quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Meghan Markle sobre aborto espontâneo: 'As perdas que compartilhamos'

Em artigo para o 'The New York Times'', mulher do príncipe Harry afirma que 'talvez o caminho para a cura comece com três palavras simples: Você está bem '

Meghan Markle, Duquesa de Sussex, 

Era uma manhã de julho que começou tão normalmente como qualquer outro dia: preparei o café da manhã. Dei comida para os cachorros. Tomei minhas vitaminas. Encontrei aquela meia que estava sumida. Peguei o giz de cera fugitivo que havia rolado para debaixo da mesa. Fiz um rabo de cavalo em meu cabelo antes de tirar meu filho do berço.



Meghan escreve artigo ao NYT e revela que sofreu um aborto espontâneo de seu segundo filho  Foto: Adrian DENNIS / AFP

Depois de trocar sua fralda, senti uma cólica forte. Fui ao chão com ele em meus braços, cantarolando uma canção de ninar para nos manter calmos, a melodia alegre em forte contraste com a minha sensação de que algo não estava bem.

Eu sabia, enquanto abraçava meu primogênito, que estava perdendo meu segundo filho.

Horas depois, estava deitada em uma cama de hospital, segurando a mão do meu marido. Senti a umidade de sua mão e beijei seus dedos, molhados com nossas lágrimas. Olhando para as paredes brancas e frias, meu olhar ficou perdido. Tentei imaginar como nos curaríamos.

Lembrei de um momento no ano passado quando Harry e eu estávamos terminando uma longa viagem pela África do Sul. Estava exausta. Estava amamentando nosso filho pequeno e tentando manter uma expressão destemida aos olhos do público.

"Você está bem?", um jornalista me perguntou. Respondi-lhe honestamente, sem saber que o que eu disse iria ressoar tanto - em mães de primeira viagem e naquelas mais experientes, e em qualquer um que, à sua maneira, sofreu silenciosamente. Minha resposta nada planejada parecia dar às pessoas permissão para falar sua verdade. Mas não foi responder de modo sincero que mais me ajudou, foi a própria pergunta.

“Obrigada por perguntar,” respondi. “Poucas pessoas têm perguntado se estou bem.”


Em maio de 2018, Meghan e o príncipe Harry se casaram na Inglaterra  Foto: Ben STANSALL / POOL / AFP

Sentada em uma cama de hospital, vendo o coração do meu marido se partir enquanto ele tentava segurar os pedaços do meu, percebi que a única maneira de começar a se curar é primeiro perguntando: "Você está bem?".

Estamos? Este ano levou muitos de nós aos nossos limites. A perda e a dor atormentaram cada um de nós em 2020, em momentos ao mesmo tempo difíceis e debilitantes. Já ouvimos todas as histórias: uma mulher começa o dia, tão igual quanto qualquer outro, mas depois recebe uma ligação informando que perdeu sua mãe idosa para a covid-19. Um homem acorda se sentindo bem, talvez um pouco preguiçoso, mas nada fora do comum. O resultado de seu exame dá positivo para o novo coronavírus e, em poucas semanas, ele - como centenas de milhares de outros - morre.

Uma jovem chamada Breonna Taylor vai dormir, assim como todas as noites anteriores, mas ela não vive para ver o amanhecer porque uma operação policial deu terrivelmente errado. George Floyd sai de uma loja de conveniência, sem perceber que daria seu último suspiro sob o peso do joelho de alguém e, em seus momentos finais, chamaria por sua mãe. Protestos pacíficos tornam-se violentos. A saúde rapidamente se transforma em doença. Em lugares onde antes havia coletividade, agora há divisão.

Além de tudo isso, parece que não concordamos mais a respeito do que é verdade. Não estamos apenas brigando por nossas opiniões sobre os fatos, estamos polarizados quanto ao fato ser, de fato, um fato. Estamos discordando se a ciência é real. Discordamos se uma eleição foi ganhada ou perdida. Estamos em desacordo quanto ao valor do comprometimento.

Essa polarização, juntamente com o isolamento social necessário para combater esta pandemia, fez com que nos sentíssemos mais sozinhos do que nunca.

Quando estava no final da adolescência, sentei-me no banco de trás de um táxi no meio daquela correria e agitação de Manhattan. Olhei pela janela e vi uma mulher ao telefone chorando copiosamente. Ela estava parada na calçada, vivendo um momento privado muito publicamente. Na época, a cidade era nova para mim e perguntei ao motorista se deveríamos parar para ver se a mulher precisava de ajuda.

Ele explicou que os nova-iorquinos vivem suas vidas pessoais em espaços públicos. “Amamos pela cidade, choramos na rua, nossas emoções e histórias estão por aí para qualquer pessoa ver”, lembro-me dele me dizendo. "Não se preocupe, alguém naquela esquina vai perguntar se ela está bem."


Meghan e príncipe Harry têm um filho, Archie, que nasceu em 2019  Foto: Henk Kruger/African News Agency via AP

Agora, todos esses anos depois, em isolamento e com o lockdown, lamentando a perda de um filho e a perda da crença compartilhada do meu país em relação ao que é verdade, penso naquela mulher em Nova York. E se ninguém parasse? E se ninguém a visse sofrendo? E se ninguém a ajudasse?

Eu gostaria de poder voltar e pedir ao taxista para parar. Isso, eu me dou conta, é o perigo de viver isolado - onde momentos tristes, assustadores ou importantíssimos são vividos sozinho. Não há ninguém parando para perguntar: “Você está bem?”.

Perder um filho significa carregar uma dor quase insuportável, vivida por muitos, mas falada por poucos. Na dor de nossa perda, meu marido e eu descobrimos que a cada 100 mulheres, entre 10 e 20 delas sofreram aborto espontâneo. No entanto, apesar do espantoso ponto em comum por essa dor, a conversa permanece um tabu, cheia de vergonha (injustificada) e perpetuando um ciclo de luto solitário.

Algumas corajosamente compartilharam suas histórias; elas abriram a porta, sabendo que quando uma pessoa fala a verdade, isso dá licença para todos nós fazermos o mesmo. Aprendemos que quando as pessoas perguntam como qualquer um de nós está, e quando realmente ouvem a resposta, com o coração e a mente abertos, o fardo da tristeza geralmente fica mais leve - para todos nós. Ao sermos convidados a compartilhar nossa dor, damos os primeiros passos em direção à cura.

Portanto, neste Dia de Ação de Graças, enquanto planejamos um feriado diferente de todos os anteriores - muitos de nós separados de nossos entes queridos, sozinhos, doentes, assustados, divididos e talvez lutando para encontrar algo, qualquer coisa, pela qual ser grato - vamos nos comprometer a perguntar uns aos outros "Você está bem?". Por mais que possamos discordar, por mais distantes fisicamente que estejamos, a verdade é que estamos mais conectados do que nunca por causa de tudo o que suportamos individual e coletivamente este ano.

Estamos nos ajustando a uma nova normalidade, onde os rostos são ocultados por máscaras, mas isso está nos forçando a olhar nos olhos uns dos outros - às vezes cheios de cordialidade, outras vezes, de lágrimas. Pela primeira vez, em muito tempo, estamos realmente nos vendo como seres humanos.

Estamos bem? Vamos ficar. 

The New York Times / The New York Times

Mais um incidente diplomático

Eduardo Bolsonaro se sente à vontade para ofender a China porque nada lhe acontece

É muito prejudicial ao País que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) presida a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.

Em 2018, os seus eleitores podem ter julgado que ele reunia as condições necessárias para o exercício de um mandato parlamentar, mas seu comportamento ofensivo e irresponsável no trato com outras nações mostra que o deputado não está à altura da presidência de uma das mais importantes comissões permanentes da Casa. Compete à CREDN, por exemplo, apreciar projetos de lei, tratados internacionais e outras proposições referentes às áreas de defesa e de política externa brasileiras. Compete à comissão, ainda, o acompanhamento e a fiscalização das ações do Poder Executivo no âmbito daquelas áreas, como dispõe a Constituição.

As reiteradas aleivosias do deputado Eduardo Bolsonaro podem servir muito bem como combustível para incendiar os ânimos das hostes bolsonaristas nas redes sociais, altamente inflamáveis por natureza, mas, ao fim e ao cabo, têm causado enormes danos à imagem do Brasil e elevado de forma significativa o risco de prejuízos financeiros para o País.

O mais recente incidente diplomático causado pelo filho “03” do presidente Jair Bolsonaro – certamente não terá sido o último – envolveu mais uma vez a China, nada menos do que o maior parceiro comercial do Brasil. Em uma série de mensagens publicadas no Twitter, logo depois apagadas, o deputado Eduardo Bolsonaro acusou o Partido Comunista da China e empresas chinesas de praticar “espionagem cibernética”. As acusações feitas pelo parlamentar não se sustentam. Baseiam-se em teorias conspirativas e têm como pano de fundo a disputa comercial e geopolítica entre os Estados Unidos e a China para venda de equipamentos da rede 5G em todo o mundo.

A gravidade do ato hostil do deputado Eduardo Bolsonaro pode ser medida pelo tom da resposta do porta-voz da embaixada da China no Brasil, a mais incisiva até o momento (o “03” é useiro e vezeiro nas ofensas ao país asiático). Em comunicado, a embaixada chinesa recomendou que Eduardo Bolsonaro, sem citá-lo nominalmente, evite “ir longe demais no caminho equivocado” de atribular a relação entre os dois países. Caso contrário, prossegue a embaixada, “deverá arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”.

A embaixada chinesa teve o cuidado de lembrar o que está em jogo. “Ao longo dos 46 anos de relações diplomáticas, a parceria sino-brasileira conheceu um rápido desenvolvimento graças aos esforços de ambas as partes. A China tem sido o maior parceiro comercial do Brasil há 11 anos consecutivos, e é também o país com mais investimentos no Brasil”, diz o comunicado. Entre os meses de janeiro e outubro deste ano, as exportações do Brasil para a China somaram US$ 58,5 bilhões, correspondentes a um terço de todas as exportações do País. É disso que se trata do ponto de vista econômico.

A irresponsabilidade do deputado Eduardo Bolsonaro, ao se engajar em atos e palavras de hostilidade contra países dos quais não tem suficiente conhecimento, conflita com a melhor tradição diplomática brasileira e fere os princípios que regem as relações exteriores do Brasil consagrados na Constituição. Até quando? Talvez o deputado se comporte com tamanho desassombro reiteradas vezes, a despeito dos males que causa ao País, porque receba mais incentivos do que admoestações de seu pai, assim como um filho malcriado cujas travessuras mais entretêm do que constrangem.

O atrevimento do presidente da CREDN causa fissuras em relações externas construídas ao longo de muitos anos, pautadas pela confiança e pelo respeito mútuos. Caso Eduardo Bolsonaro continue a fazer o que faz, repetidamente, sem que nada nem ninguém lhe aplique o devido corretivo, tais fissuras podem se tornar rachaduras irreparáveis.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020

Sem lanterna de proa – 3

Se migrarmos para um cenário de dominância fiscal, seremos levados a um quadro caótico      

Por Nathan Blanche

Este é meu terceiro alerta nos últimos meses de que o barco Brasil continua num mar de incertezas quanto ao equilíbrio fiscal. Para se ter ideia das dificuldades do governo para elaborar o Orçamento de 2021, até a data de hoje não foi instaurada a Comissão Mista do Orçamento do Congresso. Sem essa peça básica de planejamento e execução orçamentária para o ano que vem e sem avanços nas necessárias reformas fiscais, é grande a possibilidade de o País zarpar para uma rota de elevada incerteza a partir de janeiro.

Um sinal claro do caos fiscal que se aproxima no próximo ano e causa tanta insegurança nos agentes econômicos e no Tesouro Nacional está no cronograma de vencimento de títulos públicos da dívida interna. Até abril de 2021 vencem R$ 605,3 bilhões em títulos, um aumento de 71% em relação aos R$ 354,5 bilhões que venceram até abril de 2020. Olhando o volume completo de vencimentos para 2021, é R$ 1,1 trilhão em títulos a serem pagos pelo Tesouro, um aumento de 40,5% ante os R$ 782,5 bilhões programados para 2020.

Tradicionalmente, o que se faz é rolar a dívida, pagando dívida velha com emissão de dívida nova. Mas em meio aos crescentes riscos fiscais, os prêmios exigidos para as novas emissões estão aumentando semanalmente. Em 17/9/2020, por exemplo, foram leiloadas LTNs (títulos prefixados) com vencimento em janeiro de 2024 pagando juros de 5,51%. Poucos dias depois, em 1.º/10, as taxas subiram para 6,12%.

O aumento dos prêmios exigidos pelo mercado financeiro nada mais é do que a precificação dos crescentes riscos fiscais, o que encarece o custo do serviço da dívida no futuro, comprometendo o processo de consolidação fiscal ao longo do tempo. Para fugir das taxas mais elevadas presentes nos juros futuros o Tesouro acaba optando por suprir suas necessidades de financiamento ofertando títulos de prazos mais curtos. Troca-se, assim, a estratégia de consolidação fiscal de longo prazo pelas necessidades emergenciais de curto prazo.

O resultado desse quadro é uma aceleração do crescimento da dívida. Entre 2013 e 2019 a dívida aumentou 23,8 pontos porcentuais. Mas em 2020, em meio aos enormes gastos no combate à pandemia e aos efeitos nocivos para a arrecadação, a dívida bruta deve atingir 97% do PIB, um aumento de 21 pontos porcentuais apenas em um único ano!

Sem a retomada do processo de ajuste fiscal, como avanço das privatizações e reformas que foquem no controle dos gastos (como as PECs emergencial, do Pacto Federativo e da reforma administrativa), caminharemos facilmente para que a dívida supere os 100% do PIB no médio prazo.

Vários economistas vêm alertando para o risco iminente de um cenário de dominância fiscal, ou seja, quando o custo fiscal do aumento das taxas de juros pelo Banco Central (BC) supera os benefícios da política monetária no combate à inflação. Mesmo com um BC tendo a devida autonomia de ação para colocar a taxa de juros onde ela deve estar para controlar a inflação, num cenário de dominância fiscal o uso da Selic como instrumento primordial da política monetária dentro do regime de metas de inflação perde sua eficácia. O resultado seria a volta de um processo inflacionário, que seria tanto maior quanto maior for o desequilíbrio fiscal e o endividamento público.

Não estamos nesse ponto ainda, mas, no limite, caso migremos para um cenário de dominância fiscal, seríamos conduzidos a um quadro caótico semelhante à década de 1980, no qual a inflação era a variável de ajuste dos desequilíbrios econômicos e fiscais.

Não sem motivo a inflação começou a ganhar novamente espaço nos noticiários e ser motivo de preocupação. Dúvidas quanto às causas e à duração da recente alta dos preços no atacado e no varejo, em contexto de aumento da incerteza sobre a trajetória fiscal, têm levado muitos analistas a revisar suas apostas quanto ao momento em que o BC começará a subir juros. Em meio a essa discussão, surge a questão do repasse aos preços da depreciação cambial. Dirigentes do BC afirmaram que, caso haja pressão de demanda de câmbio no final do ano, não hesitariam em intervir no mercado, ofertando proteção (hedge) para conter novo movimento de depreciação da moeda. Não é o objetivo da autoridade monetária controlar a inflação por meio de política cambial, mas a soma de todas essas fontes de pressão, em contexto de crescente risco fiscal, parece exigir da autoridade monetária medidas que vão além do eventual aumento antecipado da taxa de juros.

Paulo Guedes, conhecido por ser superlativo em suas falas, recentemente, disse que “o Brasil pode ir para uma hiperinflação muito rápido, se não rolar a dívida pública satisfatoriamente”. Mas a tomar pela nossa enorme dívida e pela falta de ações concretas para contornar seu crescimento, não se deve ignorar o alerta do ministro. Por outro lado, o caminho não é só “... vender ativos, privatizar, desalavancar os bancos públicos e até vender um pouco de reservas”, como ele destacou. Isso pode alterar o nível da dívida, mas não a sua dinâmica, que exige respeito ao teto dos gastos e reformas fiscais. O trabalho é árduo e exige foco e articulação política.

Nathan Blanche é sócio-diretor da Tendência Consultoria Integrada. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020.

No País das Maravilhas

No país de Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados, que vão enfrentar inevitável redução de renda, podem esperar

No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.

Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.

Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.

No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País, o presidente preferiu dizer que vivemos em harmonia racial e que o lugar de quem denuncia o racismo é o “lixo”.

Também no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.

Na Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo, Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em frangalhos. 

No mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.

Assim, aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.

Esse estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição, resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 26.11.2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Com a perda da imunidade, Trump pode enfrentar processos após deixar o poder

Presidente e suas empresas são alvos de investigações que vão de obstrução de Justiça a fraude fiscal, mas no cargo ele não pode virar réu


O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, durante um comício em 28 de outubro Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP

A vitória do democrata Joe Biden não significa apenas uma derrota eleitoral para Donald Trump. Ao deixar a Casa Branca, o presidente republicano perderá a imunidade que o cargo lhe confere. Isso significa que, assim que ele deixar o poder, o Departamento de Justiça pode retomar a acusação de possível obstrução de Justiça contra Trump apontada no inquérito especial sobre a interferência russa nas eleições de 2016, ou abrir um inquérito sobre suas deduções fiscais.

A Constituição americana não prevê a imunidade do presidente, mas há uma política de décadas do Departamento de Justiça de que o chefe de Estado não pode virar réu. Essa orientação não impede que investigações sejam abertas, mas ele pode usar o cargo para, por exemplo, não prestar depoimentos ou não apresentar seus dados fiscais — o que Trump já fez em processos anteriores que o envolviam.

O inquérito sobre a interferência russa, conduzido pelo promotor especial Robert Mueller, não obteve provas de que o republicano entrou em conluio com a campanha de desinformação de Moscou, mas detalhou episódios em que ele teria tentado impedir o seguimento da investigação.

Outro caso que poderia ser retomado é o da violação das leis de financiamento eleitoral em sua campanha de 2016. Na época, a equipe de Trump pagou pelo silêncio de duas mulheres que alegavam ter tido relações sexuais com o então candidato. O ex-advogado de Trump, Michael Cohen, se declarou culpado e foi condenado a três anos de prisão. Cohen, porém, disse que seu ex-cliente orientou o pagamento, que não foi declarado como despesa de campanha.

A eventual reabertura desses dois casos ficará a cargo do Departamento de Justiça, o que terá implicações políticas para o futuro governo de Joe Biden, que se elegeu com a promessa de reduzir a polarização no país.

— A decisão de processar um ex-mandatário tem sempre uma conotação política, e, com Trump, Biden vive um impasse — disse Oliver Stuenkel, coordenador da Escola de Relações Internacionais da FGV-SP — Processá-lo vai contra o discurso do democrata de retomar o diálogo, e irá minar a articulação que ele precisará ter com os republicanos no Congresso. Por outro lado, deixar Trump escapar ileso vai gerar uma revolta na ala mais progressista democrata.

No flanco fiscal, a reportagem do New York Times que mostrou que Trump ficou sem pagar imposto de renda em dez dos 15 anos anteriores ao seu governo também pode dar origem a processos criminais. O republicano alegou que teve perdas significativas em seus investimentos e propriedades, o que lhe permitiu pagar apenas US$ 750 de imposto no ano de sua posse, e o mesmo valor no ano seguinte, já na Casa Branca.

Já existe um processo em que o presidente foi chamado a entregar suas movimentações financeiras. A ação corre na Justiça de Nova York e foi aberta inicialmente para investigar o pagamento a Stormy Daniels, uma das mulheres do caso em que Michael Cohen foi condenado. Trump conseguiu enrolar o embate judicial até o momento, levando-o até a Suprema Corte. Porém, com ele fora da Casa Branca, a ação deve ganhar mais força, já que os procuradores terão maior acesso a documentos do presidente e poderão intimá-lo a prestar depoimento.

A imobiliária da família de Trump também é investigada pela Procuradoria Geral de Nova York sob suspeita de ter subvalorizado algumas de suas propriedades para conseguir benefícios fiscais. Ainda que o caso corra em âmbito civil, caso os investigadores encontrem evidências de uma conduta intencional, ele poderia se tornar criminal e envolver Trump.

Fora das disputas judiciais, a situação financeira de Trump também enfrentará desafios. Segundo uma reportagem do Financial Times, o presidente tem cerca de US$ 900 milhões em dívidas imobiliárias que vão vencer nos próximos quatro anos. Ele também deverá pagar mais de US$ 300 milhões de empréstimos que também vencem nos próximos anos, conforme mostrou outra reportagem, do New York Times.

Além disso, o republicano também é alvo de duas acusações de difamação, em ações movidas por mulheres que alegam terem sido abusadas sexualmente pelo presidente — ele chamou as duas de mentirosas, o que fez com que elas o processassem. Em ambos os casos, Trump se negou a prestar depoimento e a fornecer uma amostra de seu DNA. Fora da Casa Branca, ele pode ser intimado a fazer os dois.

Camila Zarur, O Globo

"Todo ajuste que o Ministério da Economia apresenta, o Presidente diz que não quer"

Economista afirma que falta do comprometimento do governo com agenda reformista resultará em ambiente econômico instável e prevê flexibilização do teto dos gastos      

O governo de Jair Bolsonaro errou na calibragem do pacote fiscal lançado no primeiro semestre deste ano para conter os efeitos econômicos da pandemia e, por enquanto, não dá sinais de que conseguirá colocar a dívida em uma trajetória sustentável, na avaliação da economista Zeina Latif. Para ela, algumas falhas na condução da economia durante a quarentena são perdoáveis, pois todos estavam “no escuro”, mas o governo não se esforçou para limitar os gastos. “É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Tem de ter articulação do governo”, diz Zeina.

Segundo a economista, agora seria o momento para avançar nas reformas estruturais, mas a falta de disposição de Bolsonaro para adotar medidas impopulares aumenta o desafio. “Tudo que o Ministério da Economia leva, ele (o presidente) diz que não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’.”

Zeina, porém, é contra o aumento de impostos, pois a iniciativa poderia resultar em uma atividade econômica mais fraca. Diante desse cenário que combina dívida crescente e falta de comprometimento do governo com reformas, ela prevê um ambiente macroeconômico instável, o que prejudicará o crescimento, e alguma flexibilização da regra do teto de gastos (lei que limita as despesas federais ao valor do ano anterior, corrigido pela inflação).

● O FMI aponta que a dívida brasileira deve chegar a 100% do PIB neste ano. Que impacto isso terá na economia?

Estamos falando de um Brasil que já destoava nesse conceito de outros países emergentes parecidos conosco, como vizinhos da costa do pacífico na América Latina. Se já destoávamos, agora destoamos ainda mais. Além de esse número ser elevado, estamos em uma trajetória de crescimento da dívida. Isso traz preocupação e, por isso, alguns economistas acham que será inevitável o aumento da carga tributária. Eu acho que seria muito importante evitar esse aumento. Se temos esse quadro de dívida elevada e crescente, mas ao mesmo tempo um governo que sinaliza seu compromisso, de forma crível, de manter a responsabilidade fiscal, de fazer reformas, fica mais fácil navegarmos. Porque aí os investidores falam: ‘Está elevada, mas sei que, lá na frente, tudo vai dar certo; o governo está comprometido’. Essa sinalização é essencial. Não se trata apenas do número em si, mas da expectativa de que, lá na frente, vai conseguir consertar. Aí é possível evitar o aumento da carga tributária e uma postura mais defensiva de investidores. Hoje a gente já vê investidores não querendo mais financiar o Brasil, mas é claro que o espaço para piorar é grande.

● Além de subir carga tributária, medida a qual a sra. é contra, que outras iniciativas podem ser adotadas para evitar uma deterioração fiscal maior?

O certo é fazer reformas estruturais para conter o crescimento de despesa obrigatória. Os economistas que falam que vai ter de aumentar a carga tributária, no fundo, estão falando o seguinte: ‘o governo não vai fazer reforma’. Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária. Aumentar a carga tributária é coisa de país preguiçoso. Não fizemos a lição de casa, bateu o desespero, e aí criamos uma CPMF. Todo esforço tem de ser feito para desenhar uma estratégia crível para a contenção de gastos obrigatórios.

Zeina Latif é economista com doutorado pela USP. Consultora econômica, foi economista-chefe da XP e passou por instituições financeiras como o Royal Bank of Scotland, ING, ABN Amro e HSBC. É colunista do Estadão.

● A OCDE e o FMI estão orientando os países a aumentarem os impostos e a progressividade deles para pagar a conta da covid. A excepcionalidade do momento, dada a explosão de gastos que foi necessária por causa da pandemia, não permite um aumento?

Considerando a situação do Brasil, que já tem uma carga tributária que destoa e que tem uma estrutura tributária que gera muitas distorções e machuca o crescimento econômico, acho que (aumentar impostos) seria agravar a crise. Quando a gente fala de a dívida pública ter uma trajetória sustentável, tem de olhar o denominador (da relação dívida/PIB). Se tentamos fazer o ajuste via carga tributária e desconsideramos o efeito disso no PIB, acho que será pior. Esse é o grande legado do Alesina (Alberto Alesina, economista italiano morto neste ano, conhecido como ‘o pai da austeridade’): se for para fazer ajuste fiscal, tente fazer pelo lado da despesa estrutural. Do lado da arrecadação, vai ser menos eficiente. Se se falasse assim no Brasil: ‘Estamos fazendo uma reforma tributária que vai ter uma tremenda simplificação, eventualmente um aumento da carga, mas já em uma base menos distorcida’, aí poderíamos começar a conversa. Agora, nessa estrutura tributária que temos, é tiro no pé. Algumas pessoas falam que tem de aumentar a carga tributária porque ela historicamente está baixa em relação ao passado recente, mas aí seria via eliminação de renúncias tributárias - o que não é uma agenda fácil.

● Quando a sra. fala de reformas que poderiam resolver o problema fiscal, o que é prioridade?

Do lado de contenção de despesas, não tem bala de prata. Não é que vai fazer uma reforma, do tipo da reforma da Previdência, e vai resolver. Vai ter de trabalhar em várias frentes. E a gente se preocupa porque tem recomendações básicas de política econômica que todo mundo sabe que precisam ser feitas, mas há pouca disposição do presidente Jair Bolsonaro. Tudo que o Ministério da Economia leva, ele diz que não quer. Para a reforma administrativa, ele diz que não pode mexer com os atuais servidores. Rever as políticas sociais, reempacotá-las, ele também não quer. Refazer a PEC Emergencial para reduzir a folha em situações de emergência, não quer. Por isso que muitos analistas falam: ‘vamos parar de nos enganar, porque não vai ter reforma estrutural relevante e a gente vai ser forçado a aumentar a carga tributária’. Não dá para descartar esse cenário.

● Se houvesse uma vontade real de fazer as reformas, quanto tempo teríamos para aprová-las? Ou dar uma sinalização de que elas vão avançar é suficiente?

Uma sinalização forte é ter um consenso no governo, não é o ministro da Economia falar uma coisa, mas a Casa Civil pensar outra e o presidente não se comprometer. Primeiro tem de ser crível o compromisso. Temos de olhar e entender que é uma agenda de governo. Esse consenso interno se traduz em articulação e diálogo no Congresso. Quando o (ex-presidente Michel) Temer entrou, a gente viu as expectativas inflacionárias desinflando, o mercado cambial também, porque se enxergava um plano de voo e, ao mesmo tempo, a sinalização de que haveria capacidade de aprovação no Congresso. Não havia sido feito ajuste fiscal nenhum ainda, mas já via o mercado melhorando as expectativas e os preços de ativos. Tendo credibilidade, você vai ganhando tempo, o que não quer dizer que você não tenha de entregar resultado. A forma como o governo faz hoje é muito atabalhoada, manda várias PECs de uma vez, congestiona o Congresso.

● Se o governo continuar com essa postura, qual será o resultado na economia?

A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado. O que vejo é que tem um grau de incerteza. A gente não sabe qual é o Orçamento do ano que vem. Acho que não será um cenário em que o governo revoga a regra do teto, porque, quando o mercado financeiro reage, isso assusta (o governo). Então, acho que vai ser um ambiente ruidoso, com alguma flexibilização na regra do teto, ainda que informal.

“Como fazer reforma é difícil e chega uma hora em que os credores dão cartão vermelho, aí o governo, sem opção, é obrigado a aumentar a carga tributária”

● Mas que impacto tem isso na economia em geral?

É um ambiente macroeconômico um pouco mais instável. Aquilo que a gente já tem visto. Por exemplo, o dólar destoando do que seria o sugerido pelo cenário internacional. O câmbio poderia estar mais próximo de R$ 4,50 se a gente tivesse um compromisso fiscal. O Banco Central possivelmente vai ter de subir juros antes da hora. Você vai tendo uma piora, ainda que não degringole o ambiente macroeconômico, como foi o cenário com Dilma (Rousseff), mas ele fica um pouco mais instável. Isso não é boa notícia, porque, quando a gente fala em recuperação da economia, um ambiente macroeconômico mais estável é pedra fundamental. Só o fato de você não saber para onde vai o dólar gera incertezas. Isso machuca o crescimento.

● Em março, os economistas foram quase unânimes ao defender aumento dos gastos do governo para reduzir os impactos da crise da pandemia. Houve um erro de calibragem nesses gastos?

A gente gastou demais. Tinha de ter gastado menos. Eu estava na outra ponta.

● Mas aí não teríamos uma crise social ainda mais aguda, além da deterioração da relação dívida/PIB, dado que o PIB recuaria ainda mais?

É que o diabo mora nos detalhes. Uma coisa é ter de fazer socorro, mas gente desperdiçou recursos na ajuda aos Estados. Foi um volume de recursos além da queda de receita. Tem Estado que está com um caixa que nunca teve. Houve alguma contrapartida dos Estados? Exigiram ajustes? Nada. Esse auxílio emergencial foi absolutamente descalibrado. O auxílio emergencial era para dar subsistência para pessoas vulneráveis. Olha o crescimento das vendas do varejo e da indústria. É absolutamente artificial. Errou na dose.

● Não há um impacto positivo? A queda no PIB será menor.

Não. É sonho de uma noite de verão. É transitório, porque é um crescimento artificial. A fatura já está chegando. Por que o câmbio está assim? Tem de tomar cuidado. Eu fui contra o tempo todo ao discurso de 'vamos gastar e depois a gente vê'. Não existe isso. Recurso público tem de ser usado com zelo. O Brasil, em relação aos emergentes, destoou de novo. A gente gastou como se fosse a Alemanha e gastou mal, porque a gente se preocupou muito em sustentar o consumo e podia ter calibrado mais para ajudar novas empresas.

“A tendência é ter alguma flexibilização da regra do teto, explícita ou não, para encaixar algum Bolsa Família mais turbinado.”

● A que a sra. credita esse erro de calibragem?

Tem coisa que é perdoável. Ali, na largada, seria injusto querer que o governo conseguisse tudo. Era impossível. Estava um pouco no escuro mesmo. Agora, o Congresso foi lá e aprovou o auxílio emergencial de R$ 600. O governo tem de chegar e falar: ‘nossos estudos estão falando que não pode ser tudo isso e que tem de ser muito focalizado’. É o governo que tem de segurar as rédeas, porque o Congresso quer gastar. Se o governo manda medida para aumentar gasto, o Congresso vai aprovar e até vai fazer mais. Tem de ter articulação do governo. O governo não usou os recursos na saúde totalmente. Veio um auxílio emergencial com problema de calibragem e operacional. Teve funcionário público e militar que receberam o auxílio. Faltou essa calibragem e pensar no dia seguinte.

● Ainda dá tempo de consertar?

Geralmente, quando tem uma crise econômica, é aí que a gente faz reformas. Então não vamos desperdiçar essa crise, né? A crise é séria e não só no nível federal. Nos Estados, a situação vai ficar complicada, porque eles têm de voltar a pagar a dívida. Parte do aumento da arrecadação dos Estado foi artificial. Então não vai seguir nesse ritmo. As despesas são crescentes. Tem Estado que ainda não fez reforma da Previdência. Tem Estado que fez, mas foi tímida, foi meramente aumentar a contribuição, sem mexer nas regras para a aposentadoria. É muito importante que o governo mapeie os riscos e identifique o que se pretende fazer para lidar com esses assuntos. Se flexibilizar a regra do teto sem ter feito um esforço mínimo para conter despesas, aí a gente vai ter uma piora mais sensível do ambiente macroeconômico. Os agentes vão falar: ‘você está criando despesas no curto prazo e nem se preocupou em cortar no longo prazo?’.

Por Luciana Dyniewicz. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 25.11.2020

Um ministro sem rumo

Paulo Guedes, da Economia, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá.

 O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.

Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.

Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.

Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”

Ciclos, características sazonais, chegada do verão – tudo isso compõe um aranzel desconexo e distante dos fatos. A mudança da curva de contágio, o aumento de casos e a ocupação crescente de leitos de hospitais vêm sendo mostrados pelas estatísticas. A taxa de transmissão da covid passou de 1,10 em 16 de novembro para 1,30 no balanço divulgado na terça-feira passada.

Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.

Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.

Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.

O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.

Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2020.

Editorial de O Estado de São Paulo, em 25.11.2020

Biden: 'Não seremos um terceiro mandato de Obama'

Em entrevista à rede americana NBC, o presidente eleito dos EUA prometeu representar em seu governo 'todo o povo americano' e procurou sair da sombra de Barack Obama, de quem foi vice por 8 anos.



Foto de 10 de novembro de 2020 do presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, sorrir durante pronunciamento em Wilmington, Delaware. Biden completa 78 anos nesta sexta-feira (20) — Foto: Carolyn Kaster/AP

O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que seu governo não será um "terceiro mandato de [Barack] Obama", de quem foi vice durante oito anos. A declaração foi dada nesta terça-feira (24) em sua primeira entrevista exclusiva desde a eleição de 3 de novembro.

“Não seremos um terceiro mandato de Obama", disse Biden ao programa Nightly News da rede norte-americana NBC.

Biden disse ainda que sua administração quer representar todo o "espectro do povo americano, assim como todo o espectro presente dentro do Partido Democrata". Ele disse que deverá enfrentar "desafios únicos", que não existiam quando foi vice-presidente dos EUA.


Biden apresenta seus indicados para a cúpula do governo em evento na cidade de Wilmington, no Delaware, em 24 de novembro de 2020 — Foto: Joshua Roberts/Reuters

"Estamos em um mundo totalmente diferente do que estávamos durante a administração Obama-Biden", disse o democrata. "O presidente [Donald] Trump mudou todo o cenário."

Biden disse também que não exclui a possibilidade de indicar, para o seu governo, algum republicano que tenha declarado seu voto em Trump.

“Eu quero esse país unido", disse Biden.

A entrevista foi concedida no mesmo dia em que o presidente eleito apresentou formalmente parte da equipe do novo governo. A gestão do democrata vai colocar, pela primeira vez na história do país, uma mulher na chefia da inteligência dos EUA e um latino na Segurança Interna e imigração.

O atual governo autorizou na segunda (23) o início oficial da transição aos nomeados por Biden — o site oficial do time democrata ganhou inclusive o endereço com final .gov. A medida foi tomada a contragosto por Trump, que ainda tenta reverter a derrota alegando fraude, sem prova nenhuma.

G1

Fim das coligações reduz número de partidos nas Câmaras em 73% das cidades

Impacto foi maior nas pequenas cidades. Queda da fragmentação partidária, segundo professor da FGV, forçará líderes políticos a rever estratégias eleitorais.

O fim das coligações para eleições de cargos proporcionais provocou uma reviravolta nas Câmaras pelo país, sobretudo nas pequenas e médias cidades. Um levantamento feito pelo G1 com base nos resultados das disputas em mais de 5 mil municípios mostra que, em 73% deles, houve redução no número de partidos com representação nos Legislativos municipais.

O total de cidades que tinham até três partidos subiu de 262 para 1.565. Houve crescimento também, mas um pouco menor (17%), no total de cidades que tinham entre 4 e 6 partidos.

Prefeitos de 3,4 mil cidades devem ter apoio da maioria da Câmara Municipal

PSDB lidera em cidades populosas e MDB, nos pequenos municípios

No geral, Câmaras com até seis partidos, que até 2016 representavam 50% dos municípios, agora são 82% do total. Em contrapartida, caiu a quantidade de municípios com mais de seis legendas nos Legislativos locais. Em 2016, essas cidades representavam 50% do total; agora, são apenas 18%.

Os dados sugerem uma redução da chamada fragmentação partidária nos municípios. Isso pode ter efeitos positivos para os prefeitos, que deverão negociar com menos legendas para governar, na análise de especialistas.

Para Carlos Pereira, cientista político e professor da Escola de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getúlio Vargas, os dados demonstram um forte impacto do fim das coligações para eleições de cargos proporcionais. Segundo ele, o resultado das urnas representa um “choque” na organização das disputas políticas, o que levará os líderes a repensar suas estratégias eleitorais.

“O ponto mais importante desses dados é o impacto fortíssimo tanto na redução de Câmaras que têm muitos partidos quanto o aumento de Câmaras com poucos partidos. É um aumento considerável. Um crescimento de quase cinco vezes no número de cidades com até três partidos não é pouca coisa. Isso é quase uma revolução no sistema eleitoral, e levará os líderes políticos a rediscutir suas estratégias eleitorais, sem dúvida”, observa Pereira.

Pesquisa mostra que o número de partidos na maioria das câmaras de vereadores vai cair

Média de partidos se mantém estável nas grandes cidades

O cruzamento dos dados considerando o tamanho da população das cidades e a média de partidos com representação nas Câmaras municipais, outra forma de analisar a fragmentação partidária, mostra o impacto das urnas nos pequenos municípios.

Em cidades com até 20 mil moradores, a média de partidos no Legislativo local era de 5,9 em 2016. Esse número caiu para 4,1. A queda das médias se mantém até a faixa dos municípios com até 150 mil habitantes. A partir daí, os dados ficam praticamente estáveis, com pequenas variações das médias das duas eleições.

“O fim das coligações criou uma dificuldade para os partidos nos pequenos municípios, onde a competição tende a ser menor. Criou-se um freio e muitos partidos não conseguiram eleger seus candidatos. Já nas grandes cidades, a competição tende a ser mais difusa, com uma diversidade maior de nichos eleitorais e partidos competitivos. Daí, portanto, essas diferenças quando observarmos as cidades maiores e os grandes centros”, afirma Pereira.

Nas capitais, também houve mudanças no total de partidos com representação nas Câmaras, mas em uma magnitude menor. Recife teve a maior variação negativa. Em 2016, havia 21 partidos com representação na Câmara Municipal, número que neste ano caiu para 16.

No total, 11 capitais apresentaram queda de um a cinco partidos com representação, como foi o caso de Teresina, João Pessoa, Rio Branco, entre outras. Quatro capitais mantiveram o número de partidos no Legislativo, enquanto outras dez apresentaram aumento, entre uma e quatro legendas.

Para Carlos Pereira, o rearranjo das forças locais produzirá impactos na disputa federal de 2022, mas ela não deverá ser generalizada.

Ele explica que, em cidades nas quais o partido com maior força eleitoral é coincidente com o grupo político do deputado, a tendência é que ele seja reeleito. Mas quando não houver coincidência, sobretudo nos municípios pequenos, o impacto poderá ser diferente.

“Existem deputados que têm bases eleitorais muito estáveis, em dois, três ou cinco municípios contíguos. Nesse caso, a predominância de um partido alinhado com esse deputado não deverá gerar perda de votos. Mas em situações de desalinhamento, porque agora temos mais municípios com menos partidos com representação, esses deputados podem enfrentar problemas nas urnas", disse Carlos Pereira.

"Por outro lado, temos um terceiro grupo, que são os deputados eleitos pelo voto de opinião, sobretudo nos grandes centros. Acredito que esses não deverão ter muito problemas para se reeleger”, explica o professor da Ebape/FGV.

Efeitos negativos

A redução da fragmentação partidária, na avaliação de Carlos Pereira, deverá ser melhor analisada nos próximos anos. Ele chama atenção para o impacto do controle do Legislativo local e para a redução das chances de renovação política.

Segundo ele, sempre houve o desejo no Brasil de reduzir a fragmentação partidária porque ela dificulta o trabalho da governabilidade, mas existe também o efeito colateral de agora haver muitas cidades com poucos partidos na Câmara municipal.

Em 14 cidades, a Câmara será controlada por apenas um partido. Em 12 dessas cidades, o partido que controla o Legislativo é o mesmo do prefeito eleito. Todas os municípios têm como característica o fato de serem cidades com até 10 mil habitantes.

“Toda eleição precisa gerar representação e governo. Com a redução de número de partidos, com certeza vai ganhar em capacidade de governar do prefeito, já que agora temos menos fragmentação, especialmente nas cidades pequenas, mas justamente por ter menos partidos nas Câmaras temos uma perda de representação e também do controle do Legislativo sobre o Executivo. Então, o que temos que verificar daqui para frente é qual o ponto de equilíbrio entre governabilidade e representação e, claro, o controle que deve ser feito pelo Legislativo”, lembra Pereira.

Por Fábio Vasconcellos, G1

"A democracia brasileira precisa da esquerda unida", diz Marcelo Freixo

Em entrevista, deputado pelo Psol comenta o bom desempenho do correligionário Boulos nas eleições municipais e defende uma frente de esquerda em torno de um projeto comum, deixando de lado o personalismo.



"Se, em 2022, tivermos no 2º turno uma candidatura da direita liberal e outra da esquerda, o Brasil já venceu", diz Freixo

O deputado federal Marcelo Freixo (Psol) era o principal nome da esquerda para a disputa da prefeitura do Rio de Janeiro. Após duas tentativas frustradas, em 2012 e 2016, ele encabeçava as pesquisas de intenção de voto ao lado do ex-prefeito Eduardo Paes (DEM).

Causou surpresa, portanto, a sua decisão de não concorrer neste ano, anunciada em maio. A falta de união dos partidos de esquerda foi o principal motivo apresentado para a desistência. Com Psol, PT e PDT nadando em raias diferentes, o caminho ficou aberto para o atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) chegar ao segundo turno.

Fora do páreo no Rio, onde o Psol indicou veto a Crivella, Freixo concentrou suas energias nas articulações para a disputa em São Paulo, onde Guilherme Boulos (Psol) representa seu partido e a esquerda no segundo turno.

O deputado federal foi pessoalmente encarregado de costurar o apoio de Ciro Gomes (PDT) à campanha. O pedetista se juntou a Lula (PT), Flávio Dino (PCdoB) e Marina Silva (Rede), que voltaram a subir juntos em um mesmo palanque – agora virtual – após sucessivas brigas internas na esquerda.

Em entrevista à DW Brasil, Freixo exalta o sucesso de comunicação da campanha de Boulos e sua vice Luiza Erundina (Psol) em São Paulo e defende a necessidade de a esquerda construir uma frente em torno de um projeto comum, no lugar do personalismo.

"Se a gente ganha São Paulo, muda tudo. Se não ganha, o Boulos sai com uma força muito grande. Mas não ele enquanto pessoa, e sim uma forma de fazer política. A esquerda precisa 'despersonificar' um pouco seus projetos, para conseguirmos estar mais juntos enquanto um campo de atuação. E a democracia brasileira vai precisar muito da gente", avalia. "Há muito tempo eu digo que não estaremos juntos se o debate entre nós for de nomes."

Na entrevista, Freixo também faz um balanço das eleições de 2020, vê uma retração do bolsonarismo e dos outsiders, avalia o cenário para a eleição da Presidência da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2021 e fala sobre seu lugar como homem branco na abertura de espaços plurais na política.

DW: Que balanço você faz das eleições municipais até aqui?

Marcelo Freixo: Com o golpe e a vitória de [Jair] Bolsonaro, algo saiu do lugar. Esta eleição municipal marca um processo de retorno do pêndulo ao lugar da política. Houve uma bomba de destruição em massa jogada sobre a política brasileira, que foi a Lava Jato. Isso desmontou uma noção de política sem a construção de alternativas. Como o poder estava na mão da esquerda na época, ela é a grande derrotada em um primeiro momento. Só que a Lava Jato é destrutiva para todas as instituições e manifestações políticas. Não à toa, quem emerge como alternativa da Lava Jato é o subterrâneo, o Bolsonaro, que vem com uma estética subterrânea, uma linguagem subterrânea, a lógica da violência, reafirmando não ser da política.

Em 2020, vemos esse pêndulo voltar para o debate da política, das cidades, processo que tem como grande derrotada a direita bolsonarista. Não dá para generalizar pela direita, porque em cidades médias há a vitória de setores liberais importantes, como DEM e PP. Ou seja, os partidos que compõem o Centrão e a direita clássica, como o PSDB, saem vitoriosos em processos importantes. Quem perde são os candidatos bolsonaristas, que são amplamente derrotados ou vão para o segundo turno em dificuldade. Quem o Bolsonaro apoiou sai com muita dificuldade. E quem vence é o debate da política. As figuras outsiders começam a perder muito espaço.

E os partidos de esquerda?

Tentam colocar uma narrativa de que o Bolsonaro perdeu "assim como o PT". É muita forçação de barra, porque, comparado a 2016, o PT recuperou muitos espaços. É evidente que o partido não tem mais a hegemonia que tinha há algum tempo. Mas não sai derrotado e recupera espaços relevantes perdidos em 2016 e 2018. O PT está no segundo turno em 18 cidades importantes. É diferente da última eleição municipal, logo após o golpe contra a Dilma. Recife é um capítulo à parte, mas Porto Alegre, São Paulo, Vitória e Belém são cidades onde uma frente de esquerda começa a ser criada, um debate mais amplo da esquerda.

Este pode ser um caldo de cultura muito importante para 2022, que vai dialogar com o tabuleiro de 2020. Ao mesmo tempo, Bolsonaro mostra um desgaste eleitoral muito rápido. Para quem se elegeu em 2018, é um sinal de fragilidade política, e pode ser que ele chegue a 2022 mais fraco do que a gente poderia imaginar agora.

Qual tem sido o seu papel na articulação da frente de esquerda que se formou nesse segundo turno?

Trabalhei muito para eleger vereadores no Rio, no primeiro turno, e ajudei em outras cidades. No segundo turno, fiquei com a tarefa de trazer o Ciro para a campanha do Boulos, e conseguimos. Já estavam Lula e Flávio Dino, e vieram Ciro e Marina, que também estão juntos em Porto Alegre (RS) e Belém (PA). É claro que não se pode criar uma ilusão e achar que está tudo resolvido no meio da esquerda. Mas ficou claro que é possível estarmos juntos. Se nós tivermos um projeto, podemos estar juntos. Há muito tempo eu digo que não estaremos juntos se o debate entre nós for de nomes. Aí não vamos escapar do debate hegemonista.

Qual é o projeto? O que estamos defendendo e o que queremos alcançar juntos? Se a gente tiver maturidade para esse debate, temos condições de estar juntos. São aprendizados específicos para cada um de nós. O nome do Ciro é muito forte, assim como o do Dino. O que o Boulos está fazendo em São Paulo é de uma força muito grande. A eleição está muito disputada lá. Se a gente ganha São Paulo, muda tudo. Se não ganha, o Boulos sai com uma força muito grande. Mas não ele enquanto pessoa, e sim uma forma de fazer política. A esquerda precisa "despersonificar" um pouco seus projetos, para conseguirmos estar mais juntos enquanto um campo de atuação. E a democracia brasileira vai precisar muito da gente.

Até onde é possível ir o arco de alianças para derrotar o bolsonarismo?

Num primeiro momento, precisamos buscar o campo das forças de esquerda. Se a gente conseguir isso, pode ter uma candidatura competitiva. Depois, vai depender da conjuntura. O mais importante para nós é derrotar a experiência da extrema direita, porque ela é ameaçadora da democracia. Se, em 2022, tivermos no segundo turno uma candidatura da direita liberal e outra da esquerda, o Brasil já venceu. A democracia vence, e vamos para o debate de projetos. Agora, se tiver uma candidatura da extrema direita, o nosso arco de alianças terá que ser mais amplo.

A gente acabou de ver as eleições dos Estados Unidos: os setores à esquerda dos Democratas apoiaram um candidato que não era o preferido, mas era importante para derrotar o Trump. A conjuntura fala no momento adequado. Neste momento, o que devemos fazer, evidentemente, é fortalecer um projeto de esquerda e uma unidade desse campo de forma menos personalista e mais em torno de um projeto de país. Se a gente conseguir isso, chega a 2022 com condições de pensar além.

O Psol dividiria palanque com Luciano Huck ou Sergio Moro?

Eu não sei se as figuras outsiders da política vão ter vida em 2022. Este ano mostrou o contrário. A experiência não foi boa no Brasil. Eu conheço bem o Sergio Moro, tive muitos enfrentamentos com ele. É uma figura em que muito pouca gente confia. Não é alguém que prime por um projeto coletivo, muito pelo contrário. É difícil pensar em qualquer tipo de aliança, até pelo papel que ele cumpriu na República, muito ruim. Não vejo nenhum programa em que o Sergio Moro possa estar defendendo o mesmo que nós. Buscar essa solução de outsider para a política é insistir no que aconteceu em 2018, só que tentando pegar um nome melhor.

A gente deve deixar o pêndulo onde está, na política, e fazer esse debate de programas. Por exemplo, o que vamos defender para a questão da saúde, no momento do pós-pandemia, em 2022? Qual vai ser o papel da saúde pública e sua relação com o teto de gastos? O que a gente vai fazer com a educação tendo aprovado o Fundeb? Qual será o papel do Estado? Este é o debate que a gente tem que fazer e aprofundar. Quem vai defender o melhor projeto para o país e como? Isso o outsider não acompanha. Ele é muito mais a negação de uma institucionalidade do que a solução dos problemas dessas relações políticas. A gente tem que aprofundar a solução política na política.

Somadas, as candidaturas de esquerda receberam mais votos do que a de Marcelo Crivella (Republicanos) na eleição para prefeito do Rio de Janeiro. Com maior organização, era possível ter ficado com essa vaga?

Política não é matemática, por mais que a matemática possa ser útil à política. Eu acho que dava para ter ido além, mas a gente precisa entender que o Rio de Janeiro não é São Paulo. Primeiro, o Rio tem 40% da sua população composta por evangélicos, o que não acontece em outras capitais, com a particularidade de terem como líderes nomes da política, como o Silas Malafaia, o Pastor Everaldo, o RR Soares. Isso começa no governo Garotinho, por meio do Cheque Cidadão. Ele faz uma mistura de política com religião e traz para dentro do Estado. O Rio de Janeiro nunca mais foi o mesmo depois disso. E nada contra a religião evangélica, estou só comparando entre as cidades.

Ao mesmo tempo, o Rio tem as milícias, com uma força que também não existe nas outras capitais. Eu fui para São Paulo no primeiro turno e passei um dia lá com o Guilherme. Andamos por toda a periferia. Aqui no Rio de Janeiro, você não pode fazer isso. Há uma relação de religiosidade, território, crime, polícia e política  caminhando juntos, que não se vê em nenhum outro lugar. Disputar uma eleição no Rio não passa pelos marcos democráticos que outras cidades têm. É completamente diferente. Não é porque o Boulos chegou [ao segundo turno] em São Paulo que eu ganharia no Rio. O raciocínio não é assim. Para se ter ideia, a principal fake news do segundo turno é comigo. É um negócio criminoso, associando esquerda à pedofilia. Não se tem isso em São Paulo ou em outros debates.

Mesmo nesse cenário, você aparecia com 18% das intenções de voto em dezembro do ano passado, segundo o Datafolha, atrás do Eduardo Paes (22%) e bem à frente do Crivella (8%). As chances não seriam maiores?

Não dá para dizer, somados os votos da esquerda, que ganharia a eleição. Se eu fosse candidato e tivesse uma unidade da esquerda como eu propus desde o início, nós iríamos ao segundo turno muito fortalecidos, com um projeto para o Rio de Janeiro, buscando governabilidade. No Rio, não basta ganhar eleição. É sobre como você governa numa cidade onde um em cada três cariocas mora em área de milícia. O presidente da República tem, na sua origem, relações com a milícia, defendeu a legalização delas. Não tem governador do Estado, e o vice assumiu ainda no processo de transição. Eu não sou qualquer pessoa, fiz a CPI das milícias, sou jurado de morte e principal inimigo político deles. Como eu me torno prefeito sem uma unidade da esquerda, sem uma ampla relação para refundar o Rio de Janeiro? A cidade tem uma complexidade muito específica e grave neste momento.

A campanha do Boulos parece ser a primeira campanha bem-sucedida da esquerda na esfera digital. Como você avalia a estratégia?

Acho que a campanha do Boulos já é vitoriosa politicamente. Somado à experiência da Erundina, uma figura muito carismática, ele consegue uma eficiência de linguagem, sendo essa pessoa muito bem preparada. Ele consegue quebrar um preconceito muito grande sobre a ideia de um líder de movimento social. O Guilherme se mostra uma pessoa preparada, com condição de discutir São Paulo, o que também traz a esquerda para uma reflexão importante, sobre a preparação dos seus quadros. A gente tem os efeitos simbólicos de eleições que dialogam muito com os símbolos, mas precisamos ter quadros preparados, prontos para governar. A gente não pode se contentar só com projetos de performance política. Precisamos estar preparados para disputar o poder e assumir. O Guilherme mostra isso, ao lado da Erundina, com uma capacidade de comunicação que fez o cinza de São Paulo sorrir depois de muito tempo. Isso foi muito marcante.

Com o declínio da esquerda mais ligada ao sindicalismo, a intelectualidade ganhou espaço dentro do campo. Nesse cenário, como manter a capacidade de se comunicar com a população?

Uma das vitórias da campanha do Guilherme e da Erundina é exatamente ter conseguido se comunicar com vários setores da sociedade. Eles acertaram na comunicação. O Guilherme entendeu que não há uma juventude, mas juventudes existindo numa mesma cidade. Como é dito no livro Os Engenheiros do Caos, de Giuliano da Empoli, a ascensão da extrema direita no mundo é uma fusão da cólera com o algoritmo. Nós podemos dialogar com essa cólera e manusear os algoritmos. Precisamos saber dialogar nas redes e, ao mesmo tempo, entender e representar essa cólera. Essa indignação sempre contou com nosso apoio e não pode estar contra a gente. Tem que ser compreendida, e não pode ser canalizada para a negação da política e a construção de autoritários de plantão. Precisamos oferecer alternativas para essa cólera em um projeto de poder e, ao mesmo tempo, fazer isso chegar aos diversos setores da sociedade.

Hoje, há uma pulverização muito grande das fontes de informações, com parte da sociedade indo buscar o que lhe conforta. Passa a ser verdade o que ela quer que seja. Por isso, as fake news têm tanta capacidade de sucesso. Não tem um lugar onde você vai conferir se aquilo aconteceu ou não. As pessoas estão buscando conforto num mundo muito desconfortável. A gente tem que saber se comunicar com essa busca. Não vamos oferecer conforto, mas algo que interesse àquela pessoa ler, entender, ter acesso. Esse debate da comunicação é muito decisivo.

Acho que o grande segredo vai ser estar em um projeto nacional de país, apresentar alternativas concretas e, ao mesmo tempo, estar no território, chegar  a esses lugares e a essa juventude. Não tem mais o chão de fábrica porque não tem mais fábrica. A quantidade de trabalhadores precarizados, sem vínculos formais, hoje, é gigantesca. Como você dialoga com essa classe trabalhadora? Não é a mesma da década de 1980.

Você falou diversas vezes na importância de ter um projeto. Qual agenda um projeto comum da esquerda deveria englobar?

A primeira coisa é entender que a gente está no século 21. Não se pode abrir mão dos grandes desafios que ele trouxe, como a própria questão do emprego, a questão ambiental, climática. Isso deveria estar em pauta nos anos 1980 e 1990, mas era compreensível que não estivesse. No século 21, é impossível não ter isso como eixo central de um projeto de desenvolvimento. É impossível não ter um projeto de enfrentamento ao racismo, por exemplo, uma pauta que poderia não estar contemplada na estrutura de um projeto em 1980.

A própria eleição de tantas mulheres negras e trans é uma resposta ao bolsonarismo, por um lado. Por outro lado, é uma forma de fazer política que chegou e não vai embora. Como aliar isso a um projeto de país? Daí a ideia de não tratar como pauta identitária, e sim estrutural. Ter políticas de enfrentamento a uma estrutura racista é um projeto estrutural, e não identitário. Isso tem que estar na pauta do desenvolvimento de qualquer política de emprego, por exemplo.

Não quero fazer um debate na esquerda sobre quem é melhor. Quero saber o seguinte: neste projeto que a gente apresenta, cabem Ciro [Gomes], [Flávio] Dino, [Fernando] Haddad, Manuela [D'Ávila], Boulos e Marina [Silva]? Então, é este o projeto.

Você é padrinho político da Marielle Franco e contribuiu para abrir espaço à diversidade no campo da esquerda. Ao mesmo tempo, trata-se de um homem branco heterossexual no caminho de candidaturas com maior representatividade. Como lida com isso?

Com muita tranquilidade. Tenho 53 anos e milito desde muito novo. Quando comecei a trabalhar com direitos humanos, ninguém falava nisso. Eu tinha 21 para 22 anos quando comecei a trabalhar nas prisões, o que significa mais de 30 anos de trabalho dentro do cárcere, uma vida. Quando eu falava que dava aulas no presídio, as pessoas achavam estranhíssimo. Tanto que, em 2006, quando me elegi deputado pela primeira vez, todos os movimentos de direitos humanos apoiaram minha candidatura. Nosso papel é fazer essa transformação. Quando assumimos a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, colocamos a Marielle na coordenação. Ela constrói um trabalho ali dentro, sempre coletivamente, e se elege vereadora. Na verdade, a gente é parceiro de trabalho.

O nosso trabalho é de formação. Nós vamos embora, e a luta vai ficar. Chegará um momento em que vai ser minha hora de parar um pouco. Nosso trabalho sempre foi visto por nós como meio, e não como fim. Novas pessoas têm que dar continuidade ao trabalho, que é coletivo. O que comecei a fazer há 30 anos não pode depender de mim. Eu tenho que ajudar a construir novos quadros que deem sequência a isso, o que eu faço com muito prazer e tranquilidade. Ainda bem que hoje um homem branco hétero tem limites. Se não existiam há um tempo atrás, o tempo passou, e hoje a gente constrói isso com muita pedagogia e tranquilidade.

A eleição para a Presidência da Câmara dos Deputados está se aproximando. Como você vê essa movimentação?

Essa eleição é muito importante, porque marca como a Câmara vai se posicionar até 2022. De um lado, tem o nome do Arthur Lira (PP-AL), principal líder do Centrão, neste momento dentro do governo Bolsonaro. O Arthur é uma liderança mito forte dentro do Congresso Nacional e já é candidatíssimo a essa vaga, dialogando com o governo. Do outro lado, você tem o grupo do Rodrigo Maia (DEM-RJ), que associa DEM, MDB, PSDB, setores divergentes e discordantes do centrão, com a possibilidade de lançar um outro nome, com vários postulantes. Fato é que a divisão entre o Centrão e esse centro liberal, grupo conduzido pelo Rodrigo Maia, são muito próximos em número de voto.

Quem decide essa eleição é a esquerda, que virou o fiel da balança com seus 134 deputados. Se boa parte da esquerda votar no mesmo candidato, define a eleição. Um candidato da esquerda não ganharia, mas o apoio vai poder decidir por um ou outro. Isso envolve a agenda do Congresso, das reformas, é muito importante. Estão anunciando a intenção de votar a reforma tributária em dezembro. Já é um esticamento de corda, um teste para a eleição de fevereiro. O Congresso está longe do fim do ano.

Deutsche Welle

Toda a nudez do Poder Judiciário virtualizado será perdoada?

Por Alexandre Ogusuku

A sociedade, há tempos, experimenta as mudanças comportamentais trazidas pela revolução tecnológica, em especial das redes sociais. As pessoas interagem mais com os celulares do que com os seus semelhantes. Esse pequeno aparelho transformou de tal monta a convivência humana que os seus reflexos são vistos nas praças, nos restaurantes, em nossas casas etc. Os olhos e os dedos humanos estão nos celulares.

No curso da Covid-19, o Poder Judiciário vem promovendo uma revolução no seu funcionamento. O atendimento às partes e aos advogados, as sessões de julgamento, as audiências, antes presenciais, agora são virtuais. Pelos celulares assistimos aos julgamentos, realizamos sustentações orais e as audiências. Também pelas redes, partes e testemunhas prestam depoimentos às autoridades judiciárias. E tudo isso, todas essas alterações, não são transitórias, constituem o que se anuncia como o "novo normal".

As novidades colocam a advocacia e a OAB em uma encruzilhada, marcam um ponto ambíguo em nossa existência: o início de um novo fluxo e o fim de um território existencial. Esse quadro exige da Ordem dos Advogados do Brasil decisões e ações que mantenham a instituição como protagonista da advocacia e da cidadania brasileira.

Uma primeira nova escolha diz respeito ao desagravo como instrumento de defesa das prerrogativas da advocacia. A defesa das prerrogativas na presente quadra requer uma atuação integrada do sistema federativo da Ordem dos Advogados do Brasil. A subseção, a seccional e o conselho federal devem atuar conjuntamente na defesa da advocacia violada, estruturados em redes.

Hoje, as ofensas à advocacia e às prerrogativas são transmitidas ao vivo pela internet e, gravadas, viralizam tão rápido como a propagação da luz. Esse processo de multiplicação digital das imagens de uma ofensa às prerrogativas, para o ofendido, tem funcionado como um verdadeiro desagravo. Tem-se a impressão de que quem desagrava a advogada e o advogado são as redes sociais e os seus influenciadores.

O procedimento e o ato do desagravo público necessitam de uma urgente ressignificação. O desagravo deve ser imediato à ofensa e a mensagem da OAB em defesa dos ofendidos deve alcançar o coração da advocacia. Esses tempos modernos cobram uma OAB rápida, eficiente e estruturada nas redes sociais. É dizer, não basta mais postar mensagens no Twitter, no Instagram ou no Facebook institucionais, é preciso viralizar essas mensagens, levando-as aos celulares de todos os advogados e advogadas.

A segunda decisão vem no bojo das modificações dos formatos das audiências. O Conselho Nacional de Justiça acaba de aprovar um minicódigo processual de audiências telepresenciais. Os celulares dos advogados, das advogadas, das partes e das testemunhas, na atualidade, representam os antigos fóruns de Justiça. Grandes prédios, secretárias, varas, gabinetes, salas de arquivos, tudo o mais, serão coisas do passado, bastam os celulares. No plano sociológico, a virtualização dos processos tende a formar um juiz asséptico ao réu, ao povo, e isso é um importante e real problema que desafia todos os operadores do direito da atualidade.

Outros já escreveram sobre os problemas jurídicos das audiências telepresenciais, como o fez Eduardo Sanz, em série de artigos publicados na ConJur. Destaque-se que a legislação processual brasileira é tímida em relação à virtualização das audiências e não contempla a prática de atos telepresenciais. O Conselho Nacional de Justiça não tem competência para legislar sobre normas processuais e, aí, caberia à OAB a defesa da legalidade no STF.

Defender a aprovação pelo Congresso de leis processuais que regrem os atos telepresenciais é, para além da modificação de um simples formato, um desejo de novas proteções e garantias à higidez e integridade dos depoimentos, a edificação de um novo conjunto normativo de prevenção e combate às fraudes processuais virtuais.

A terceira decisão nessa encruzilhada diz respeito às ações da OAB em relação ao aprimoramento do Poder Judiciário brasileiro. As provas dos antigos vícios e dos erros avolumam-se nas redes sociais. Comportamento inapropriado de juiz em praças litorâneas, conversas pré-processuais explícitas, desrespeito ao cidadão e ao seu direito de defesa, descaso com os pares da magistratura, são exemplos gravados e acessíveis em quaisquer dos sítios de buscas eletrônicas.

Impávida, a advocacia profere a clássica pergunta: e a OAB? É tempo de a OAB decidir sobre o que fazer e como usar as imagens que marcam esses vícios do Judiciário. O momento é assaz oportuno para dizer à sociedade e com ela decidir sobre qual é o juiz e o judiciário que queremos para o nosso país.

Nessa encruzilhada, as decisões da Ordem dos Advogados do Brasil muito significarão para a advocacia. Escolher bons caminhos amenizarão as trilhas dos advogados e das advogadas em nosso país. O processo tecnológico é irreversível, utilizemos os seus recursos para defender e valorizar a advocacia e trabalhar pela boa transformação do Poder Judiciário brasileiro.

Como na literatura, pelas redes, o rei ficou nu, e tecer-lhe novas vestes democráticas e republicanas é o papel daqueles que a Constituição consagrou como essenciais à administração da Justiça. Toda a nudez do Judiciário virtualizado será perdoada?

Alexandre Ogusuku é conselheiro federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia. Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 25.11.2020.

Cientistas criam miniórgãos e revolucionam o conhecimento sobre a covid-19

Foto feita por microscópio mostra uma estrutura circular de um organoide com três cores: verde, azul e vermelho.CRÉDITO,KARINA KARMIRIAN, MESTRANDA UFRJ/IDOR

A foto acima revela a estrutura de um organoide cerebral feito no Rio de Janeiro. Os pontos vermelhos são neurônios e os pontos azuis indicam o núcleo das células. As manchas verdes são progenitores neurais, estruturas que dão origem às células do sistema nervoso

Imagine pegar um punhado de células humanas de diferentes tipos e, após uma série de procedimentos, transformá-las num órgão em miniatura, que funciona de verdade e pode ser observado a olho nu.

Saiba que isso já é possível nos dias de hoje: os miniórgãos (ou organoides, nome preferido entre os cientistas) são uma ferramenta poderosa, que ajuda a entender como o Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual, provoca danos em diferentes partes do nosso corpo.

Graças a essa tecnologia, os especialistas avaliaram diversos tratamentos possíveis e entenderam rapidamente que a covid-19 não era apenas uma doença que atingia o sistema respiratório, mas tinha repercussões no coração, no intestino, nos rins e até no cérebro.

Mas, afinal, como se cria um miniórgão? E quais as vantagens que ele traz em comparação com outros métodos mais antigos, como culturas de células e cobaias?

Voltar ao passado para projetar o futuro

A matéria-prima básica para a construção de um organoide são células simples presentes na pele ou no sistema urinário. Após a seleção, os cientistas realizam um procedimento que faz essas unidades se transformarem em células-tronco.

"É como se elas voltassem no tempo. Por meio de uma transformação genética, elas viram células-tronco novamente", reforça a neurocientista Marília Zaluar Guimarães, do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro (IDor).

A descrição desse processo biológico e da tecnologia capaz de torná-lo factível, inclusive, renderam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2012 ao britânico John Gurdon e ao japonês Shinya Yamanaka.

Mas essa é apenas uma parte da história. Depois que as células "voltam no tempo", é preciso realizar uma nova etapa. "De acordo com fatores que usamos no laboratório, fazemos com que essas células-tronco se diferenciem e se especializem novamente", completa Guimarães, que também é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em outras palavras, é possível pegar uma célula da pele e, seguindo alguns passos, fazer uma metamorfose para que ela vire um neurônio ou um glóbulo vermelho.

A grande sacada é que os organoides não são apenas um amontoado de células que podem ser analisados com o auxílio de um microscópio. Falamos aqui de formações mais complexas, que reúnem mais de um tipo de célula e muitas vezes são visíveis a olho nu. Trata-se realmente de um órgão em escala reduzida.

"No caso dos minicérebros, por exemplo, eles são esféricos, mas não têm a mesma formação do órgão verdadeiro. O que nos permite saber que aquela estrutura se assemelha ao original são suas características celulares e bioquímicas", aponta o biólogo Daniel Martins de Souza, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Placa de petri circular com pequenas esferas dentro representando os organoides cerebrais

Ilustração mostra tamanho de minicérebros numa placa de Petri. É possível vê-los a olho nu. CRÉDITO,GETTY IMAGEM

As origens

Numa perspectiva histórica, a possibilidade de construir miniórgãos é muito recente. Os cientistas só conseguiram botar a mão na massa de verdade nos últimos dez anos.

Apesar de jovens, os organoides já deram grandes contribuições à ciência. Um dos maiores exemplos disso aconteceu durante a epidemia de zika, que preocupou o Brasil (e o mundo) em 2015 e 2016.

Transmitido por uma picada do mosquito Aedes aegypti, o vírus provoca sintomas relativamente simples, como febre baixa, dor e vermelhidão nos olhos.

Mas a explosão de casos de microcefalia (quando o bebê nasce com o crânio e o cérebro menores do que o usual) na região Nordeste do país levantou o sinal de alerta: será que uma infecção por zika ao longo da gravidez poderia estar relacionada a essa grave complicação?

A longa lista de possíveis sequelas da covid-19

Coronavírus: o que realmente funciona para se proteger?

A suspeita foi confirmada graças às pesquisas com os organoides. Em laboratório, uma equipe liderada pelo neurocientista Stevens Rehen, da UFRJ e do IDor, utilizou minicérebros para demonstrar que o zika realmente afeta células do sistema nervoso e inibe seu crescimento, ocasionando a síndrome congênita associada à infecção pelo vírus, que causou a microcefalia e diversos outros problemas de saúde em bebês.

"Essa foi a primeira vez que o modelo dos organoides foi utilizado para entender uma doença viral", lembra Guimarães.

As vantagens

Nas últimas décadas, culturas de células e cobaias foram os principais meios para realizar os estudos preliminares com candidatos a remédios ou vacinas. A proposta estava em entender como essas novas moléculas agem numa escala menor e mais controlada antes de partir para os testes clínicos, que envolvem seres humanos.

Essas metodologias também permitem compreender como determinada doença afeta o organismo, mesmo que de maneira simplificada.

Mas as alternativas mais antigas trazem uma série de limitações, a começar por sua própria simplicidade, que não reproduz as mesmas características da vida real. "Os organoides, por outro lado, são compostos de diferentes células e têm uma estrutura tridimensional. Por isso, eles têm funções mais parecidas ao que acontece de verdade", compara o farmacêutico Kazuo Takayama, professor da Universidade de Kyoto, no Japão.

No caso das cobaias, há ainda uma limitação na quantidade de animais disponíveis para uso em experimentos. "É possível cultivar miniórgãos em laboratório quase que infinitamente, então eles podem ser usados para testes com novos medicamentos em larga escala", completa Takayama.

Conhecimento otimizado

Durante uma pandemia como a que vivemos, essa abordagem moderna também possibilitou acelerar alguns processos e obter informações essenciais com agilidade.

Sem os organoides, o conhecimento sobre a covid-19 demoraria muito mais para ficar disponível. Isso, por sua vez, impediria o avanço da ciência e atrasaria ainda mais a chegada de métodos de diagnóstico, prevenção e tratamento seguros e eficazes.

Vamos a exemplos práticos de como isso ocorreu durante os últimos meses. Diante da emergência sanitária global, muitos especialistas foram avaliar se existia alguma droga já disponível no mercado que poderia combater o vírus ou amenizar seu estrago.

Muitas dessas terapias foram testadas nos organoides. Aquelas que não funcionaram logo de cara foram descartadas. Os remédios que mostraram algum efeito inicial puderam, então, evoluir mais rápido para as próximas fases de pesquisa. Imagina quanto tempo foi economizado com essa triagem inicial?

Mas as aplicações vão muito além da área farmacêutica. Trabalhos feitos no Japão e nos Estados Unidos focaram em minipulmões e descobriram que o Sars-CoV-2 invade e destrói algumas células do sistema respiratório. Isso, por sua vez, pode gerar uma resposta inflamatória muito forte e danosa à própria saúde da pessoa acometida pela infecção.

"De forma geral, os organoides permitiram que entendêssemos que células humanas o coronavírus consegue invadir e usar para se replicar. Nosso grupo demonstrou que isso acontece no intestino, o que ajuda a explicar os sintomas gastrointestinais observados em muitos pacientes", relatam os pesquisadores Joep Beumer e Maarten Geurts, do Instituto Hubrecht, na Holanda.

Outra experiência realizada na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e no Instituto de Biotecnologia Molecular de Viena, na Áustria, construiu vasos sanguíneos em miniatura. A partir daí, foi possível observar que o vírus da covid-19 invade o endotélio (a camada interna de veias e artérias).

Ilustração de um vaso sanguíneo, com células vermelhas, hemácias, e unidades do 

As pesquisas com os miniórgãos permitiram entender quais células o coronavírus invade. Hoje sabe-se que o patógeno pode afetar até os vasos sanguíneos.

Isso tem duas implicações principais. A primeira é a formação de coágulos que bloqueiam a passagem de sangue e podem dar início a infarto, AVC ou trombose. Em segundo lugar, há a suspeita de que, a partir da circulação, o patógeno consegue "vazar" para diversas áreas do corpo e afetar outros órgãos importantes.

As iniciativas não param por aí: nessa mesma linha, trabalhos com organoides continuam a avaliar as pegadas do coronavírus no fígado, nos rins, no coração e no cérebro.

Atuação nacional

No Brasil, dois grupos de pesquisa se debruçam sobre as repercussões da covid-19 no cérebro humano. No IDor, os cientistas utilizaram neuroesferas (um tipo mais simplificado de organoide) para demonstrar que o Sars-CoV-2 gera danos ao sistema nervoso, mas não consegue se replicar e produzir novas cópias virais ali.

Fotografia feita por microscópio apresenta neuroesferas (pontos azuis) e coronavírus (pontos verdes)CRÉDITO,CAROLINA PEDROSA - IDOR

Foto de neuroesferas infectadas pelo Sars-CoV-2. Os pontos azuis são o núcleo das células. O verde é o coronavírus.

Já um trabalho feito na Unicamp avaliou a presença do coronavírus nos astrócitos, um tipo de célula do sistema nervoso. "A invasão viral parece modificar a forma como essas unidades produzem energia, o que impacta o funcionamento dos neurônios", resume Souza.

Essa ação da covid-19 na massa cinzenta pode ser um caminho para explicar os sintomas neurológicos da doença, que chegam a acometer até 30% dos pacientes. Entre as manifestações mais comuns nesta região do corpo estão a perda ou o enfraquecimento de sentidos como olfato e paladar e o aparecimento de quadros de ansiedade e depressão.

Vale mencionar, no entanto, que essa é uma área em constante evolução. As pesquisas são realizadas neste exato momento e é possível que apareçam novidades num futuro próximo.

Os limites

Apesar de tantas vantagens, os organoides não são perfeitos e não permitem encontrar todas as respostas. "Essa é uma área que dá seus primeiros passos e enfrenta desafios importantes. Muitas dessas estruturas são feitas com células que ainda estão imaturas, o que significa que elas não são 100% comparáveis com os órgãos de um adulto", avalia Núria Montserrat Pulido, professora do Instituto de Bioengenharia da Catalunha, na Espanha.

A bioquímica Shuibing Chen, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, destaca a grande variabilidade entre os modelos de miniórgãos usados pelos grupos de pesquisa. "É preciso padronizar esse material para entender as aplicações de nossos esforços no mundo real", conta.

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O investimento financeiro é outra barreira a ser considerada neste contexto. "Os materiais que usamos são caros e estamos trabalhando para criar sistemas custo-efetivos", completa Chen.

Souza destaca mais um impeditivo: os miniórgãos (ainda) são estruturas isoladas, que não interagem com outros sistemas que compõem o corpo humano. Com isso, não é possível entender como os efeitos do coronavírus nos rins, por exemplo, repercutem no coração ou no intestino. "Quem sabe no futuro não tenhamos diferentes organoides conectados, de maneira que eles interajam no laboratório?", vislumbra.

Se, em seus primeiros passos, os organoides já proporcionaram tanto conhecimento, imagine o que eles poderão fazer quando forem aperfeiçoados.

André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Brasil tem a maior taxa de transmissão de covid-19 desde maio

Segundo a instituição científica britânica Imperial College, 100 pessoas infectadas transmitem a doença para 130 no país. É o maior ritmo de contágio em seis meses e reverte queda recente


Ministro da saúde, Eduardo Pazuello, ao lado do presidente Bolsonaro.ADRIANO MACHADO / REUTERS
O Centro de Controle de Epidemias do Imperial College, instituição científica de Londres, divulgou que o Brasil alcançou nesta semana a maior taxa de transmissão da covid-19 desde maio. O chamado ritmo de contágio (RT) chegou a 1,30 segundo os dados do instituto, o que significa que 100 pessoas infectadas transmitem a doença para 130. O número diz respeito à semana iniciada nesta segunda-feira (23) e é o maior detectado pelo College desde a semana do dia 24 de maio, quando estava em 1,31.

Pela margem de erro das estatísticas britânicas, a taxa pode estar entre 0,86 e 1,45. Logo, 100 pessoas infectadas passam o novo coronavírus para no mínimo 86 e, no máximo, 145 pessoas. Segundo os analistas, a ritmo de contágio acima de 1,00 significa que a doença está avançando, uma vez que um doente infecta mais de uma pessoa. Por outro lado, o RT abaixo de 1,00 indica uma diminuição da velocidade da taxa de transmissão.

Segundo o Imperial College, o Brasil passou cinco semanas seguidas, entre setembro e outubro, com o ritmo de contágio abaixo de 1,00. A menor taxa foi registrada há duas semanas (0,68), que coincidiu com a semana na qual houve um problema no sistema de dados do Ministério da Saúde (MS) que, segundo o órgão, atrasou a atualização da pandemia. Na segunda-feira da semana passada (16) o RT ficou em 1,10. Segundo o MS, até esta segunda (23), o Brasil tem 6.087.608 casos confirmados e 169.485 mortes pela covid-19. O país vive uma alta da média de mortes nas últimos dias, chegando a 496 por dia segundo o consórcio de veículos de imprensa, em análise feita com base nos dados oficiais das secretarias estaduais de saúde, quantidade 50% maior que a média há duas semanas.

O mesmo consórcio registrou o aumento considerável na média diária de mortes em três regiões: Sudeste (118%), Centro-Oeste (42%) e Sul (19%). Os dados batem com as estatísticas do Observatório de Síndromes Respiratórias da Universidade Federal da Paraíba, que analisa o ritmo de contágio nos Estados brasileiros. Segundo a UFPB, quatro dos seis Estados com as maiores taxas são de Sudeste ou Sul: São Paulo (1,32), Paraná (1,28), Santa Catarina (1,25) e Rio de Janeiro (1,23).

Alerta nos hospitais

Com o maior ritmo de contágio do Brasil e na região onde a média móvel de mortes mais cresce, São Paulo tem até hoje 1.210.625 casos confirmados e 41.276 mortes pela covid-19. Os dados apresentados na semana passada pelo Governo já chamavam a atenção: casos, internações e mortes vinham de duas semanas de aumento e já eram os maiores em dois meses de registro. O que mais preocupa a equipe de saúde do governador João Doria é a ocupação dos leitos de UTI do Estado. Nos números apresentados ontem pelo Governo, a taxa estava em 47,4% no Estado e 55,2% na Grande SP. Já é uma ocupação 17% maior que a semana passada, que por sua vez era 18% maior do que a anterior. “O vírus não estaciona, ele acelera quando não há cuidado. Nada contra os momentos de alegria, mas estamos perdendo vidas todos os dias no Brasil. Aqueles que querem conviver devem se proteger”, discursou Doria na última quinta-feira (19).

Apesar de minimizar algumas vezes o risco da segunda onda no Estado ao garantir que a nova crise sanitária europeia tem relação com o clima mais frio no hemisfério norte nesta época do ano, a equipe de saúde de Doria tomou providências frente aos aumentos. Na semana passada, o secretário de Saúde, Jean Gorinchteyn, informou a publicação de um decreto que impede a desmobilização de qualquer leito de UTI ou enfermaria destinados à covid-19 para outros atendimentos de todos os hospitais, públicos e privados, e suspende novos agendamentos de cirurgias eletivas. O objetivo é reservar leitos para a covid-19 frente a uma possível alta ainda maior.

“Precisamos entender como essa curva se comportará. Esse decreto nos dá tempo para analisar e tomar medidas mais definitivas”, justificou Gorinchteyn. Nesta segunda-feira (23), o secretário voltou a dizer que “algumas informações ainda estão sendo inseridas no sistema para que possamos analisá-las e, aí sim, instituir medidas de maneira mais efetiva”. O Governo marcou uma entrevista coletiva para reclassificação das regiões paulistas de acordo com o plano de retomada econômica e possível anúncio de novas medidas restritivas para o dia 30 de novembro, um dia após o segundo turno das eleições municipais.

São Paulo não é caso isolado. A taxa de ocupação de leitos de UTI para covid-19 pelo Sistema Único de Saúde (SUS) chegou a 92% na cidade do Rio de Janeiro no domingo. É a maior ocupação desde 12 de junho deste ano, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, citou a Agência Brasil. A ocupação dos leitos de tratamento intensivo, que chegou a baixar para 59% em meados de agosto, estava na faixa dos 80% desde o início de novembro. O Ceará, cujo sistema de saúde também se viu pressionado no primeiro semestre, também vive um repique. De acordo com o jornal O Povo, a taxa de ocupação de leitos intensivos em Fortaleza chega a 56%, mas no interior a situação é pior. Na região conhecida como Sertão Central, onde Canindé é uma cidade de referência, a taxa de ocupação é de 90%.

DIOGO MAGRI, EL PAÍS