que a vacina é segura e eficaz. Mas não foi possível descartar a associação dela com alguns casos graves de coágulos sanguíneos associados à trombose. Você sabe mais sobre esses riscos?

Sim. Nós estamos muito tranquilos e satisfeitos com relação à vacina. Graças a Deus, a agência europeia, de uma maneira segura e muito bem fundamentada, também demonstrou confiança. Nós fazemos o processo de transferência de tecnologia e estamos fazendo também a vigilância sanitária dos vacinados. Não tivemos nenhum episódio de trombose ou embolia pulmonar com a vacina. O que sabemos, e o que eu posso afirmar, é que isso claramente não tem relação com a vacina. Isso será demonstrado em breve, eu espero. A incidência de casos de trombose, em termos epidemiológicos, por exemplo, entre a população de mulheres jovens que toma anticoncepcional oral é muito mais alta do que a que foi registrada com a vacina da AstraZeneca. Então nós não temos nenhum temor, nenhum medo de que a vacina possa ter esses efeitos. Eu acredito que isso será demonstrado muito em breve pelos jornais e publicações científicas de qualidade. 

O Chile vem sendo um exemplo de vacinação na América Latina e no mundo. Desde o início, o país firmou contratos com muitas empresas farmacêuticas. O Brasil também deveria ter optado por outras vacinas?

Sim. Eu acho que o Brasil cometeu um erro, no sentido de sermos um país que desenvolveu estudos clínicos de grande qualidade, por exemplo, com a vacina da Johnson & Johnson, com a vacina da Pfizer, mas não conseguimos fazer boas negociações. De uma maneira ou de outra, o Brasil fez a sua aposta, o seu contrato com a vacina da AstraZeneca. Foi uma decisão muito acertada, sem dúvidas, porque foi um processo muito bem elaborado de transferência de tecnologia completa, incluindo a matéria prima da vacina – os chamados IFAs –, que vêm da China, mas que nós vamos começar a produzir. Até o final deste semestre, a vacina AstraZeneca-Oxford se chamará AstraZeneca-Fiocruz: completamente nacionalizada para a produção no Brasil. Mas isso não é suficiente nesse momento, porque não há vacinas suficientes.

Como muitos de nós, cientistas, advertimos, o cenário atual de novas variantes e uma segunda onda era perfeitamente previsível. Segunda onda que começou no estado do Amazonas, que teve o seu pico epidêmico mais cedo. No fim de abril do ano passado, o Amazonas já tinha tido o seu primeiro pico epidêmico, com uma mortalidade enorme. Ou seja, a imunidade produzida pela doença terminou. Ela não é duradoura, como nós sabemos. Então, a "intervenção" necessária é que se tenha muitas vacinas. O Brasil, como se sabe, é um país que tem uma grande tradição de vacinação.

O ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello afirmou que o país está em um ponto de inflexão no processo de controle da pandemia. A senhora compartilha dessa opinião?

Não. Não estamos, porque temos uma taxa de disseminação do vírus muito alta, enquanto os hospitais estão lotados, com quase 100% dos leitos ocupados, especialmente os de UTI. O que temos é um colapso em muitas das principais cidades brasileiras. Além disso, sabemos que as novas variantes são as responsáveis pela maioria dos casos de infecção atuais. Portanto, houve um erro de não ter negociado, no momento adequado, com as grandes produtoras de vacinas. O que acontece agora é que estamos tentando conseguir as vacinas porque o momento crucial é justamente esse. Temos que vacinar muita gente e rapidamente.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) exortou o Brasil a adotar medidas agressivas contra a pandemia. Pesquisadores como a senhora enfatizam a necessidade de expandir as medidas de distanciamento social. Existe coordenação e consenso entre o governo federal, governadores e cientistas?

Não. Lamentavelmente, no Brasil, nós não tivemos uma coordenação central harmônica entre a comunidade científica e as autoridades. Eu diria que nós tivemos retóricas muito diferentes em alguns momentos. Eu, pessoalmente, defendi que nós tínhamos duas grandes e poderosas armas para lutar contra a epidemia. O SUS, que é precioso e, como vocês sabem, é o maior sistema de saúde pública do mundo, assistindo mais de 150 milhões de pessoas. E o distanciamento social, para o qual não tivemos o apoio de algumas autoridades, que defenderam outra coisa. Do meu ponto de vista, a sociedade civil ficou um pouco confusa, pois recebeu informações diferentes e contraditórias. Agora estamos pagando o preço por não termos tido uma coordenação central, que tivesse trabalhado com harmonia e com consenso entre as opiniões muito bem fundamentadas que nós, a comunidade científica, defendemos.

O governo federal, os estados e os municípios culpam-se mutuamente pela crise. Quem deveria assumir a responsabilidade?

Eu acho que há responsabilidades compartilhadas. Por exemplo, de acordo com a Constituição, a compra de vacinas é algo que deve ser da competência do governo federal.

Nós deveríamos trabalhar na logística e, para isso, temos tido um apoio muito importante da iniciativa privada brasileira, que é muito poderosa. Como vocês sabem, o Brasil tem uma concentração de renda muito grande, e é necessário que a iniciativa privada tenha um papel mais proeminente durante esse período, o que aconteceu efetivamente durante o ano de 2020, com grandes doações de bancos e de grandes empresários.

Neste momento de mudança no Ministério da Saúde, esperamos que possamos estabelecer novos e melhores contatos. Não podemos ser tão pessimistas, temos que ter um pouco de confiança de que seremos escutados de maneira adequada. Mas a situação é, sem dúvida, muito grave e necessitamos de medidas pouco simpáticas, restritivas e muito duras, como o lockdown, em algumas cidades brasileiras. Eu diria que isso seria necessário em todo o país por um período de ao menos duas semanas, para controlar a taxa de transmissão, que está muito alta. Isso também está acontecendo porque não temos vacinas nesse momento, que seria o ideal do ponto de vista de concomitância entre duas ações de saúde pública. Ou seja, esperamos reparar o erro. Reconhecer o erro, na minha opinião, seria um ato de grandeza. Reconhecer que erramos, não negociamos no tempo certo, mas estamos trabalhando para recuperar um pouco. As mortes, no entanto, não vamos recuperar. O sentimento que nós temos com quase 300 mil brasileiros mortos na pandemia é algo que mudou as nossas vidas.

A Fiocruz é vinculada ao Ministério da Saúde. Marcelo Queiroga será o quarto ministro da Saúde em um ano, e todas as mudanças na pasta aconteceram em momentos críticos da pandemia. Será possível trabalhar melhor agora, com Queiroga?

Nós esperamos que sim. O doutor Queiroga é um médico, alguém que tem um pouco de experiência com o SUS e que tem relações políticas muito fortes. Esperamos ser escutados e que seja feita uma coordenação real, incluindo a valorização do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que no meu ponto de vista é algo muito importante. Como todos sabem, o PNI é reconhecido internacionalmente e, sem dúvida, foi um pouco desmantelado. É preciso fazer uma coordenação central em harmonia com a comunidade científica do Brasil.

O presidente Jair Bolsonaro disse que o Brasil é um dos países com melhor desempenho na vacinação, e a senhora está dizendo o contrário. Além disso, ele voltou a promover a hidroxicloroquina, um antimalárico que não tem comprovação científica de eficácia contra o coronavírus. Qual é a sua opinião sobre isso?

O tema da cloroquina, para nós, é um assunto totalmente encerrado. Os estudos em que nós confiamos, que são os randomizados, controlados e publicados em periódicos científicos de grande impacto, como nós chamados, já demonstraram que não tem eficácia. Não só com a hidroxicloroquina, mas também com outros remédios que foram recomendados e que comprovadamente não são eficazes nem para controlar a pandemia do ponto de vista dos casos leves, ou seja, impedir que o paciente desenvolva uma forma mais grave. Não há tratamento precoce. Do meu ponto de vista, isso não é verdade e já foi demonstrado muitas vezes. Em resumo, não há tratamento farmacológico para a covid-19. O que há são as boas práticas de terapia intensiva para casos graves. Para casos leves, observação médica, assistência adequada pelo SUS ou privada. É isso. Detectar no momento correto quando é a hora de o paciente procurar o hospital. Ou seja, considere o assunto cloroquina um assunto encerrado.

Onde o Brasil estará daqui a dois meses no que diz respeito à pandemia?

Eu temo verdadeiramente, eu declarei isso há algumas semanas, que teríamos o mês de março mais triste de nossas vidas, o que é verdade. Estamos tendo. Eu acho que o mês de abril será, igualmente, muito grave. Exatamente porque a taxa de transmissão está muito alta, e quando comparamos, por exemplo, as curvas de mortalidade, que no resto do mundo começaram a decrescer, no Brasil todas as tendências dessa curva são verticais, de ascensão. Isso é algo que nos preocupa muito e é necessário não só que as medidas sanitárias necessárias sejam tomadas pelas autoridades, mas que a sociedade civil se conscientize de que o que estamos dizendo e recomendando é o mais adequado e correto para o controle epidêmico.

Deutsche Welle / Brasil, em 22.03.2021