segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Artigo: O telefonema de Trump equivale a orquestração de golpe

Em ligação revelada pelo Washington Post, presidente americano pressiona secretário de estado da Geórgia a 'encontrar' votos para reverter vitória de Biden

 Como o menino assombrado por fantasmas no filme de terror “O sexto sentido”, o presidente Donald Trump vê pessoas mortas por toda parte. Ele acha que pelo menos 5 mil delas votaram na Geórgia durante a eleição presidencial e fizeram parte de uma conspiração mais ampla que o privou de uma vitória no estado.

Em um telefonema desequilibrado e extraordinário no sábado para o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, e Ryan Germany, assessor jurídico de Raffensperger, Trump tentou forçá-los a admitir que o presidente eleito Joe Biden não tinha realmente assegurado 11.799 votos a mais que ele. E os encorajou a encontrar maneiras de invalidar esses votos, de acordo com uma gravação da conversa obtida no domingo pelo Washington Post.

— Então, o que vamos fazer sobre isso, pessoal? — Trump perguntou durante a ligação de uma hora. — Eu só preciso de 11 mil votos, pessoal.

Trump, que supervisionará o Departamento de Justiça por mais 16 dias até a posse de Biden, também ameaçou os dois homens, alertando que eles poderiam ser acusados de um crime se não apoiassem seu conto de fadas de fraude eleitoral.

O telefonema mostrou como soam corrupção e o desejo de orquestrar um golpe político, mas, felizmente, Raffensperger e Germany não foram influenciados.

— Bem, senhor presidente, o desafio que você tem é que os seus dados estão errados — disse Raffensperger a Trump, que continuou tentando cooptá-lo a qualquer custo.

— O que estamos vendo não é o que você está descrevendo — disse Germany.

Trump está nisso há décadas, então não há nada surpreendente. Ele passou anos tentando intimidar, comprar ou corromper reguladores, políticos, policiais e outros que encontrou pelo seu caminho como empresário do ramo imobiliário, operador de cassino, apresentador de TV e político. Ele sofreu um processo de impeachment por pressionar o presidente da Ucrânia a investigar Joe Biden e descobrir escândalos que minariam a candidatura do democrata.

Mas é surpreendente a facilidade com que Trump continua a corromper tantos ao seu redor. Muito poucos em seu partido estão dispostos a dizer ao presidente, como Germany fez, que a realidade não condiz com suas mentiras. Amedrontados pela força política de Trump ou ansiosos para pular em seu trem da alegria, muito poucos estão dispostos a abandoná-lo publicamente para que a fé dos eleitores no processo eleitoral, na democracia e no Estado de Direito não seja permanentemente prejudicada.

Em vez disso, temos alguns dos operadores mais caricatos e perigosos de Trump entrando em ação. Seu chefe de gabinete, Mark Meadows, encorajou as autoridades da Geórgia durante a ligação a analisar os resultados das eleições "mais plenamente" e, "no espírito de cooperação", a "encontrar um caminho a seguir" fora do sistema judicial (que já rejeitou as alegações de fraude de Trump). No sábado à noite, Meadows acessou o Twitter para incentivar os membros do Congresso a se opor à certificação da eleição presidencial em 6 de janeiro. “É hora de contra-atacar”, aconselhou ele.

Na semana passada, o senador Josh Hawley, um republicano do Missouri, disse que planejava se opor à certificação, citando especificamente os resultados da Pensilvânia. Onze outros senadores republicanos, incluindo Ted Cruz, do Texas, disseram desde então que vão votar para bloquear a vitória de Biden e demandaram uma auditoria das eleições;

Isso é uma performance artística para um público no Salão Oval e nos estados de origem dos senadores. Não impedirá Biden de se tornar presidente, mas incorpora ainda mais o trumpismo como um princípio operacional no Partido Republicano e no governo federal.

Sete republicanos na Câmara dos Representantes romperam com seu partido e disseram que qualquer tentativa de rejeitar os votos dos delegados dos estados ao Colégio Eleitoral é inconstitucional. Alguns membros do Senado, incluindo Mitch McConnell, Mitt Romney, Lisa Murkowski e Pat Toomey, disseram quase o mesmo. Posso estar esquecendo alguns nomes, mas apenas uma pequena parte dos 249 republicanos no Congresso se manifestou. Imagine como o Partido Republicano teria reagido se Barack Obama tentasse corromper um secretário de Estado para anular os resultados das eleições e compare com o silêncio que envolve o partido agora.

Mesmo se Trump conseguisse derrubar os resultados da Geórgia, isso não forneceria os votos no Colégio Eleitoral de que ele precisa para superar Biden, que teve 306 votos, 36 a mais do que a maioria necessária para a vitória. Certamente, ele está ciente disso, mas ele está tão inquieto — e tão incapaz de aceitar a derrota— que está disposto a tentar incendiar a democracia para se acalmar. Ele também está convocando comícios que podem muito bem se transformar em tumultos em Washington na quarta-feira. Como tudo isso se desdobrará dirá respeito, em parte, ao futuro das instituições, processos e eleitores que Trump gastou tanto tempo envenenando.

Um governo que começou com a revelação de uma antiga gravação dos bastidores do programa Acess Hollywood — no qual Trump descrevia, com linguagem vulgar e palavrões, seus métodos para seduzir mulheres — está terminando na sombra de uma gravação que poderia se chamar “Access Georgia”, igualmente escandalosa. Embora seja possível que Trump tenha cometido um crime ao tentar interferir nas eleições federais e estaduais durante o telefonema, pode não haver tempo ou provas suficientes para fazer algo a respeito.

— Que idiota eu fui — disse Trump a certa altura, lamentando a falta de apoio que sentiu ter recebido do governador da Geórgia. — Mas é assim que as coisas são. É assim que as coisas são.

De fato.

Timothy L. O'Brien, da Bloomberg. Publicado por O Globo, em 04.01.2021.


Nenhum comentário: