quarta-feira, 8 de julho de 2020

Ele colocou em risco outras pessoas', avalia infectologista após Bolsonaro testar positivo para covid-19

Para infectologista, Bolsonaro 'é um péssimo exemplo para outras pessoas'

bolsonaro concede entrevista para anunciar que está com covid-19

Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro participou de uma live com outras seis pessoas, foi a um encontro com empresários e esteve em um almoço em Brasília. Durante esses compromissos, que foram alguns dos diversos que teve recentemente, Bolsonaro estava sem máscara e não respeitou o distanciamento social, medidas recomendadas por autoridades médicas para evitar a propagação do novo coronavírus.

Após sucessivos eventos nos quais não seguiu as orientações para combater a pandemia, Bolsonaro testou positivo para a covid-19. Ele confirmou a informação na terça-feira (7). O presidente afirmou que teve os primeiros sintomas no domingo (5).

O infectologista Roberto Focaccia, professor livre docente pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que o presidente contraiu o novo coronavírus como consequência das atitudes que tem adotado desde o início da pandemia.

Desde os primeiros casos registrados no país, o presidente costuma minimizar a importância do vírus e chegou a classificá-lo como uma “gripezinha”. Bolsonaro também se mostra contrário a medidas de isolamento social e ao uso de máscaras — recentemente, ele vetou a obrigatoriedade do acessório em locais como estabelecimentos comerciais e igrejas.

O que a ciência diz sobre a eficácia de tratamentos citados por Bolsonaro ao revelar que está com covid-19
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Focaccia considera que o próprio anúncio de Bolsonaro sobre a doença foi irresponsável. “Ele colocou em risco os repórteres que estavam ali perto, principalmente após retirar a máscara”, diz à BBC News Brasil.

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Bolsonaro disse que está com a covid-19 durante entrevista à imprensa. Enquanto conversava com os jornalistas, o presidente estava próximo a eles e não manteve o distanciamento social de, ao menos, 1,5 metro. Ao fim da entrevista, se afastou e retirou a máscara para, segundo ele, mostrar que está bem.

A conduta de Bolsonaro ao anunciar que está com o novo coronavírus foi duramente criticada por especialistas.

Apesar de não respeitar o isolamento social e usar máscaras em eventos pontuais — muitas vezes de modo inadequado —, Bolsonaro disse, ao revelar o diagnóstico da covid-19, que ficou preocupado, pois não queria infectar outras pessoas com o vírus.

Ao analisar eventos recentes em que o presidente participou, porém, é possível constatar que ele pode ter exposto outras pessoas ao vírus nos últimos dias.

Rotina de Bolsonaro nos últimos dias

Na última quinta-feira, presidente fez live com apoiadores e tossiu durante transmissão

Na noite da última quinta-feira (2), Bolsonaro fez uma live com outras seis pessoas, entre elas o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o secretário da Pesca, Jorge Seif. Sem máscara e sem adotar o distanciamento adequado das outras pessoas, o presidente tossiu em alguns momentos durante a transmissão ao vivo.

É possível que Bolsonaro estivesse infectado quando fez a live. Ele disse que os primeiros sintomas surgiram no domingo, quando começou a se sentir indisposto. Depois, segundo ele, teve também dor muscular, cansaço e febre.

Estudos sobre a covid-19 indicam que os primeiros sintomas do novo coronavírus podem surgir de dois a 14 dias após a infecção; o mais comum é que a pessoa apresente os sinais a partir do quinto dia. Antes mesmo dos primeiros sintomas, segundo os estudos, a pessoa pode transmitir o vírus.

Desta forma, é muito provável que o presidente tenha colocado muitas pessoas em risco. Nos últimos dias, ele teve diversos encontros com ministros e outros compromissos. Uma reportagem da BBC News Brasil apontou que Bolsonaro se encontrou com, pelo menos, 36 pessoas desde a última sexta-feira (3).

Na sexta, ele se encontrou com o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, e um grupo de empresários. Fotos do evento mostram que o presidente não usou máscara e ficou perto dos convidados.

No sábado (4), sobrevoou áreas atingidas pelo "ciclone bomba", em Santa Catarina, que deixou 12 mortos. No mesmo dia, seguiu para um almoço na casa do embaixador dos Estados Unidos, Todd Chapman, em Brasília. O evento comemorou a independência americana. Imagens mostram que os convidados não respeitaram o distanciamento social e também não usaram máscaras. Em uma das imagens, Bolsonaro aparece abraçado ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Bolsonaro bebendo água

Mesmo após apresentar sintomas, Bolsonaro continuou se encontrando com apoiadores. Na segunda-feira, por exemplo, ele cumpriu agenda com ministros, como Braga Netto, da Casa Civil, e Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência.

Os ministros que tiveram contato com Bolsonaro nos últimos dias fizeram exames, após a confirmação de que o presidente está com a covid-19.

Também na segunda-feira, Bolsonaro recebeu o líder do governo na Câmara dos Deputados, o Major Vítor Hugo (PSL-GO), para um almoço.

Os riscos

Para o infectologista Roberto Focaccia, não há dúvidas de que o presidente colocou outras pessoas em risco, principalmente em eventos recentes, por não seguir medidas como o uso de máscaras e o distanciamento social.

"No ponto de vista científico, a conduta do Bolsonaro, desde o princípio da pandemia, é um absurdo. O mundo inteiro ensina que é preciso seguir o distanciamento físico e as pessoas precisam usar máscaras. Isso é dito por todas as entidades de saúde, como a Organização Mundial de Saúde e o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos", destaca o médico.

Focaccia explica como a transmissão do novo coronavírus pode se dar em locais fechados com várias pessoas, como alguns dos que o presidente esteve dias atrás. "Os locais mais fechados, sem muita ventilação, têm um risco maior, porque qualquer pessoa que tenha o vírus pode transmiti-lo ao falar, não precisa nem tossir ou espirrar", diz.

Bolsonaro em frente a mesa em que churrasqueira serve carne, em área aberta e arborizada


Bolsonaro em evento comemorativo pela independência americana no último dia 4; presidente afirmou que começou a sentir sintomas da covid-19 no domingo

"Quando a pessoa está falando, está soltando gotículas que podem ter o vírus. Esse vírus pode ficar no ar por até três horas e ser transmitido para aquelas pessoas que estão naquele local. Depois, essas gotículas e aerossóis caem em superfícies, onde se depositam. Se alguém tocar nessa superfície e depois tocar no rosto, vai contrair o vírus", detalha o médico.

Estudos apontam que o vírus pode ficar ativo por períodos distintos em diferentes superfícies. Em aço inoxidável e plástico, ele pode permanecer por até três dias. Em papelão, o Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus, sobrevive por até 24 horas.

Segundo estudos, o risco de transmissão do novo coronavírus também está presente em lugares abertos com aglomeração, principalmente quando falam, espirram ou tossem e liberam partículas que podem conter o Sars-Cov-2. Por diversas vezes, Bolsonaro participou de atos com aglomerações ao ar livre sem máscara, que é fundamental para reduzir as possibilidades de transmissão do vírus, e abraçou e cumprimentou apoiadores, desrespeitando também a medida de distanciamento social.

O anúncio da doença

Ao comunicar que está com a covid-19, Bolsonaro convocou três jornalistas — da CNN, Record e TV Brasil. Próximo a eles e usando uma máscara, confirmou que o exame deu positivo.

Focaccia comenta que, por ser um paciente sintomático, as chances de Bolsonaro transmitir o vírus durante a entrevista eram grandes, ainda que com máscara.

"Mesmo com máscara, ele não deveria ter dado uma entrevista presencialmente. A máscara reduz o risco, mas não é zero. Como ele é uma pessoa que está com o vírus, deveria permanecer isolado. Para piorar, ele estava muito perto dos repórteres", diz Focaccia.

"Na hora em que uma pessoa testa positivo para o coronavírus, tem que ficar completamente isolada por 14 dias, para evitar propagar o vírus. Foi um péssimo exemplo", diz o infectologista.

A atitude de tirar a máscara durante a entrevista piorou a situação, avalia Focaccia. O médico detalha que, ao falar, o presidente pode ter soltado partículas que podem conter o vírus. Ainda que ao ar livre, há a possibilidade de transmissão do vírus.

"Mesmo distante, ele não deveria ter feito aquilo. O Bolsonaro tentou mostrar que é uma gripezinha. Pareceu uma provocação", diz Focaccia.

Jair Bolsonaro

Apesar de defender o uso da hidroxicloroquina , Bolsonaro admitiu saber que não há comprovação científica de que ela ajuda no combate ao coronavírus
O médico avalia como extremamente preocupante a conduta de Bolsonaro durante a entrevista. "É um péssimo exemplo para outras pessoas”, diz. Ele acredita que muitos podem, influenciados pela postura do presidente, deixar de adotar medidas severas de isolamento por 14 dias, caso sejam infectados.

Outro ponto que incomodou Focaccia foi o fato de Bolsonaro ter revelado que usou composto de hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina. O presidente defendeu os medicamentos no tratamento contra a covid-19, mesmo sem nenhuma comprovação científica.

"Ele está tentando fazer o caso dele como uma propaganda da cloroquina. Está tentando mostrar que o coronavírus é só uma gripezinha para as pessoas que tomam essa medicação", declara o infectologista.

Para Focaccia, que perdeu diversos colegas de profissão que contraíram a covid-19 no trabalho, a conduta de Bolsonaro é uma afronta. "Toda a conduta adotada pelo presidente sobre o coronavírus é um absurdo. Muitas vidas foram perdidas e ele tenta adotar um tom de deboche para falar sobre o assunto. É um desrespeito, principalmente, aos profissionais que estão arriscando suas vidas nos hospitais", declara.

Vinicius Lemos
Da BBC News Brasil em São Paulo

terça-feira, 7 de julho de 2020

Brasil tem 1.312 mortes por coronavírus em 24 horas, mostra consórcio de veículos de imprensa; são 66.868 no total

País soma 1.674.655 de infectados; mais de 48 mil em um dia.

O Brasil teve 1.312 mortes registradas por conta do novo coronavírus em 24 horas e tem 1.674.655 milhão de casos confirmados, segundo o levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde nesta terça-feira (6). São 66.868 mortes provocadas pela Covid-19 no país no total.

Veja os dados, consolidados às 20h:

66.868 mortes; eram 65.556 até 20h desta segunda-feira (6); uma diferença de 1.312 óbitos. Este é o quarto maior registro de mortes em 24 horas no país desde o começo da pandemia. No dia 4 de junho, foram registrados 1.471 óbitos.

1.674.655 casos confirmados; eram 1.626.071 infectados até a noite de segunda, ou seja, houve um aumento de 48.584 infectados.

Antes deste balanço, o consórcio divulgou dois boletins parciais, às 8h e às 13h. No boletim da tarde, o país chegou a 1.643.539 casos confirmados e 66.093 óbitos. Mais cedo, com os dados disponibilizados às 8h, o Brasil contava 65.631 mortes e 1.628.283 casos confirmados.

07/07/2020 08h00  Atualizado há 24 minutos

Por G1 / O Globo

O cqd triunfal de Bolsonaro

O presidente contaminado manteve o comportamento irracional que sempre teve com relação à covid-19.
Em artigo para O Estado de São Paulo, Rosângela Bittar comenta o coronavírus em Bolsonaro, anunciado pelo próprio.

A euforia com que o presidente Jair Bolsonaro anunciou ter conseguido o atestado médico de contaminação pela covid-19 só foi superada pela revelação final de que ficou bom com duas doses da cloroquina que, “como queria demonstrar”, é o medicamento mais adequado e prodigioso para o tratamento da doença pandêmica. Não importa se a ciência e o mundo civilizado tenham provado o contrário, o que importa é tornar a propaganda mais eficiente para baixar os imensos estoques.

Ao longo dos últimos cinco meses, Bolsonaro procurou demonstrar que todas as teorias que haviam lhe rendido protestos, críticas e o título de pior líder mundial no combate à pandemia estavam corretas. Ele condenou tudo o que a ciência recomendou e fez uma bula homicida, agravada por ser da lavra de um presidente da República que serve de mau exemplo; condenou o isolamento social, quis o fim da quarentena com a abertura do comércio, vetou o uso de máscaras e evitou usá-las, incentivou a aglomerações, buscou a própria contaminação e levou risco aos próximos.

O presidente brasileiro submeteu os ouvidos da nação a considerações absurdas, como a que atletas são resistentes ao vírus e brasileiros não se contagiam facilmente porque estão acostumados a mergulhar no esgoto. Não foram poucas as escandalosas interferências, na marra, para impor sua vontade, entre elas a demissão de dois ministros da Saúde médicos que ousaram contestar sua conduta leiga.

Aprendeu-se com Bolsonaro que, como todos vão morrer, um dia, não tem importância morrer agora, desde que esteja aberto o salão de beleza. Conseguiu o que sempre quis, o que procurou ao andar à beira do abismo, incluir-se no rebanho da contaminação ampla por desobediência às regras sanitárias.

Recusando a autoria da devastação do Brasil, Bolsonaro, ontem, covardemente, eximiu-se mais uma vez de responsabilidade pela crise sanitária avassaladora insistindo que as atribuições de combate à doença são exclusivas de Estados e Municípios.

Os últimos dias foram pródigos em transgressões: fez inauguração, viajou a Estados, reuniu-se com empresários, encontrou políticos, recebeu ministros, sempre sem proteção. Porém, a irresponsabilidade de Bolsonaro e a personalidade subserviente dos ministros e auxiliares atingiu o paroxismo no sábado, dia 4, data nacional dos Estados Unidos.

Uma foto do almoço na residência do embaixador Todd Chapman revela Bolsonaro abraçado ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ladeado pelos generais Fernando Azevedo (Defesa), Braga Netto (Casa Civil) Luiz Eduardo Ramos (secretário de governo) no almoço da embaixada americana, em Brasília. Todos sem máscara.

Duvida-se que a cena, emblemática por todos os seus aspectos, tenha ocorrido na embaixada dos Estados Unidos no Japão, na Índia ou na Alemanha. Ou que, no 7 de setembro, Donald Trump compareça à embaixada brasileira com seu staff de guerra para erguer uma taça de caipirinha.

O presidente contaminado manteve o comportamento irracional que sempre teve com relação à covid-19, enquanto se mantém elevado também o número de mortes diárias pela doença.

A crise continuada da Educação

Que educadores com biografia impecável aceitarão servir a um governo como o atual?

Seja qual for o nome escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para ser o quarto titular do Ministério da Educação (MEC), em apenas um ano e meio de governo, ele quase certamente assumirá o cargo com pouca autoridade para liderar o desafio da reforma do combalido sistema educacional brasileiro. Entre outras razões porque, dados os critérios mais políticos do que técnicos que devem prevalecer em sua escolha, ele tem tudo para ser, mesmo que tenha a vontade de acertar, o que os repórteres e colunistas políticos de Brasília chamam de “relevo submarino”.

Em termos metafóricos, a expressão é usada para descrever o que está no fundo do mar, rios ou lagoas e só aparece nos períodos mais rigorosos de estiagem, quando o nível da água cai drasticamente. No plano político, a expressão é utilizada para classificar ministros escolhidos em final de mandato ou, então, por presidentes intempestivos, incoerentes e intelectualmente limitados.

Em ambos os casos, quem tem biografia, currículo sólido e sem informações falsas e bom nome quase sempre recusa o convite para não macular sua imagem profissional ou não perder a oportunidade de ser lembrado para compor o ministério de um futuro governo. Com isso, presidentes em final de mandato ou aqueles que perderam credibilidade sem ter chegado a completar o segundo ano de gestão só conseguem chamar para compor seu governo figuras menores, que em circunstâncias normais jamais seriam lembradas para ocupar um cargo de ministro. Esses são os “relevos submarinos” da vida política.

Desde que Abraham Weintraub se demitiu do MEC e fugiu do País, há 20 dias, quase todos os nomes cogitados pelo Palácio do Planalto para suceder-lhe têm esse perfil. Seja por pressão da ala ideológica liderada por um astrólogo apoiado pelos filhos do presidente, seja por intrigas palacianas e confabulações do Centrão, do ponto de vista de sua formação são profissionais com currículo bastante inferior ao dos membros do Conselho Nacional de Educação (CNE), muitos dos quais são professores titulares em instituições consagradas, e até mesmo ao de vários secretários estaduais de Educação.

Desse modo, em que condições o quarto titular do MEC no governo Bolsonaro negociará com os demais dirigentes do setor educacional um plano cuidadoso de retomada das aulas, que leve em conta a distância mínima de alunos em sala de aula? Ou, então, que leve em conta a eventual necessidade de um novo período de isolamento, contrariando o voluntarismo de um chefe do Executivo que só vê a educação como uma arena do que chama de “guerra ideológica”? Nesta semana, o CNE aprovará um parecer para dar orientações sobre esse retorno. Mas, para serem adotadas, elas precisam ser homologadas por um ministério que, apesar de sua importância para a formação das novas gerações, se encontra acéfalo. Se tiver alguma discordância programática ou política, o novo ministro conseguirá negociar essas orientações?

Além disso, como durante a pandemia de covid-19 o MEC foi omisso com relação ao esforço dos Estados para implantar às pressas um sistema de ensino a distância, o novo ministro terá de se superar para conseguir impor uma política nacional de ensino virtual. Por fim, os esforços que Estados e municípios desprenderam para tentar adequar suas redes de ensino ao período de pandemia aumentaram seus gastos com educação num momento de queda acentuada de arrecadação. Evidentemente, isso exige mais repasses da União. Que força um ministro que já assume sem peso político terá para lidar com uma equipe econômica que vê a austeridade fiscal como dogma?

Sem esses repasses, em alguns Estados a situação ficará crítica e, com isso, o País ficará ainda mais distante das metas preconizadas pelo Plano Nacional de Educação para 2020. Infelizmente, os critérios que Bolsonaro já usou na escolha de três titulares do MEC não garantem que o quarto ministro será diferente dos anteriores. Se isso ocorrer, será um ganho surpreendente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
07 de julho de 2020 | 03h00

Cientistas alertam para transmissão do coronavírus pelo ar

Em carta à OMS, grupo de 239 pesquisadores de vários países alerta que vírus pode se espalhar através de microgotículas por até dezenas de metros. Risco de contágio é maior em ambientes fechados e lotados, apontam.

    Pessoas de máscara no transporte público

Pessoas de máscara no transporte público
Cientistas recomendam que se evitem aglomerações, especialmente no transporte público e em locais fechados

Uma equipe de 239 cientistas de vários países pediu nesta segunda-feira (06/07) à Organização Mundial de Saúde (OMS) o reconhecimento da "potencial de transmissão aérea" do coronavírus Sars-Cov-2 para além da distância recomendada de dois metros entre as pessoas, além de medidas preventivas para esse tipo de contaminação, sobretudo em espaços lotados.

A OMS considera como principal via de transmissão as gotículas respiratórias expelidas durante a fala ou tosse, motivo pelo qual a entidade sugere uma distância de segurança de dois metros entre as pessoas, além do uso de máscara de proteção.

No entanto, o grupo de pesquisadores, em carta enviada à OMS, afirma "para além de qualquer dúvida razoável" que, por meio de respiração, fala, espirros ou tosse, o vírus se espalha em microgotículas suficientemente pequenas para permanecer no ar e constituir "um risco de exposição a distâncias superiores a um ou dois metros de uma pessoa infectada".

Segundo os cientistas - entre eles o infectologista brasileiro Paulo Saldiva, professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP -, o problema se torna especialmente grave em ambientes interiores ou fechados, especialmente os que estão lotados e sem ventilação adequada para o número de ocupantes.

As gotículas, que medem entre cinco ou dez micrômetros – menos do que a espessura de um fio de cabelo –, caem ao chão em segundos dentro uma distância de um ou dois metros. Entretanto, microgotículas de tamanho menor podem permanecer suspensas no ar por várias horas no chamado aerosol, viajando por dezenas de metros.

A transmissão da doença pelas microgotículas é tema de debates na comunidade científica, no contexto da disseminação da covid-19.

"Apelamos à comunidade médica e às instituições internacionais e nacionais responsáveis para que reconheçam o potencial da transmissão aérea da covid-19", afirma o grupo de cientistas. A iniciativa está associada a um artigo científico chamado É hora de abordar a transmissão aérea da covid-19, cuja principal autora é Lidia Morawska, do Laboratório Internacional de Qualidade do Ar e Saúde da Universidade Tecnológica de Queensland, na Austrália.

O artigo publicado na revista Clinical Infectious Diseases, da Universidade de Oxford, apoiado pelos 239 cientistas, menciona como exemplo um restaurante chinês que se tornou foco de contaminação em janeiro, mas onde não houve contato direto nem indireto entre a pessoa infectada e as foram contaminadas, o que pôde comprovado através das gravações das câmaras de segurança. A transmissão deve ter ocorrido através da circulação do vírus pelo ar condicionado.

Manter o distanciamento físico e lavar as mãos com frequência são medidas apropriadas, mas insuficientes para garantir a proteção das microgotículas contaminadas transportadas através do ar, consideram os cientistas.

O grupo de pesquisadores recomenda ventilação adequada e suficiente, com entrada de ar fresco ou o mínimo de reutilização de ar, especialmente em edifícios públicos, locais de trabalho, escolas, hospitais e casas de repouso. Além disso, é necessário evitar aglomerações, especialmente no transporte público e em locais fechados.

Ações simples como abrir portas ou janelas aumentam "de forma radical a taxa de fluxo de ar em muitos edifícios", explicam os cientistas na carta á OMS. Embora reconheçam que "ainda não há consenso sobre a transmissão aérea" do coronavírus, eles afirmam que "há provas que apoiam de forma mais que suficiente a aplicação do princípio da precaução".

"As pessoas podem pensar que estão completamente protegidas se seguirem as recomendações atuais, mas, na verdade, são necessárias intervenções adicionais na transmissão por via aérea para reduzir ainda mais o risco de infeção", concluem.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

'Uma loucura', diz ex-presidente colombiano e Nobel da Paz sobre ações de Bolsonaro na pandemia

O ex-presidente da Colômbia e Prêmio Nobel da Paz, Juan Manuel Santos, disse que é "uma loucura" como o Brasil, governado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), está conduzindo a pandemia do novo coronavírus. "É uma loucura. É uma liderança que em vez de estar ajudando a resolver o problema, está contribuindo para piorar o problema", disse durante entrevista exclusiva à BBC News Brasil.

Juan Manuel Santos

Ele acha que os presidentes da região deveriam chamar Bolsonaro "à sensatez".

Santos, visto como de centro-direita no espectro ideológico, afirmou que esse quadro brasileiro repercute no resto da região. "Nessa situação, o Brasil é um péssimo exemplo na região. Uma política que está produzindo um fracasso total, uma verdadeira tragédia para os brasileiros e para o mundo", disse, falando da Colômbia.

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Nesta entrevista à BBC News Brasil, Santos, que foi jornalista, militar e ex-ministro da Defesa, disse que a atitude do líder brasileiro ameaça as comunidades indígenas da Amazônia de extinção. Leticia, do lado colombiano, na fronteira com o Brasil, é o lugar mais afetado pelo coronavírus em seu país.

Quando perguntado sobre a forte presença de militares no governo brasileiro, ele disse que não tende a dar bons resultados. Santos falou ainda sobre os avanços e falhas do Acordo de Paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), assinado quando era presidente e que foi o motivo para receber o Prêmio Nobel da Paz.

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - A América Latina é a região mais desigual do planeta e agora está no foco da pandemia do novo coronavírus. As economias da região, como as do Brasil e da Argentina, já mostram queda acentuada. O que fazer?

Juan Manuel Santos - A região já não vinha crescendo economicamente, já tinha uma série de problemas, antes da pandemia. A América Latina é a região com um dos sistemas de saúde mais fracos e populações muito vulneráveis, como as comunidades indígenas, os presidiários e os pobres que vivem em condições muito precárias, além dos imigrantes, como os venezuelanos aqui na Colômbia. São populações ainda mais vulneráveis à pandemia. Tudo isso se juntou. E piorou com as políticas erradas dos líderes da América Latina. Dói dizer isso, mas o Brasil não fez um trabalho positivo. E o México também não.

Não existe nenhum tipo de liderança regional para fazer valer a região em nenhuma instância do mundo. Estamos um pouco à deriva. É como um barco que não tem capitão, que está no meio de uma tormenta e o que nós precisamos nesse momento são lideranças efetivas. Mas, infelizmente, ninguém está fazendo isso.

BBC News Brasil - O senhor citou o Brasil. O Brasil é o maior país da América Latina em termos de população e econômicos e faz fronteira com a Colômbia. O presidente Bolsonaro disse que o coronavírus era uma gripezinha. Hoje, o Brasil já tem mais de 50 mil mortos por Covid-19. O que o senhor opina sobre esta política do presidente Bolsonaro?

Santos - Vou ser um pouco duro. É uma loucura. É uma loucura o que está acontecendo no Brasil. É uma liderança que em vez de estar ajudando a resolver o problema, está contribuindo para piorar o problema. E isso repercute no resto da região porque o Brasil é um país muito grande. Então, essa situação no Brasil é um péssimo exemplo da região. É uma política que está produzindo um fracasso total, uma verdadeira tragédia para os brasileiros e para o mundo.

BBC News Brasil - Na Colômbia, a cidade de Leticia, que faz fronteira com o Brasil, era até poucos dias atrás a mais afetada por coronavírus no país. O Brasil faz fronteira com dez países da região. O Brasil virou uma ameaça nesta pandemia por não ter uma política contra a Covid-19?

Santos - Sem dúvida. Nós estamos muito preocupados porque essa região amazônica (onde está Leticia) não está apenas sofrendo pela pandemia, mas as comunidades indígenas, que devemos preservar, porque são os melhores guardiões de um ecossistema que é fundamental para o mundo, podem desaparecer. Estão totalmente desprotegidas.

Essa falta de política por parte do Brasil repercute imediatamente, como ocorre no caso colombiano. Como você acaba de mencionar, uma das regiões com mais casos, e contágios mais rápidos, e mais mortes é exatamente a região que faz fronteira com o Brasil, na Amazônia. Por isso, a política do Brasil influencia o resto da América Latina e a influencia que está tendo é muito negativa.

BBC News Brasil - Como Prêmio Nobel da Paz, o senhor pensou ou pensa telefonar para o presidente Bolsonaro para uma conversa, para falar sobre essa ameaça à região?

Santos - Olha, tomei como decisão de vida não intervir em política, em assuntos internos de um país. Espero que outros o façam. Quem dera meu presidente (Iván Duque) pudesse falar com Bolsonaro. Ou que outros presidentes da América Latina pudessem falar com Bolsonaro para que ele 'entre en razón' (tenha sensatez). Por isso, eu dizia que estamos vendo uma total falta de liderança na América Latina. Mas são os presidentes, os chefes de Estado atuais, e não os anteriores, aos quais corresponde realizar ações concretas.

Jair Bolsonaro

'Considerar uma pandemia como uma gripezinha. Dar sinal para que ninguém exerça nenhuma disciplina social, que ninguém acate as recomendações dos cientistas, dos médicos, isso só agrava o problema. E vemos os resultados.'


BBC News Brasil - Quando o senhor fala em total falta de liderança, o senhor fala em relação a cada país ou uma liderança unificada na região? Pode explicar melhor?

Santos - Vou lhe dar um exemplo. Um dos problemas mais graves que a América Latina tem e vai ter é o financiamento, porque nós não temos a capacidade dos países desenvolvidos de fazer o que é necessário. Todos os países da América Latina têm limitações fiscais e estamos com necessidades cada vez maiores de financiamento. No entanto, em nenhuma instância, na arquitetura financeira mundial, a América Latina está levando uma voz concreta. Não está fazendo nenhuma proposta. Pior ainda, estão nos tirando, neste momento...

BBC News Brasil - A presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento)...

Santos - A única representação importante, exato, que era a presidência do BID. E isso com o apoio dos presidentes da América Latina. Isso não entra na minha cabeça. Acho totalmente contraproducente. É a única instância que temos para pelo menos sermos ouvidos nas discussões internacionais sobre financiamento, sobre a economia.

BBC News Brasil - O Brasil tinha um pré-candidato e a Argentina também. E o atual presidente do BID é o colombiano Luis Alberto Moreno. O Brasil (o chanceler Ernesto Araújo) disse que viu "positivamente" a indicação feita pelos Estados Unidos. Outros países da região também apoiaram o nome do indicado dos EUA.

Santos - Eu não sei o que podem ver de positivo que nos tirem algo que tínhamos há 60 anos. Houve um acordo tácito, quando o BID foi criado, que o BID seria localizado em Washington, mas que a presidência do BID sempre seria de um latino-americano. E o senhor Trump rompeu com essa tradição e quer impor um candidato que, além de tudo, tinha sido vetado pelo atual presidente do BID para a vice-presidência. Então, estamos, nesse sentido, numa situação muito ruim.

BBC News Brasil - Na sua opinião existe um novo xadrez politico na região? Por exemplo, a Unasul deu lugar ao Prosul, o Brasil saiu da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos). São vários movimentos. O senhor acha que isso também está ligado à postura do Brasil, que parece ser muito próximo dos Estados Unidos, ou melhor, de Trump?

Santos - Existem vários fenômenos. O México tem um presidente (López Obrador) que não quer saber nada de assuntos internacionais. Do Brasil, já sabemos a postura. São dois países que, tradicionalmente, deveriam exercer alguma forma de liderança na região. A falta desses dois países complica. Existem outros países que não atuaram e não houve coordenação.

O que está acontecendo no BID é um dos vários exemplos. Está se destruindo a pouca institucionalidade regional que existia. E isso é muito ruim. Espero que isso gere uma reação e que todos possamos entender que somente colaborando entre nós, dialogando, cooperando entre nós, vamos poder sair adiante nessa pandemia. Existe uma frase que diz que ninguém está salvo até que todo o mundo esteja salvo. Se não entendemos isso, vamos ter problemas muito sérios. E a América Latina unida é uma grande força. Mas precisamos que os atuais líderes entendam isso e trabalhem para unir-se. Não que cada um trabalhe para seus próprios interesses políticos porque isso enfraquece a região. E enfraquece cada país.

BBC News Brasil - Na prática, cada país fechou suas próprias fronteiras, nessa pandemia, e aplicou medidas que foram as mesmas da China, como a quarentena. Mas não há dialogo entre os presidentes para uma política comum. Essa semana haverá reunião virtual do Mercosul, mas Bolsonaro e o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, não se falam. O que está acontecendo?

Santos - O fenômeno Trump influenciou muito o resto do mundo. Trump buscou enfraquecer o multilateralismo, enfraquecer as organizações internacionais, as Nações Unidas, a Organização Mundial de Comércio, e isso repercute nas regiões. E de certa forma o que aconteceu na América Latina, por problemas políticos como divisões em torno da Venezuela e outros problemas específicos, foi que em vez de diálogo para encontrar um denominador comum, os países decidiram assumir uma posição de isolamento. E isso no longo prazo é muito negativo.

BBC News Brasil - No Brasil, são mais de 50 mil mortos por coronavírus; na Colômbia e na Argentina, relativamente, há menos mortes; Uruguai, Paraguai estão numa situação melhor, mas, apesar de estar melhorando, ela é grave no Peru. O que se pode fazer? Hoje (terça-feira, 30), por exemplo, o ministro interino da Saúde do Brasil, Eduardo Pazuello, participou de uma cerimônia no Palácio do Planalto sem máscara. E o presidente Bolsonaro também aparece sem máscara. Como o senhor vê essa situação?

Santos - Muito mal. Inclusive, meu país, Colômbia, que ainda tem alguns bons indicadores, tem tendência muito ruim. No Chile e no Peru, que começaram bem, com disciplina, a situação foi sendo deteriorada porque as medidas não foram complementadas com medidas necessárias, como o distanciamento social e o uso de máscaras. O isolamento não serve, se temos ferramentas e não as usamos.

Estamos vendo que a América Latina tem problemas sérios. Talvez com algumas exceções, como Uruguai e Costa Rica, mas o restante dos países está com problemas. No caso colombiano, a tendência é de alta (de casos). Por isso, a liderança e a coordenação são importantes. E bons exemplos. O que você disse sobre o ministro da Saúde do Brasil é um mau exemplo. Está acontecendo também nos Estados Unidos, com Trump. E isso também é mau exemplo.

pessoas na feira

'Quando existe confiança (nos governantes) as pessoas têm maior disciplina. Quando a confiança não existe, impera a indisciplina e é o que estamos vendo aqui no meu país, no Brasil, no México, no Chile, no Peru.'

BBC News Brasil - Mas Bolsonaro e outros presidentes defendem que a economia funcione. Na Colômbia, por exemplo, o desemprego em maio foi acima de 20%. No Brasil, a recessão foi agravada. Paralisar a economia não é pior?

Santos - Existe um dilema muito complicado. Qual é o equilíbrio conveniente entre economia e saúde? Ninguém tem a fórmula perfeita. Mas pelo menos é possível tentar enviar mensagens que gerem confiança na população. É o que as autoridades deveriam fazer.

Acho que um dos motivos do sucesso no Uruguai é a confiança que os uruguaios têm em relação ao que seus governos, o nacional e os locais, estão dizendo na pandemia. Quando existe confiança (nos governantes) as pessoas têm maior disciplina. Estão mais inclinadas a fazer o correto. Quando a confiança não existe, impera a indisciplina e é o que estamos vendo aqui no meu país, no Brasil, no México, no Chile, no Peru. Estamos vendo uma grande indisciplina e sem disciplina por parte da população, vai ser difícil combater a pandemia.

BBC News Brasil - Existe um novo populismo na região?

Santos - Isso já existia. Bolsonaro é um populista de direita. O presidente do México, de esquerda. E sem contar a Venezuela. Isso não é pela pandemia. Mas espero que a pandemia acabe levando a cidadania a valorizar cada vez mais a ciência. E que o populismo perca força.

BBC News Brasil - O senhor com outros ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, Ricardo Lagos, do Chile, e Ernesto Zedillo, do México, assinaram um documento público dizendo que alguns líderes atuam bem na pandemia e outros não. Defenderam a ciência e que o FMI esteja mais presente, com mais recursos para a região. Esse documento tem mais de um mês. Mudou alguma coisa após esse pedido?

Santos - A relevância desse documento está mantida. E voltaria a assiná-lo. O Fundo Monetário Internacional precisa dar mais recursos à região. Precisamos ser criativos, de inovações que geram mais recursos financeiros para enfrentar a catástrofe econômica na região.

BBC News Brasil - Como o senhor disse, a região já vinha mal em termos econômicos e sociais quando surgiu a pandemia. Então, o que esperar depois da pandemia?

Santos - As Nações Unidas estimam que vamos retroceder 30 anos. O Banco Mundial diz que vamos retroceder 20 anos, que voltaremos a ter os índices de pobreza que tínhamos no começo do século e que vamos ter um desemprego alto durante muito tempo.

Mas ao mesmo tempo a pandemia deu visibilidade aos problemas graves que temos de desigualdade, de falta de produtividade, de pobreza, de vulnerabilidades. Mas podemos aproveitar a pandemia para reconstruir nossos países com melhores políticas, ou seja, políticas sociais justas e verdes. Precisamos de mais justiça social e precisamos ser muito mais conscientes de combater as mudanças climáticas porque essa pandemia é uma pequena situação diante da tragédia das mudanças climáticas, se não atuamos com maior determinação para deter as mudanças climáticas.

BBC News Brasil - Como?

Santos - Por exemplo, em vez de retroceder ao uso de energia poluentes, fósseis, como está acontecendo, estimular a economia, poder aproveitar para estimular a criação de energias renováveis. Políticas que tenham como finalidade a sustentabilidade ambiental. Este é o momento para isso.

BBC News Brasil - Voltando à política brasileira, existe preocupação em alguns setores com os rumos da democracia desde que Bolsonaro participou de um ato com manifestantes que pediam a intervenção no Supremo Tribunal Federal. Na sua visão, a democracia brasileira corre riscos?

Santos - O que vejo é uma tendência no mundo todo de usar a pandemia para que os governos saiam fortalecidos, mas com o custo de afetar a divisão de poderes, enfraquecendo os Supremos e até o Congresso. Isso é o contrário do que defende qualquer democrata. Acho que é preciso estar atento. E isso está acontecendo não só na América Latina, mas em vários lugares do mundo todo. Os governos gostam de ter todo o poder, ter controle de tudo e isso pode virar um costume. Claro que sabemos que existem situações excepcionais em função da pandemia e o governo precisa de mecanismos para atuar. Mas isso não pode ser uma regra e sim uma exceção.

BBC News Brasil - O governo brasileiro conta com forte participação de militares. Bolsonaro tem um discurso de que a ditadura militar não foi negativa para o país. Qual a sua opinião?

Santos - Como democrata, não gostei nunca que militares respondam pelos governos. Os militares - e eu fui militar - devem cumprir com seu mandato constitucional. E não virar um co-governo. O governo deve estar nas mãos dos civis. A essência da democracia exige que os militares cumpram seu dever e não interfiram na administração dos assuntos públicos porque essa fórmula, geralmente, gera consequências negativas.

Juan Manuel Santos

Santos continua a defender o processo de paz que ajudou a criar, mas se diz preocupado

BBC News Brasil - O senhor assinou o acordo de paz com as Farc em 2016. Como vê o acordo hoje? Existem notícias de que as células das Farc continuam atuando no interior da Colômbia. Não está preocupado com essa situação?

Santos - Estou preocupado, mas ao mesmo tempo tranquilo. O Acordo de Paz foi blindado juridicamente pela Corte Constitucional. Nenhum governo, ou os próximos três governos, pode aprovar leis ou decretos que contrariem o cumprimento dos acordos. O que sim me preocupa é que esse governo (presidente Iván Duque) foi muito lento em organizar o cumprimento dos acordos. Também me preocupa que certos líderes sociais estejam sendo assassinados em algumas regiões como resultado do acordo. Camponeses que perderam a terra pela violência ou líderes que estão estimulando a substituição dos cultivos ilícitos (folha de coca). Sei que ainda temos muitos problemas, mas vejo com satisfação e otimismo que a grande maioria dos integrantes das Farc, que se desmobilizou e se desarmou, continua atendendo ao processo de paz e se incorporando à vida civil. As Farc são hoje um partido político com representação no Congresso.

BBC News Brasil - Mas o senhor acha que chegará o dia em que, além de representação no Congresso, os integrantes das Farc terão empregos dignos e serão mais bem aceitos pela sociedade colombiana?

Santos - Acho que estão sendo cada vez mais aceitos. E existem ex-combatentes que estão trabalhando em empresas normais. E as pessoas cada vez mais os aceitam como uma parte fundamental da nossa vida social e política.

BBC News Brasil - Há poucos dias, um brasileiro e seu namorado suíço foram sequestrados no interior da Colômbia. Foi notícia no Brasil. A Colômbia ainda não é um país seguro para o turismo?

Santos - É um país muito mais seguro do que era. Antes, a metade do país era 'zona vermelha' (perigoso). Mas ainda temos problemas. Existem lugares onde as quadrilhas de criminosos, estas dissidências das Farc que estão dedicadas ao narcotráfico, operam. Ainda temos problemas. Mas somos um país diferente daquele que tínhamos há alguns anos porque não podemos comparar o que era a Colômbia há seis ou sete anos com o que o país é hoje. Mas não ignoramos que ainda temos problemas.

BBC News Brasil - O que mudou na sua vida ser Prêmio Nobel da Paz? Mudou alguma coisa?

Santos - Sim. Me fez estar mais comprometido a continuar ajudando as causas importantes ligadas ao que tem a ver com viver em um mundo mais pacífico. Para mim abriu uma janela, como disseram os indígenas, para entender que a paz não se faz somente entre seres humanos, mas que a paz também deve ser com a natureza. E nós vínhamos, de certa forma, destruindo a natureza. E se queremos paz entre seres humanos, temos que ter paz com a natureza. E estou me dedicando a isso, a promover a paz entre seres humanos e a promover a paz com a natureza.

BBC News Brasil - Onde o senhor está nesse momento? Há muito barulho de pássaros.

Santos - A Colômbia é o país com maior diversidade de pássaros do mundo. E estou em uma zona que está a uns 70 quilômetros de Bogotá. É uma zona onde há muitos e muitos pássaros.

BBC News Brasil - No final do ano passado foram realizados fortes protestos no Chile, na Colômbia, no Equador e em outros lugares da América Latina. Sua percepção é que eles estão adormecidos pela pandemia, mas voltarão? Ou não?

Santos - Voltarão, com certeza. A desigualdade social será um denominador comum dos protestos. Vamos ver mais desigualdade, mais desemprego, mais pequenos empresários quebrados. E em países como o meu, até os mais velhos, confinados na marra, também saem para protestar. Então, acho que os protestos estão congelados, mas quando a pandemia passar, serão retomados. Mas é quando os governantes teriam a oportunidade de ouvir a voz dos manifestantes, dos indignados e canalizar essa indignação para políticas melhores, mais justas, mais verdes. Parte desses protestos são os ambientalistas que viram como os países não se comprometem de verdade com os compromissos como o Acordo de Paris. Eu sou otimista nato e acho que essa combinação, se tivermos uma boa liderança, pode canalizar para a criação de nova economia e politicas que corrijam os problemas que existem há 200 anos na América Latina.

Trump

'O fenômeno Trump influenciou muito o resto do mundo. Trump buscou enfraquecer o multilateralismo, enfraquecer as organizações internacionais, as Nações Unidas, a Organização Mundial de Comércio, e isso repercute nas regiões'

BBC News Brasil - Podem ocorrer mudanças geopolíticas se o presidente Trump ganhar ou perder a eleição em novembro?

Santos - Essa eleição é muito importante para a América Latina. Se o senhor Trump seguir na Presidência, vamos continuar vendo uma política de total desconhecimento em relação à América Latina. Uma política improvisada que não nos deu nenhum benefício. Acho que o candidato democrata (Joe Biden) conhece a região e trabalhou pela América Latina, gosta e admira a nossa região. A relação entre Estados Unidos e América Latina melhoraria muito com uma mudança de governo nos Estados Unidos.

BBC News Brasil - Como o senhor vê a situação da Venezuela hoje? Não há previsão de novas eleições (presidenciais com maior participação da oposição) e o opositor Juan Guaido, que contou com apoio de vários países, parece ter perdido forças.

Santos - Acho que nesse momento está tudo parado. Continuo insistindo que a única solução e a mais favorável que temos na América Latina e, principalmente na Colômbia que é o mais prejudicado com a situação venezuelana, e não por causa dos venezuelanos, óbvio, é uma solução negociada, pacífica, onde devem estar presentes os jogadores determinantes. São eles Rússia, China, Cuba, Estados Unidos e América Latina. Essa tem que ser a solução e nunca é tarde.

BBC News Brasil - O senhor disse no início da entrevista que acha uma loucura como o presidente brasileiro está lidando com a situação da pandemia. Por quê?

Santos - Considerar uma pandemia como uma gripezinha. Dar sinal para que ninguém exerça nenhuma disciplina social, que ninguém acate as recomendações dos cientistas, dos médicos e isso só agrava o problema. E agora vemos os resultados.

BBC News Brasil - As pessoas tendem a seguir a seu líder?

Santos - Sim, claro. Os líderes devem dar exemplos. Os líderes têm responsabilidades com sua população. O que vemos hoje no Brasil e nos Estados Unidos são líderes que dão maus exemplos.

BBC News Brasil - Como Prêmio Nobel da Paz, se tivesse que mandar alguma mensagem ao Brasil, qual seria?

Santos - O Brasil é um país maravilhoso, com grande futuro. A América Latina sempre foi a região do futuro. Mas acontece que não permitimos que esse futuro chegue. Mas tomara que essa pandemia nos faça acordar. E nos mostre que podemos mudar certas políticas para que este futuro vire o presente. O Brasil e a América Latina temos tudo o que o mundo precisa. Temos biodiversidade, temos água, temos energia, temos uma população engajada e também os melhores jogadores de futebol.

Marcia Carmo
De Buenos Aires para a BBC Brasil

Vitória de Biden nos EUA ampliaria pressão por preservação da Amazônia

Depois de investir por mais de um ano e meio no estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) parece cada vez mais próximo de perder seu aliado preferencial: o atual presidente americano e candidato à reeleição pelo partido republicano Donald Trump.

Joe Biden discursa

                                  Revista britânica The Economist aponta que Joe Biden 
                                           tem 90% de chances de vencer a eleição

Depois de investir por mais de um ano e meio no estreitamento das relações entre Brasil e Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) parece cada vez mais próximo de perder seu aliado preferencial: o atual presidente americano e candidato à reeleição pelo partido republicano Donald Trump.

Atrás nas pesquisas eleitorais e amargando taxas de popularidade próximas ao seu piso no mandato, em meio a uma grave crise pandêmica e econômica, que já custou a vida de 130 mil americanos e mais de 30 milhões de empregos, Trump hoje tem menos chances estatísticas do que o democrata Joe Biden de ser o ocupante da Casa Branca a partir do ano que vem.

O modelo da revista britânica The Economist, por exemplo, aponta Biden com 90% de chances de vencer no colégio eleitoral americano, que define o novo presidente.

"Na nossa trajetória de mais de cem anos de política externa republicana tivemos pelo menos outros quatro momentos de alinhamento com os americanos: no início do século, com o Barão do Rio Branco, no governo Dutra, nos anos 1940, na ditadura militar, a partir de 1964 e no governo Collor, nos anos 1990. Mas nesse grau que vemos hoje é inédito. E é inédito também porque é um alinhamento ideológico, parece um alinhamento mais entre governos do que entre países", diz Dawisson Belém Lopes, professor de relações internacionais da UFMG.

A harmonia não é evidente apenas em gestos de simpatia, como no convite de Trump para que o filho do presidente brasileiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, estivesse na reunião privada dos dois mandatários no salão oval da Casa Branca em março de 2019, ou nos bonés com slogans do político americano como "Make America Great Again" ou "Trump 2020", que o mesmo Eduardo gosta de vergar em público.

O Brasil também alterou significativamente sua posição histórica no xadrez global e ancorou suas opiniões na agenda de Trump. Isso aconteceu, por exemplo, na proposta de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém, o que apenas os Estados Unidos fizeram até agora, e que foi considerado um desrespeito pelos árabes já que os palestinos disputam o controle de parte da cidade.

Ou em posturas agressivas contra a China e contra órgãos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas ou a Organização Mundial da Saúde. Ou mesmo na posição negacionista e cética em relação ao coronavírus e ao aquecimento global.

E se der Biden na Casa Branca?

A eventual retomada da Casa Branca pelos democratas mudaria sensivelmente ao menos parte desse cenário. "É certo que a agenda do meio ambiente, direitos humanos e direitos trabalhistas que não está na mesa hoje na relação dos dois presidentes deve ser incorporada às discussões bilaterais caso Biden vença", afirmou à BBC News Brasil Abrão Árabe Neto, vice-presidente executivo da Câmara Americana de Comércio (Amcham) no Brasil.

A possibilidade de mudança tem gerado certa especulação e tensão entre brasileiros, alguns dos quais temem que o país possa ser ostracizado diante das diferenças entre Biden e Bolsonaro - o que anularia todo o investimento feito em uma aproximação que, segundo especialistas em relações internacionais, por enquanto trouxe menos benefícios do que custos ao Brasil.

Contribuiu para o mal-estar uma carta que 24 deputados democratas da Comissão de Orçamento e Assuntos Tributários enviaram ao representante comercial dos Estados Unidos, Robert Lighthizer, no começo de junho.

Na comunicação os deputados diziam: "Nós nos opomos fortemente a buscar qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro no Brasil. O aprimoramento do relacionamento econômico entre os Estados Unidos e o Brasil, neste momento, iria minar os esforços dos defensores dos direitos humanos, trabalhistas e ambientais brasileiros para promover o Estado de Direito e proteger e preservar comunidades marginalizadas".

Os dois países têm se esforçado para chegar a consenso sobre temas comerciais não tarifários e há a expectativa de que haja algum anúncio nesse sentido até o fim do ano.

Trecho da floresta amazônica

Biden já avisou que o meio ambiente será uma das suas prioridades


A embaixada brasileira foi a campo, por meio de uma carta, tentar desfazer o mal-estar. O indicado a embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, também passou a procurar individualmente os congressistas que assinaram a carta para uma conversa.

Há cerca de três semanas, por vídeo, ele se reuniu com o congressista Earl Blumenauer, o responsável por comércio na Comissão.

Mas, de acordo com ex-auxiliares de Biden e democratas ouvidos pela BBC News Brasil, não existe o risco de que o Brasil passe a ser tratado como uma espécie de Venezuela da direita em um eventual novo governo democrata.

Primeiro porque o Brasil é visto como um país de relevância regional para ajudar a alterar o regime venezuelano, uma das prioridades no continente tanto para democratas quanto para republicanos.

Segundo porque, lembram os auxiliares, Biden não é Trump e vai atuar para trazer para a mesa de negociação o máximo de aliados possíveis, especialmente em um momento em que o status da China como o adversário a ser batido se tornou um consenso suprapartidário na política americana.

"Ideologia não deve ser a régua com a qual os Estados Unidos medem os seus aliados. O que importa são as áreas de interesse em comum que os dois países têm, independentemente de quem seja o presidente do Brasil no momento", afirmou à BBC News Brasil Juan Gonzalez, ex-conselheiro para assuntos de América Latina do então vice-presidente Joe Biden durante a gestão Obama.

"Biden é um político profissional, sabe muito bem separar retórica de pensamento estratégico", concorda Gabrielle Trebat, ex-secretária adjunta de negócios do Tesouro americano e atualmente diretora da consultoria McLarty, cujo fundador, Nelson Cunningham, também tem sido ouvido por Biden em temas de América Latina.

Segundo Trebat, a carta dos congressistas democratas fala mais sobre o momento político polarizado nos Estados Unidos - e sobre o interesse em impor derrota a Trump em ano eleitoral - do que sobre a relação com o Brasil em si.

"Com Biden tende a ser uma relação mais estável e previsível do que o que estamos vendo agora. Pode até ser bom para o Brasil", opina Trebat.

Em ao menos um aspecto, a deportação em massa de brasileiros, isso parece ser verdade. Trump tem como base de sua agenda políticas anti-imigração e desde o fim do ano passado adotou a prática de enviar aviões fretados pelo governo americano brasileiros que cruzassem a fronteira com o México irregularmente.

Biden provavelmente suspenderia esse tipo de deportação sumária, que gerou críticas ao governo de Bolsonaro, acusado de não defender os brasileiros no exterior.

Biden está para o meio ambiente como Carter esteve para os direitos humanos?
Mas há ao menos um tema em que uma eventual gestão democrata deve aumentar a pressão sobre o governo Bolsonaro.

Biden já anunciou que o meio ambiente será uma das suas prioridades: se vencer, vai recolocar os americanos no Acordo do Clima de Paris, do qual foram retirados por Trump, em um movimento que o próprio Bolsonaro disse ter interesse em imitar.

Da mesma forma, o democrata já avisou que, em sua gestão, nenhum acordo comercial será fechado "sem que haja um ambientalista na mesa de negociações".


Trump faz discurso

Trump está atrás nas pesquisas eleitorais e amarga 
taxas de popularidade próximas ao seu piso no mandato

Em março, durante um debate democrata em que foi perguntado sobre o que faria para colocar em prática seu plano de US$1,7 trilhões anti-aquecimento global, Biden mencionou especificamente a questão do desmatamento em território brasileiro em sua resposta: "Eu estaria agora organizando o hemisfério (ocidental) e o mundo para fornecer US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia, para que pudessem manter as florestas".

Diferentemente do que aconteceu no ano passado, durante a temporada de queimadas na Amazônia, quando a Europa - especialmente França, Alemanha e Noruega - se levantou contra a devastação da floresta e o governo Trump atuou para baixar a fervura da discussão internacional e impedir que recomendações fossem feitas ao governo Bolsonaro pelos membros do G7, um governo Biden tenderia a atuar no caminho oposto.

Para um embaixador brasileiro com experiência em Estados Unidos, ouvido reservadamente pela BBC News Brasil, o governo Biden poderia funcionar em relação ao meio ambiente como o governo do democrata Jimmy Carter (1977-1981) atuou em favor dos direitos humanos no Brasil e na América Latina durante os regimes militares na região.

Carter substituiu a política externa dos antecessores republicanos Ronald Reagan e Gerald Ford de indiferença em relação a torturas, assassinatos e abusos cometidos pelos governos ditatoriais locais que eram simpáticos aos americanos e anti-soviéticos. Passou a pressionar pelo fim dessas práticas e influenciou, em certa medida, o processo de redemocratização brasileira.

Em suas denúncias das violações de direitos humanos no Brasil, houve na equipe de Carter quem defendesse sanções econômicas ao Brasil. Assim como na época, essa é uma saída improvável de ser aplicada pela gestão Biden.

Mas tanto a ideia do fundo de apoio quanto um acompanhamento mais próximo da questão e eventual vocalização de críticas públicas ou via Embaixada Americana no Brasil seriam muito prováveis, de acordo com membros do Itamaraty consultados pela reportagem.

Um governo Biden daria mais um empurrão no ministro Ernesto Araújo para fora da cadeira de chanceler.

Araújo é frequentemente lembrado em Washington justamente por um discurso que fez na capital americana, em setembro de 2019, no think tank conservador Heritage Foundation, em que negava o aquecimento global e dizia que críticas na condução do país em relação à devastação da Amazônia eram meros ataques à soberania brasileira.

Para parte dos democratas, Araújo deixou de se mostrar um interlocutor respeitável nesse momento.

A crise do ano passado, aliada ao ciclo atual de desmatamento, que já supera o de 2019, ajudam a explicar por que, há duas semanas, 29 instituições financeiras que gerenciam mais de R$ 3,7 trilhões em investimentos enviaram ao Brasil uma carta em que afirmavam que "é provável que os títulos soberanos brasileiros sejam considerados de alto risco se o desmatamento continuar".

O agronegócio brasileiro também passou a enfrentar resistências aos produtos exportados para Europa.

Em um possível governo Biden, o mal-estar também poderia chegar aos Estados Unidos. Mas, argumentam auxiliares do democrata ouvidos pela BBC News Brasil, erra quem apostar em medidas duras e corte de vias diplomáticas.

Citam como exemplo do estilo diplomático de Biden sua condução da crise aberta com a então presidente brasileira Dilma Rousseff, em 2013, diante das denúncias de que a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) havia espionado comunicações dela, de outros integrantes do governo brasileiro e da Petrobras.

Dilma cancelou viagem que faria aos Estados Unidos, durante a qual seria recebida em jantar de gala na Casa Branca por Obama. Biden se empenhou pessoalmente em se desculpar e desfazer o mal-estar.

Tanto assim que em 2014, o então vice-presidente veio ao Brasil para se encontrar com Dilma e tentar reestabelecer o relacionamento. Conseguiu costurar uma nova visita da mandatária brasileira aos Estados Unidos para 2015.

"Ele não fez isso porque era a Dilma Rousseff ou qualquer outro. Ele fez isso porque ele é Joe Biden. Ele sempre trabalhou para aproximar Brasil e Estados Unidos. Esse interesse de aproximação do Brasil existe, ele não vai fechar a porta para isso", afirma um ex-auxiliar de Biden à BBC News Brasil.

Mariana Sanches - @mariana_sanches
Da BBC News Brasil em Washington

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Por duas polegadas a mais

Primeira miss Brasil, Martha Rocha morre no Rio de Janeiro aos 83 anos


Por duas polegadas a mais

Edson Vidigal

(Em 14 de Março de 2019 escrevi e publiquei a crônica que segue, após saber que Marta Rocha passara a morar num abrigo de idosos, por questões financeiras).


No que mais se fala é na reforma da previdência social, a realidade econômica do País anuncia que se não houver uma nova previdência o Governo não terá mais dinheiro para pagar as atuais aposentadorias, portanto, se o Congresso não aprovar a reforma da previdência, nem pensar em como será o amanhã dos que não tendo mais emprego nem mais idade e saúde para algum trabalho precisarem se aposentar.

Batendo na tecla de retrocesso da datilografia mental, me reencontro a mirar na mesa da sala, na casa do meu pai, na Rua São Benedito, em Caxias, a capa da revista O Cruzeiro, espreitando um descuido dos olhares adultos para ir tê-la comigo, sozinha comigo, a moça docemente sensual em seu maiô catalina, que atiçava em mim aquele o fogo reprimido na fantasia púbere, natural na pré-adolescência.  

No primeiro carnaval, decorei a marchinha – por duas polegadas a mais, passaram a baiana prá trás. Eu não entendia direito o enredo, mas de pronto notei que ela, a moça da capa, tinha sido vítima de alguma maldade muito séria.

À medida em que o tempo me enchia os olhos e as esperanças com coisas novas da vida mais eu descobria que muitos outros homens se achavam namoradinhos dela.

O inconsciente do mundo masculino foi encontrando maneiras de convivência com aquela saudável fixação. Seu nome virou sinônimo de beleza pura para os homens e sua estampa fonte inesgotável de imitação para as mulheres.

Em Long Beach, nos Estados Unidos, em 1954, a moça baiana já estava aclamada como a mulher mais bonita do mundo. Um juiz apareceu com uma fita métrica e depois o veredito – duas polegadas a mais nos quadris.

Os olhos delas são duas contas azuis. Sua pele parece louça. Isso ela ouvia desde criança. De ascendência alemã, falava francês, inglês e espanhol. Mas não era do tipo alto e peituda que os gringos até hoje adoram. Talvez daí o preconceito contra as duas polegadas a mais nos quadris da moça.

O Brasil, acompanhando tudo pelas ondas do rádio, que se contentasse com a segunda posição no pódio da beleza universal.

Tímida, vendo aquele mundo novo pelas meninas azuis dos seus olhos levemente míopes, a moça baiana bem que seria hoje comparada com essas legiões de brasileiros que, acreditando no direito adentram os cancelos da Justiça – ganham, mas não levam!

Teria mesmo que ser a segunda, a número dois. O presidente do Júri mandou que o cetro e a coroa fossem entregues à americana Miriam Stevenson, sobre quem, e não demorou muito, quase ninguém soube mais. Por onde andará Miriam Stevenson? Por onde andará?

Marta Rocha, viúva do primeiro casamento com o milionário português, aliás banqueiro na Argentina, Álvaro Piano, com quem se casou quando tinha 23 anos de idade, retorna de Buenos Aires voltando a morar no Brasil. Guardou luto. Sua herança foram dois filhos.

Uma geração inteira de homens seguiu fixado nela, sonhando adivinhações com que pudessem alcança-la. Convivi de perto com alguns, uns ricos, outros poderosos, todos querendo as suas graças, um deles querendo mesmo casar com ela.

Seu segundo casamento foi com Ronaldo Xavier, que visto hoje talvez coubesse bem no samba de Miguel Gustavo na voz de Jorge Veiga – “Café Soçaite”. Com o Ronaldo, uma filha.

O tempo não esquece a idade e a idade nunca para consumindo a vida. Marta como todo mortal viveu agruras, atravessou dificuldades e hoje, aos 82 anos de idade, segue antenada no mundo.

Hoje estou muito triste pela Marta, depois que li sua mensagem numa rede social, assim:

 “Meus amigos, participo que estou morando numa pousada para idosos por questões financeiras. Não me sinto diminuída, humilhada por isso. Pelo contrário, pois a minha dignidade segue sem mácula.”

Marta Rocha não é aposentada, nem tem plano de saúde.

Edson Vidigal, Advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e Presidente do Conselho da Justiça Federal.

oOo

14.03.19

Brasil tem mais de 65 mil mortes por coronavírus confirmadas

País soma 1.613.351 casos confirmados de Covid-19 e 65.120 mortes pela 

O Brasil passa da marca de 65 mil mortes por coronavírus em pouco mais de quatro meses de pandemia, aponta um levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde.

O país é o 2º com os maiores números de óbitos e de infectados no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos: segundo dados da universidade americana Johns Hopkins, o Brasil tem 12% das mortes e 14% dos casos no planeta.

A atualização do balanço inclui os estados que atualizaram os dados até as 13h desta segunda-feira (6). Veja:

65.120 mortes
1.613.351 casos confirmados

Antes da atualização das 13h, o consórcio divulgou o balanço das 8h, com os dados mais atualizados das secretarias estaduais naquele momento. Eram 1.604.683 casos confirmados de Covid-19 e 64.909 mortes.

(No domingo, 5, às 20h, o balanço indicou: 64.900 mortes, 535 em 24 horas; e 1.604.585 casos confirmados. Desde então, CE, DF, GO, MG, MS, PE, RN, RR, SP e TO divulgaram novos dados.)

Fonte: Por G1 / O Globo
 

Porandubas Políticas

Por Gaudencio Torquato

Abro com uma historinha de JK e Jânio no Ceará.

O guidão de fora

Juscelino Kubitschek, presidente da República, foi ao Ceará com Armando Falcão, ministro da Justiça. Sebastião Nery conta que Falcão, cearense, levou JK a um desafio de cantadores. Um cego estava lá, com sua viola, gemendo rimas. Juscelino chegou, cumprimentou-o. O cego respondeu na hora:

- Kubitschek, ai, meu Deus, que nome feio. Dele eu só quero o cheque porquê do resto ando cheio.

Um ano depois, a mesma cena. Jânio Quadros, presidente, vai a Fortaleza, há um desafio de cantadores. Chega com os óculos grossos e longos bigodes, um cantador o vê, saúda:

– Vou louvar o meu patrão que já vem chegando agora. Engoliu a bicicleta e deixou o guidão de fora.

Nunca mais ninguém levou presidente para ouvir cantador no Ceará.

Entrando em julho

Julho chega com inverno e poucas esperanças. Os governos, a partir do Estado de São Paulo, o mais populoso da Federação, decidiram abrir as atividades negociais, mesmo sob regime de progressão. Mas a expansão dos números de mortos e contaminados mostram que a decisão foi um pouco apressada. O fato é que os governos notaram que suas decisões vinham sendo quebradas pela reação do comércio. A essa altura, mesmo com receio de contaminação, as pessoas fazem pressão para abertura de seus pequenos e médios negócios. A morte, de tão banalizada, já não é um bicho-papão: fulano morreu, que pena... Esse é o ligeiro desabafo de uma sociedade que se torna fria, calculista, pragmática. Tempos duros os nossos.

Eleições à vista

Mais ao fundo, começa-se a ver a onda eleitoral. De início, partidos do Centrão queriam realizar as eleições em outubro. Agora, com a promessa do governo de liberar R$ 5 bilhões para as prefeituras combaterem a pandemia da Covid-19, já aceitam o adiamento para novembro. Claro, com grana a mais nos cofres candidatos à reeleição, principalmente, contam com mais chances de vitória. Mais adiante, voltarão a combater os males da administração, incluindo micro-ondas de vírus, que irão embora e voltarão, segundo os prognósticos.

Campanha negativa

Este ano a tendência é a da volta da propaganda eleitoral. Negociação dos partidos. No Brasil, é comum fazer-se propaganda negativa. Muito cuidado com isso. A Revolução Francesa de 1789 pode ser considerada o marco da propaganda agressiva nos termos em que hoje se apresenta. Ali, os jacobinos, insuflados por Robespierre, produziram um manual de combate político, recheado de injúrias, calúnias, gracejos e pilhérias que acendiam os instintos mais primitivos das multidões. Na atualidade, é a nação norte-americana que detém a referência maior da propaganda agressiva, mola da campanha negativa. Biden e Trump devem abusar da propaganda negativa. Este formato, cognominado de mudslinging, apresenta efeitos positivos e negativos. No contexto dos dois grandes partidos que se revezam no poder - democrata e republicano -, diferenças entre perfis e programas são mais nítidas e a polarização sustentada por campanhas combativas ajuda a sociedade a salvaguardar os valores que a guiam, como o amor à verdade, a defesa dos direitos individuais e sociais, a liberdade de expressão, entre outros. Nem sempre a estratégia de bater no adversário gera eficácia.

Impactos I

Os impactos a serem deixados pela pandemia serão de monta, principalmente na esfera de valores e costumes. A proximidade maior com a morte baixará uma cortina de frieza entre as pessoas. O pragmatismo se elevará no processo decisório, a exigir políticas de resultados. A pressa e ações intempestivas se expandirão na esteira de recuperação do tempo perdido. Alguns analistas chegam a projetar os efeitos em escala mundial.

Impactos II

Os EUA deixarão de ser o principal protagonista da política mundial ao perderem sua condição de fonte de estabilidade no planeta; a cooperação internacional definhará, eis que as Nações foram incapazes de lidar conjuntamente com as ameaças; a austeridade fiscal vai para o beleléu, ante a inevitável condição de governos aumentarem gastos para enfrentar as turbulências provocadas pela epidemia e a globalização, cantada e tão decantada, perderá seus eixos por conta dos controles rígidos que os países adotarão para proteger suas fronteiras e economias. Moisés Naím é um desses analistas.

Novas ondas

China, Índia e países europeus, como a Alemanha, começam a registrar novas ondas da pandemia. Na China, o vírus se espalha pelos porcos.

Paz e amor?

Lê-se que o presidente Jair Bolsonaro entrou na fase do "Jairzinho Paz e Amor". Está mais calmo e silente. Menos tosco e agressivo. Coisa de passagem. Bolsonaro cultua estratégia de guerra. Aprecia ir à luta. Guerra, guerra, guerra, ferocidade à moda Hitler. Sem medo de enfrentar as intempéries do inverno russo, por exemplo. Teria sido aconselhado pelos generais a maneirar sua índole. Precisa arrefecer o ânimo dos parlamentares, muitos ávidos para abocanhar nacos da administração. O Centrão está de olho nas sobras. Ele tem de enfrentar os casos que assombram o filho n° 1, o senador Flávio, cercado pela "rachadinha", caso Queiroz e, ainda, a CPI das fake news, que correrá pelo TSE. E a guerra é o palco onde Bolsonaro tenta segurar sua base de 30%.

Lula sobrevivente

O PT ainda não fez com que Lula descesse do altar onde está entronizado como salvador do lulopetismo. E ele continua a acreditar que é mesmo o Todo-Poderoso. Ora, Lula só tem chance em clima de débâcle geral, caos no país. Seu nome já não tem muito apelo para convocação de multidões. Soa como caneco enferrujado. Ideias são as mesmas. Fazer a revolução na política e nos costumes. Desbancar as elites. Não sente o que se passa ao redor dele. Tornou-se insensível. Não abre o partido para novas lideranças. E os novos, como Fernando Haddad, fazem loas e o aplaudem esperando sua benção para voltarem a ser candidatos.

Bodódromo

No meio da pandemia – o pico só virá no final de julho – o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, escolheu uma prioridade: investir R$ 30 milhões no bodódromo de Petrolina, onde se come um farto bode assado a céu aberto, como lembra o jornalista José Casado em O Globo.

Início do marketing político

"Rastreie, vá ao encalço de homens de toda e qualquer região, passe a conhecê-los, cultive e fortaleça a amizade, cuide para que em suas respectivas localidades eles cabalem votos para você e defendam sua causa como se fossem eles os candidatos". (Quinto Túlio Cícero aconselhando o irmão Marco Cícero, o grande tribuno, em 64. A. C., quando este fazia campanha para o Consulado de Roma)

Frente pouco ampla

A tão falada Frente Ampla, apontada como solução para sair do impasse dos extremos do arco ideológico em 2022, terá dificuldades para se constituir. Cada parceiro partidário quer ganhar uma grande fatia do bolo. Os partidos maiores pretendem dominar os protagonistas. É muito cedo ainda para uma tentativa de organização. Mas a bagunça no cenário inviabiliza por enquanto a ideia. Faltam líderes, sobra orgulho.

Alcolumbre quer ficar

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, vai tentar mudar o regimento da Casa para poder se reeleger em fevereiro do próximo ano. Só poderia na legislatura seguinte. Tem chances de conseguir. Já Rodrigo Maia confessa ter dado sua cota de sacrifício, não desejando, assim, mudar o regimento da Câmara para poder se reeleger. Mas como ficará o princípio da igualdade? O que será permitido no Senado será proibido na Câmara? Estranho.

Municipalização x nacionalização?

Questões importantes que florescem na seara eleitoral: campanhas tendem a ser municipalizadas ou a receber inputs federais? Micropolítica – política das pequenas coisas – ou macropolítica, temáticas abrangentes? O discurso da forma (estética) suplantará o discurso semântico? Campanhas privilegiarão pequenas ou grandes concentrações? Qual é o papel das entidades de intermediação social (associações, movimentos, sindicatos, federações, clubes, etc.)? Telegráficas respostas: 1) Ambiente geral – estado geral de satisfação/insatisfação – adentra esfera regional/local (temas locais darão o tom, mas a temperatura ambiental será sentida); 2) Micropolítica, escopo que diz respeito ao bolso e a saúde, estará no centro dos debates; 3) O discurso semântico – propostas concretas e viáveis – suplantará a cosmética; 4) Pequenas concentrações, em série, gerarão mais efeito que grandes concentrações; 5) Organizações sociais mobilizarão eleitorado.

Decotelli

Acusado de ter feito plágio na dissertação de mestrado, flagrado na mentira pelo reitor da Universidade de Rosário, na Argentina, que desmentiu ser ele doutor, e também desmentido por não feito pós-doutorado na Alemanha, o quase ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, mentiu descaradamente. Como alguém diz ser doutor sem sê-lo? Como alguém se apresenta como mestre em uma dissertação plagiada? Logo alguém que vai comandar a Educação no Brasil? Que compromissos terá com o zelo, a verdade, a disciplina, a honestidade, a dignidade, a integridade? Professor, assuma seu erro, mas não assuma o Ministério. Foi o que fez. Pediu demissão. Essa mancha vai acompanhá-lo por toda a sua carreira.

Bill Gates

Bill Gates acredita que a situação atual dos Estados Unidos frente à pandemia do coronavírus é "mais sombria" do que imaginou no começo da crise. Em entrevista ao canal americano CNN, o fundador da Microsoft afirmou que os EUA não foram rigorosos o suficiente em questões de proteção, como o uso de máscaras, monitoramento do distanciamento social e esforços de quarentena no território.

Aeroporto em terra alheia

O novo aeroporto de Natal, em São Gonçalo do Amarante, foi construído pela iniciativa privada a partir de 2011, começou a operar em 2014 e é reconhecido como um grande incentivo para a indústria do turismo do Rio Grande do Norte. O terreno foi passado pelo Estado para a União. A empresa que o construiu e ainda opera, a Inframérica, está desistindo do negócio, pois o retorno é baixo.

Negócios da privatização

Diante da desistência da Inframérica, o Ministério da Infraestrutura resolveu relicitá-lo, dentro de seu programa de privatização. Só tem um detalhe: aquelas terras ainda pertencem a ¾ de seus originais proprietários, que há 20 anos lutam na Justiça pelo pagamento das desapropriações. O Estado se exime de culpa. E a União finge que não há nada, mas recorre de todos os processos. Uma notificação extrajudicial tenta barrar a relicitação, pois "conceder uso do que não lhe pertence é contra o princípio de moralidade pública e sem amparo legal".

Fecho a Coluna com uma historinha da Bahia.

Conjunção rachativa

Grande de nome e pequeno de corpo. Magricela, esperto, inteligente, José Antônio Wagner Castro Alves Araújo de Abreu, sobrinho-neto de Castro Alves, herdou o DNA, o talento e a vadiagem existencial do poeta. Não gostava de estudar. No esporte, era bom em tudo. Colega de Sebastião Nery no primeiro ano do seminário menor, na Bahia, em 1942, na aula de português, o padre Correia lhe perguntou o que era "mas".

– É uma conjunção.

– Certo, mas que conjunção?

Zé Antônio olhou para um lado, para o outro e respondeu:

– Conjunção rachativa, professor.

– Não existe isso, Zé Antônio.

– Existe, professor. Quando a gente quer falar mal de alguém, sempre diz assim:

– Fulano até que é um bom sujeito, mas... E aí racha com ele.

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.
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Livro Porandubas Políticas

A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.

Em forma editorial, o livro "Porandubas Políticas" apresenta saborosas narrativas folclóricas do mundo político acrescidas de valiosas dicas de marketing eleitoral.

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Brasil, nosso problema

Bolsonaro nada propôs em lugar do que tenta destruir, constata Flávio Miragaia Perry, embaixador aposentado, neste artigo publicado originalmente em O Globo, edição de hoje.

Não acredito na conversão de Bolsonaro. Sua ignorância é espantosa.

O governo tentou “governar” pelo confronto: disputou com todo mundo, em critérios sobre costumes, na desmontagem da política ambiental, na contestação dos valores e vantagens do multilateralismo. Conduziu uma política externa à deriva dos fatos internacionais, contra a busca do entendimento, a solução de conflitos, a moderação dos excessos, a defesa da história e cultura brasileiras, a ampliação do horizonte econômico, a defesa dos direitos humanos e desdobramentos válidos, o que sempre fizemos no cuidadoso comportamento diplomático, para aproveitar as ocasiões de afirmação do interesse nacional, na defesa da paz, entre tantos aspectos que nos qualificaram como um país e uma diplomacia confiáveis. Bolsonaro nada propôs em lugar do que tenta destruir.


O governo Bolsonaro tem sido um despropósito internamente, no confronto com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal, no desprezo pela Constituição, nos maus conceitos jurídicos, numa discutível adesão à economia chamada liberal, numa generalização da ideia do Estado mínimo e numa suposta solução do problema do desenvolvimento econômico via investimento privado e clara despreocupação social, num país desequilibrado e desigual. Franca oposição ao ambiental.

A pandemia implantou-se no Brasil com força, por falta de planejamento e coordenação entre União, estados e municípios, por uma idiossincrasia do presidente alimentada pela frieza dos números de seu ministro da Economia. É frontal a falsa oposição entre a economia e a vida humana. Bolsonaro desprezou a vida humana. Na economia, sob pressão da opinião nacional ofendida, tomou providências que não se completaram. O auxílio emergencial, para atender a cerca de 50 milhões de brasileiros desprovidos de recursos para sobrevivência, não chegou a um número expressivo de cidadãos pobres: o método foi falho. Pequenas e microempresas não conseguiram acesso ao crédito, apesar da propaganda governamental. Há falências e assustador desemprego.

A recuperação da economia, assim que a crise da pandemia acalmar, não tem um plano discutido com a sociedade: sim, faremos a reforma tributária, para amenizar as diferenças de tratamento e as sobrecargas, mas ninguém reformulou os projetos conhecidos, que já não têm a mesma serventia, pois eram focados apenas no equilíbrio fiscal. O que o país necessita é de um forte socorro do Estado aos 50 milhões de desassistidos e apoio decidido à pequena empresa. É preciso encontrar a fórmula para assistir a esse terço de cidadãos que estiveram à margem das considerações da economia. Isso deve ser feito com uma perspectiva, projetada, de realização anos à frente do equilíbrio fiscal.

Não acredito na solução do problema do desequilíbrio crônico de contas com a simples alienação de bens que o estatismo nos legou. Muito pode ser desmobilizado, nunca na bacia das almas, e sem dúvida não deve incluir alienação de símbolos da confiança nacional, Banco do Brasil, Correios e Petrobras, nem pode alienar investimentos em andamento na área nuclear.

O país não é simples e tem uma história de patrimonialismo e centralização. Esse pecado histórico deve ser amenizado e desconstituído.

Não acredito em Bolsonaro e sua ostensiva incompetência nem no apoio que o possa socorrer da parte de alguns generais de boa vontade. Governo se faz com as disponibilidades de cidadãos bem formados (universidades, centros de pesquisa, organizações sociais), militares ou não, desimpedidos de suas amarras corporativas. Por isso acredito que a nova proposta de reforma tributária há de acontecer a par com uma reforma do Estado, supondo um novo pacto federativo, criador de uma autêntica federação, e uma nova estrutura de reforma de atividades e funções na estrutura do Estado, nos três níveis, superando o empreguismo e formando inteligências a seu serviço, nos três ramos, Legislativo, Executivo e Judiciário.

A qualquer governo é preciso cabeças mais capazes, sem preconceitos, para enfrentar a crise que nos sufoca e encaminhar soluções.

Bolsonaro não irá longe.

O Senado e o Supremo

Cada uma dessas cortes foi concebida para assegurar um país livre e democrático

Desde o fim da 2.ª Grande Guerra no final da primeira metade do século 20, os países desenvolvidos moldaram suas cortes supremas conforme suas tradições jurídicas. Na França, os presidentes da República, do Senado e da Câmara escolhem um terço dos ministros do Conselho Constitucional cada um. Na Itália, o presidente, o Parlamento e os tribunais superiores indicam um terço da Corte Constitucional cada um. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal é dividido em duas turmas integradas por oito ministros e metade das indicações é feita pela Câmara e metade pelo Senado. Para neutralizar pressões políticas e garantir a neutralidade da corte, ela está instalada em Karlsruhe, a 700 quilômetros da capital, Berlim. Nos Estados Unidos, os ministros são indicados pela Casa Branca e só são nomeados depois de serem rigorosamente sabatinados e aprovados pelo Senado.

Cada uma dessas cortes foi concebida para assegurar um país livre e democrático. Além disso, quase todas são integradas por operadores jurídicos oriundos do Ministério Público, da advocacia e das faculdades de direito, e não só por juízes. Não se ater a requisitos vinculados a uma carreira do próprio Judiciário foi o modo encontrado para assegurar a indicação de profissionais destacados e dotados de reputação ilibada, notável conhecimento jurídico, experiência profissional e credibilidade. E como em toda discussão constitucional sempre há uma convergência entre o direito e a política, esse também foi o modo como esses países procuraram neutralizar as pressões partidárias e dotar a corte suprema de uma visão pluralista, capaz de respeitar as forças sociais majoritárias e as minorias sociais. É por isso que a indicação de um ministro não é um ato de escolha exclusiva de um presidente, mas um processo de construção de consenso.

A história mostra que essa experiência deu certo, pois, independentemente de os ministros escolhidos poderem ser conservadores ou progressistas, eles, sem abrir mão de suas convicções, sempre levam em conta os interesses da sociedade, e não os desejos de quem os indicou. Nas cortes supremas francesa, italiana, alemã ou americana, os ministros sabem que, se por um lado não há formas predeterminadas de interpretar uma norma constitucional, por outro, o que deles se espera é que estabilizem as expectativas normativas da sociedade num horizonte de médio e longo prazos.

Em decorrência da instabilidade institucional do Brasil, pois desde sua ascensão ao poder o presidente Jair Bolsonaro passou a criticar sistematicamente o STF e a afirmar que a vontade do povo está acima das instituições democráticas representativas, o modo de escolha dos ministros da mais alta Corte voltou a ser objeto de acirradas discussões. Entre outros motivos porque, dentro de meses, Bolsonaro indicará o sucessor do ministro Celso de Mello, que se aposentará compulsoriamente. E o maior receio é que, em vez de respeitar os requisitos fixados pela Constituição para a escolha, como reputação ilibada e notável saber jurídico, ele indique alguém que jamais se destacou na vida jurídica e que, ao vestir a toga, passe a agir no STF como mero auxiliar para a consecução dos objetivos obscurantistas do chefe do Executivo. Pelos nomes já aventados pelo Planalto, o temor procede, pois nenhum tem notável saber jurídico. Podem até ser ministros de Estado, mas, em matéria de saber jurídico, são o que Ruy Barbosa chamava de “nulidades”.

Por isso, se quiser de fato defender a democracia, o Senado precisa deixar claro desde já como agirá quando Bolsonaro formalizar a indicação do sucessor de Celso de Mello. Deve afirmar que seus membros exercerão a prerrogativa de sabatiná-lo com rigor e que não hesitarão em rejeitá-lo caso não atenda aos requisitos constitucionais. Se assim não procederem, os senadores não poderão reclamar mais à frente, quando ficar claro que o nome indicado por Bolsonaro para o STF passar a agir como uma espécie de cavalo de Troia, valendo-se do cargo para servir ao seu padrinho como auxiliar na destruição do Estado de Direito.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
06 de julho de 2020 | 03h00