terça-feira, 24 de novembro de 2020

ONU pede reformas urgentes contra racismo estrutural no Brasil

Alto Comissariado para os Direitos Humanos condena morte de Beto Freitas em Carrefour como ato deplorável e insta governo brasileiro a reconhecer o racismo persistente no país. "É o primeiro passo para combatê-lo."

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos condenou nesta terça-feira (24/11) o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, ocorrido num supermercado Carrefour em Porto Alegre, como "deplorável" e uma triste amostra do racismo estrutural que aflige o país.

Segundo a entidade, a morte do homem negro de 40 anos "é um exemplo extremo, mas infelizmente muito comum, da violência sofrida pelos negros no Brasil".

O crime "oferece uma ilustração nítida da persistente discriminação e racismo estruturais que as pessoas de ascendência africana enfrentam", prossegue Ravina Shamdasani, porta-voz da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, em comunicado.

"O legado do passado ainda está presente na sociedade brasileira, assim como em outros países. Os negros brasileiros enfrentam racismo, exclusão, marginalização e violência estrutural e institucional, com – em muitos casos – consequências letais. Os afro-brasileiros são excluídos e quase invisíveis das estruturas e instituições de tomada de decisão", destaca o texto.

Beto Freitas foi morto na quinta-feira passada, 19 de novembro, por dois seguranças de uma unidade do Carrefour, dois homens brancos, que o espancaram até a morte no estacionamento do supermercado localizado no bairro Passo D'Areia, na capital gaúcha.

"Esse ato deplorável, que aconteceu tragicamente na véspera do Dia da Consciência Negra no Brasil, deve ser condenado por todos", diz o texto das Nações Unidas.

A porta-voz de Bachelet afirma ainda que o governo brasileiro "tem uma responsabilidade particular de reconhecer o problema subjacente do persistente racismo no país, pois este é o primeiro passo essencial para resolvê-lo".

O apelo veio após o presidente Jair Bolsonaro, dois dias depois do crime, usar linguagem típica de teóricos da conspiração para denunciar o que chamou de tentativa de gerar tensões raciais artificiais no Brasil. Segundo ele, a luta por igualdade ou justiça social mascara uma busca pelo poder.

O vice-presidente Hamilton Mourão, por sua vez, declarou que não existe racismo no país, ao ser questionado se a morte pode ter sido motivada por questões raciais. "Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade, não tem racismo", disse Mourão no Dia da Consciência Negra, um dia após o crime.

O Alto Comissariado da ONU continua sua declaração afirmando que "o racismo, a discriminação e a violência estruturais contra afrodescendentes no Brasil são documentados por dados oficiais, que indicam que o número de vítimas afro-brasileiras de homicídio é desproporcionalmente maior do que outros grupos", e que negros também são maioria nas prisões brasileiras.

Assim, a entidade pede que a investigação da morte seja "rápida, completa, independente, imparcial e transparente", a fim de assegurar a justiça e a verdade, bem como a devida "reparação" para a família de Silveira Freitas.

Também solicita às autoridades que investiguem quaisquer alegações de uso desnecessário e desproporcional da força contra pessoas que protestam pacificamente após o episódio no Carrefour.

"Este caso e a indignação generalizada que ele provocou destacam a necessidade urgente das autoridades brasileiras de combater o racismo e a discriminação racial em estreita coordenação com todos os grupos da sociedade, especialmente os mais afetados", diz o comunicado.

"Estereótipos raciais profundamente enraizados"

A porta-voz destaca ainda que o Brasil necessita de "reformas urgentes nas leis, instituições e políticas, incluindo ações afirmativas". "Os estereótipos raciais profundamente enraizados, inclusive entre os funcionários da polícia e do judiciário, devem ser combatidos", completa.

"As autoridades também devem intensificar a educação em direitos humanos, a fim de promover uma melhor compreensão das raízes do racismo, e fazer um maior esforço para encorajar o respeito à diversidade e o multiculturalismo, e promover um conhecimento mais profundo da cultura e história dos afro-brasileiros, bem como de sua contribuição para a sociedade brasileira."

Contudo, a ONU observa que, embora o Estado tenha o "dever de prevenir e reparar as violações dos direitos humanos", as empresas, como o Carrefour, também têm a "responsabilidade de respeitar os direitos humanos em todas as suas operações e relações comerciais".

"Essa responsabilidade exige que uma empresa conduza a devida diligência para prevenir, identificar e mitigar os riscos para os direitos humanos, incluindo na contratação de segurança privada", diz a porta-voz, lembrando que o Carrefour faz parte do Pacto Global da ONU, iniciativa para encorajar empresas a adotar políticas de responsabilidade social corporativa e de sustentabilidade.

Dessa forma, a rede de supermercados "deve explicar se – e como – avaliou os riscos para os direitos humanos associados à contratação da empresa, e que medidas tomou para mitigar tais riscos a fim de prevenir uma tragédia como esta", instou a entidade das Nações Unidas.

O Carrefour qualificou a morte de brutal e comunicou que irá romper o contrato com a empresa de segurança e demitir funcionários envolvidos no caso. A empresa também anunciou a criação de um fundo de R$ 25 milhões para combater o racismo.

Os negros representam 56% da população brasileira e também são os que mais morrem, ganham menos e sofrem mais com o desemprego no país. Segundo dados do Atlas da Violência 2020, 75% das vítimas de homicídios no Brasil em 2018 eram negras.

A taxa de homicídios de negros no país subiu de 34 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2008, para 37,8, em 2018, um aumento de 11,5% na década, enquanto o número de assassinatos entre não negros caiu 12,9% no mesmo período.

Deutsche Welle, 24.11.2020

Insegurança inflacionária

A inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa 'Focus'. É uma má notícia para os consumidores.

Pesadelo da maior parte das famílias, a inflação estimada para o ano subiu pela 15.ª semana consecutiva, segundo a pesquisa Focus, uma consulta feita pelo Banco Central (BC) junto a cerca de cem instituições do mercado financeiro. Em um mês a mediana das projeções para 2020 subiu de 2,99% para 3,45%. No mesmo intervalo a alta de preços calculada para o próximo ano passou de 3,10% para 3,40%. São más notícias para os consumidores, especialmente num período de pouco emprego, renda baixa e muita insegurança. Mas o quadro inclui pelo menos um aspecto positivo, ou menos sombrio. Se as expectativas se confirmarem, a inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), continuará abaixo da meta, de 4% neste ano e de 3,75% em 2021.

Com a inflação abaixo da meta, a taxa básica de juros, a Selic, deve ficar em 2% até o fim do ano, segundo a pesquisa Focus divulgada ontem. O superendividado Tesouro Nacional encerrará 2020 carregando juros excepcionalmente baixos. Para o fim de 2021 a projeção indica, no entanto, uma taxa de 3%, 0,25 ponto superior àquela estimada quatro semanas antes.

Essa projeção pode parecer estranha, à primeira vista. No Brasil, como na maior parte do mundo, os dirigentes dos bancos centrais têm-se mostrado dispostos a manter a política de juros baixos e crédito fácil por muito tempo, para dar espaço à recuperação dos negócios e do emprego.

No caso brasileiro, a orientação será mantida, segundo a autoridade monetária, enquanto duas condições forem observadas: 1) a expectativa de inflação deve permanecer compatível com a meta; 2) o Executivo deve manter o compromisso de condução responsável das contas públicas. Deste compromisso dependerá a evolução da dívida bruta.

Dúvidas sobre o compromisso com a responsabilidade fiscal continuam marcando o dia a dia do mercado. As preocupações aparecem na oscilação dos juros e, de modo mais sensível, na instabilidade cambial. O dólar tem estado mais barato do que até recentemente, mas sem sinal de acomodação. A cotação da moeda americana caiu, na manhã de ontem, mas em seguida subiu, depois de uma fala do ministro da Economia, Paulo Guedes. A fala, segundo fontes do setor financeiro, decepcionou quem esperava alguma indicação positiva sobre as condições fiscais em 2021.

A cobrança de sinais mais claros sobre a condução das finanças públicas tem sido feita, de modo muito diplomático, também pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto. Executivos do mercado financeiro também têm mostrado inquietação diante do cenário fiscal obscuro. O Orçamento federal do próximo ano continuava indefinido ontem. Não se sabia se a programação financeira do poder central para 2021 estará mais clara no fim de novembro.

A incerteza sobre as contas públicas pode afetar perigosamente as expectativas de inflação. A instabilidade cambial é uma das formas de transmissão da insegurança para os preços. O efeito inflacionário da alta do dólar tem sido facilmente observado. Mas o desajuste das contas fiscais pode afetar os preços de forma ainda mais desastrosa.

Um amplo desarranjo das finanças oficiais pode produzir, nos casos mais graves, a chamada dominância fiscal. Quando isso ocorre, o aperto da política monetária pelo BC deixa de funcionar como remédio para a inflação. Pior que isso: produz o efeito contrário.

Uma elevação de juros pode normalmente gerar duas consequências, a contenção de preços e o encarecimento da dívida pública. Em situações de dominância fiscal, a desconfiança crescente em relação à dívida afeta o fluxo de recursos, mexe no câmbio e realimenta a inflação. O aperto monetário deixa de funcionar como instrumento de ajuste e se converte em fator inflacionário, gerando uma situação descrita por alguns economistas como o pior dos mundos. Não há, até agora, dominância fiscal no Brasil. Mas sobram razões para o governo se comprometer claramente com a seriedade fiscal e com o controle da dívida, deixando em segundo plano os objetivos pessoais do presidente da República.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.11.2020

Partido idealizado por Bolsonaro não obtém 10% de apoio

Lançado há um ano, Aliança pelo Brasil ainda é uma incógnita; brigas internas podem inviabilizar sigla que abrigaria presidente

Lançado em novembro do ano passado para ser o partido de Jair Bolsonaro, o Aliança pelo Brasil ainda é uma incógnita e ninguém arrisca dizer se, de fato, o projeto sairá do papel para abrigar a candidatura à reeleição do presidente, em 2022. Nem ele próprio, que já admite a possibilidade de se filiar a outra sigla em março de 2021.

Até agora, o Aliança conseguiu apenas 10% das assinaturas necessárias para impulsionar o projeto de Bolsonaro. O presidente deixou o PSL, legenda pela qual se elegeu, há um ano, após muitas disputas pelo controle da máquina partidária e de seus recursos. Não teve força, porém, para pôr de pé a nova legenda.

“Não é fácil formar um partido hoje em dia. A gente está tentando, mas, se não conseguir, a gente em março vai ter uma nova opção”, afirmou Bolsonaro, nesta segunda-feira, 23, ao chegar ao Palácio da Alvorada, e responder a perguntas de uma mulher que disse fazer parte do Aliança pelo Brasil em União da Vitória, no Paraná.

Bolsonaro participa, por vídeo, de reunião do Aliança, em fevereiro; presidente já admitiu que pode escolher outra legenda caso partido não vingue Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

No papel, Bolsonaro é o presidente do Aliança. O advogado Luís Felipe Belmonte, vice-presidente do partido, disse que continua trabalhando para deixar a legenda pronta e entregá-la a Bolsonaro a tempo da campanha por um novo mandato. Belmonte afirmou, no entanto, que ele pode optar por outro partido.

“A única orientação que eu tenho dele (Bolsonaro) é para fazer o partido ficar pronto. Continuo com o mesmo propósito, mas, se depois de pronto ou até antes disso, tiver outra opção, eu não sei dizer porque é uma questão de conveniência política dele”, disse Belmonte ao Estadão. “A tendência é de que, ele tendo um partido próprio, esteja nesse partido”, emendou.

Legendas como Progressistas, PSL, Republicanos, PTB, Patriota e PL já acenaram ao chefe do Executivo. Caso Bolsonaro decida por um deles, e o Aliança se torne realidade depois, a nova sigla estará na base de apoio. “Não há nenhuma (chateação). Estamos criando um partido conservador, para abrigar pessoas com esses princípios que defendemos. Se, de repente, o presidente fizer outra opção, o Aliança será um partido aliado no grupo”, observou o advogado.

Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Aliança tem validadas, até hoje, 42.730 assinaturas das 492 mil necessárias. Ainda de acordo com a Justiça Eleitoral, o partido possui 103.482 fichas que precisam ser finalizadas para que sejam submetidas à apreciação do tribunal. Outras 5.010 aguardam análise e 6.548 entraram recentemente no sistema. Ao todo, 38.070 apoiadores foram rejeitados, incluindo 87 eleitores mortos e 24.680 filiados a outras siglas.

Belmonte disse que a pandemia do coronavírus atrapalhou a coleta de assinaturas e estipulou 31 de janeiro como nova data limite. Afirmou, no entanto, que já enviou ao sistema do TSE 180 mil fichas que estão à espera de verificação. No último fim de semana, de acordo com ele, o Aliança conseguiu coletar mais 40 mil assinaturas. Ao ser lançado, em 21 de novembro de 2019, dirigentes do novo partido previam que até março deste ano seria possível obter o apoio necessário para torná-lo viável a tempo de concorrer às eleições municipais.

Apoiadores de Bolsonaro que participaram da fundação do Aliança também colocaram em dúvida o futuro da legenda e citaram desentendimentos internos como um sinal de que o projeto pode naufragar. O Estadão apurou que Belmonte e o secretário-geral do Aliança, o advogado Admar Gonzaga, têm divergências com a advogada Karina Kufa, tesoureira do partido.

“Podemos dizer que hoje temos uma certa unidade de procedimentos e entendimentos. Todos remam na mesma direção. As divergências são operacionais, mas já estão solucionadas”, minimizou Belmonte.

O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), entusiasta do Aliança, disse que, se o partido for criado a tempo, lançará Bolsonaro à reeleição. “Seguimos trabalhando, mas sem saber se será o partido do presidente, em 2022. Se for criado, com certeza o presidente vai querer. Se não, já tem o plano B e o plano C também”, afirmou. Em agosto, Bolsonaro chegou a admitir até mesmo voltar para o PSL.

Jussara Soares, O Estado de S.Paulo / 24.11.2020

Uninove oferece bolsas integrais de mestrado em Direito

Estão abertas as inscrições para o mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho (Uninove), com prazo máximo no próximo dia 2 de dezembro.


Campus da Uninove na Barra Funda (SP)Wikimedia Commons

As bolsas de estudo são integrais, nas áreas de concentração Justiça, Empresa e Sustentabilidade, sobre as linhas de pesquisa de Justiça e o Paradigma da Eficiência ou Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito. A dedicação à produção de conhecimento é exigida em troca.

No site da Uninove, é possível acessar o edital do processo de seleção, a ficha de inscrição e outras informações complementares. (https://www.uninove.br/mestrado-e-doutorado/mestrado-em-direito/bolsa-de-estudos/ )

Consultor Jurídico

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Brasil tem mais 302 mortes ligadas à covid-19

País já soma mais de 169,4 mil óbitos em decorrência do coronavírus. Em 24 horas, 16 mil casos são registrados, elevando total de infectados para 6,08 milhões.

Funcionários de cemitério em São Paulo dispõem caixão em cova

O Brasil registrou oficialmente 302 mortes ligadas à covid-19 e 16.207 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (23/11) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com o novo número, o total de infectados no país vai a 6.087.608, enquanto o total de óbitos chega a 169.485. Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.210.625 casos e 41.276 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados na maioria dos países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia, França, Rússia, Espanha, Reino Unido, Itália, Argentina e Colômbia.

Minas Gerais é o segundo estado com maior número de casos, somando 398.014, seguido de Bahia (386.321), Rio de Janeiro (338.688), Santa Catarina (327.961) e Rio Grande do Sul (298.670).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 22.028 óbitos. Em seguida vêm Minas Gerais (9.794), Ceará (9.492), Pernambuco (8.926) e Bahia (8.123).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,7 no Brasil, uma das mais altas do mundo – só fica abaixo dos índices registrados na Bélgica (136,74), Peru (111,13), Espanha (91,21), Argentina (83,16), Reino Unido (82,90) e Itália (82,45), desconsiderando os países nanicos San Marino e Andorra.

A cifra brasileira também supera a dos EUA (78,49), nação mais atingida pela pandemia no planeta.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12,3 milhões de casos, e da Índia, com 9,1 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 257 mil pessoas.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando 133 mil.

Ao todo, mais de 59 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 1,39 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle


Governo Biden começa a tomar forma

Antony Blinken será nomeado secretário de Estado, e John Kerry será enviado especial para o clima. Equipe democrata ainda anuncia primeira mulher para chefiar inteligência e primeiro latino para imigração.

O presidente eleito Joe Biden (à direita) e o ex-secretário de Estado John Kerry

A menos de dois meses de assumir a Casa Branca, o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, indicou nesta segunda-feira (23/11) alguns dos principais nomes de seu futuro governo, entre eles o assessor de política externa de longa data Antony Blinken como secretário de Estado.

A equipe de transição de Biden também anunciou John Kerry, ex-secretário de Estado do governo Barack Obama, como enviado especial para o clima.

O advogado nascido em Cuba Alejandro Mayorkas será o primeiro latino a chefiar o Departamento de Segurança Interna, que supervisiona a imigração. E Avril Haines, ex-vice-diretora da CIA, será a primeira mulher a ocupar o cargo de diretora de inteligência nacional.

O presidente eleito também indicou a diplomata de longa data Linda Thomas-Greenfield como embaixadora americana nas Nações Unidas, que tem status de membro do gabinete.

Jake Sullivan, que foi assessor de segurança de Biden quando ele era vice-presidente de Obama, foi escolhido como conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca.

"Esses funcionários começarão a trabalhar imediatamente para reconstruir nossas instituições, renovar e reimaginar a liderança americana [...] e enfrentar os desafios definidores de nosso tempo – de doenças infecciosas ao terrorismo, proliferação nuclear, ameaças cibernéticas e mudanças climáticas", diz um comunicado da equipe de transição.

Citando fontes próximas a Biden, agências de notícias afirmaram que o presidente eleito nomeará ainda a ex-presidente do banco central americano (Federal Reserve, ou Fed) Janet Yellen como secretária do Tesouro. Ela não está entre os nomes anunciados pela equipe democrata, mas se for confirmada – e aprovada em seguida pelo Senado – será a primeira mulher a assumir esse cargo nos EUA.

Todos os seis indicados pela gestão democrata nesta segunda-feira são veteranos do governo Obama-Biden, entre 2009 e 2017, e têm grande experiência em suas respectivas áreas.

Kerry, que foi chefe da diplomacia americana entre 2013 e 2017 e assinou o acordo climático de Paris em 2015 em nome dos EUA – apenas para ver Donald Trump se retirar dele – será membro do Conselho de Segurança Nacional, que pela primeira vez terá um especialista em mudança climática. A indicação segue a promessa de Biden de combater o aquecimento global.

Já o ex-promotor federal Mayorkas, futuro secretário de Segurança Interna, foi diretor dos Serviços de Cidadania e Imigração dos EUA e, em seguida, ocupou o cargo de vice-secretário de Segurança Interna no governo Obama.

Sullivan, que assumirá o Conselho de Segurança Nacional, foi diretor da Equipe de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado e subchefe de gabinete da então secretária de Estado Hillary Clinton, tendo sido o principal representante americano nas primeiras negociações para o acordo nuclear com o Irã, do qual Trump também retirou os Estados Unidos.

Blinken, futuro secretário de Estado, é ex-número dois do Departamento de Estado e assessor de longa data. Como chefe da diplomacia, ele deverá liderar um desmantelamento acelerado das políticas de "América em primeiro lugar" de Trump, incluindo o retorno ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como ressuscitar o pacto iraniano.

"Não temos tempos a perder quando se trata de nossa segurança nacional e política externa", afirma o comunicado da equipe de Biden. "Esses indivíduos são tão experientes e testados em crises quanto são inovadores e criativos", acrescentou.

As escolhas sublinham uma ênfase em profissionais que Biden conhece bem, em contraste com a Casa Branca de Trump, em que os membros do governo eram frequentemente escolhidos sem ter uma formação ou carreira tradicional para o cargo – com alguns se mostrando incompatíveis e deixando suas funções num clima de desavença com o presidente.

Os anúncios desta segunda-feira, que antecedem a formalização dos nomes na terça, vêm num momento em que Trump se recusa a reconhecer a derrota nas eleições de 3 de novembro e bloqueia o acesso de Biden ao processo habitual de transição.

Deutsche Welle

Tudo que é estúpido se desmancha no ar

Alívio é anterior à derrota de Trump. Ele começa na prisão de Queiroz

Por Fernando Gabeira

No auge da quarentena, pensei que a última luta de minha vida seria contra um governo que destrói a natureza, a autoestima e a imagem internacional do Brasil. Confesso que dramatizei. Sinto-me aliviado agora e ouso fazer planos mais ambiciosos para depois da chegada da vacina.

O marco temporal dessa sensação de alívio é anterior à importante derrota de Donald Trump. Ele começa na prisão de Fabrício Queiroz. Ali emergiu com clareza o esquema de financiamento de Bolsonaro e seu clã. Ele não teria mais condições de pregar o fechamento do Congresso ou do STF. Os próprios militares, apesar de ambíguos até ali, não o seguiriam na aventura.

Bolsonaro não teve outro caminho além de buscar aliados no Congresso, precisamente aqueles para os quais o desvio de dinheiro público não é um pecado capital. E de se aproximar desse tipo de juiz brasileiro que não hesita em absolver quando há excesso de provas contra o acusado.

A eleição de Biden resultou de uma ampla compreensão de que era necessária uma frente para derrotar Donald Trump e o Partido Republicano. A própria esquerda dos democratas, que vive um momento de ascensão, decidiu conceder para que a vitória fosse possível.

Ao término das eleições municipais, comecei a duvidar se era mesmo necessária uma frente para derrotar Bolsonaro. A construção de um instrumento como esse dá muito trabalho. É preciso constantemente se livrar dos caçadores de hereges, como chamava Churchill os que dentro de uma frente ampla estreitam e intoxicam o espaço com uma permanente lavagem de roupa suja.

E se Bolsonaro se derreter com a rapidez com que se derrete Russomanno em suas campanhas? Ou mesmo se for resiliente como Crivella e chegar ao segundo turno com um índice de rejeição tão alto que perca para qualquer adversário?

Não consigo precisar o ritmo, mas acho que Bolsonaro toma decisões estúpidas diariamente e que ele vai se desmanchar no ar. Quando o vi selecionando uma lista de vereadores para apoiar, pensei: perdeu.

Não adianta conferir na urna se Wal do Açaí foi ou não eleita. Um presidente que se dedica a isso de certa forma está apenas dizendo que é pequeno demais para o cargo. Na verdade, essa é sua mensagem cotidiana.

A constatação, no entanto, não pode desmobilizar. Bolsonaro continua à frente de uma política anticientífica que pode nos custar mais vidas no combate ao coronavírus.

A inexistência de uma frente ampla não significa que ela não possa ser erguida em cada momento em que a democracia for claramente ameaçada.

Da mesma maneira, o fracasso de Bolsonaro não significa que possa ser subestimado. A extrema-direita vai ocupar um espaço, embora muito menor do que ocupou nas eleições de 2018. Assim como na França, ela pode também trocar de líder para se modernizar.

O quadro eleitoral na maior cidade do país — Covas/Boulos — nos remeteu à clássica polarização do período democrático. Ilusório também pensar que tudo será como antes.

O primeiro e grande tema de reflexão é este: Bolsonaro dissolve-se no ar, mas as condições que o fizeram ascender ao governo continuam vivas.

Este período dominado pelo discurso e prática da estupidez deveria ser usado para uma profunda crítica do processo de redemocratização. Mesmo sem a construção de uma frente ampla, a proximidade do abismo nos revelou como somos vulneráveis e semelhantes no ocaso da democracia.

Os Estados Unidos abriram o caminho livrando-se do grande pesadelo. Trilhar esse terreno minado será também de grande utilidade para o Brasil.

Afinal, são fenômenos políticos em realidades diferentes, mas partem de alguns pontos convergentes, como a aversão às iniciativas multilaterais.

Imitado por Bolsonaro, o isolamento americano abriu um imenso espaço. Biden representa uma correção de rumos, mas seria bom lembrar o tempo perdido: 15 nações asiáticas e da Oceania, representando um terço do PIB mundial, acabam de celebrar um acordo comercial de grande envergadura.

Aqui Bolsonaro briga com a Europa para defender grileiros, incendiários e contrabandistas de madeira. Aqui a Terra é plana, a hidroxicloroquina fabricada pelo Exército é remédio contra a Covid-19. Até quando não sei. Não passa de 2022, estou seguro.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado origibalmente em O Globo, edição de 23.11.2020.

Bolsonaro diz que testes quase vencidos foram distribuídos, mas material está com governo

Estadão revelou que 6,86 milhões de testes para o diagnóstico do novo coronavírus comprados pelo Ministério da Saúde estão em armazém e perdem a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021

 O presidente Jair Bolsonaro afirmou, nesta segunda-feira, 23, que são governadores e prefeitos, e não o governo federal, quem deve explicações sobre os 6,86 milhões de testes para o diagnóstico do novo coronavírus que estão "encalhados". Como revelou o Estadão, os exames comprados pelo Ministério da Saúde perdem a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021 e podem acabar no lixo. Cobrado sobre o assunto nas redes sociais, o presidente jogou a culpa em Estados e municípios.

"Todo o material foi enviado para Estados e municípios. Se algum Estado/município não utilizou deve apresentar seus motivos (sic.)", disse Bolsonaro a um apoiador que o questionou se a informação procedia.  Não é verdade que todo o material foi encaminhado. Como mostrou o Estadão, os testes estão num depósito do governo em Guarulhos e não foram repassados para a rede pública. Os dados sobre o prazo de validade dos testes em estoque estão registrados em documentos internos do próprio Ministério da Saúde.

Já o vice-presidente Hamilton Mourão, ao ser questionado sobre o assunto na manhã desta segunda-feira, disse "não estar ciente" e que cabe ao ministério apresentar os esclarecimentos. "Tem que buscar o esclarecimento lá com o Ministério da Saúde. Não estou ciente disso. Não é um assunto que passa por mim, não tenho o que declarar a respeito. Tem que ver lá com eles lá", afirmou o vice, encerrando a conversa com jornalistas no Palácio do Planalto.

Antes da declaração do presidente, os conselhos de secretários municipais (Conasems) e estaduais de Saúde (Conass) afirmaram que o ministério não entregou todos os kits de testes e máquinas para automatizar a análise das amostras que havia prometido. “O contrato que permitia o fornecimento de insumos e equipamentos necessários para automatizar e agilizar a primeira fase do processamento das amostras foi cancelado pelo Ministério da Saúde”, destacou o Conass. “Há o compromisso da pasta de manter o abastecimento durante o período de 3 meses, contados a partir do cancelamento. É fundamental, porém, que uma nova contratação seja feita e a distribuição dos insumos seja retomada em tempo hábil”, completou.

No domingo, o Estadão revelou que 7,1 milhões de exames estão em armazém do ministério, ou seja, não foram enviados ao SUS em plena pandemia. Do total estocado, 96% (cerca de 6,86 milhões de unidades) perdem a validade entre dezembro deste ano e janeiro de 2021. 

O estoque que pode ser inutilizado é maior do que os 5 milhões de testes PCR (considerado "padrão ouro" para detectar o vírus) já realizados pelo SUS na pandemia. O Ministério da Saúde afirma que já pediu estudos de estabilidade ao fabricante do teste para, na sequência, solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a prorrogação da validade do produto. 

O RT-PCR é um dos exames mais eficazes para diagnosticar a covid-19. A coleta é feita por meio de um cotonete aplicado na região nasal e faríngea (a região da garganta logo atrás do nariz e da boca) do paciente. Na rede privada, o exame custa de R$ 290 a R$ 400. As evidências de falhas de planejamento e logística no setor ocorrem num período de aumento dos casos no País.

Além de ser poderoso para o diagnóstico, o teste é ferramenta fundamental para a estratégia de controle da pandemia. Se for bem aplicado, o exame permite quebrar cadeias de infecção ao rastrear e isolar infectados, mesmo aqueles sem sintomas, e seus contatos próximos. 

O ministério chegou a lançar duas vezes o programa Diagnosticar para Cuidar, que previa 24,2 milhões de exames no SUS até dezembro. Só 20% foram feitos até agora. A pasta prometeu também insumos para entregar kits completos, mas os negócios foram travados por suspeita de irregularidades, hoje sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU).

Sem todos os equipamentos necessários para a testagem, Estados e municípios afirma que nem sequer dão conta das unidades que já receberam. O ministério informou no domingo, 22, que enviou 9,31 milhões de reações RT-PCR. O problema é que não basta este produto, e outros insumos foram entregues em quantidade inferior, como cotonetes e tubos para coleta do material do paciente, além de insumos para extração do RNA.

Além disso, a capacidade do SUS de processar as amostras em laboratório é baixa e, segundo os Estados e municípios, o ministério não entregou todos os equipamentos prometidos para equipar os Laboratórios Centrais (Lacens) das 27 unidades da federação.

Em nota divulgada no domingo, 22, o ministério disse que entrega os exames conforme demanda de Estados e municípios. A pasta afirmou ainda que não mediu esforços para compra de kits de testagem e investimentos em laboratórios. O ministério, porém, também omitiu no comunicado o tamanho de seu estoque. 

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo. Colaborou Emilly Behnke.

Os 74 milhões que votaram em Trump

Temos quatro anos para entender por que metade dos americanos ainda apoia o presidente republicano

Por Moisés Naím

Na recente eleição dos Estados Unidos, votou o maior número de pessoas em 120 anos. Quase 80 milhões votaram em Joe Biden e mais de 74 milhões, em Donald Trump. Eles se tornaram os dois políticos mais votados em toda a história do país. Imaginava-se que a pandemia e a campanha de Trump, prognosticando fraudes eleitorais, aumentariam a abstenção. Não foi o que ocorreu. Sessenta e sete por cento dos registrados votaram pessoalmente ou pelo correio.

A outra surpresa foram os 74 milhões de pessoas que votaram em Trump – 10 milhões a mais do que em 2016. Surpreenderam por causa daquilo pelo qual eles não importaram, e também por aquilo que importou. Por exemplo, eles não se importaram em votar em um presidente que mente de maneira constante e facilmente verificável. Mentir de modo compulsivo e comprovado não deveria ser suficiente para derrotá-lo nas urnas? Setenta e quatro milhões de americanos acham que não. Eles não acreditam que Trump seja um mentiroso, ou não se importam com isto, ou têm necessidade e esperanças mais importantes para eles do que a honestidade.

O fato de 26 mulheres terem se atrevido a se identificar publicamente e denunciar Trump por violência sexual, e que algumas o acusem de tê-las estuprado, não deveria ter feito com que ele perdesse o voto feminino? Não basta o vídeo do programa Access Hollywood, no qual Trump diz ao apresentador Billy Bush que “ser famoso permite que você faça o que quiser com as mulheres, inclusive agarrar sua genitália”? Não. Cerca da metade das mulheres brancas votou em Trump.


Apoiadores de Donald Trump em manifestação em Washington   Foto: Jacquelyn Martin/AP

Mas e se os 74 milhões não se importam com as múltiplas denúncias de assédio sexual contra o presidente, não deveriam importar-se com a saúde do planeta? Parece que não. Trump denunciou a luta contra o aquecimento global como uma armadilha da China para debilitar a economia americana. 

As decisões do presidente foram devastadoras para o meio ambiente. E muito lucrativas para as empresas mais poluidoras e para os lobistas que as representam. Importa aos eleitores de Trump que ele tenha nomeado para os principais cargos que deveriam regular as indústrias poluidoras os lobistas que representam essas mesmas indústrias? Obviamente, não.

Importa que o governo Trump seja caótico e inepto e tenha administrado mal a pandemia? Não parece. Os 74 milhões também não se importam com o fato de dois importantes documentos continuarem sigilosos: a declaração de renda de Trump e sua política sanitária. O que há na declaração para o presidente fazer tantos esforços para mantê-la fora do escrutínio público? Os eleitores não deveriam saber quais são os compromissos financeiros do presidente e com quem? Não deveriam saber se o presidente é um sonegador de impostos?

O outro documento que não aparece é o plano de Trump para a saúde. O presidente se dedicou a desmontar a política sanitária de Barack Obama, e prometeu reiteradamente que a substituiria por “algo muito melhor”. Os operadores políticos do presidente ofereceram uma montanha de documentos confusos, mas até agora não revelaram os detalhes do que seria este “melhor”. 

O que está claro é que eliminar a reforma sanitária de Obama sem ter com o que substituí-la será muito prejudicial para os cidadãos. Inclusive, evidentemente, para os 74 milhões que votaram nele. Ou eles não sabem disso, ou não acreditam nisso ou não se importam.

A lista de razões pelas quais não se devia votar em Trump é grande. Sua recusa em denunciar com firmeza os odiosos supremacistas brancos. Sua falta de interesse em enfrentar o racismo institucionalizado. Seus minguados sucessos na política exterior e o fato de ter cedido espaços de poder à China e à Rússia. Seus extensos conflitos de interesse. O seu autoritarismo e a maneira como minou a democracia americana. Nada disso parece importar aos 74 milhões.

Mas então, o que importa para eles? O que os leva a apoiar Trump de maneira tão incondicional? Muitas coisas. Desde o concreto (“Não subam os meus impostos”) até o espiritual (“Trump entende o que eu sinto”). Do positivo (“Vamos fazer a América grande outra vez”) ao negativo (“Se Biden ganhar, os negros invadirão os bairros da classe média”). Da defesa dos direitos (o porte de armas) à defesa de valores (“sou contra o aborto”). Desde o repúdio da imigração ilegal (“viva o muro com o México”), à oposição à globalização econômica (“quero fábricas e empregos aqui, não na China”).

A demografia dos 74 milhões é variada e confusa. Inclui significativas porcentagens de hispanos, da população rural, de homens brancos sem formação universitária. De grupos evangélicos, empresários, operários e muitas outras categorias. 

Os condados em que Biden ganhou, por exemplo, geram 70% da atividade econômica dos EUA, enquanto os que votaram majoritariamente em Trump geram apenas 30%. O fato de os institutos de pesquisa não terem antecipado o comportamento dos 74 milhões confirma que não sabemos o que, na realidade, determina seu apoio incondicional a Donald Trump. Teremos quatro anos para averiguar. / 

Moisés Naím, escritor venezuelano, é membro do Carnegie Endowment, nos Estados Unidos. Este artigo foi publicado originalmente no Brasil em O Estado de São Paulo, edição de 23.11.2020. Tradução de Ana Capovilla.

domingo, 22 de novembro de 2020

Por que os latino-americanos estão desencantados com a democracia

Geração ‘millenial’ e classes mais abastadas antecipam uma decepção, mais do que uma rejeição frontal, com o sistema democrático.

A democracia, outrora um farol com o qual o Ocidente pretendia iluminar o mundo, está perdendo adeptos. E a América Latina não é exceção. Não falamos (somente) dos líderes autoritários que florescem no continente assim como no resto do mundo, mas também daqueles que decidiram segui-los em seu desapego. O último Latinobarômetro delimitou a extensão do desencantamento: o apoio à democracia não chega à metade dos cidadãos do continente.

O complementar Barômetro das Américas confirma o panorama: na última década, o percentual de pessoas que têm certeza de que a democracia não é o melhor sistema de governo possível aumentou, mas também, e principalmente, cresceu o número daqueles com posições mais indeterminadas. O dado desagregado por países confirma que é aí, na indiferença, onde a maioria está instalada, com poucas exceções (Argentina, Uruguai, Costa Rica). As nações mais populosas do continente, Brasil e México, abrigam milhões de habitantes que se movimentam no amplo espectro do desencanto. Não surpreende que ambos tenham escolhido recentemente presidentes dispostos a atacar consensos e instituições para consolidar seu poder e o dos seus. No Brasil, 16% da população discorda que a democracia seja o melhor sistema político, e 50% está em cima do muro.

A avaliação da democracia se instala assim na ambiguidade, mais do que na rejeição visceral. Os protagonistas do desencanto são principalmente jovens e de pouco poder aquisitivo. Ambos os grupos mostram uma probabilidade substancialmente menor de manter uma clara preferência pela democracia do que seus pares mais velhos e em melhor situação econômica.

No entanto, são precisamente as classes mais abastadas que estão perdendo mais entusiasmo pela democracia. Também os millennials (nascidos depois de 1980, incluindo os primeiros centennials de meados da década de noventa).

Essas quedas são particularmente alarmantes porque abrigam a capacidade de mudar o ponto de encontro entre oferta e demanda eleitoral. As elites econômicas têm maior capacidade de definir a agenda e moldar o futuro de nossas instituições. Para moldar, em resumo, a oferta política. Por seu lado, aqueles que são jovens hoje se tornarão o centro da demanda amanhã, decidindo com seus votos se desejam um modelo alternativo ao da democracia pluralista.

Podemos representar as opiniões daqueles que estão desencantados com a democracia: respeitam menos essas mesmas instituições, principalmente os partidos políticos, veem mais corruptos entre os líderes do que no resto dos cidadãos e carregam certo viés autoritário, conservador.

Mas, embora os críticos com democracia nascidos depois de 1980 mantenham todas essas características, existem outros que são menos proeminentes entre eles e questionam alguns mitos.

Não se apreciam expectativas econômicas piores do que entre o conjunto dos democéticos. Mesmo a ausência de interesse político, embora estruturalmente presente, é menor nas novas gerações de desconfiados do que nas velhas. Algo semelhante acontece com as classes mais abastadas.

O que está acontecendo, então, para que se instale o desencanto sistêmico entre as novas gerações? Para os cientistas políticos Yascha Mounk e Roberto Roa, que trabalharam a questão da erosão dos valores democráticos como poucos em sua disciplina, talvez estejamos diante de uma visão incompleta devido à ausência de referências: já que essas gerações têm menos experiência com regimes autoritários do que as anteriores, não valorizam na mesma medida as vantagens de viver sob uma democracia. Se isso for verdade, deveríamos observar um maior diferencial de desencanto ou ambiguidade entre os nascidos antes e depois de 1980 nos países com transições mais antigas.

Existe, de fato, certa correlação entre o tempo que cada nação tem de eleições livres ininterruptas e o plus de ceticismo com a democracia demonstrado pelas novas gerações. A fragilidade da relação sugere, no entanto, que tem de haver algo mais.

Esse “algo mais” não parece ser uma radicalização das posições: segundo os dados do próprio Barômetro, os nascidos de 1980 em diante têm opiniões menos extremas sobre o aborto, o casamento igualitário e inclusive a luta contra a desigualdade do que essa mesma geração em 2012.

Mas talvez o que esteja acontecendo seja um pouco menos espetacular, mas potencialmente tão perigoso quanto. O descontentamento com a falta de resposta do sistema às demandas não incorporadas sempre esteve presente na América Latina, um continente onde o presidencialismo elitista e a desigualdade produziram democracias pouco inclusivas, de acesso restrito. Essa pulsão não desapareceu, mas talvez a ela tenha se juntado outra, aparentemente contraditória: uma espécie de preferência pela ordem sobre o conflito.

O Barômetro das Américas pergunta aos entrevistados sobre até que ponto estão de acordo com algo tão básico quanto conceder o direito de voto àqueles que são críticos do sistema de governo. Essa questão permite medir o grau de tolerância que cada indivíduo tem em relação à crítica extrema.

Acontece que aqueles que demonstram um maior desencanto com a ideia explícita de democracia também são mais favoráveis à manutenção dos direitos de voto dos críticos. Provavelmente porque eles se veem como parte desse grupo. Esses “democratas paradoxais”, que desconfiam da democracia atual, entrariam na categoria do descontentamento perene, inevitável até que os regimes se tornem mais inclusivos. Também estão aqui os segmentos de autoritarismo puro: aqueles que rejeitam a democracia em termos abstratos e concretos, que disputam o direito de voto da oposição. É impossível para eles incorporá-los à alternância de poder, porque apenas aspiram a suprimi-la. Mas é o grupo intermediário que mostra um comportamento mais sugestivo e consistente: indiferentes à democracia como conceito e indiferentes também com o direito de voto dos críticos extremos. Para uma maioria relativa de latino-americanos, a possibilidade de canalizar o conflito não é uma prioridade. O mais preocupante é, novamente, a coincidência desse padrão entre as novas gerações e as classes mais abastadas.

Porque, e se estamos assistindo ao nascimento de uma geração que anseia por ordem, funcionalidade? O autoritarismo seria então um subproduto, mais do que uma reivindicação central. O modelo chinês vem à mente: uma ditadura que, aos olhos do mundo, foi capaz de criar bem-estar para a maioria, embora em troca de um (enorme) custo para as minorias. Talvez seja esse o tipo de espelho em que os desencantados se refletem: uma ‘morte doce’ do pluralismo. ‘Doce’, é claro, apenas na aparência, e apenas para aqueles segmentos da população dispostos a consolidar sua boa posição diante da supressão do conflito formalizado. O continente tem vasta experiência com líderes que oferecem melhorias para a maioria em troca de que a população renuncie ao direito de votar contra. Videla, Pinochet, Chávez, Fujimori e Castro, entre muitos outros, fizeram carreira com essa ideia. Não faria mal, à luz desses dados, refrescar a memória com o que acaba acontecendo quando um ditador promete harmonia.

JORGE GALINDO, EL PAÍS

Trump perde feio nas urnas e na Justiça, mas segue inspirando mau exemplo no Brasil

Juiz rejeita pedido do presidente para anular milhões de votos na Pensilvânia. Magistrado apontou que ação de advogados de Trump era um "Monstro de Frankenstein" repleta de "acusações especulativas" e "sem mérito".

Republicano vem se recusando a aceitar derrota para Joe Biden

Um juiz da Pensilvânia rejeitou na noite de sábado (21/11) uma ação da campanha de Donald Trump para anular milhões de votos enviados pelo correio no estado americano. A decisão é mais um duro golpe nas tentativas do republicano de reverter sua derrota na eleição presidencial.

Ao rejeitar o pedido, o juiz ainda criticou as afirmações do advogados de Trump, que vêm apresentando ações em todo o país alegando que o presidente foi vítima de fraude eleitoral. O juiz Matthew Brann, de Williamsport, disse que a ação da equipe de Trump continha "argumentos legais forçados, sem mérito, e acusações especulativas". "Nos Estados Unidos, isso não pode justificar a privação do direito ao voto nem mesmo de um único eleitor", escreveu Brann. "Nosso povo, leis e instituições exigem mais."

Na sua decisão o juiz Brann ainda disse que o processo, assim "como o Monstro de Frankenstein", parecia ter sido "remendado ao acaso".

A rejeição da ação deve abrir caminho  para que a Pensilvânia certifique a vitória do democrata Joe Biden no estado. O anúncio oficial do resultado deve ocorrer na segunda-feira. A Pensilvânia foi um estado decisivo para que Biden ultrapassasse a marca de 270 votos necessários no colégio eleitoral para conquistar a Presidência. O democrata ficou à frente de Trump por 81 mil votos na Pensilvânia.

"Isso deve colocar o prego no caixão para qualquer outra tentativa do presidente Trump de usar os tribunais federais para reescrever o resultado das eleições de 2020", disse Kristen Clarke, presidente do Comitê de Advogados para os Direitos Civis nos Termos da Lei.

O revés na Pensilvânia também provocou reações entre membros do Partido Republicano, que começam a abandonar o presidente. O senador republicano Pat Toomey disse que a decisão anula qualquer chance de uma vitória legal na Pensilvânia e pediu a Trump que reconheça a eleição de Biden. Liz Cheney, membro da liderança republicana na Câmara dos Representantes, por sua vez, já havia pedido anteriormente para que Trump respeitasse "a santidade de nosso processo eleitoral" caso não tivesse sucesso no tribunal.

Derrotas nos tribunais e vexames

Com a posse de Biden, dia 20 de janeiro, cada vez mais próxima, a equipe de Trump tem intensificado seus esforços para tumultuar ou atrasar o calendário eleitoral de vários estados, numa tentativa de impedir que o democrata seja certificado como vencedor. No entanto, a estratégia tem fracassado até agora. Os advogados de Trump vem acumulando derrota atrás de derrota em vários tribunais.

Nos últimos dois dias, Trump sofreu ainda dois revezes em dois estados-chave. As primeiras notícias negativas para Trump vieram da Geórgia, quando o secretário de Estado, Brad Raffensperger, anunciou que uma recontagem manual e auditoria de todas as cédulas lançadas no Estado apontaram pela segunda vez a vitória de Biden. O ex-vice-presidente se tornou o primeiro democrata a vencer na Geórgia desde 1992. Os resultados, certificados pelo secretário do Estado da Geórgia deram a Biden 2,47 milhões de votos, contra 2,46 milhões de votos de Donald Trump.

Horas depois, uma delegação de republicanos de Michigan, que se reuniu com Trump na Casa Branca, disse não ter nenhuma informação "que mudaria o resultado da eleição em Michigan". Biden venceu Trump no estado por quase três pontos percentuais, abocanhando mais 16 votos no colégio eleitoral.

No Colégio Eleitoral, que determina o vencedor, Biden obteve 306 votos -muito acima dos 270 necessários - e Trump 232.

Além de derrotas nos tribunais, os advogados de Trump também têm acumulado episódios vexaminosos. Na quinta-feira, numa coletiva de imprensa, o advogado pessoal do presidente Donald Trump, Rudolph Giuliani acusou o bilionário George Soros de ter conspirado com os democratas para dar a vitória a Joe Biden. Outra advogada, Sidney Powell, chegou a acusar o falecido líder venezuelano Hugo Chávez de estar por trás de um plano para fraudar as eleições nos EUA. Mas o que mais chamou a atenção na coletiva foi o líquido escuro que escorreu sobre o rosto de Giuliani enquanto ele falava: uma mistura de suor com tintura de cabelo.

Antes disso, poucos dias após o pleito de 3 de novembro, o advogado pessoal de Donald Trump, Rudolph Giuliani, organizou uma coletiva de imprensa no pátio de uma empresa de jardinagem da Filadélfia para denunciar uma "fraude generalizada" nas eleições na Pensilvânia. Ele arregimentou supostas testemunhas de fraudes, que falaram aos jornalistas. Mais tarde, foi revelado que uma delas nem sequer era residente na Pensilvânia. Para piorar, a tal testemunha tinha ficha criminal, acumulando uma condenação em Nova Jersey por se expor sexualmente para crianças.

Últimos esforços

Apesar dos revezes, os republicanos de Trump ainda tentam reverter resultados em alguns estados. No estado de Wisconsin, a equipe de Trump pagou por uma recontagem parcial, embora as autoridades eleitorais estaduais tenham dito que isso provavelmente só aumentará a vantagem de 20 mil votos de Biden no estado, que tem 10 votos no Colégio Eleitoral. Segundo veículos da imprensa americana, observadores republicanos têm tumultuado a recontagem, contestando quase todos os votos que estão sendo recontados, como forma de atrasar o processo, que deve ser encerrado até no máximo 1 de dezembro. O atraso pode abrir caminho para que Trump conteste o resultado na Justiça.

Os republicanos também solicitaram no sábado um adiamento da certificação em Michigan com o argumento de que ocorreram irregularidades no estado. O conselho de certificação de resultados de Michigan, composto por dois democratas e dois republicanos, deve se reunir na segunda-feira.

Os republicanos pedem um adiamento de duas semanas na reunião para permitir uma auditoria completa dos resultados do condado de Wayne, o maior do estado e onde fica Detroit, cidade de maioria negra, vencida com folga por Biden.

Cada vez mais isolado, Trump também tem apelado cada vez mais para a divulgação de notícias sem comprovação nas suas redes sociais para tentar propagar a ideia de que a eleição foi marcada por fraudes. Na noite de sexta-feira, ele chegou a retuitar  uma entrevista do ativista bolsonarista Allan dos Santos ao canal de TV pró-Trump One America News Network. Santos é um dos investigados pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito das fake news e um costumaz propagador de boatos na internet.

Em um inglês precário, Santos disse ao canal que identificou fraudes na eleição americana, mas nem ele nem o canal apresentaram provas. O Twitter inseriu na publicação de Trump um alerta de que as informações divulgadas na publicação são duvidosas.

Nos últimos dias, Trump também vem afirmando com insistência que é o verdadeiro vencedor do pleito, mesmo com Biden tendo acumulado mais delegados no Colégio Eleitoral e 6  milhões de votos populares a mais que o republicano. Trump também tem tumultuado o processo de transição, se recusando a compartilhar dados com a equipe de Biden.

Paralelamente, Trump também celebrou os bons resultados do Partido Republicano na eleição para a Câmara dos Representantes, mas neste caso evitou apontar qualquer suspeita de fraude no pleito.

Não é a primeira vez que Trump recorre a esse tipo de tática sem qualquer base. Em 2016, ele venceu no Colégio Eleitoral, mas perdeu no voto popular para Hillary Clinton. Com o ego ferido, disse que os democratas haviam arregimentado milhões de imigrantes ilegais para votar. Uma comissão foi formada pelo seu governo para investigar. Nenhuma evidência de irregularidade foi encontrada, e o colegiado foi extinto em 2018.

Oficialmente, o vencedor da eleição só é anunciado em 14 de dezembro, quando os delegados de todos os 50 estados se reúnem em Washington no Colégio Eleitoral para confirmar os resultados estaduais.

Não há nos EUA um órgão central que compile os resultados estaduais. Normalmente, o resultado é projetado logo após o pleito pela imprensa e institutos de pesquisa, que compilam dados das autoridades eleitorais estaduais. O anúncio do desfecho da eleição é facilitado quando um dos lados concede a derrota – o que não vem sendo o caso com Trump.

Deutsche Welle.

Nota do editor do blog. O titulo original desta matéria é "Trump sofre novo revés judicial em tentativa de reverter derrota".

Brasil registra mais 194 mortes por covid-19

Número total de infectados passa de 6 milhões. Mortes chegam a 169 mil.

O Brasil registrou 18.615 novos casos confirmados de coronavírus e 194 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste domingo (22/11). Os novos números elevam o total de infectados para 6.071.401, enquanto o de óbitos chega a 169.183.

O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas. Segundo o Ministério da Saúde, 5.429.158 pessoas haviam se recuperado da doença no sábado.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,5 no Brasil, uma das mais altas do mundo. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, o Brasil é a sexta nação com a maior proporção de mortes no mundo, se desconsideradas as micronações europeias San Marino e Andorra.

Neste quesito, o país só está atrás de Bélgica (135,89), Peru (111,13), Espanha (91,21), Argentina (82,94) e Reino Unido (82,30). Está à frente dos EUA (78,20), o país com maior número absoluto de mortos do mundo.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12,2 milhões de casos, e da Índia, com 9 milhões. Mas é o segundo em número de óbitos, depois dos EUA, onde morreram mais de 256 mil pessoas.

Ao todo, mais de 58,5 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1,38 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle

sábado, 21 de novembro de 2020

Brasil registra mais 376 mortes por covid-19

Número total de infectados passa de 6 milhões. Mortes chegam a 168 mil.


O Brasil registrou 32.622 novos casos confirmados de coronavírus e 376 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste sábado (21/11). Os novos números elevam o total de infectados para 6.052.786, enquanto o de óbitos chega a 168.989.

O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas. Segundo o Ministério da Saúde, 5.422.102 pessoas haviam se recuperado da doença na sexta-feira.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 80,4 no Brasil, uma das mais altas do mundo. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, o Brasil é a sexta nação com a maior proporção de mortes no mundo, se desconsideradas as micronações europeias San Marino e Andorra.

Neste quesito, o país só está atrás de Bélgica (133,04), Peru (110,40), Espanha (98,69), Argentina (82,10) e Reino Unido (81,02). Está à frente dos EUA (77,19), o país com maior número absoluto de mortos do mundo.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 12 milhões de casos, e da Índia, com 9 milhões. Mas é o segundo em número de óbitos, depois dos EUA, onde morreram mais de 255 mil pessoas.

Ao todo, mais de 57,9 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1,34 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Wille

Um governo perdido

Para buscar reeleição, é preciso antes exercer de fato o mandato conquistado nas urnas.

O presidente Jair Bolsonaro tem descuidado de tarefas básicas de um governo, como a articulação política para a aprovação das leis orçamentárias. Além de dificultar a retomada de que tanto o País precisa, essa omissão naquilo que é o cerne de um governo – definir prioridades e atuar em consonância – leva o governo Bolsonaro a perder qualquer resquício de identidade. Na segunda-feira passada, por exemplo, o ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, general Luiz Ramos, foi ao Twitter comemorar, como se fossem próprios, resultados eleitorais de partidos do Centrão. Descumprindo suas tarefas e se esquecendo de suas promessas, o governo agora se assume como o próprio Centrão.

Segundo o general Luiz Ramos, a esquerda, e não o bolsonarismo, foi a grande derrotada das eleições de domingo passado. O argumento de sua tese é de que “os partidos aliados às pautas e ideais do governo Bolsonaro saíram vitoriosos”. O general referia-se a PSD, PP, DEM e MDB.

É uma mudança e tanto. Em 2018, os partidos do Centrão eram, nas palavras do general Heleno, a “materialização da impunidade”. Na ocasião, o atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional chegou a parodiar um famoso samba, cantando: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”. A letra original diz “ladrão”, em vez de Centrão. Agora, são esses partidos os grandes aliados das pautas e ideais do governo Bolsonaro.

Sem rumo, o governo não faz o que lhe cabe. Nesta semana, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), voltou a insistir na urgência de votar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186/19, que foi apresentada pelo Executivo no fim do ano passado. Ao prever mecanismos para reduzir despesas públicas, a PEC Emergencial é fundamental para diminuir o déficit primário, permitir a realização de despesas sociais e assegurar o Orçamento de 2021.

No entanto, o governo federal faz vista grossa ao tema, como se ele não fosse de sua responsabilidade. Governar exige decisões difíceis e, perante elas, o presidente Jair Bolsonaro tem manifestado uma paralisia desconcertante. Ao falar do papel do Executivo na coordenação da pauta de votações, Rodrigo Maia lembrou que “o governo não pode transferir ao Poder Legislativo decisões que cabem a quem venceu as eleições”; no caso, as presidenciais de 2018.

Como se sabe, partidos do Centrão – justamente alguns daqueles que o general Luiz Ramos chama de grandes aliados do governo – têm obstruído a pauta de votação da Câmara dos Deputados, bem como impedido a instauração da Comissão Mista de Orçamento (CMO). Contrariando acordo entre os partidos da base feito em fevereiro, o líder do PP, deputado Arthur Lira (AL), deseja agora um nome alinhado ao Centrão na presidência da comissão.

O impasse tem causado atrasos importantes. O Congresso ainda não votou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. O governo não terá base legal para realizar nenhum gasto discricionário em 2021 se a LDO não for aprovada, bem como o Orçamento. Trata-se, portanto, de ponto essencial para o governo federal. No entanto, sem aparentar nenhuma preocupação com esses detalhes – que deveriam ser prioridade do País e do próprio Executivo federal –, o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares preferem fustigar partidos de esquerda valendo-se de resultados eleitorais do Centrão.

Se o governo Bolsonaro está tão interessado nas eleições de 2022, alimentando desde já intrigas com seus supostos inimigos, deveria ouvir o alerta do presidente da Câmara. “Olhando para 2022, eu penso que tem coisas mais decisivas do que até o próprio resultado eleitoral (de domingo passado). Os próximos meses no Parlamento para o governo federal terão peso muito maior do que o resultado das eleições de 2020”, disse Rodrigo Maia. Parece óbvio, mas é preciso recordar. Para buscar eventual reeleição, antes é preciso exercer de fato o mandato conquistado nas urnas em 2018. Já se vai a hora de governar.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.11.2020.

Desprezo de Bolsonaro pelos diferentes e os sem poder foi um tiro pela culatra

São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono


Presidente Jair Bolsonaro em evento no Palácio do Planalto, no dia 19 de novembro.EVARISTO SA / AFP

Por Juan Arias

Ninguém melhor que Bolsonaro, que adora fuzis e pistolas, para estar acompanhado da expressão “o tiro saiu pela culatra”. Chegou à Presidência com sua carga de desprezo e desinteresse pelos diferentes e sem poder, algo que sempre o tinha caracterizou, mas desta vez com a força e a liberdade conferidas por ser chefe de Estado.

Esse mundo que tanto o incomoda e que ele costuma mencionar sem nenhum sinal de empatia e com adjetivos humilhantes nunca chegou tão ativo e com tanta vontade de reivindicar seu poder como com Bolsonaro. Foi uma espécie de rebelião silenciosa que se concretizou nas vitórias colhidas nas últimas eleições, as primeiras que viram serem eleitas tantas mulheres, inclusive trans, tantos negros e indígenas, tantos diferentes, enquanto fracassaram seus candidatos “machos e fortes”.

Não é que o mundo dos diferentes e portanto dos excluídos do poder, que constituem a grande maioria neste país, não tenha sido sempre mantido à margem da sociedade, sem que pudesse participar do banquete que, graças a eles, os privilegiados podem desfrutar. Foram-no sempre na história do Brasil, apesar de constituir a maioria do país e a mão de obra dos que acumularam sempre 90% das riquezas.

Eu me refiro aos nativos conquistados pelos brancos europeus, os negros herdeiros da escravidão, as mulheres que arcaram toda a vida com os trabalhos mais duros e sempre sendo humilhadas. Muitas delas passaram a vida trabalhando dentro de uma família rica, sem que nem sequer uma vez fossem chamadas por seu nome. E sempre mais mal pagas que os homens.

Todos estes excluídos, todos os sexualmente diferentes vistos quase como uma raça inferior, e talvez com maior força neste país que sempre manifestou uma carga grande de racismo, puseram em marcha uma grande revolução em defesa dos seus direitos durante este governo machista e homofóbico.

O resgate dos diferentes, começando pelas mulheres, foi crescendo no mundo graças à cultura e às lutas já conhecidas a favor de sua emancipação. No Brasil, entretanto, o trabalho foi sempre mais lento pela carga de preconceitos que arrasta. Não faz muito tempo ainda que a mulher não tinha direito de votar e era vista como propriedade e objeto de seu marido.

Quando Bolsonaro chega ao poder com sua carga de desprezo pelas mulheres, os homossexuais, os negros e os indígenas, que segundo ele são um peso inútil no país, estes já eram considerados inferiores e relegados a papéis secundários.

Sempre o mundo dos mais pobres, privados de cultura e diferentes esteve à margem do poder. A diferença hoje é que esse mundo dos sempre excluídos nunca foi tão humilhado e desprezado publicamente como com este presidente, um capitão frustrado que chegou ao poder com sede de vingança.

É fácil imaginar a raiva e humilhação que Bolsonaro deve ter sentido nas eleições do domingo ao ver derrotados seus candidatos “machos” apoiados por ele, uma grande parte militares, enquanto que os que ele mais despreza não só foram escolhidos como também, como algumas mulheres e não poucos negros e indígenas, foram os mais votados.

Deve ter sido duro para Bolsonaro ver como mulheres e trans, ou lésbicas, até ontem olhadas com maus olhos, eram eleitas e ainda tinham mais votos que seus competidores masculinos e “normais”. Nem sequer sua ex-mulher foi eleita vereadora no Rio, que é seu reino da vida toda.

Deve ter sido tão forte sua humilhação que tentou envenenar as eleições sustentando suspeitas sobre a apuração dos votos. E quando no dia seguinte seus seguidores fiéis e fanáticos lhe perguntaram sobre o resultado das eleições, pela primeira vez lhes disse que não falaria, que não estava “se sentindo bem”. Mas sentir-se mal, logo ele, o atleta macho que não se dobrou à covid-19?

Não é isso sair o tiro pela culatra? E nada mais perigoso para um governante como Bolsonaro que ver os menosprezados ressuscitarem do inferno da exclusão. São essas pessoas, começando a reconquistar sua dignidade secularmente humilhada, que, num feliz paradoxo, poderiam se tornar o pior perigo que ameaça seu trono.

Não são poucos os analistas que consideram que o triunfo desses diferentes desprezados por Bolsonaro poderá acabar sendo mais perigoso para ele, pois estes chegam com a consciência desperta de estarem reconquistando sua dignidade humilhada.

E junto com o triunfo eleitoral dos até ontem desprezados, Bolsonaro, o obsessivo pelos comunistas e por tudo o que cheire a esquerda, como se se tratasse de gente saída do inferno, para quem seu melhor lugar seria o exílio, a prisão e a câmara de tortura, sentiu nestas eleições ressurgir uma nova esquerda. Uma esquerda menos aburguesada, que reivindica os direitos dos diferentes e excluídos, dos sem-teto, que ainda são milhões neste país e vivem mal no inferno das periferias das grandes urbes, e estão escorregando para a miséria e até a fome por falta de emprego e de oportunidades.

Se outrora as esquerdas clássicas, hoje muitas delas aburguesadas, se interessavam, graças aos grandes sindicatos, pelos trabalhadores fixos para melhorar suas condições de vida, hoje a nova esquerda que surgiu com força nestas eleições se interessa, pelo contrário, pelos sem-trabalho e pela defesa dos excluídos que são os novos proletários da sociedade. Todo esse mundo que Bolsonaro gostaria de ver ser arrastado pela pandemia como peças inúteis do seu poder autoritário e machista.

Juan Arias é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, edição brasileira, em 21.11.2020

Espancamento até a morte de cliente negro em um mercado põe sob lupa o racismo no Brasil

Vice-presidente da República chama de “lamentável” a morte de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças brancos em uma unidade do Carrefour, mas diz que “não existe racismo” no país


Na imagem, um protesto contra a morte de Freitas em Porto Alegre. 

A morte de um cliente negro por espancamento nas mãos de dois seguranças brancos em um supermercado na noite de quinta-feira, véspera deste Dia da Consciência Negra, foi um forte lembrete do racismo cotidiano no Brasil, refletido também nas mortes pelo coronavírus. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram como um dos agressores dá sucessivos socos no rosto de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, enquanto o outro o segura pelo pescoço em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ambos foram presos. Ao comentar o caso, que provocou protestos e uma onda de comoção nesta sexta-feira, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, classificou-o como “lamentável”, mas negou que o Brasil seja um país racista, ainda que a vítima seja negra e os autores do crime sejam brancos. “Eu digo para você com toda tranquilidade: não tem racismo. Eu digo isso para vocês porque eu morei nos Estados Unidos. Racismo tem lá. (...) Aqui o que existe é desigualdade”, afirmou.

A polícia ainda investiga os detalhes do que ocorreu, mas segundo uma delegada citada pela imprensa local, os dois homens trabalhavam para o Carrefour e chegaram a pressionar a vítima com os joelhos quando ela já estava no chão. Os primeiros indícios colhidos pelos investigadores assinalam que tudo começou com uma discussão entre o cliente, que estava fazendo compras com sua esposa, e uma operadora de caixa, que chamou a segurança. João Beto, como era conhecida a vítima, foi levado para o estacionamento e lá morreu, após ser espancado. Uma equipe de resgate chegou a ser acionada, mas não conseguiu reanima-lo e ele faleceu ali mesmo. Os dois guardas, um deles policial militar, foram presos em flagrante. O Carrefour condenou imediatamente a agressão e anunciou o rompimento de seu contrato com a empresa terceirizada que empregava os seguranças.

O dia 20 de novembro, feriado em várias cidades brasileiras, é a data em que o país reflete, com dados e depoimentos, sobre a herança da escravidão, abolida há 132 anos. A data lembra a morte do Zumbi dos Palmares, que liderou uma sublevação de escravos. Este ano, a celebração da data, embora afetada pelo coronavírus, ganha força após os grandes protestos antirracistas nos Estados Unidos e o avanço —tímido— da eleição de prefeitos e vereadores negros no primeiro turno das eleições municipais, no domingo passado.

Pessoas próximas da vítima convocaram um protesto nesta sexta-feira em frente ao supermercado, fechado. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), e os dois candidatos à prefeitura de Porto Alegre —Manuela D’Ávila (PCdoB) e Sebastião Melo (MDB)— se apressaram em condenar a agressão.


Imagem do momento em que João Beto foi espancado até a morte por dois homens brancos, enquanto uma mulher filmava a ação. EL PAIS

Foi nessa conjuntura que a brutal morte de Freitas ganhou as manchetes da imprensa. Uma relevância bem diferente da pouca repercussão que costumam ter os casos similares e as milhares de mortes que ocorrem todos os anos em operações policiais, tendo como alvo, principalmente, jovens negros de favelas.

Nesta sexta-feira também são notícia nacional as ameaças de morte contra a primeira vereadora negra eleita em Joinville, Santa Catarina —o Estado mais branco do Brasil, povoado no século XX por imigrantes alemães. Uma das ameaças dizia: “Agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco”. Paradoxalmente, esse mesmo Estado elegeu em 1934 a primeira deputada negra, a educadora Antonieta de Barros. Pouco avançaram seus pares desde então, como ilustra bem o tuíte de um senador nesta semana: “O perfil do eleitor brasileiro é majoritariamente de mulheres, negras, com ensino fundamental e 37 anos. Já o perfil do eleito é: homem, branco, com ensino superior e 49 anos”.

Nestas eleições municipais, que em algumas cidades terão segundo turno no dia 29, os brasileiros elegeram mais vereadores negros do que nunca, mas o aumento é tímido, apesar das cotas: de 42% a 45%. Sua representação ainda está longe de seu peso real, porque constituem mais da metade da população. No Brasil, o termo negro também inclui, geralmente, as pessoas pardas. Como cabe a cada pessoa decidir como se declara, nestas eleições, milhares de candidatos mudaram de raça autodeclarada. Os partidos costumam burlar as cotas com candidaturas fraudulentas.

As estatísticas mostram sistematicamente que os negros brasileiros morrem mais cedo, vivem em piores condições, adoecem mais e ganham menos que seus compatriotas brancos ou nipo-brasileiros. Entretanto, estão sobrerrepresentados entre os desempregados e as vítimas da violência.

Aumentam os pedidos de boicote do Carrefour, que já se viu envolvido em um incidente diferente deste, mas que também causou revolta. Um vendedor de uma marca que oferecia produtos nos corredores de um de seus supermercados sofreu um infarto, morreu ali mesmo e os responsáveis pela loja cobriram o corpo com vários guarda-chuvas e o cercaram com caixas de cerveja até a hora do fechamento.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, do EL PAÍS

Extermínio de negros, o empreendimento mais bem-sucedido do Brasil

Mais um espancamento na conta do Carrefour. Mais um homem negro brutalmente assassinado no país. Mais um dia de negação do racismo que reparte lucros e dividendos


Manifestante protesta na porta do Carrefour, em Brasília, pelo assassinato de Beto / ERALDO PERES / AP

Esqueça a Bolsa de Valores ou a especulação imobiliária. O negócio que nunca sai de moda nem apresenta risco ao investidor é o racismo à brasileira. Fundada na colonização, capitalizada na escravidão e repaginada na era das redes sociais, a discriminação racial se consolida cada vez mais como o título de renda mais sólido para governos, empresas e pessoas físicas que lucram com a eliminação de corpos negros. Nem mesmo o brutal assassinato de João Alberto Freitas, o Beto, espancado por seguranças na porta do Carrefour, em Porto Alegre, ameaça a estabilidade dos rendimentos. Afinal, toda a cartela de aplicações está estruturada sobre a lógica da diversificação das formas de opressão e massacre.

O crime desta quinta-feira, justamente na véspera do Dia da Consciência Negra, choca pela brutalidade e frieza dos executores, mas não pelo CNPJ. Nos últimos anos, o Carrefour se especializou em protagonizar episódios de extrema violência. Não faz nem quatro meses que um funcionário morreu após sofrer ataque cardíaco em uma loja de Recife e teve o corpo coberto com guarda-sóis para que o estabelecimento continuasse funcionando normalmente. Em 2018, uma cadela morreu por golpes com barra de ferro desferidos pelo segurança de outra unidade, em Osasco. No mesmo ano, em São Bernardo do Campo, um cliente negro foi espancado por falsa suspeita de furto.



Manifestantes no protesto em frente a uma loja do supermercado Carrefour, após o espancamento até a morte de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos. 

Uma cruel vitrine do Brasil que ainda celebra a tortura

Tortura no supermercado ecoa sensação de rotina

Em comum entre todos os episódios, a resposta padrão do Carrefour, que se comprometeu a revisar políticas internas e a afastar os agressores. Assim, a rede francesa de supermercados terceiriza responsabilidades, como se a culpa fosse somente dos indivíduos, e não de uma empresa incapaz de reprimir reiteradas práticas cruéis em seus estabelecimentos. Mas a resposta pendente nos comunicados oficiais é tão ou mais importante que ações punitivas: quando os donos e acionistas do Carrefour vão pagar essa conta?

Diante do racismo e da morte de negros, basta uma nota de repúdio. É assim que as instituições lidam com a violência discriminatória e contribuem para banalizar acontecimentos que, em qualquer sociedade de princípios igualitários, deveriam causar profunda consternação. Porém, o vice-presidente Hamilton Mourão nem se acanhou em afirmar categoricamente, mesmo no calor do assassinato de Beto, que “não existe racismo no Brasil”. Em aparições públicas anteriores, o general já havia se referido a negros como “pessoas de cor”, associou indígenas a “certa herança de indolência” e disse ter um neto bonito devido ao “branqueamento da raça”.

Comportamento tão esdrúxulo e desprezível valeria, no mínimo, uma enérgica reprimenda do Governo, além da urgente manifestação de solidariedade à família da vítima. Mas o que esperar quando o país é governado por um chefe de Estado ―Jair Bolsonaro― que tem em seu currículo as seguintes declarações:

— Ele [o deputado Hélio Lopes, negro] demorou pra nascer e deu uma queimadinha.

— Não aceitaria ser operado por um médico cotista.

— Não sou racista. Tenho até um cunhado negro.

— O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas.

Em São Paulo, manifestantes invadiram uma unidade do Carrefour e atearam fogo em protesto contra a morte de Freitas, em Porto Alegre.

Em São Paulo, manifestantes invadiram uma unidade do Carrefour e atearam fogo em protesto contra a morte de Freitas, em Porto Alegre.RICARDO MORAES / REUTERS

No Brasil atual, o desinibido racismo propagado pelo presidente da República é tratado como brincadeira e, vez ou outra, ainda arranca gargalhadas de seus apoiadores. Seria menos desalentador se a atitude estivesse restrita a uma corrente extremista de pensamento, mas a capitalização em cima do racismo também é praxe de uma parcela da oposição a Bolsonaro. Nesta sexta, o governador João Doria afirmou que “cenas de racismo demonstram o quanto precisamos evoluir para termos uma sociedade mais justa e igualitária”. O mesmo que, antes de assumir o cargo, cravou que a polícia de São Paulo iria “atirar para matar” e classificou como exceção os episódios em que policiais agiram com violência contra a população. Sabe-se que o alvo preferido dos agentes de segurança chefiados por Doria são justamente negros e pobres, cujos assassinatos que cresceram durante a pandemia não inspiraram nada além de notas de repúdio do governador empreendedor.

Sai barato ser racista num país que brotou do sangue de escravos e continua regido por normas dos homens brancos que conservam seus privilégios pelo aperfeiçoamento de um sistema de exploração. Não é por acaso que quem comete crime de racismo, em vez de punido, acaba promovido ou eleito a um cargo público. Da mesma maneira, atribuir a vidas negras o peso de mercadoria barata, que pode ser abatida a qualquer instante sem maiores consequências, é um reflexo das cadeias empresariais que usurpam sua força de trabalho a preço de banana —e ainda arrecadam aplausos da clientela ao aproveitar o 20 de novembro para fazer marketing social com campanhas enganosas em nome da diversidade.

Não foi o primeiro nem terá sido o último espancamento físico de uma pessoa negra nas dependências de um supermercado no Brasil. Somente no primeiro trimestre deste ano, o Carrefour lucrou 757 milhões de reais. Seu faturamento anual supera 60 bilhões de reais. Mesmo que o assassinato de Beto gerasse uma onda de protestos semelhante à dos Estados Unidos em memória de George Floyd, não há previsão de retração dos ganhos por dano à imagem, assim como não houve após os episódios do passado. Enquanto as empresas seguem pregando consciência negra sem prática antirracista, o extermínio de negros permanece intocável como o empreendimento mais bem-sucedido do Brasil.

BREILLER PIRES, de EL PAÍS

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Repique em casos e mortes por covid-19 acende alerta pelo Brasil

Números estão em alta em 13 estados, revertendo três meses de queda. Reaceleração começou pelas classes mais altas. Governo paulista determina que hospitais suspendam agendamento de cirurgias eletivas.


Homem e mulher usando máscara caminham pela Avenida Paulista, em São Paulo

"As pessoas relaxaram e reduziram as medidas de proteção", aponta especialista

Após três meses de queda lenta e constante no número diário de casos e mortes pela covid-19, diversas regiões do Brasil enfrentam agora um repique da pandemia, o que pressiona os gestores públicos a reavaliar suas estratégias de saúde coletiva.

Nesta quinta-feira (19/11), o número de mortes por covid-19 no país, pelo critério da média móvel dos últimos sete dias, foi de 540 — a contagem estava abaixo de 400 no início do mês. O número de casos, pela mesma metodologia, foi de 28.598, enquanto no início de novembro ficou abaixo dos 17 mil.

Em 13 estados do país, o número de mortes diárias pela pandemia está em alta: todos os das regiões Sul e Sudeste, além de Goiás, Tocantins, Rondônia, Roraima, Amapá e Rio Grande do Norte. E esse é um dado que retrata a evolução da pandemia com atraso, devido ao ciclo da doença e à demora entre a ocorrência da morte e a sua inserção no sistema.

Outra informação relevante é o número de internações por covid-19. Na semana passada, o estado de São Paulo teve alta de 18% nessa variável em relação à semana anterior. Entre os hospitais privados, 44,7% registraram aumento dessas internações nos últimos 15 dias, segundo levantamento do Sindicato dos Hospitais do Estado de São Paulo. A ocupação dos leitos destinados à pandemia ainda está em 43,5% no estado, e é de 49,7% na região metropolitana de São Paulo.

O boletim InfoGripe desta quinta-feira, compilação realizada pela Fiocruz sobre internações por síndrome respiratória aguda grave pelo país, indica que oito capitais têm probabilidade moderada ou forte de crescimento de internações nas próximas seis semanas. 

A taxa de transmissão no país, conhecida pela sigla Rt, também voltou a crescer, segundo cálculo do Imperial College de Londres, no Reino Unido, e chegou a 1,1 na segunda-feira, após ter permanecido abaixo ou próximo de um por cerca de três meses. O resultado mais recente indica que um grupo de 100 pessoas infectadas pelo vírus o transmitirão para outras 110, ou seja, que a pandemia está se expandindo.

O percentual de resultados positivos em testes rápidos realizados em farmácia, que identificam se a pessoa já foi infectada pelo coronavírus, cresceu em dez estados na semana de 9 a 15 de novembro, em comparação com a semana anterior, segundo dados reunidos pela Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias.

O aumento de casos e mortes por covid-19 é consequência do relaxamento das medidas de distanciamento social e proteção, única medida eficaz para combater a pandemia enquanto não houver uma vacina aprovada para a doença, aponta Antônio Augusto Moura da Silva, professor de epidemiologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

"Houve aumento do número de contatos entre as pessoas, vários estabelecimentos reabriram, o pessoal voltou a se visitar, fizeram festas, aglomerações, teve a campanha eleitoral com muita atividade corpo a corpo. As pessoas relaxaram e reduziram as medidas de proteção", diz. 

Ele cita como exemplo o uso de máscaras no Maranhão. Em maio, uma pesquisa indicou que 65% da população usava máscara ao sair às ruas, percentual que caiu para 42% em outubro.

Moura da Silva é contra o uso do termo "segunda onda" para explicar o que ocorre no país, pois, ao contrário do que ocorreu na Europa, no Brasil o número de casos e mortes não chegou perto de zero, diz. Segundo ele, há uma "reaceleração" da transmissão em um mesmo momento epidêmico.

Infecções pelo coronavírus

A fase da pandemia

Como no início da contaminação por covid-19 no Brasil, agora os primeiros sinais da reaceleração também vieram de hospital privados, que atendem pessoas das classes mais altas. Em diversas localidades, a ocupação dos leitos destinados à doença está hoje mais alta na rede privada do que na rede pública.

A dinâmica atual, porém, é diversa, afirma Moura da Silva. No início do ano, a transmissão começou pelas classes mais altas porque eram elas que tiveram contato mais frequente com pessoas que fizeram viagens internacionais e trouxeram o vírus de outros países para o Brasil. 

Quando a pandemia se agravou, porém, as pessoas das classes mais altas tiveram mais condições de se isolar e trabalhar em regime de home office, enquanto os mais pobres, por uma série de motivos, como necessidade de usar o transporte público e condições inadequadas de moradia, seguiram expostos ao vírus.

O vírus infectou proporcionalmente mais as pessoas de classes baixas do que as classes altas. Isso foi comprovado na cidade de São Paulo por meio de um inquérito sorológico divulgado em setembro. À época, o levantamento mostrou que a incidência do coronavírus entre moradores da classe D e E era cinco vezes maior do que nas classes A e B — 18,7% das pessoas de classe mais baixas apresentaram anticorpos contra o vírus, e apenas 3,1% das de classes mais altas.

Por esse motivo, a população das classes A e B está hoje mais suscetível a pegar o vírus, pois tem proporcionalmente menos pessoas com os anticorpos para a doença. "As pessoas da classes mais ricas que ficaram isoladas voltaram para o convívio social, e começou uma microepidemia nesse grupo", diz Moura da Silva.

A mesma lógica pode fazer com que o repique atual seja mais leve em locais que tiveram alta incidência da covid-19 no primeiro semestre, como Manaus e Fortaleza. 

Isso não significa que a alta atual de casos não afetará também as pessoas mais pobres, alerta a epidemiologista Carolina Coutinho, pesquisadora da EAESP/FGV. Ela afirma que muitas pessoas das classes D e E ainda não contraíram o vírus, o que pode levar a novos surtos com intensidade também nesse grupo. 

"Estamos vendo as internações no sistema privado começarem a lotar, mas por enquanto nos sistemas públicos há uma demanda leve. Mas, entre as pessoas mais pobres, há muitas que ainda não pegaram. E há a discussão sobre reinfecção, mesmo quem já teve precisa continuar se protegendo", diz.

Outro aspecto que inspira cuidados é uma instabilidade dos dados de casos e mortos por covid-19, devido a uma falha técnica em uma plataforma do Ministério do Saúde que deixou o sistema fora do ar nos dias 6, 8, 9 e 10 deste mês. O boletim InfoGripe informa que a interpretação dos dados de cidades com estabilidade ou queda nos números deve ser feito de forma "cautelosa" devido à pane no início do mês

A reação de governos

Nesta quinta-feira, o governo de São Paulo anunciou medidas preparatórias para enfrentar o aumento do número de casos. O estado determinou que todos os hospitais, públicos, privados e filantrópicos, devem interromper o agendamento de novas cirurgias eletivas, para que mais leitos fiquem disponíveis a pacientes de covid-19.

O governo paulista também proibiu os hospitais de desmobilizarem seus leitos hoje destinados a quem está infectado pelo vírus, e informou que a reclassificação das regiões do estado sobre flexibilização de atividades será feita a cada 14 dias, em vez dos atuais 28 dias, para reagir à evolução da pandemia com mais rapidez.

Já o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que é candidato à reeleição e está em campanha no segundo turno, tem afirmado que a pandemia está sob controle na capital paulista e que não há necessidade de alterar as regras no momento. A prefeitura, porém, informou que abrirá 200 novos leitos de enfermaria destinados aos pacientes de covid-19 em três hospitais da cidade.

No governo federal, o Ministério da Saúde entende que não é o momento de adotar medidas mais duras em relação à pandemia. Segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, citando autoridades que acompanham as discussões da pasta, um alerta só será acionado se houver alta consistente no número de mortes.

Essa pode ser uma estratégia arriscada, segundo Moura da Silva, devido aos atrasos das notificações por morte por covid-19. "O ideal é acompanhar diversas fontes de informação: notificação dos casos, número de internações, taxa de ocupação de leitos e circulação de pessoas", diz.

Deutsche Welle, em 20.11.2020