terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O Brasil está mesmo quebrado? Veja o que dizem economistas sobre declaração de Bolsonaro

Presidente diz que país não tem recursos para concretizar suas promessas. Para especialistas, situação é grave, mas governo deveria estar pronto para enfrentá-la


O presidente da República, Jair Bolsonaro Foto: SERGIO LIMA / AFP/20-7-2020

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta terça-feira que o país está “quebrado” e que ele não consegue “fazer nada”. Bolsonaro citou a alteração da tabela do Imposto de Renda (IR) como uma de suas promessas que não consegue cumprir, mas não é difícil lembrar outras.

Eleito com um programa econômico liberal e reformista, Bolsonaro não conseguiu aprovar reformas estruturais para além das mudanças nas regras de aposentadoria, em 2019. Rusgas entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) não contribuíram.

O presidente também tem tido dificuldades para fazer privatizações e controlar as contas públicas, cujo déficit foi agravado pelos gastos para o combate à pandemia, que já matou mais de 196 mil pessoas no Brasil.

Faltam recursos para investir em obras públicas, outro plano que enfrenta limitações para sair do papel. Empresários e investidores cobram uma agenda clara do governo sobre sua estratégia para recuperar a economia em 2021.

O GLOBO ouviu economistas sobre as declarações do presidente nesta terça-feira. O Brasil está mesmo quebrado? O que falta ao presidente?

Confira as análises a seguir:

'Quem se candidata à Presidência tem que estar preparado para os 'azares da vida''

O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega Foto: Roberto Stuckert Filho / 20-10-2009/PR

Não dá para dizer que o Brasil está quebrado. O país vive uma situação de crise fiscal grave, que pode levar à insustentabilidade da dívida pública. Mas está longe de estar quebrado.

Cabe ao governo, que conhece a situação mais do que ninguém, conseguir do Congresso as reformas necessárias capazes de tirar o país dessa situação. O Brasil, hoje, tem uma situação confortável nas contas externas, que, no passado, já foram foco de crise e instabilidade.

Não há registro na história recente de um país ter quebrado em relação a seus compromissos domésticos, com as contas internas. Quem se candidata à Presidência da República tem que entender o ambiente em que vai atuar e estar preparado para os "azares da vida". 

O presidente Bolsonaro teve o azar de estar no poder durante uma das piores crise sanitárias da história. Sua atitude não deveria ser reclamar, pois isso pode piorar a situação. Imagine os credores internacionais do país ouvindo do presidente que o país está quebrado.

É uma reação emocional do presidente, que acaba sendo prejudicial ao país. Todos os governos enfretam problemas para tocar sua agenda. O governo Bolsonaro não é o primeiro e nem será o último a ter problemas.

O papel do governo não é externar suas insatisfações em relação ao Congresso, mas articular e formar uma base parlamentar para ter suas propostas aprovadas.

Bolsonaro escolheu ser um presidente minoritário num sistema parlamentar fragmentado, por isso tem mais dificuldades em governar. Portanto, ele tem que trabalhar para formar sua base parlamentar estável e criar mecanismos de articulação com o Congresso.

'O irreal é achar que simplesmente não existe limite'

Armando Castelar, economista do Ibre/FGV:

"Felizmente, não, o Brasil não está quebrado. O presidente disse que está sem recursos para aumentar a isenção do Imposto de Renda, mas vimos o dinheiro indo a para estatal da Marinha e para outras coisas.

O dinheiro não dá para chegar no lugar da fila de prioridades na qual o presidente colocou a isenção do IR. Outras prioridades foram escolhidas pelo presidente.

Houve investimentos em Defesa, acabou de criar uma estatal (NAV Brasil, de navegação aérea), retroagiu na privatização da Ceagesp (entreposto de alimentos de São Paulo), tem défícit e consome recursos do governo. Ele abriu mão de usar o dinheiro no IR para cobrir o prejuízo. 

É uma questão de prioridade. O problema é o tamanho das despesas, não como você aloca os recursos.

O presidente optou por mandar R$ 6 bilhões para estatal que trabalha num submarino. Isso elimina espaço para fazer a isenção de IR. Há uma série de propostas de emenda no Congresso que abririam espaços para o auxílio emergencial.

A sociedade em geral, e o governo em particular, tem de discutir as prioridades. O irreal é achar que simplesmente não existe limite. Isso não é realista.

'O fato é que temos uma dívida difícil de pagar'


O economista e consultor José Marcio Camargo Foto: Adriana Lorete/30-1-2018 / Agência O Globo

Tecnicamente o conceito de "país quebrado" é muito complexo. Acho que o presidente usou de retórica para alertar que o país não vai conseguir aumentar os gastos públicos porque senão pode ficar insolvente.

Acredito que o discurso dele tem mais esse sentido. O fato é que temos uma dívida difícil de pagar. O Brasil encerra o ano com uma dívida equivalente a 90% do Produto Interno Bruto (PIB), o que é um nível bastante elevado para uma nação emergente. Portanto é uma situação delicada.

Mas obedecer o teto de gastos é fundamental para fugir da insolvência. E o governo precisa aprovar as reformas que já estão no Congresso (PEC Emergencial, Pacto Federativo) para fazer com que o país saia dessa trajetória de insolvência.

'O caminho está dado: é preciso fazer o ajuste pelo lado dos gastos'

Silvio Campos Neto, economista e sócio da consultoria Tendências

"É preciso separar as figuras de linguagem e evitar os exageros. Talvez essa declaração não tenha sido pertinente.

Um país quebrado não tem capacidade de honrar seus compromissos em moeda forte (dólares) e em moeda doméstica.  E isso não está acontecendo com o Brasil. Há financiamento para cobrir o déficit interno.

A situação fiscal  do país, e isso não é de hoje, é ruim. E a pandemia agravou esse quadro. A expectativa era de um déficit primário de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) e agora esse déficit está perto de 10% do PIB. 

Esse é o efeito da pandemia nas contas públicas. E isso impede que o governo mexa na tabela de IR agora, mas, mesmo sem a pandemia, já não era possível mexer. Não havia espaço para um alívio tributário.

O país precisa, no mínimo, manter a carga tributária. Mas o caminho está dado: é preciso fazer o ajuste pelo lado dos gastos.

Na Previdência, isso foi feito no governo Bolsonaro. Todo mundo sabe o que fazer, mas são decisões difíceis. O Brasil postergou, mas chegou a hora de atacar certas despesas que são alvo de pressão.

É preciso avançar na PEC Emergencial, que aciona gatilhos nas despesas obrigatórias, dando sobrevida ao teto de gastos. A manutenção do teto é a sinalização ao mercado de que o governo vai colocar o país nos trilhos.

A bola está com o governo e com o Congresso, mas a coordenação desse esforço é do Executivo."

João Sorima Neto e Cássia Almeida, de O GLOBO, em 05/01/2021 - 16:47 / Atualizado em 05/01/2021 - 18:20

O poder a qualquer preço

Instituições devem se preparar para teatro do absurdo nos EUA não se repetir como farsa aqui

 Historiadores e cientistas políticos debaterão por anos se o governo de Donald Trump foi o pior de todos os tempos para os EUA. Mas há pouca dúvida de que foi o mais corrosivo para a democracia americana. A espiral de vandalismo contra a decisão popular que elegeu Joe Biden é a evidência mais do que suficiente disso.

Baseados em nada além de suas próprias alegações, marteladas diariamente nas redes sociais, Trump e seus aliados moveram 61 ações contra os resultados do pleito. Venceram apenas uma e a Suprema Corte rejeitou por duas vezes suas tentativas de anular os resultados.

Em carta aberta, os dez ex-secretários de Defesa vivos, incluindo republicanos proeminentes, como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, assim como Mark Esper e Jim Mattis, que serviram na administração Trump, denunciaram tentativas engendradas no Salão Oval para forçar o Departamento de Defesa a declarar “lei marcial” e obrigar os Estados a “refazer” as eleições em que Trump foi derrotado.

O desprezo pelos resultados está se revelando desprezo pelas próprias eleições. Hoje, a Georgia irá às urnas para eleger dois senadores que determinarão a maioria no Senado. No domingo, o Washington Post reportou uma inacreditável conversa por telefone em que Trump pede ao secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, que “encontre” votos para os dois candidatos republicanos. Publicamente, Trump já declarou que as eleições na Georgia serão “ilegais e inválidas”, na expectativa de fabricar subsídios para uma anulação por parte do Judiciário, no caso de um resultado desfavorável.

No Congresso, Trump já lançou três cartadas desesperadas e constitucionalmente canhestras. Amanhã, o Parlamento deve certificar os resultados das eleições presidenciais. A sessão conjunta será presidida pelo vice-presidente Mike Pence, cujo papel será exclusivamente o de abrir os envelopes contendo as certificações de cada Estado e convocar os congressistas a oferecer objeções. Mas as milícias trumpistas alegam que o vice-presidente teria poder para invalidar as certificações que julgar suspeitas.

Além disso, qualquer objeção assinada por um deputado e um senador obriga cada uma das Casas a se reunir separadamente para decidir se aceita ou não os votos do Estado em questão. Em tese, se rejeitarem votos suficientes para negar 270 votos dos colégios eleitorais para Biden, caberia ao Congresso escolher o presidente.

A terceira tentativa de sabotagem vem da proposta de alguns senadores republicanos de criar uma comissão para conduzir uma “auditoria emergencial” das eleições questionadas nos Estados.

Todos esses atentados estão fadados ao fracasso. O Judiciário já demonstrou que não cede ao golpe; o Departamento de Defesa declarou que não tem “nenhum papel” na determinação dos resultados das eleições; o vice-presidente não deve participar da farsa; a Câmara tem maioria democrata; e há suficientes senadores republicanos maduros e honestos para rejeitar qualquer manobra no Senado.

Mas o malogro dessas tentativas escancaradas de golpe não significa que elas não terão efeitos corrosivos sobre a democracia do país. Elas aumentarão o clima de desconfiança da população e subsidiarão políticos inescrupulosos, democratas ou republicanos, que queiram futuramente lançar mão de artimanhas. Além disso, o terrorismo de Trump e seus sequazes é autodestrutivo para o seu próprio partido, num momento em que disputa a maioria no Senado e precisa se organizar para lidar com a agenda democrata e as eleições legislativas de 2022.

Sem dúvida as instituições americanas prevalecerão. Mas este momento de aguda degradação deve servir de alerta a democracias mais jovens e menos sólidas, como a do Brasil. Alguém duvida que o “Trump Tropical”, Jair Bolsonaro, está mais do que disposto a “fazer o diabo” e mais um pouco para se manter no poder em 2023? Pelos próximos dois anos, as instituições nacionais precisam se preparar para impedir que a história desse teatro do absurdo nos EUA se repita como farsa no Brasil.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 05.01.2021.

O País quebrado de Jair Bolsonaro

Presidente disse que o Brasil está quebrado para justificar o fato de não ter cumprido uma promessa de campanha sempre cobrada por seus apoiadores: aumentar o limite da faixa de isenção do Imposto de Renda

Um presidente da República não deveria sair alardeando por aí que o país que ele mesmo governa está quebrado. Muito menos para servir de justificativa para o fato de não ter cumprido uma promessa de campanha sempre cobrada pelos seus apoiadores: aumentar o limite da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF).

Saiu-se logo com a resposta mais fácil: o Brasil quebrou. Mas a verdade é que o presidente não mexeu uma palha para abrir espaço para corrigir a tabela do IRPF. Pelo contrário, beneficiou setores específicos nesses dois anos de governo e atropelou a discussão de mudanças no campo tributário por disputas políticas. Também não ajudou na pauta de corte de gastos ineficientes.

O que vão achar os investidores que compram papéis de um governo do qual o seu próprio presidente diz que está quebrado? É natural que comecem a cobrar cada vez mais para comprar os títulos da dívida brasileira. 


O presidente Jair Bolsonaro em evento no Palácio do Planalto. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 16/12/2020

Ou seja, pode custar mais dinheiro para os contribuintes que o presidente promete ajudar com a correção da tabela do IRPF.

A fala do presidente é irresponsável sob todos os aspectos. Mas é ainda mais perigosa no momento atual em que o Tesouro Nacional passou por meses de grande dificuldade para se financiar e tem pela frente um trabalho difícil para pagar uma montanha de dívida concentrada nos primeiros meses do ano e que já supera R$ 1,3 trilhão até o final de 2021.

A declaração é ainda mais inoportuna depois da revelação pelo Estadão de que o Brasil não honrou o pagamento da penúltima parcela de US$ 292 milhões para o aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), a instituição financeira criada pelos cinco países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). 

O prazo para a quitação da parcela terminou no último dia 3 de janeiro e o Brasil agora está inadimplente com o banco que ajudou a fundar e é um dos acionistas.

A equipe econômica não quer nem que se fale em calote com temor do estrago. Prefere dizer que é um atraso. No dicionário, porém, a definição de calote é: dívida não paga.

O sinal é ruim. Outros organismos multilaterais também não receberam, mas não há transparência nenhuma do Ministério da Economia para explicar o que aconteceu, qual o tamanho da dívida e a razão de ela não ter sido paga.

Depois da fala do presidente nesta terça-feira, 5, é melhor a equipe econômica agir rápido, fazer uma declaração oficial para afastar a desconfiança.

Adriana Fernandes, repórter especial de economia em Brasília, para O Estado de São Paulo, em 05 de janeiro de 2021.

Bolsonaro diz que o Brasil está quebrado e, por isso, ele não consegue 'fazer nada'

Presidente conversou com apoiadores na saída do Palácio da Alvorada. Para Bolsonaro, coronavírus foi 'potencializado pela mídia'.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta terça-feira (5) a um grupo de apoiadores que o “Brasil está quebrado” e que, por isso, ele não consegue “fazer nada”.

O presidente deu a declaração durante uma conversa na saída da residência oficial do Palácio da Alvorada, antes de seguir para o trabalho no Palácio do Planalto.

Bolsonaro foi abordado por um apoiador. Ao responder a ele, fez uma avaliação pessoal sobre a situação do país. O presidente também disse que o coronavírus foi "potencializado" pela mídia. O Brasil tem, até esta terça, 196.641 mortes pela Covid-19, segundo o consórcio de veículos de imprensa.

"Chefe, o Brasil está quebrado, chefe. Eu não consigo fazer nada. Eu queria mexer na tabela do Imposto de Renda, teve esse vírus potencializado pela mídia que nós temos aí, essa mídia sem caráter”, afirmou Bolsonaro na conversa com os apoiadores.

A mudança na tabela do Imposto de Renda, mencionada por Bolsonaro, foi uma promessa de campanha do presidente.

Hoje, a faixa de isenção é de R$ 1.903,98. A última atualização nos valores da tabela foi feita em 2015. Somente em 5 dos últimos 24 anos a tabela foi reajustada acima da inflação. Com isso, os valores estão defasados.

Em maio de 2019, Bolsonaro disse que reajustaria a tabela pela inflação daquele ano. Em dezembro de 2019, durante encontro com a imprensa no Palácio do Alvorada, ele voltou a falar no assunto e, dessa vez, defendeu que o limite de isenção subisse para R$ 3 mil. Até agora, porém, nenhuma mudança foi feita.

Por Guilherme Mazui, G1 — Brasília, em 05.01.2021

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A esperança é teimosa

Presidente é um sádico que se compraz com a dor e a morte

Por Rosiska Darcy de Oliveira

Pela primeira vez em tantos anos, não molhei os pés no mar. Vi entrar o ano sem fogos de artifício, sem as lágrimas de ouro que caem do céu de Copacabana. A Floresta da Tijuca é assim, silêncio e mistério. Como o ano que se anuncia. Tanto silêncio e mistério nas coisas e nas pessoas.

No mundo, milhões já foram vacinados, e em breve — prioridade máxima — chegará a vez dos brasileiros. Vacinados, ainda teremos diante de nós um inventário de perdas: pessoas amadas, empregos, gente alegre que se fez amarga.

O mesmo presidente, cada dia mais cruel e pernicioso, que aplaude a tortura e debocha da pandemia, um sádico que se compraz com a dor e a morte. E a incompetência que fez e fará milhares de vítimas, se continuar sua tarefa de destruição.

Os mesmos maridos assassinos que se multiplicam e, com facadas ou tiros, sempre miram no rosto. Preferem os domingos e feriados para melhor odiar à morte suas mulheres. Foram seis só no Natal. A pandemia não mata só com o vírus. Isoladas, as mulheres ficam entregues a esses monstros.

A mesma pobreza trágica e suas causas perversas, a indiferença, a roubalheira e o racismo.

Tudo isso é real, mas não é toda a realidade.

Os que sobrevivermos ao maior massacre de nossa história, terá sido para fazer alguma coisa que preste neste ano que chega. É o que devemos aos mortos.

Fazer da saúde pública uma prioridade estratégica na luta contra a desigualdade e a pobreza, dever do governo e responsabilidade de todos, inclusive com a solidariedade de recursos privados.

Defender sem concessões a civilização, combatendo dia a dia o aviltamento das mulheres — e viva as argentinas —, dos negros e das minorias.

Construir uma frente democrática que olhe para o futuro e nos prepare para ganhar a eleição de 2022 com a energia de que precisaremos para reconstruir o Brasil.

A esperança é teimosa. Sem ela, ninguém se move.

Nas pessoas de duas mulheres combatentes vitoriosas em tempos de pandemia, Margareth Dalcolmo e Nísia Trindade, desejo a todos um Ano Novo mais feliz.

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora. Titular da Cadeira nº 10 na Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente por O Globo, em 04.01.2021.

Artigo: O telefonema de Trump equivale a orquestração de golpe

Em ligação revelada pelo Washington Post, presidente americano pressiona secretário de estado da Geórgia a 'encontrar' votos para reverter vitória de Biden

 Como o menino assombrado por fantasmas no filme de terror “O sexto sentido”, o presidente Donald Trump vê pessoas mortas por toda parte. Ele acha que pelo menos 5 mil delas votaram na Geórgia durante a eleição presidencial e fizeram parte de uma conspiração mais ampla que o privou de uma vitória no estado.

Em um telefonema desequilibrado e extraordinário no sábado para o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, e Ryan Germany, assessor jurídico de Raffensperger, Trump tentou forçá-los a admitir que o presidente eleito Joe Biden não tinha realmente assegurado 11.799 votos a mais que ele. E os encorajou a encontrar maneiras de invalidar esses votos, de acordo com uma gravação da conversa obtida no domingo pelo Washington Post.

— Então, o que vamos fazer sobre isso, pessoal? — Trump perguntou durante a ligação de uma hora. — Eu só preciso de 11 mil votos, pessoal.

Trump, que supervisionará o Departamento de Justiça por mais 16 dias até a posse de Biden, também ameaçou os dois homens, alertando que eles poderiam ser acusados de um crime se não apoiassem seu conto de fadas de fraude eleitoral.

O telefonema mostrou como soam corrupção e o desejo de orquestrar um golpe político, mas, felizmente, Raffensperger e Germany não foram influenciados.

— Bem, senhor presidente, o desafio que você tem é que os seus dados estão errados — disse Raffensperger a Trump, que continuou tentando cooptá-lo a qualquer custo.

— O que estamos vendo não é o que você está descrevendo — disse Germany.

Trump está nisso há décadas, então não há nada surpreendente. Ele passou anos tentando intimidar, comprar ou corromper reguladores, políticos, policiais e outros que encontrou pelo seu caminho como empresário do ramo imobiliário, operador de cassino, apresentador de TV e político. Ele sofreu um processo de impeachment por pressionar o presidente da Ucrânia a investigar Joe Biden e descobrir escândalos que minariam a candidatura do democrata.

Mas é surpreendente a facilidade com que Trump continua a corromper tantos ao seu redor. Muito poucos em seu partido estão dispostos a dizer ao presidente, como Germany fez, que a realidade não condiz com suas mentiras. Amedrontados pela força política de Trump ou ansiosos para pular em seu trem da alegria, muito poucos estão dispostos a abandoná-lo publicamente para que a fé dos eleitores no processo eleitoral, na democracia e no Estado de Direito não seja permanentemente prejudicada.

Em vez disso, temos alguns dos operadores mais caricatos e perigosos de Trump entrando em ação. Seu chefe de gabinete, Mark Meadows, encorajou as autoridades da Geórgia durante a ligação a analisar os resultados das eleições "mais plenamente" e, "no espírito de cooperação", a "encontrar um caminho a seguir" fora do sistema judicial (que já rejeitou as alegações de fraude de Trump). No sábado à noite, Meadows acessou o Twitter para incentivar os membros do Congresso a se opor à certificação da eleição presidencial em 6 de janeiro. “É hora de contra-atacar”, aconselhou ele.

Na semana passada, o senador Josh Hawley, um republicano do Missouri, disse que planejava se opor à certificação, citando especificamente os resultados da Pensilvânia. Onze outros senadores republicanos, incluindo Ted Cruz, do Texas, disseram desde então que vão votar para bloquear a vitória de Biden e demandaram uma auditoria das eleições;

Isso é uma performance artística para um público no Salão Oval e nos estados de origem dos senadores. Não impedirá Biden de se tornar presidente, mas incorpora ainda mais o trumpismo como um princípio operacional no Partido Republicano e no governo federal.

Sete republicanos na Câmara dos Representantes romperam com seu partido e disseram que qualquer tentativa de rejeitar os votos dos delegados dos estados ao Colégio Eleitoral é inconstitucional. Alguns membros do Senado, incluindo Mitch McConnell, Mitt Romney, Lisa Murkowski e Pat Toomey, disseram quase o mesmo. Posso estar esquecendo alguns nomes, mas apenas uma pequena parte dos 249 republicanos no Congresso se manifestou. Imagine como o Partido Republicano teria reagido se Barack Obama tentasse corromper um secretário de Estado para anular os resultados das eleições e compare com o silêncio que envolve o partido agora.

Mesmo se Trump conseguisse derrubar os resultados da Geórgia, isso não forneceria os votos no Colégio Eleitoral de que ele precisa para superar Biden, que teve 306 votos, 36 a mais do que a maioria necessária para a vitória. Certamente, ele está ciente disso, mas ele está tão inquieto — e tão incapaz de aceitar a derrota— que está disposto a tentar incendiar a democracia para se acalmar. Ele também está convocando comícios que podem muito bem se transformar em tumultos em Washington na quarta-feira. Como tudo isso se desdobrará dirá respeito, em parte, ao futuro das instituições, processos e eleitores que Trump gastou tanto tempo envenenando.

Um governo que começou com a revelação de uma antiga gravação dos bastidores do programa Acess Hollywood — no qual Trump descrevia, com linguagem vulgar e palavrões, seus métodos para seduzir mulheres — está terminando na sombra de uma gravação que poderia se chamar “Access Georgia”, igualmente escandalosa. Embora seja possível que Trump tenha cometido um crime ao tentar interferir nas eleições federais e estaduais durante o telefonema, pode não haver tempo ou provas suficientes para fazer algo a respeito.

— Que idiota eu fui — disse Trump a certa altura, lamentando a falta de apoio que sentiu ter recebido do governador da Geórgia. — Mas é assim que as coisas são. É assim que as coisas são.

De fato.

Timothy L. O'Brien, da Bloomberg. Publicado por O Globo, em 04.01.2021.


Autoritarismo sob novas vestes

Seja qual for a cor ideológica ou o meio utilizado, o autoritarismo é sempre nefasto. É preciso estar alerta. A liberdade e a democracia são inegociáveis

O País tem uma Constituição democrática vigente e realiza rigorosamente eleições no seu devido tempo. Pode-se, assim, ter a impressão de que o autoritarismo e outras violações do regime democrático sejam temas distantes dos brasileiros, como problemas do passado já superados. No entanto, nos dias de hoje continua havendo ataques à democracia, por novos e insidiosos meios, alertou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, em recente palestra. Nesses novos ataques, até mesmo as eleições são utilizadas para desacreditar o regime democrático.

Segundo Luís Roberto Barroso, “uma versão contemporânea do autoritarismo são essas milícias digitais que atuam na internet, procurando destruir as instituições e golpeá-las, criando um ambiente propício para a desdemocratização”.

Nas eleições de 2020, o País assistiu a uma tentativa de desmoralizar o seu sistema eletrônico de votação. No dia do primeiro turno, hackers tentaram derrubar o site do TSE e houve vazamento na internet de dados de servidores obtidos por meio de um ataque virtual realizado dias antes. Ainda que essas duas operações não tenham provocado nenhum risco para a apuração dos votos, elas foram utilizadas para disseminar desconfiança em relação à segurança do sistema eleitoral.

Nesse ataque contra a democracia, os liberticidas ainda se valeram de um atraso do processamento de dados do TSE, ocorrido por questões técnicas alheias a qualquer atuação dos hackers. O atraso de algumas horas na divulgação dos resultados não interferiu na apuração dos votos, mas, para os que querem desacreditar a democracia, os fatos pouco importam. O que vale é o discurso distorcido, com o qual tentam disseminar desconfiança.

É interessante notar que, ao contrário do que afirmaram as fake news, as eleições municipais de 2020 foram um excelente exemplo do vigor da democracia no País. “Conseguimos fazer uma eleição (na pandemia), evitamos uma prorrogação (dos mandatos atuais), adiamos para um momento em que foram feitas com mais segurança, conseguimos que o plano de segurança fosse observado e que não houvesse disseminação da doença, conseguimos uma abstenção bem baixa, de 23%, e conseguimos controlar as fake news e divulgar o resultado no mesmo dia”, lembrou o presidente do TSE.

No entanto, a despeito de todos esses fatos muito positivos, houve quem quisesse reduzir as eleições de 2020 ao problema operacional no computador do TSE, que, sem afetar a apuração, provocou atraso na divulgação dos resultados. Essa tentativa de distorcer a realidade não é ingênua e tampouco é casual. É parte da tentativa de minar os fundamentos do regime democrático. 

“Com muita frequência, muitas vezes, mesmo nas democracias, há um esforço de desacreditar o processo eleitoral”, disse o ministro Luís Roberto Barroso. Citou, como exemplo, as últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, com a recusa de Donald Trump em aceitar a vitória de Joe Biden. Sem nenhuma prova, Trump repetiu durante semanas que o resultado das urnas era uma farsa, em clara tentativa de desacreditar as eleições.

Os ataques ao sistema eleitoral, tanto as ações de hackers como a disseminação de desinformação nas redes sociais, são graves ameaças ao regime democrático, já que contêm a essência do autoritarismo. Todas essas perversas manobras têm em comum a não aceitação de que o poder seja investido a terceiras pessoas, conforme o resultado das urnas. Os autoritários não gostam do voto. Por isso, disseminam tanta desconfiança em relação ao processo eleitoral. 

“Há uma onda populista, autoritária e conservadora radical no mundo”, disse Luís Roberto Barroso. “Eu me refiro ao conservadorismo radical que se manifesta pela intolerância, pela agressividade, procurando negar e retirar direitos de quem pensa diferente”. Seja qual for a cor ideológica ou o meio utilizado, o autoritarismo é sempre nefasto. É preciso estar alerta. A liberdade e a democracia são inegociáveis.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 03.01.2021.

Governo Bolsonaro, 2 anos: a metamorfose da Presidência nesse período em 3 pontos

Eleito com uma agenda econômica liberal e um discurso crítico ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro chega à metade do seu mandato metamorfoseado: em dois anos, pouco entregou das promessas de privatização e redução do Estado e, a partir de meados de 2020, sua gestão passou a buscar uma aliança com políticos do Centrão e com a ala mais garantista (menos punitivista) do Supremo Tribunal Federal (STF).


O presidente Jair Bolsonaro chega à metade do seu mandato / CRÉDITO,REUTERS/UESLEI MARCELINO

Para analistas ouvidos pela BBC News Brasil, a mudança de postura do presidente na relação com Supremo e Congresso reflete um maior pragmatismo do presidente, conforme aumentaram os obstáculos no seu caminho, como as investigações criminais contra seus filhos e o risco de sofrer um processo de impeachment.

Mas isso não significou um abandono total da retórica radical bolsonarista, ressalta o cientista político Rafael Cortez, da Consultoria Tendências: com a pandemia de coronavírus, o presidente intensificou sua disputa com os governadores, em especial o paulista, João Doria, visto como um provável adversário na eleição presidencial de 2022.

Outro impacto da pandemia foi uma forte expansão dos gastos públicos, na contramão da agenda de austeridade do ministro da Economia, Paulo Guedes. Para os analistas ouvidos, porém, a falta de avanços na prometida agenda liberal reflete mais a ausência de compromisso de Bolsonaro com essas propostas.

"É nítido o isolamento do Ministério da Economia", afirma a economista Zeina Latif.

Entenda melhor a seguir as três metamorfoses do governo Bolsonaro, na relação com o Congresso, com o STF e na sua política econômica.

Entre tapas e beijos com a velha política


Em foto de setembro de 2018, Bolsonaro fala com a imprensa em corredor do Congresso; ele foi eleito com agenda 'antipolítica' / CRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

Apesar de ter sido deputado federal por quase três décadas antes de chegar ao Palácio do Planalto, Bolsonaro iniciou seu governo se colocando contra a "velha política" e rechaçando negociar cargos com partidos políticos para construir uma base no Congresso.

"Graças a vocês, eu fui eleito com a campanha mais barata da história. Graças a vocês, conseguimos montar um governo sem conchavos ou acertos políticos, formamos um time de ministros técnicos e capazes para transformar nosso Brasil", discursou a seus apoiadores em sua posse.

O resultado dessa estratégia foi um governo minoritário no Congresso Nacional, com dificuldade de avançar suas propostas legislativas. Apesar disso, a retórica contra os políticos tradicionais foi insistentemente repetida pelo presidente, seus filhos e aliados políticos, culminando em uma série de atos antidemocráticos nos primeiros meses de 2020, aos quais Bolsonaro compareceu a despeito dos pedidos dos manifestantes pelo fechamento do Congresso e do STF.

Até que entre maio e junho, nota o cientista político Antonio Lavareda, o presidente passou a buscar com mais consistência uma aliança com políticos do Centrão — grupo de partidos sem clara identidade ideológica que costumam aderir ao governo, seja ele qual for, em busca de cargos e verbas para sua base eleitoral.

Para Lavareda, essa mudança marca a passagem do "governo Bolsonaro 1" para o "governo Bolsonaro 2", em que o presidente se aproxima do presidencialismo de coalizão — uma administração que negocia apoio no Congresso para formar uma base política que lhe dê governabilidade.

"Eu acho que o governo Bolsonaro 1 é uma tentativa curiosa de se fazer um presidente antissistema. O Bolsonaro 2 é um governo que paulatinamente avança na direção da gramática do presidencialismo de coalizão, que é imperativo em um país de regime presidencialista com multipartidarismo. Não é questão de escolha", ressalta Lavareda, que é presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe).

"Seu governo ainda não entrega ministérios de porteira fechada (para os partidos ocuparem os cargos livremente), mas já vai cedendo (o comando de alguns) órgãos, entregando mais cargos", exemplifica ainda.

O próprio Bolsonaro reconheceu a distribuição de cargos entre partidos políticos: "Tem cargo na ponta da linha, segundo ou terceiro escalão, que estava na mão de pessoas que são de governos anteriores ao (do ex-presidente Michel) Temer. Trocamos alguns cargos nesse sentido. Atendemos, sim, a alguns partidos nesse sentido (de cargos)", disse o presidente, em uma transmissão ao vivo no final de maio.

Um exemplo dessa ocupação de escalões inferiores por indicados políticos ocorreu em junho no Ministério da Educação, quando Marcelo Lopes da Ponte, ex-chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira (PP-PI), foi nomeado presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Outros cargos dentro do órgão foram para indicações do PL — Paulo Roberto Aragão Ramalho assumiu a Diretoria de Tecnologia e Inovação do FNDE, enquanto Garigham Amarante Pinto assumiu a Diretoria de Ações Educacionais do fundo.

Outro marco da mudança de postura foi a recriação do Ministério das Comunicações em junho, cujo comando foi dado ao deputado Fábio Faria (PSD-RN), genro do empresário e apresentador do SBT Silvio Santos.

No capítulo mais recente da aliança com o Centrão, Bolsonaro se esforça para que o deputado Arthur Lira (PP-AL) seja eleito presidente da Câmara em fevereiro. A negociação envolve mais cargos e culminou em dezembro na demissão do então ministro do Turismo, Álvaro Antônio, depois que ele acusou o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação do Planalto junto ao Congresso, de querer entregar sua pasta ao Centrão.

Com isso, o comando do ministério passou para as mãos do até então presidente da Embratur, Gilson Machado.

Para Lavareda, Bolsonaro passa a negociar com partidos políticos devido ao "vislumbre do insucesso do presidente antissistema", já que sua adesão a atos autoritários no início do ano gerou uma "uma articulação do campo democrático" contra ele, com aumento dos pedidos de impeachment e a abertura de um inquérito pelo STF para apurar os organizadores dessas manifestações, investigação que se aproximou de seus filhos Carlos Bolsonaro (vereador do Rio de Janeiro/Republicanos) e Eduardo Bolsonaro (deputado federal por São Paulo/PSL).


Flávio Bolsonaro (senador pelo Rio de Janeiro/Republicanos) é investigado por uso de recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual./ CRÉDITO,SERGIO LIMA/AFP

Paralelamente, avançaram as investigações contra Flávio Bolsonaro (senador pelo Rio de Janeiro/Republicanos), acusado de ter desviado recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual, em um esquema de rachadinha operado pelo seu ex-assessor e amigo pessoal do presidente Fabrício Queiroz, que foi preso em junho.

"Com os filhos envolvidos com problemas no Judiciário, provavelmente (Bolsonaro) percebeu que a melhor forma de administrar esses problemas não seria no conflito com as instituições. No conflito, não viriam soluções melhores para seus filhos, viriam um avolumar dos problemas", acredita Lavareda.

Embora o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nunca tenha indicado que poderia iniciar um processo de cassação do mandato de Bolsonaro, "o impeachment no nosso modelo político está sempre no horizonte quando o governo não tem base parlamentar", afirma o cientista político.

Sai Sergio Moro entra Nunes Marques: a 'guinada garantista'


Bolsonaro surpreendeu em sua escolha para a vaga aberta no Supremo com a saída de Celso de Mello / CRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

Rafael Cortez, da Consultoria Tendências, também vê na maior proximidade com o Centrão uma tentativa de Bolsonaro de "minimizar algum risco mais relevante" para seu mandato e sua família. Na sua visão, porém, a maior guinada provocada por essa estratégia de autoproteção ocorreu na relação do presidente com o Poder Judiciário.

Bolsonaro foi eleito com um forte discurso anticorrupção, na esteira do desgaste causado pela operação Lava Jato sobre a credibilidade dos partidos políticos. Durante a campanha e o início do seu mandato, ele e seus filhos eram fervorosos defensores da prisão após condenação em segunda instância e do fim do foro privilegiado — ao se tornar investigado, porém, Flávio Bolsonaro passou a recorrer na Justiça para garantir seu foro especial.

O apoio retórico de Bolsonaro a pautas anticorrupção foi materializado com a escolha de Sergio Moro, então juiz de grande parte dos casos da Lava Jato, para ministro da Justiça e da Segurança Pública. No entanto, no final de abril deste ano, Moro deixou o governo fazendo fortes acusações de que o presidente estaria tentando interferir na Polícia Federal, o que deu início a uma investigação criminal que segue em curso na Procuradoria-Geral da República (agora sob relatoria do ministro do STF Alexandre de Moraes, após a aposentadoria do ministro Celso de Mello).

Nesse contexto — de rompimento com Moro, avanço de investigações contra a família presidencial e proximidade com o Centrão —, Bolsonaro surpreendeu ao escolher Kassio Nunes Marques para a vaga aberta no Supremo com a saída de Celso de Mello, deixando de lado sua antigas promessas de nomear um ministro "terrivelmente evangélico" e/ou com perfil mais duro no direito penal (o próprio Sergio Moro era cotado publicamente pelo presidente).

Nome sem grande projeção nacional, então desembargador do TRF-1, Nunes Marques foi indicado com a benção do senador e presidente do PP, Ciro Nogueira, um dos maiores expoentes do Centrão, e com a aprovação de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ministros da ala garantista do STF.

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São chamados de garantistas os juízes que dão maior peso aos direitos garantidos pela Constituição a investigados e réus. Nunes Marques, que teve longa carreira como advogado antes de entrar para a magistratura, se autointitula um.

Ao se tornar ministro do STF ele assumiu a cadeira de Celso de Mello da Segunda Turma da Corte, colegiado que julga recursos dentro da investigação contra Flávio Bolsonaro. Em um desses recursos, o Ministério Público do Rio de Janeiro tenta reverter o foro especial concedido no final de junho ao senador pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

Apesar de em 2018 o STF ter restringido o foro privilegiado a crimes relacionados ao atual mandato político, o TJ-RJ decidiu que Flávio ainda tem direito ao foro de deputado estadual no caso da rachadinha, o que passou a investigação da primeira instância judicial para o próprio TJ-RJ. O recurso foi sorteado para relatoria de Gilmar Mendes, que não indicou quando vai colocá-lo em julgamento.

Rafael Cortez nota que a aliança com o Centrão não significou um apoio maior a pautas econômicas do governo no Congresso. Na sua avaliação, é justamente no campo jurídico em que os interesses desse grupo político e da família Bolsonaro confluem.

"Essa identidade de interesses (entre Centrão e Bolsonaro) aparece com mais clareza na relação do mundo da política com as instituições de controle. Nesse sentido, é um casamento mais consistente", analisa.

"A busca por segurança jurídica da família e do mandato do presidente é que fez com essa metamorfose do governo com o mundo do Judiciário tenha sido mais intensa e me parece mais consistente ao longo do tempo", acrescentou.

Na economia, privatizações e corte de gastos não viraram realidade


Após dois anos, governo Bolsonaro segue longe de entregar promessas na área econômica, como grandes privatizações e rombo nas contas públicas zerado. / CRÉDITO,EPA/ANTONIO LACERDA.

Outro campo em que a prática do governo Bolsonaro se distanciou de seu discurso de campanha foi o econômico. Após dois anos, o presidente segue longe de entregar promessas feitas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como grandes privatizações e zerar o rombo nas contas públicas.

A aliança com o economista ainda na corrida eleitoral foi importante para o então candidato atrair o apoio do mercado financeiro e do empresariado nacional — Bolsonaro dizia que não entendia de economia e que Guedes comandaria a área com autonomia. No entanto, logo no início do mandato isso não se mostrou verdadeiro, com o presidente buscando atender aos interesses de sua base de apoio.

No caso da reforma da Previdência, cuja aprovação em 2019 é atribuída em boa parte ao trabalho de convencimento da sociedade e de negociação no Congresso herdado do governo Temer, o governo propôs aumento na remuneração dos militares como forma de compensar as mudanças na aposentadoria da categoria.

Atendendo também a uma demanda das Forças Armadas, Bolsonaro criou uma nova estatal, a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea, muito embora uma das principais bandeiras de Guedes seja privatizar as empresas do governo. Após dois anos, nenhuma estatal foi vendida.

Além da agenda de privatização que não anda, propostas do Ministério da Economia para reduzir os gastos públicos, como a reforma administrativa e a chamada PEC Emergencial, também estão empacadas no Legislativo.

Com a pandemia de coronavírus, o Congresso aprovou neste ano uma emenda constitucional — chamada de Orçamento de Guerra — que permitiu ao governo elevar fortemente as despesas para enfrentar a crise na saúde e na economia, com destaque para a criação do auxílio emergencial, benefício inicialmente de R$ 600, que depois foi reduzido para R$ 300, e cuja última parcela foi paga em dezembro.

Bolsonaro e sua equipe econômica não conseguiram entrar em consenso sobre como criar um novo programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família para compensar o fim do auxílio emergencial, o que deixará milhões de brasileiros sem renda a partir de janeiro e pode reverter a recente alta de popularidade do presidente.

"A pandemia retirou ainda mais a força política das teses associadas à equipe de Paulo Guedes. Mas a questão central (que dificulta a implementação das propostas do ministro da Economia) é a postura do próprio presidente em relação à agenda econômica. De alguma maneira, era um casamento meio artificial essa relação do Bolsonaro com Guedes", afirma Rafael Cortez.

Essa falta de apoio do presidente à agenda econômica acabou levando a uma debandada da equipe de Guedes, como o próprio ministro reconheceu em agosto. Desde o início do governo, deixaram seus cargos Joaquim Levy (BNDES), Marcos Cintra (Receita Federal), Marcos Troyjo (Comércio Exterior), Rubem Novaes (Banco do Brasil), Caio Megale (Fazenda), Mansueto Almeida (Tesouro Nacional), Salim Mattar (secretário especial de desestatização), e Paulo Uebel (secretário especial de desburocratização).


O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro. / CRÉDITO,REUTERS

Apesar de ser uma das principais bandeiras do ministro Paulo Guedes, nenhuma estatal foi vendida durante mandato de Bolsonaro

"Hoje houve uma debandada? Hoje houve uma debandada. Salim falou: 'A privatização não está andando, prefiro sair'. Uebel disse: 'A reforma administrativa não está sendo enviada, prefiro sair'. Esse é o fato, essa é a verdade", disse Guedes em agosto.

Para a consultora Zeina Latif, ex-economista-chefe da XP Investimentos, Guedes tinha "avaliações erradas sobre condução de política econômica" e "vendeu uma imagem (equivocada) de que é fácil privatizar, de que abrir a economia é fácil".

"Ele gerou essa expectativa inflada que quem acompanha economia sabia que não fazia sentido. Era impossível entregar. E, o que acho ainda mais problemático, ele não conseguiu convencer internamente o governo da importância da sua agenda. É nítido o isolamento do Ministério da Economia", ressalta.

Como a agenda de corte de gastos está empacada, Latif acredita que em 2021 "vai ter furo no teto de gastos", ou seja, alguma flexibilização na regra constitucional que limita o aumento das despesas do governo à inflação. Na sua avaliação, isso já está em parte "precificado pelo mercado" na alta do dólar frente ao real e no aumento da curva de juros futuros, mas, quando ocorrer de fato, esses movimentos podem se intensificar um pouco mais.

Mariana Schreiber - @marischreiber, da BBC News Brasil em Brasília.



terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Populismo e democracia na pandemia

Na pandemia, o presidente Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade

 A edição brasileira de novembro do Journal of Democracy publica o artigo A cartilha populista brasileira, de Amy Erica Smith. Ao analisar os efeitos da pandemia e a reação do governo Bolsonaro sobre o funcionamento das instituições democráticas, a professora de ciência política da Universidade Estadual de Iowa apresenta reflexões pertinentes. A resposta do presidente Jair Bolsonaro à crise sanitária deixou muito a desejar, mas suas evidentes deficiências parecem ter contribuído para uma maior resistência de outras lideranças e para uma reação da sociedade civil.

“Apesar das consequências humanas trágicas e incomensuráveis da covid-19 no Brasil, a doença está provocando um impacto mais ambíguo na saúde da democracia do País”, diz Amy Erica Smith. “Ao evidenciar as fraquezas de Bolsonaro, a pandemia parece ter favorecido um movimento de resistência por parte de outros representantes eleitos.”

Segundo o artigo, “não é simplesmente que a incapacidade de Bolsonaro de conter o coronavírus fortalece o sistema de freios e contrapesos. Os acontecimentos dos últimos meses parecem ter revelado que algumas das ameaças de Bolsonaro eram vazias. (...) À luz desses não acontecimentos, o golpismo de Bolsonaro – ou seja, seu apoio ideológico aberto à intervenção militar – parece cada vez mais ser apenas jogo de cena, uma ameaça que ele faz como aceno a parte de sua base e intimidação da oposição”.

A respeito do comportamento de Bolsonaro na pandemia, a professora de Iowa diz: “Em vez de repressão autoritária, Bolsonaro escolheu uma estratégia mediada que acentua a polarização política e a ‘guerra cultural’ nas redes sociais. Seus objetivos são controlar a informação e promover uma narrativa alternativa da pandemia”.

Como exemplo, Amy Erica Smith cita a defesa que Jair Bolsonaro fez da hidroxicloroquina. “O objetivo de sua gestão ao promover o remédio não parece ser melhorar a saúde pública, mas encorajar os cidadãos a associar suas lealdades afetivas e identidades políticas ao processamento de informações, transformando o julgamento de fatos em questão de intuições e desejos subjetivos.”

Em vez de informar e oferecer orientações seguras para a população, o presidente Bolsonaro optou pela desinformação, politizando as questões. Até mesmo a competência constitucional relativa à saúde pública, compartilhada entre os entes da Federação, foi transformada por Jair Bolsonaro em embate de forças políticas. “Bolsonaro tratou a pandemia menos como uma crise de saúde pública e mais como um desafio de relações públicas”, diz o artigo.

Ao comentar a hostilidade presidencial às medidas de prevenção, que levou a um “tipo peculiar de crise de governança”, a professora de Iowa recorre ao conceito “carências do Executivo”, de David Pozen e Kim Lane Scheppele, em contraste com os “excessos do Executivo”, quando o presidente excede os limites legais às atribuições de seu cargo. Segundo o artigo, “no longo prazo, essa tendência poderá não prejudicar as eleições democráticas, mas afetará a capacidade dos cidadãos de monitorar e responsabilizar seus representantes eleitos”.

Entre os efeitos da pandemia, Amy Erica Smith destaca a reação da sociedade civil. “Sem apoio governamental efetivo, grupos locais em comunidades pobres tiveram que desenvolver redes de auxílio mútuo e regras informais sobre máscaras e isolamento social. A imprensa registrou um florescimento desse tipo de atividade entre associações de bairro, movimentos sociais, igrejas e até mesmo gangues”, diz. Mesmo rejeitando a ideia de uma idealização das instituições comunitárias, a professora de Iowa reconhece que “tais movimentos podem servir de apoio a uma forma de democracia local, participativa e não oficial”.

Na pandemia, Jair Bolsonaro fez o oposto do que lhe cabia fazer. Esse modo de agir suscitou a reação da sociedade. Melhor seria que o governo cumprisse seu papel, mas isso não impede de reconhecer que a sociedade reagiu. E essa reação, mesmo com todas as limitações, é sempre um óbice aos populismos e autoritarismos.

Editorial  / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 29.12.2020


FHC, Lula e Maia declaram solidariedade a Dilma, após Bolsonaro questionar tortura na ditadura

Ex-presidente Dilma fez parte de movimentos de esquerda que combateram a ditatura e foi presa e torturada por militares. Bolsonaro diz que aguarda 'raio-x' que comprovaria agressões.

O presidente Jair Bolsonaro colocou em dúvida a tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rousseff durante a ditadura militar (1964-1985). A apoiadores, ele afirmou que aguarda "até hoje" raio-x que comprovaria lesão provocada em Dilma pelos torturadores.

Políticos como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, além do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se solidarizaram com Dilma e criticaram Bolsonaro. Leia mais abaixo a repercussão das declarações do presidente.

Dilma integrou organizações de esquerda que combateram a ditadura militar. Ela foi presa e torturada e chegou a receber indenizações dos governos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, onde as torturas ocorreram.

Em 2001, durante depoimento ao Conselho Estadual de Direitos Humanos do governo de Minas Gerais, ela contou detalhes das sessões de tortura, que incluíram socos, choques elétricos e pau de arara (saiba mais ao final da reportagem).

Bolsonaro fez os comentários na segunda-feira (28), durante conversa com apoiadores em frente do Palácio da Alvorada, em Brasília.

Um dos apoiadores disse ao presidente que era militar da ativa em 1965 e que não viu tortura sendo feita no período. Bolsonaro disse então que "os caras se vitimizam o tempo todo", citou o caso de Dilma e afirmou que "até hoje" aguarda um raio-x que comprovaria fratura na mandíbula da ex-presidente.

"Os caras se vitimizam o tempo todo: 'fui perseguido'. Teve um fato aí - esqueci o nome da pessoa, mas é só procurar na internet, vai achar com facilidade - que a Dilma foi torturada e que fraturaram a mandíbula dela. Eu disse: 'traz o raio-x pra gente ver o calo ósseo'. E isso que eu não sou médico, hein. Até hoje estou aguardando o raio-x", disse Bolsonaro.

Em nota, a ex-presidente Dilma afirmou que a declaração de Bolsonaro "revela, com a torpeza do deboche e as gargalhadas de escárnio, a índole própria de um torturador." Para ela, "ao desrespeitar quem foi torturado quando estava sob a custódia do Estado", Bolsonaro "escolhe ser cúmplice da tortura e da morte."

"Bolsonaro não insulta apenas a mim, mas a milhares de vítimas da ditadura militar, torturadas e mortas, assim como aos seus parentes, muitos dos quais sequer tiveram o direito de enterrar seus entes queridos. Um sociopata, que não se sensibiliza diante da dor de outros seres humanos, não merece a confiança do povo brasileiro", afirma Dilma na nota.

Ex-presidentes criticam Bolsonaro

Por meio de uma rede social, Fernando Henrique se solidarizou com Dilma e criticou Bolsonaro.

"Brincar com a tortura dela (Dilma) — ou de qualquer pessoa — é inaceitável. Concorde-de (sic) ou não com as atitudes políticas das vítimas. Passa dos limites", afirmou Fernando Henrique.

Também por meio de uma rede social, o ex-presidente Lula afirmou prestou solidariedade a Dilma.

"O Brasil perde um pouco de sua humanidade a cada vez que Jair Bolsonaro abre a boca. Minha solidariedade a presidenta @dilmabr, mulher detentora de uma coragem que Bolsonaro, um homem sem valor, jamais conhecerá", disse Lula.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), criticou Bolsonaro.

"Bolsonaro não tem dimensão humana. Tortura é debochar da dor do outro. Falo isso porque sou filho de um ex-exilado e torturado pela ditadura. Minha solidariedade a ex-presidente Dilma. Tenho diferenças com a ex-presidente, mas tenho a dimensão do respeito e da dignidade humana", afirmou Maia por meio de uma rede social.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, criticou as declarações do presidente.

"Pense em um homem que no meio de uma onda de feminicídios debocha de um mulher presa e torturada. Esse sujeito existe e, pior, preside o Brasil", disse Santa Cruz.

Também criticou Bolsonaro o ex-governador do Ceará e ex-ministro Ciro Gomes.

"Bolsonaro ataca Dilma por ser frouxo, corrupto e incapaz. Enquanto ela defende suas convicções, ele vende o país ao estrangeiro e, por sua irresponsabilidade, quase 200 mil brasileiros já perderam suas vidas", disse Ciro, o se referir aos mortos pelo novo coronavírus.

G1 / Brasília

Decrépito torturador de almas, Bolsonaro não cabe no cargo que ocupa, nem cabe no Brasil

Presidente tem a sorte de se deparar com gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção

A esta altura de 2020, qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário sabe que não há o que se surpreender com as atrocidades perversas que saem da boca do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Ao zombar da tortura da ex-presidenta Dilma Rousseff ele só mostra sua verve de torturador que sempre soubemos que ele tinha. Não há diferença entre a frase dita nesta segunda, 28, ―“Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo”― e o “Quem procura osso é cachorro”, dita em maio de 2009, quando ele humilhava parentes de desaparecidos na ditadura ―assassinados por militares que pensam como Bolsonaro― que faziam pressão por localizar os restos mortais de seus familiares.

Bater covardemente em alguém, ainda mais uma mulher, ex-presidenta, só é típico dos bárbaros, dos mesquinhos, dos pequenos que têm inveja, dos futriqueiros venenosos, dos picaretas. Debater o porquê dele ter sido eleito e o que isso diz dos seus eleitores é algo que já se estendeu até demais nestes últimos dois anos. Já sabemos que Bolsonaro não é o mal puro, mas a síntese da maldade coletiva de um Brasil perverso, deformado. Não se trata somente da deformação dos que identificam e celebram sua crueldade, mas a distorção dos que não tiveram a chance de aprender e alcançar o que uma frase tão delinquente quanto a que ele pronunciou sobre Dilma faz mal à saúde do Brasil e à nossa democracia. A frase não é só sobre o passado. Ela tem uma correia de transmissão com a tortura que acontece nas delegacias e nas periferias do país todos os dias.

Custa chamar Bolsonaro de presidente da República. Ele não cabe nesse posto. Não representa o povo brasileiro, nem uma aspiração coletiva, nem um exemplo a ser seguido. Seus dois anos já demonstram que ele seria incapaz de fazer história com grandes realizações e contribuições para o Brasil. Não tem bondade, não tem empatia, não tem honra, nem respeito. Tem atitudes de um covarde, um sabotador nacional, com auxílio de muitos que o ajudaram a chegar lá e agora se descolam, como o ex-ministro Sergio Moro. O ex-juiz sabia exatamente o tamanho da própria credibilidade naquele momento e recebeu todos os alertas de quem era e agora vira e mexe o critica. Mas a última vez que Moro o criticou, no último dia 28, foi em função do atraso na campanha da vacinação. Não para condená-lo por Bolsonaro ter exortado a tortura a que foi submetida a ex-presidenta Dilma.

Bolsonaro sobrevive e, sim, uma tempestade perfeita pode reconduzi-lo ao poder em 2022. Ele tem a sorte de se deparar com uma época de lideranças fracas no Brasil, de gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção. É o constrangimento de ver o Supremo Tribunal Federal e procuradores de São Paulo envolvidos em pedido de prioridade na vacinação. É o marketing de gestor do governador João Doria cortando verbas de Ciência em São Paulo ―afora uma viagem desastrada quando os números da covid-19 estavam subindo. É deputado se gabando de ter ganhado fuzil de presente. Justiça seja feita, Bolsonaro tem um papel fundamental para a história brasileira ao mostrar aos que defendem a democracia o tamanho da nossa arrogância e ignorância sobre o Brasil real. Nos contentamos com pouco achando que o pouco era muito porque era somente para nós.

Pois bem. Os anestesiados pelo pavor da miséria no poder com a ultradireita estão ganhando anticorpos e, se o presidente ainda goza de prestígio num grupo de eleitores, esse mesmo grupo vai cobrar a fatura quando os erros de Bolsonaro trouxerem a colheita. Ele, que apontava o confinamento vertical no início da pandemia como um antídoto para proteger a economia ―e não ficar para trás num mundo competitivo―, teve a incompetência de deixar o Brasil a esmo para montar uma campanha de vacinação nacional e isso cobrará seu preço no tempo da nossa recuperação. Mais valeram as picuinhas e as artimanhas grotescas do que focar num plano que finalmente o poderia colocar à altura de um estadista.

Bolsonaro não cabe no cargo de presidente e sua monstruosidade se destaca a cada dia no mundo em que vivemos. No momento em que a Argentina avança no debate sobre aborto, jovens vão às ruas no Peru, chilenos reescrevem sua Constituição, mexicanos e costa-riquenhos lideram a vacinação na América Latina, o presidente brasileiro vai se tornando um corpo estranho. É o presidente que mente ao mundo culpando indígenas pelos incêndios no Pantanal, o machista arcaico num mundo cada vez mais feminista, o torturador de Dilma no dia do seu impeachment.

Pode ser que faltem dois ou até seis anos para que o peso de suas palavras o derrubem por si só. Para que seja o pária nacional, o antiexemplo, a dor na alma, a vergonha do Brasil. Tal qual quando na ditadura havia uma vergonha popular de dizer que se apoiou os crimes covardes do governo militar. Bolsonaro é o representante dos militares que iam botar bomba no atentado do Riocentro, dos militares que esconderam o rosto da fotografia enquanto Dilma era interrogada então com 22 anos. Dilma pode não ter sido tão popular enquanto presidente e isso é uma verdade que não se pode apagar. Mas seu tamanho e sua trajetória estarão altivas nos livros de história. Os de Bolsonaro, não.

CARLA JIMÉNEZ, EL PAÍS / 29.12.2020

Brasil encerra ano sem saber se o pior já passou

Desigualdade em ascensão, um governo sem um plano claro, uma economia debilitada, um país isolado: o Brasil de 2021 é uma verdadeira era das incertezas. O fundo do poço, dizem especialistas, pode ainda não ter chegado.

Pandemia já deixou quase 200 mil mortos no país

Com um cenário político turbulento como pano de fundo, um presidente em constante conflito com outros poderes e incertezas sobre a chegada de uma vacina para a covid-19, os brasileiros chegam ao fim de 2020 sem saber se o pior da pandemia - e da crise econômica associada à ela - já passou no país, cada vez mais isolado internacionalmente.

"O ano de 2020 é surpreendente", avalia o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "O mercado de trabalho foi para o inferno, mas olhando para a renda de todas as fontes, a gente foi para o céu."

Entre os países emergentes, nenhum gastou tanto com auxílios como o Brasil, lembra Neri. E com esse auxílio emergencial, que chegou a 67 milhões de brasileiros, um terço da população, "a taxa de pobreza foi para o menor nível da historia documentada, depois de todos os índices terem piorado muito entre 2014 e 2019, os anos de grande recessão dos pobres."

"Com isso, 15 milhões de pessoas saíram da pobreza, comparado com 2019. A pirâmide de distribuição de renda nunca foi tão boa quanto em setembro de 2020", afirma. 

O governo, que se diz seguidor da Universidade de Chicago, foi mais para Cambridge e John Maynard Keynes, com sua política anticíclica. Só que o auxílio caiu pela metade, a partir de setembro, e com isso a pobreza aumentou 17% em um único mês. "Uma parte das pessoas que tinham saído da pobreza já voltaram", comenta o especialista. 

Agora, frente à segunda onda da pandemia, os caixas do governo já estão vazios, deixando a situação fiscal do Brasil deteriorada, com uma dívida bruta de mais de 90%. E ainda não há nada anunciado para substituir o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.

"O Brasil de 2021 agora é uma verdadeira era das incertezas máximas", diz Neri. E o resumo de 2020? "Olhamos para 2020 como uma espécie de um realismo fantástico sul-americano, uma situação muito ruim no mercado de trabalho que deve ditar o que acontece em 2021."

A natureza do governo Bolsonaro

"O Brasil está longe do fundo do poço", avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira. Para ele, o cenário político turbulento deve contribuir para a continuação da crise. "As guerras contra o Congresso e a Suprema Corte prosseguirão. Porque compõem um programa de trabalho do presidente, assim como os ataques à imprensa. Essa é a natureza do governo e da persona do presidente." 

Quanto mais as eleições de 2022 se aproximam, mais radical o presidente tende a ficar, acredita Nogueira. Para ele, o caso da vacina contra o coronavírus é emblemático. "Ele fala em união num dia, e grita contra a vacina no outro." Com isso, ele tenta dar sustento aos dois grupos que são importantes para seu plano de reeleição: a grande massa do povo, e os setores radicalizados do bolsonarismo.

E ainda haverá uma disputa dura sobre as duas presidências do Congresso, principalmente pela da Câmara, que definirá se o governo terá uma vida dura, se perder esta eleição, ou uma vida um pouco mais tranquila, caso consigo emplacar o próprio candidato.

Mas, mesmo assim, as tarefas para 2021 serão difíceis. "É um governo muito ruim, sem qualidade, sem capacidade de articulação, sem generosidade para com a sociedade", diz Nogueira. Isso, segundo ele, afeta todos os ministérios, mas, principalmente, os ministérios de Saúde e Educação e a área da cultura. 

"Mas o desgoverno também é muito prejudicial para o Meio Ambiente e para o relacionamento externo do Brasil. Não por acaso, são dois dos ministérios mais frágeis e mais carregados de problemas, mais criadores de atritos do governo Bolsonaro", comenta.

Lembrando que, em 2021, Bolsonaro não terá mais Donald Trump como aliado ideológico na Casa Branca. Joe Biden, por sua vez, deve se juntar aos europeus para pressionar o Brasil a investir na preservação ambiental. O novo presidente estadunidense já deixou claro que até pode pensar em sanções contra quem não protege o meio ambiente.

O resumo que Nogueira faz de 2020 é duro: "O governo deixou de lado o governar, não governou e tentou compensar essa falta de governança com uma exacerbação do discurso ideológico. Não poderia dar certo isso, sobretudo num país com tantos problemas como o Brasil".  

A dúvida da vacina

Para um ano de 2021 melhor que 2020, muito depende do sucesso da vacina no Brasil. Num ritmo de 600 mortes por dia, o Brasil se aproxima, atualmente, de 200 mil óbitos por covid-19. Mas até nesta área de vacinas, o Brasil está atrás.

"O Brasil tinha tudo para ser, provavelmente, o primeiro país da América Latina a vacinar sua população inteira, pois tem um dos melhores programas de imunização do mundo, e nós sabemos fazer vacina e sabemos fazer campanha de vacinação", diz a microbiologista Natália Pasternak Taschner, da USP. "A grande surpresa foi ver que o atual governo realmente conseguiu atrapalhar até o que a gente tinha de melhor, por falta de planejamento, por falta de gestão e por interesse político."

Assim, o Brasil começa 2021, segundo Pasternak, com uma superestrutura para a vacinação, mas sem vacina. "Não foram feitos acordos internacionais em números suficientes para garantir o número de doses necessárias para vacinar uma população tão grande como a nossa", diz. 

Neste momento, o governo brasileiro só fechou um contrato, com o laboratório AstraZeneca, cuja vacina vai atrasar. E o governo paulista tem um contrato com a chinesa Sinuvac, cuja vacina Coronavac ainda está cercada de dúvidas frente à sua eficácia. E que sofreu ataques fortes pelo governo de Jair Bolsonaro por ser a 'vacina chinesa".

"Provavelmente não vamos conseguir vacinas toda a população em 2021", avalia Pasternak. Mas ela espera que, pelo menos, será possível vacinar uma parte tão grande que "vamos poder retomar um pouco da nossa vida normal, da nossa economia, da nossa sociedade".

Podia ter sido melhor. "Não houve vontade política, e não houve - até este momento - uma conscientização da gravidade da situação. Nem pelo governo federal e nem por grande parte da população, como estamos vendo agora com as festas de final do ano", afirma. "As pessoas ainda não entenderam que elas tem um papel para cumprir na prevenção da doença. O comportamento delas pode definir como será o nosso ano de 2021." 

Para o economista Neri, o Brasil ainda não chegou no fundo do poço "Talvez a gente estivesse com a cara surpreendentemente para fora do poço. Só que a gente vai voltar para o poço. Podemos até chegar a um lugar mais baixo no fundo do poço do que a gente estava antes da crise", diz. Mas o economista não é só pessimista. "Às vezes, o Brasil, quando está na beira do abismo, começa a fazer coisas para não cair."

Deutsche Welle, em 29.12.2020

O ano em que o Brasil virou pária

Gestão desastrosa da pandemia e antagonismo com parceiros aceleraram isolamento do país, em processo celebrado pelo governo como conquista. Hoje, nenhuma nação da estatura do Brasil tem reputação tão ruim no mundo.

Em outubro, o ministro Ernesto Araújo disse que, se a atual política externa do Brasil "faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária".

A fala de Araújo escancarou pelo segundo ano consecutivo o isolamento do país no cenário internacional, e que o quadro não vem ocorrendo por acidente, mas aparentemente como um projeto voluntário do governo Bolsonaro.

Em 2019, a diplomacia brasileira já havia se tornado uma "caixinha de surpresas" propensa a alimentar crises regulares, com desprezo ao multilateralismo e instituições internacionais.

Em 2020, em vez de reverter esse "novo curso" que só empurrou o país para um isolamento nunca visto desde a redemocratização, o governo trilhou o mesmo caminho, dobrando a aposta em cada crise e erodindo ainda mais o soft power acumulado pelo país nas últimas décadas.

O Brasil continuou a se distanciar dos seus vizinhos latino-americanos; foi na contramão de boa parte do mundo na gestão da pandemia de covid-19; fez apostas fracassadas como a manutenção de uma pretensa relação especial com Donald Trump; se viu excluído de debates onde o país costumava ter voz ativa, como a questão do meio ambiente; e reforçou uma política de hostilidade a grandes parceiros comerciais, como a União Europeia e a China.

"Nenhum país da estatura do Brasil tem reputação tão ruim", diagnosticou o diplomata Rubens Ricupero em abril. "A imagem positiva acabou", apontou Friedrich Prot von Kunow, presidente da Sociedade Brasil-Alemanha (DBG) e que foi embaixador no Brasil entre 2004 e 2009.

Mas a diplomacia da maior economia da América Latina já demonstrou não ligar para esses diagnósticos. "Esse pária aqui, esse Brasil, essa política do povo brasileiro, tem conseguido resultados", completou Araújo no seu discurso em outubro.

Entre os "resultados" da diplomacia bolsonarista estão: a continuidade da perda de apoio para o acordo entre Mercosul e União Europeia mesmo entre países europeus mais simpáticos ao pacto, como a Alemanha; e até a perspectiva da imposição de sanções internacionais ao país por causa da sua gestão relapsa do desmatamento.

Bolsonaro e Ernesto Araújo. Juntos, os dois colocaram o Brasil numa posição de isolamento nunca vista desde a redemocratização

Se em 2019 algumas das ações da diplomacia bolsonarista ainda provocavam alguma reação de setores do governo, temorosos de possíveis consequências econômicas, como as alas militar e do agronegócio, o mesmo não foi observado de 2020.

Araújo continuou a ter mão livre no Itamaraty para implementar sua agenda "antiglobalista” na máquina diplomática brasileira, endossando ataques de um dos filhos do presidente à China e transformando o ministério num palco de palestras para blogueiros propagadores de fake news.

A imagem do país como vilão ambiental continuou a se firmar no exterior, graças à persistência do desmatamento e a péssima repercussão de falas e ações do ministro Ricardo Salles, que reforçaram a pressão na Europa pelo boicote a produtos brasileiros.

Se houve alguma reação para frear a nova diplomacia bolsonarista, ela veio do Congresso brasileiro. Em dezembro, em uma derrota estrondosa para o Itamaraty bolsonarista, um embaixador indicado por Araújo para um posto em Genebra foi rejeitado pelo Senado por 37 votos a 0. Foi apenas a terceira rejeição do tipo na história da Casa. Apenas governos enfraquecidos como a segunda administração Dilma Rousseff (2015) e Jânio Quadros (1961) haviam sofrido derrotas similares em indicações para postos diplomáticos.

A cegueira em relação aos EUA

O alinhamento sem ressalvas ao EUA de Donald Trump se aprofundou em 2020. O governo colheu alguns frutos dessa aliança, como as assinaturas de um acordo militar e de tratados comerciais. No entanto, Brasília continuou a fazer concessões generosas – como isenções na importação de etanol dos EUA – e ainda teve que engolir medidas por Washington para reduzir a entrada de aço e alumínio brasileiros, que exemplificaram a relação desigual entre os dois países.

Bolsonaro também continuou a manifestar sua idolatria por Trump, torcendo abertamente pela reeleição do republicano, para o desânimo de diplomatas veteranos, que alertaram sobre os riscos de a bajulação do brasileiro queimar pontes com os democratas.

Bolsonaro e Trump em março. Brasileiro foi aos EUA para assinar acordo militar, mas viagem ganhou notoriedade pela quantidade membros da comitiva que voltaram com covid-19

Em 2019, Bolsonaro já havia exibido comportamento similar em relação às disputas presidenciais na Argentina e no Uruguai. No entanto, a atitude com a eleição nos EUA foi mais longe. Semanas antes do pleito, o governo Bolsonaro chegou a fornecer um palco em Roraima para que o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, fizesse um duro discurso contra o regime chavista, no que foi encarado como um gesto para conquistar o voto conservador latino no estado da Flórida.

Depois do pleito, Bolsonaro também endossou acusações sem provas de Trump de que a eleição foi marcada por fraudes. "Tenho minhas fontes", disse Bolsonaro. Pouco depois, a imprensa revelou qual seria essa "fonte": o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster. Em vez de fornecer informações precisas sobre o que se passava nos EUA – algo que se espera de qualquer diplomata –, Forster simplesmente repassou o discurso repleto de fake news do líder republicano, mesmo diante da vitória incontestável do democrata Joe Biden, num sinal de como o serviço diplomático brasileiro foi contaminado pela visão fanática de Araújo.

Municiado com o que queria ouvir – e não com o que realmente se passava –, Bolsonaro se recusou por semanas a reconhecer a vitória de Biden, permanecendo em companhia de outros párias internacionais como a Rússia e Coreia do Norte. Quando o resultado foi oficializado pelo colégio eleitoral em 14 de dezembro, o Brasil foi o último país do G20 a finalmente reconhecer Biden.

A vitória democrata não marcou apenas uma decepção pessoal para Bolsonaro e Araújo. Também sinaliza mais problemas para o Brasil. Biden, que prometeu adotar uma política ambiental oposta a de Trump, chegou a mencionar em setembro a possibilidade de impor sanções ao Brasil por causa da má gestão do país na questão do desmatamento. Em resposta, Bolsonaro insinuou a possibilidade de um conflito militar entre o Brasil e o novo governo americano em relação à Amazônia.

Covid-19: na contramão do mundo

Em abril, ainda da primeira fase da pandemia, Araújo explicou como a diplomacia brasileira deveria encarar a pandemia. A prioridade não era a busca de cooperação internacional contra o coronavírus, mas o que o ministro chamou de "comunavírus", que seria uma conspiração "comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado".

O Brasil seguiu sem ressalvas o americano Trump em uma ofensiva contra a Organização Mundial da Saúde. O comportamento permaneceu intocado até mesmo depois da derrota eleitoral do republicano.

O americano Mike Pompeo e Araújo em Roraima. Governo Bolsonaro forneceu palco para que o secretário de Estado fizesse um afago no eleitorado latino da Flórida

Ao longo da pandemia, Bolsonaro também adotou um comportamento pessoal que emulou o roteiro inicialmente desenhado por Trump: minimizar o vírus, sabotar esforços de distanciamento e promover "curas" sem comprovação científica. Trump, no entanto, respondeu citando o Brasil como "mau exemplo" de gestão da pandemia, em parte para tirar o foco de suas próprias ações desastradas.

Mas Bolsonaro também logo superaria seu homólogo americano. Apesar de ter minimizado a covid-19, Trump direcionou recursos robustos para o desenvolvimento de uma vacina, que já começou a ser aplicada nos EUA.

Bolsonaro, em contraste, pouco fez para garantir a imunização em massa. O Brasil segue atrás até mesmo de outras nações da América Latina. "Não dou bola para isso”, disse Bolsonaro logo depois do Natal.

O líder brasileiro ainda tem alimentando paranoia sobre os imunizantes, afirmando que não pretende se vacinar. É o único chefe de estado ou de governo do mundo que vem agindo contra esforços de imunização em massa. O brasileiro também não manifestou interesse em participar de reuniões internacionais sobre a gestão da crise.

O comportamento rendeu a Bolsonaro comparações no exterior com outros líderes que preferiram ignorar a pandemia, como os ditadores de Belarus, Nicarágua e do Turcomenistão, outros personagens da "Aliança de Avestruz", como definiu o Financial Times.

Antagonismo renovado contra a China

Em 2019, o governo Bolsonaro já havia ensaiado atritos com a China, mas o comportamento foi interrompido após reclamações de exportadores, temerosos de alguma retaliação do maior parceiro comercial do país.

Em 2020, tais freios não fizeram diferença.  Em dois episódios distintos, em março e novembro, Eduardo Bolsonaro, o filho "03” do presidente –que atua muitas vezes como eminência parda do Itamaraty –, lançou ataques contra o governo chinês em questões como a gestão da pandemia e o 5G. Em abril, quando ainda ocupava o cargo de ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou um tuite racista que ridicularizou o sotaque chinês, acusando ainda o país asiático de planejar dominar o mundo. Como reforço, redes ligadas à família Bolsonaro espalharam mensagens xenófobas e paranoicas contra os chineses, como teorias conspiratórias de que o vírus havia sido criado em laboratório.

Os chineses, que por décadas exerceram uma diplomacia discreta, reagiram com uma fúria inédita em relação ao Brasil. Em março, o embaixador chinês no Brasil afirmou que Eduardo Bolsonaro havia contraído um "vírus mental”. Em novembro, a embaixada elevou o tom outra vez e disse que o Brasil poderia vir a "arcar com consequências negativas” caso persistisse nessa rota. Em vez de tentar acalmar a situação, o ministro Araújo repreendeu os chineses pela reação e pediu retratação.

A advertência provocou temores de alguma retaliação econômica, como as tarifas que Pequim impôs à Austrália ao longo do ano em produtos como cevada e carne bovina, no que foi encarado como uma reação de Pequim às críticas de autoridades australianas sobre a gestão da pandemia no país asiático.

Pouco caso em relação aos vizinhos

Antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro e sua equipe manifestaram desprezo pelo Mercosul. Em 2019, o presidente chegou a afirmar que poderia retirar o Brasil do bloco caso a Argentina "criasse problemas" sob o governo de Alberto Férnandez. Em 2020, a relação com o maior parceiro comercial do Brasil na América do Sul não melhorou. Desde a posse de Férnandez, em dezembro de 2019, o líder brasileiro só foi conversar pela primeira vez com seu homólogo argentino no fim de novembro.

No segundo ano de governo, a diplomacia bolsonarista evitou até mesmo se aproximar de governos com quem poderia ter mais afinidade ideológica, como o colombiano Iván Duque e o chileno Sebastián Piñera. Foram raras as ocasiões em que Bolsonaro dialogou com os dois líderes em 2020.

Bolsonaro também evitou participar em dezembro de duas reuniões virtuais organizadas por Piñera que envolveram a Aliança para o Pacífico e o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), organização que o Brasil aderiu em 2019 durante o esvaziamento da Unasul. O objetivo do último encontro era discutir a propagação do coronavírus pela América do Sul.

Já o alinhamento automático do Brasil com os EUA esvaziaram outros mecanismos, como o Grupo de Lima (formado por 14 países da região), criado para encontrar uma solução para a crise da Venezuela. Hoje, o Brasil se limita a discutir a situação do país vizinho essencialmente com os EUA. Em janeiro, a diplomacia bolsonarista também decidiu retirar o Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que reúne 33 países.

Vilão ambiental, mais uma vez

Em 2020, a pandemia obscureceu a pauta ecológica, mas o derretimento da imagem brasileira na área persistiu, desta vez com o reforço das queimadas no Pantanal A fala de Ricardo Salles sobre aproveitar a crise para desmantelar regulamentos ambientais provocou ultraje entre organizações do exterior e parlamentares europeus.

Petições também foram lançadas na Alemanha e Reino Unido para pressionar redes de supermercado a boicotarem produtos brasileiros. As redes responderam ameaçando aderir ao boicote caso inciativas como a MP da grilagem" fossem aprovadas no Brasil. Em junho, foi a vez de 29 fundos de investimento e pensão, que administram US$ 4,1 trilhões, alertarem contra a o projeto e sobre o aumento do desmatamento no Brasil.

Em 2019 o governo brasileiro havia respondido iniciativas similares com insultos. Neste ano, ocorreram novas reações agressivas – como a bravata de Bolsonaro sobre a divulgação de uma lista de países que compram madeira ilegal do Brasil –, mas o governo tentou lançar algumas iniciativas para melhorar a imagem, que, porém, se revelaram amadoras.

Protesto do Greenpeace em Berlim contra a destruição da Amazônia. ONGs continuaram a ser alvos do governo Bolsonaro em 2020

No início de novembro, o vice-presidente Hamilton Mourão, que assumiu a tarefa de combater às queimadas, convidou embaixadores europeus para um giro pela Amazônia. A iniciativa não impressionou. O representante da Alemanha afirmou que a percepção alemã sobre a destruição da floresta não mudou.

Ao longo de 2020, os alemães e os noruegueses continuaram a bloquear recursos do Fundo Amazônia diante da falta de empenho brasileiro em combater o desmatamento e em reverter decisões unilaterais por parte de Brasília que mudaram a gestão dos recursos.

Ao mesmo tempo em que tentava cultivar os embaixadores, o governo brasileiro lançou uma campanha publicitária para questionar "interesses nem sempre claros na Amazônia”, insinuando que estrangeiros querem se apossar da floresta. Mourão, por sua vez, divulgou no Twitter um vídeo com texto em inglês que contestava a escala das queimadas na Amazônia – só que as imagens mostravam um mico-leão-dourado, animal típico da Mata Atlântica.

O país também continuou a perder espaço nas discussões internacionais sobre as mudanças climáticas, onde o país costumava ter uma voz ativa. Em dezembro, o país ficou de fora da lista de palestrantes da Cúpula da Ambição Climática 2020, organizada pela ONU. Em novembro, o Bolsonaro já tinha evitado participar de uma reunião do G20 sobre clima.

Em 2021, o país enfrenta a perspectiva de mais pressão internacional sobre o tema, especialmente com a chegada de um reforço no campo ambiental: o governo Biden, que promete recolocar os EUA na agenda de combate às mudanças climáticas.

A agonia do "grande trunfo" de 2019

A questão ambiental continuou a erodir o que foi promovido em 2019 pelo governo Bolsonaro como seu maior feito diplomático: a assinatura do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. No ano passado, as queimadas, o desmatamento e a retórica agressiva de Bolsonaro já tinham alimentando a rejeição ao tratado em vários países da Europa.

No entanto, em 2020, o acordo começou a perder apoio até mesmo entre países europeus que ainda manifestavam entusiasmo pelo pacto, notadamente a Alemanha. Merkel disse em agosto que tinha "sérias dúvidas" sobre o tratado. Sua ministra da Agricultura foi mais explícita e se posicionou contra o acordo. O governo Merkel também admitiu em setembro que a cooperação com o governo federal brasileiro está sendo cada vez mais difícil.

Em junho, o parlamento da Holanda aprovou uma moção para que o governo rejeite o pacto, se juntando aos legislativos da Áustria e Valônia (região da Bélgica), que em 2019 já haviam tomado essa iniciativa.

Em outubro, foi a vez de o Parlamento Europeu apontar que não ratificará o acordo "na sua forma atual". Já a França, a principal opositora do pacto, reforçou sua posição com a divulgação de um relatório sobre potenciais efeitos do tratado sobre o meio ambiente. O país ainda lançou um plano para expandir o cultivo de leguminosas em solo francês e diminuir a dependência à soja brasileira.

Jean-Philip Struck para Deutsche Welle, em 29.12.2020.



Coronavírus: Mortes no Brasil passam de 1,1 mil em 24h

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país


Profissional da saúde cuida de paciente na UTI covid do hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto AlegreCRÉDITO,DIEGO VARAS/REUTERS

O Brasil teve 1.111 mortos e 58,7 mil novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24h, segundo o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) de terça-feira (29/12).

Com isso, desde o início da pandemia, o total de casos do país chegou a 7.563.551 e o de óbitos, a 192.681.

O estado com o maior número de vítimas fatais é São Paulo (46.195), seguido do Rio de Janeiro (25.078) e Minas Gerais (11.615).

O Brasil continua como o segundo país com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 336,9 mil óbitos por covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (10,2 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (19,4 milhões).

BBC News Brasil