sexta-feira, 15 de agosto de 2025

O telefonema que Tarcísio deveria dar

Governador cobra de Lula que ligue para Trump. Mas Tarcísio também poderia telefonar a Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político, e pedir que cesse a sabotagem contra SP e o Brasil

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, cobrou do presidente Lula da Silva que telefone para o presidente dos EUA, Donald Trump, com o objetivo de negociar o tarifaço imposto pelos americanos ao Brasil – e que afeta particularmente o agronegócio paulista. “É isso que vai fazer a diferença”, disse Tarcísio. Este jornal defendeu e continua a defender exatamente isso, que o presidente Lula tente telefonar para Trump, mas, se o governador Tarcísio está de fato interessado em ajudar o Brasil e os paulistas, ele mesmo podia passar a mão no telefone e ligar para os EUA – para falar não com Trump, e sim com o deputado “exilado” Eduardo Bolsonaro.

Tarcísio poderia pedir que Eduardo Bolsonaro, filho de seu padrinho político Jair Bolsonaro, pare de sabotar os esforços do governo brasileiro para estabelecer um diálogo com a administração americana. O recente cancelamento abrupto de uma reunião virtual entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, é um exemplo cristalino de como o clã Bolsonaro faz mal ao Brasil. Até a antevéspera, estava tudo pronto: agendas de ambas as autoridades alinhadas, link de acesso à plataforma de videoconferência estabelecido e interlocução formalizada entre os dois governos. Ainda assim, na undécima hora, a conversa entre Haddad e Bessent, que deveria ter ocorrido hoje, foi retirada de pauta pelo gabinete do secretário do Tesouro sob a insólita justificativa de “falta de agenda” – uma desculpa claramente esfarrapada.

Haddad culpou “forças de extrema direita”, em referência a Eduardo Bolsonaro e ao blogueiro Paulo Figueiredo, ambos homiziados nos EUA para conspirar contra o Brasil em troca da impunidade de Jair Bolsonaro e outros golpistas. De fato, as evidências apontam para uma “coincidência”, chamemos assim, bastante reveladora: no dia do anúncio do cancelamento da reunião entre Haddad e Bessent, Eduardo concedeu entrevista ao Financial Times prevendo novas sanções da Casa Branca contra autoridades brasileiras, justamente quando o governo Lula da Silva tentava estabelecer canais de diálogo para conter a escalada punitiva deflagrada por Trump.

Não se trata, por óbvio, de um mero desencontro diplomático. Em público, o sr. Eduardo nega, mas a interferência do filho do ex-presidente Bolsonaro para, desde o exterior, inviabilizar contatos de alto nível entre os governos das duas maiores democracias das Américas é um ato de gravidade ímpar. O fato de o deputado federal licenciado agir com esse grau de desenvoltura contra seu próprio país revela não só seu desprezo pelo decoro parlamentar, mas um desdém absoluto pelos interesses de milhões de brasileiros que são prejudicados pelo tarifaço. É espantoso que a Câmara ainda continue a lhe pagar salário e não lhe tenha cassado o mandato.

É certo que Lula não é propriamente conhecido por sua admiração pelos EUA e vem subindo o tom com bravatas palanqueiras para capitalizar eleitoralmente sua disputa particular com Trump. Mas a ordem dos fatores, aqui, altera o produto: foi a sabotagem dos Bolsonaros que resultou no tarifaço excêntrico de Trump, e não o antiamericanismo infantil de Lula. Logo, se Tarcísio estiver genuinamente empenhado em destravar as relações com os EUA, deve deixar de lado o discurso eleitoreiro que tenta jogar toda a responsabilidade pela crise nos ombros de Lula e deve começar a cobrar dos seus caros amigos Bolsonaros que parem de atrapalhar o Brasil.

Cabe a Tarcísio, como governador de um dos Estados mais afetados pelo tarifaço e liderança política com pretensões nacionais, exigir que cessem as manobras golpistas e irresponsáveis do clã Bolsonaro que tanto vêm prejudicando o País e, de forma particular, a economia paulista. Criticar Lula é fácil e sempre pode render dividendos políticos. Enfrentar o sabotador maior do Brasil, contudo, exige coragem e compromisso com a República, o que o sr. Tarcísio ainda precisa demonstrar com mais vigor e independência.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.08.25

Leão 14 supera medalhões como líder global, aponta nova pesquisa

Pontífice novato ficou à frente de Volodimir Zelenski, Bernie Sanders e Donald Trump em levantamento do instituto Gallup.


O papa Leão 14 acena para fiéis ao deixar a missa do Jubileu da Juventude, em Tor Vergata, em Roma - Remo Casilli-3.ago.25/Reuters

Foi um presentaço para Leão 14. Ao celebrar cem dias de pontificado neste sábado (16), o papa desponta numa pesquisa americana do instituto Gallup como o líder global do momento. Ele conseguiu 57% de avaliação positiva, contra apenas 11% de rejeição e 31% de neutralidade. Nestes 31 %, cabe a justificativa de que ele ainda é uma figura pouco familiar.

Papas costumam se sair bem neste estudo feito desde 1993, avaliando chefes de governo e personalidades do mundo político. Foi assim com João Paulo 2º, cuja popularidade só cresceu no longo papado, e com Francisco, por seu enorme carisma.

Com Bento 16, tímido e reservado, os números foram menos vistosos. Mas, o que chama atenção agora é a lavada do pontífice novato sobre seus competidores: no topo do ranking, desbancou Volodimir Zelenski (segundo colocado, com 52% de aprovação), o senador democrata Bernie Sanders (terceiro colocado, com 49%), Donald Trump (quarto colocado, com 41%) e seu vice J. D. Vance (quinto colocado, com 38%). A taxa de rejeição de todos supera em muito a do papa –a de Trump alcança 57%.

Uma multidão de pessoas está reunida, muitas delas segurando celulares e tirando fotos. No centro da imagem, um líder religioso, vestido de branco, sorri e faz um gesto positivo com a mão. O ambiente é festivo, com pessoas visivelmente animadas e algumas usando chapéus e roupas leves. Ao fundo, há uma grande quantidade de fotógrafos e espectadores.

Há pelo menos duas formas de olhar os resultados da pesquisa. A primeira diz respeito ao que os respondentes preferem quando o assunto é liderança global. Personalidades conciliadoras, como Leão 14 e mesmo o veterano Sanders, têm mais apelo do que polarizadores como Trump ou Vance.

O Gallup destaca que o papa se saiu bem até entre os republicanos. Em síntese, no plano aspiracional, os americanos parecem querer distância de líderes globais fantasiados de exterminadores do futuro.

A outra forma de olhar tem a ver com o fenômeno Leão 14 em si. Ele é o primeiro papa nascido nos EUA, o que justificaria o favoritismo, porém, tem dupla cidadania (americana e peruana)..

Uma das imagens a circular tão logo seu nome soou na Praça São Pedro foi a de um religioso com botas sujas de lama, enfrentando a enchente numa comunidade pobre e periférica do Peru. Isso o faz testemunha do desencanto que leva milhões de latinos a tentar a vida nos EUA. Diante da caçada desumana de Trump aos imigrantes, Leão 14 já informou de que lado está.

Há um debate em curso nos círculos da igreja sobre se ele deveria usar mais o inglês em público. Fluente também em espanhol e italiano, há quem defenda que o papa se expresse na sua língua nativa, falada por 1,5 bilhão de pessoas, para atingir uma audiência global. O argumento é forte, no entanto, o sucessor de Francisco tem preferido o italiano, língua oficial do pequeno país que governa. É assim: enquanto autocratas praguejam, Leão 14 testa a potência do seu estilo comedido.

Dias atrás, na Jornada Mundial da Juventude, que reuniu um milhão de pessoas em Roma, foi saudado como popstar. O "mundo em guerra" talvez não tenha notado que ele desfilou de papamóvel, pousou de helicóptero, fez selfies, ficou em vigília com os jovens, acordou-os logo cedo com um sonoro "bom dia", rezou missa e exortou: "Estamos com a juventude de Gaza!".

A multidão vibrou. Não à toa a Jornada foi chamada de Woodstock católico e Madonna, na sequência, pediu que Leão 14 visite os palestinos, "antes que seja tarde". Visita que talvez tenha mais chance de ocorrer do que a ida do pontífice ao país natal em 2026, para festejar, ao lado de Trump, o aniversário dos 250 anos dos EUA. O futuro dirá.

Laura Greenhalgh, a autora deste artigo, Jornalista, atuou nas revistas Veja e Época, foi editora-executiva de O Estado de S. Paulo e é sócia-fundadora da Palavra Escrita Editorial. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 15.08.25

Eduardo Bolsonaro diz que EUA podem impor novas sanções e até mais tarifas ao Brasil

Deputado disse em entrevista à Reuters que sobretaxas não serão reduzidas sem concessões do STF

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em entrevista à Reuters em Washington - ( Crédito da foto: Jessica Koscielniak/Reuters)

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) espera novas sanções dos Estados Unidos contra autoridades brasileiras e, possivelmente, até mais tarifas devido ao que chamou de crise institucional deflagrada pelo tratamento do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes ao seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Em uma entrevista no escritório da Reuters em Washington nesta quinta-feira (14), após reuniões com autoridades norte-americanas de alto escalão, o parlamentar afirmou não ver como o Brasil possa negociar uma redução de tarifas sem concessões do STF.

"Os ministros do Supremo Tribunal têm que entender que perderam o poder", disse ele. "Não existe cenário em que a Suprema Corte saia vitoriosa desse imbróglio todo. Eles estão tendo um conflito com a maior potência econômica do mundo."

A atuação de Eduardo Bolsonaro em Washington o colocou no centro das tensões bilaterais depois que Trump impôs uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e aplicou sanções financeiras a Moraes, exigindo o fim do que chamou de uma "caça às bruxas" contra o ex-presidente brasileiro.

Jair Bolsonaro está atualmente sendo julgado pelo STF por uma suposta conspiração para reverter as eleições de 2022, que ele perdeu. O ex-presidente nega qualquer irregularidade.

Eduardo Bolsonaro descreveu as tarifas dos EUA sobre produtos brasileiros como carne bovina, café, peixe e calçados como um "remédio amargo" destinado a conter o que classificou de ofensiva legal descontrolada contra o ex-presidente.

"Tenho alertado a todos aqueles que pretendem tratar isso apenas pela ótica comercial. Isso não vai funcionar", disse o deputado. "É por isso que tenho dito: tem que ser dada uma primeira sinalização aos Estados Unidos de que a gente está resolvendo essa crise institucional."

O Departamento de Estado dos EUA aumentou a pressão sobre o Brasil na quarta-feira (13) ao anunciar revogações e restrições de vistos a várias autoridades do país e a seus familiares devido à participação no programa Mais Médicos, que envolvia médicos cubanos.

Eduardo Bolsonaro disse esperar que essas restrições atinjam em breve o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e, provavelmente, a ex-presidente Dilma Rousseff, que estiveram à frente do programa.

Dilma foi chefe da Casa Civil e sucessora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva após seu segundo mandato, que terminou em 2010. Representantes de Padilha e Dilma não responderam imediatamente a pedidos de comentários.

Lula rejeitou as recentes exigências de Trump como uma afronta à soberania nacional e se recusou a "humilhar-se" com uma ligação para a Casa Branca. Em uma entrevista à Reuters na semana passada, ele chamou Eduardo Bolsonaro e seu pai de "traidores" por, segundo ele, incitarem a intervenção de Trump.

O STF está investigando os Bolsonaro por terem recorrido à Casa Branca. Moraes intensificou as medidas contra o ex-presidente, colocando-o em prisão domiciliar e proibindo contato com seu filho nos EUA ou com autoridades estrangeiras.

O deputado afirmou que o setor agropecuário brasileiro, que apoia Bolsonaro, tem se posicionado favoravelmente à sua atuação nos EUA. Segundo Eduardo Bolsonaro, o agro avalia que "vale a pena" eventuais perdas financeiras para que o país possa "resgatar a normalidade institucional".

Na entrevista desta quinta-feira em Washington, Eduardo Bolsonaro disse esperar uma resposta dos EUA a essa repressão, incluindo sanções contra a esposa de Moraes, uma advogada de destaque no Brasil. Bolsonaro também disse que poderia ver "mais" tarifas sobre produtos brasileiros no futuro.

O deputado, que se mudou em março para os Estados Unidos em um esforço para obter o apoio de Trump a seu pai, disse que tem defendido sanções visando Moraes e sua família. Com relação às tarifas, disse que as via como uma "última alternativa".

Ele disse que sanções imediatas dos EUA contra outros ministros do STF parecem improváveis, dado o foco em isolar Moraes, a quem ele chamou de "gangster" e comparou a um "psicopata" e "mafioso".

O STF não respondeu de imediato a um pedido de comentário.

Em uma entrevista à Reuters no mês passado, Jair Bolsonaro disse que esperava que seu filho eventualmente buscasse a cidadania norte-americana para evitar retornar ao Brasil.

Eduardo Bolsonaro recusou-se a comentar os detalhes de seu status de imigração, mas disse que ele e sua família tinham permissão para permanecer nos Estados Unidos "por um bom tempo", e deixou a porta aberta para buscar asilo e, eventualmente, cidadania.

Com relação à corrida presidencial de 2026, disse que o candidato da direita é seu pai, mas que ele estaria disposto a apoiar quem Jair Bolsonaro escolhesse. Falou também que não ambiciona ser presidente da República, mas que aceitaria a "missão", caso fosse a vontade de seu pai. "Se for uma missão dada pelo meu pai... eu sim aceitaria o desafio."

Jair Bolsonaro está inelegível para o pleito de 2026 após ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Marcelo Teixeira, de Washington - DC e Luciana Magalhães, de S. Paulo - SP com apoio da Reuters para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 14.08.25

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Justiça manca

Judiciário brasileiro tem muitos e graves problemas, mas não dá para falar em ditadura da toga como fazem bolsonarist

Sessão plenária do STF, sob a presidência do ministro Luís Roberto Barroso - Pedro Ladeira - 27.nov.2024/Folhapress

O Judiciário brasileiro é muito ruim. É moroso, inconsistente e cheio de vieses. Se levarmos em conta o fator preço --gastamos com o sistema de Justiça 1,33% do PIB, contra uma média internacional de 0,3%--, torna-se sério candidato ao posto de um dos piores do mundo.

O STF é tudo menos inocente nessa história. É dele que vem muito da instabilidade jurídica que marca nosso sistema. E da politização também. Um ministro conseguiu a façanha de votar de modo diametralmente oposto a si mesmo no mesmo processo. Bastou que mudasse de Dilma para Temer o nome do presidente da República que poderia perder o cargo numa interminável ação na Justiça Eleitoral por abuso de poder que ele julgava.

A imagem mostra uma sessão do Supremo Tribunal Federal do Brasil. No centro, há uma mesa com vários juízes e um presidente da sessão, todos em trajes formais. Ao fundo, há uma bandeira do Brasil e um crucifixo na parede. Na frente, há uma plateia com pessoas sentadas, algumas delas com trajes escuros. Em duas telas de projeção, é possível ver informações relacionadas à sessão.

Ainda assim, é preciso ter perdido o juízo para achar que vivemos sob uma ditadura da toga, como afirmam bolsonaristas.

É o próprio conceito de ditadura judicial que se mostra problemático. Praticamente todos os regimes autocráticos instrumentalizam o Judiciário para servi-los. Vimos isso aqui mesmo no Brasil durante os anos de chumbo do período militar. Mas não conheço caso de Judiciário que tenha atropelado Executivo e Legislativo e passado a comandar um país. É que o Judiciário, sem tropas e sem votos, tende a ser o menos resiliente dos três Poderes.

É justamente aí que está o ponto chave. O Judiciário extrai sua legitimidade dos serviços que presta ao país. O STF tem algum crédito por seu papel na contenção do golpe que Jair Bolsonaro e seus aliados tentaram dar. Até algumas das heterodoxias do tribunal se mostram defensáveis, quando se considera que uma Procuradoria-Geral da República (PGR) muito próxima ao bolsonarismo se fazia perigosamente inerte.

Mas a situação mudou. A PGR voltou ao normal, Bolsonaro deixou o poder e está sendo julgado. Não há mais justificativa para ousadias. Mais do que nunca, o STF tem de operar em modo ortodoxo. A corte máxima precisa dar sua contribuição para tornar a Justiça brasileira mais estável, menos partidarizada e mais barata. Para torná-la, enfim, menos ruim.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente em 12.08.25

PJ aquece mercado de trabalho, mas impõe desafios

Atividade por conta própria ganha mais vagas e renda; legislações devem se adaptar às mudanças

Movimentação de candidatos durante Mutirão Nacional do Emprego, em São Paulo (SP) - Rafaela Araújo - 12.ago.24/Folhapress

Em 2014, os celetistas eram 41%, ante cerca de 22% de trabalhadores por conta própria. Atualmente, são 38,1% e 25,2%, respectivamente

Os números do trabalho no Brasil passaram por mudanças relevantes desde a grande recessão de 2014-16, em parte influenciadas pela reforma da CLT aprovada em 2017.

Termos como terceirização e pejotização entraram no centro dos debates político e econômico. Depois de uma década, o cenário demanda que se discutam regulação do trabalho, impostos e contribuições previdenciárias.

Reportagem nesta Folha apresentou dados —oriundos de pesquisa de Nelson Marconi, da Escola de Administração de São Paulo da FGV— que revelam a redução da parcela dos ocupados em contratos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Ademais, pessoas empregadas por conta própria, segundo a terminologia do IBGE, e com CNPJ têm rendimentos superiores aos daqueles que trabalham nos mesmos setores como celetistas.

Uma pista para explicar tal diferença é o fato de que entre os por conta própria formalizados há pessoas de maior qualificação. A redução do custo tributário e a flexibilidade levaram pessoas a optar por esse regime ou a serem para ele levadas por empresas que as empregavam

A parcela dos empregados em contratos da CLT era de 39,2% em 2012; chegou ao pico de 41% do total dos ocupados em 2014. A taxa dos que trabalhavam por conta própria flutuou pouco em torno de 22,5% de 2012 a 2014, indo a 24,1% no final de 2016. Atualmente, os celetistas são 38,1%, e os por conta própria, 25,2%.

Note-se que, desde 2019, quase todo o crescimento dos primeiros se deu naquela categoria dos que têm registro de CNPJ, com rendimentos mais altos.

Ainda que possa favorecer trabalhadores, a transformação não deixa de trazer questões problemáticas. Os regimes de tributação do Simples e do Microempreendedor Individual (MEI), que facilitam ou incentivam a pejotização —tornar-se pessoa jurídica, ou PJ— com isenções fiscais, também provocam a redução da receita de impostos e contribuições previdenciárias.

Por exemplo, em 2012, o gasto tributário com o Simples equivalia a 0,66% do Produto Interno Bruto; em 2025, a 0,98%.

Tais impactos se somam ao envelhecimento da população como motivos de subfinanciamento da Previdência Social. No caso federal, a receita do INSS passou do patamar de 4,7% do PIB na virada do século para uma média de 5,6% entre 2009 e 2024, ora em 5,5%. Já a despesa cresceu de 5,7% do PIB para 8% do PIB hoje.

A correta reforma de 2017 tornou a CLT menos rígida e obsoleta, facilitando a criação de vagas formais. A legislação trabalhista precisa continuar se adaptando às mudanças no mercado, que incluem ainda o emprego por aplicativos. Igualmente, as normas previdenciárias, alteradas em 2019, precisarão de aperfeiçoamento contínuo nos anos por vir.

Recalibrar a tributação de salários e lucros e delimitar o alcance do Simples e do MEI são temas a serem tratados desde já.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.08.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O STF e o foro

Proposta restaura o statu quo pelo qual a Câmara controlará a licença e estenderá no tempo os processos


Palácio do STF na praça dos Três Poderes, na região central de Brasília - Pedro Ladeira - 24.abr.25/Folhapress

Antes do início do julgamento da denúncia do PGR sobre Bolsonaro, escrevi aqui neste espaço que o saldo líquido para a corte seria negativo em qualquer cenário. "O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado —seu custo proibitivo— em um momento crítico para a democracia brasileira". O pior cenário materializou-se. E a intervenção de Trump no processo representa um choque no sistema. Ela altera o equilíbrio perverso entre parlamentares e juízes no qual há interdependência: a ameaça de impeachment é a contrapartida de ameaças de condenação em ações penais.

Mas ela tem duas consequências que se movem em direção contrária, e que em parte se neutralizam. A primeira é que aumentou os incentivos para a base bolsonarista de tentar aprovar o impeachment de Alexandre de Moraes, recolocar a anistia na agenda e eliminar o foro por prerrogativa de função. O segundo é que o efeito de união nacional contra a interferência externa extravagante e inédita. A mudança no foro, no entanto, poderá prosperar porque ela incorpora à aliança um bloco de deputados para além do PL envolvidos em ações pouco republicanas.

A imagem mostra um grupo de seis pessoas sentadas em um banco de concreto, de costas, observando o Palácio da Alvorada, que é um edifício moderno com grandes janelas e uma estrutura arquitetônica distinta. O céu está nublado e há uma estátua visível à direita. O ambiente é amplo, com cercas de segurança visíveis na frente do palácio.

O foro é a base da jurisdição criminal do STF —que não tem paralelo em outros países, mas tratei disso aqui—, mas foi instrumental para a resiliência democrática malgrado as patologias da corte. A ascensão de Bolsonaro inaugurou uma era de confronto aberto. E aqui há um fato novo crucial: a arbitragem constitucional mudou de chave. Não se trata de conter os excessos do Executivo ou de conflitos interpoderes envolvendo o Legislativo, mas de responder os ataques à própria corte; o que é inédito e deflagrou respostas hiperbólicas num crescendo. O ovo da serpente.

O perfil de agente passivo de arbitragem não dá mais conta face às investidas virulentas (que passaram a incluir planos de assassinato de juízes). Mas esta resposta —concentrada em decisões monocráticas controversas para dizer o mínimo— tem acarretado custos muito elevados para o STF. Gerou perplexidade a participação de membro da corte como parte interessada e julgador. O hiperprotagonismo individual cobrou um preço quanto à legitimidade da corte.

Se o impeachment ou anistia tem baixa probabilidade de sucesso, o foro é diferente: era letra morta porque os membros nunca concediam licença prévia para seus membros serem julgados. A mudança institucional ocorre por choques, como argumentei aqui. O escândalo Hildebrando Paschoal, em 2001, deflagrou a eliminação da licença. O ônus da impunidade passou ao STF desde então. Mas o caso Ronaldo Cunha Lima expôs a manipulação estratégica de foros para garantir impunidade. A resposta do STF foi restringi-lo a ações ligadas ao cargo. Nova mudança em 2025 com o atual julgamento: o foro passa a ser perpétuo, independente do mandato.

A proposta de mudança restaura o statu quo pre Pascoal pelo qual a Câmara controlará a licença (para roubar e matar) e/ou estenderá no tempo os processos, aumentando riscos de impunidade. Eis o dilema. O problema é sistêmico e envolve degradação institucional em virtude, entre outras coisas, do padrão hiperpolitizado e personalístico de nomeações para a corte.

Marcus André Melo, o autor deste artigo, é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 11.08.25

De golpista a mártir: o teatro político de Bolsonaro

Com apoio de Trump, o ex-presidente aposta na inversão de papéis para escapar da Justiça – e manter sua base radical em alerta permanente.

Imagens de um Jair Bolsonaro recluso e com tornozeleira surtem o efeito desejado nas redes do bolsonarismo: o de pintar o ex-presidente como salvador da pátria perseguido pelos poderosos, escreve Philipp Lichterbeck (Foto: Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance)

Faz parte das estratégias centrais dos novos movimentos de direita, que ao redor do mundo ameaçam a democracia, apresentar a si e seus líderes como vítimas. Donald Trump foi o precursor. O bilionário, que ao longo da vida violou repetidas vezes e de forma comprovada as leis, afirma estar sendo perseguido por um sistema judiciário injusto e politizado. Agora, porém, ele estaria se defendendo. Essa é sua justificativa para os ataques a figuras e estruturas centrais da democracia, que se baseia na divisão do poder e das decisões. Quando essa divisão deixa de existir, também deixa de existir a democracia.

O ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro e seu clã – admiradores de longa data e alunos aplicados do atual presidente dos EUA – tentam copiar essa estratégia de inversão entre agressor e vítima. Querem fazer os brasileiros e o resto do mundo acreditarem que não são eles os autores de uma tentativa de golpe de Estado, mas sim as vítimas de um suposto juiz ditatorial no STF. Já não resta dúvida de que o golpe de Bolsonaro só fracassou devido à resistência de alguns generais que não quiseram embarcar na aventura do capitão.

Diante desse fato, o clã Bolsonaro passou a investir em outra frente de combate: manter sua base mobilizada por meio de confusões calculadas, distrações constantes e imagens nas redes sociais que retratem Bolsonaro como a verdadeira vítima. Era exatamente esse o objetivo quando Bolsonaro, com a ajuda de seus filhos, violou deliberadamente a ordem judicial clara do ministro Alexandre de Moraes de se abster do uso das redes sociais, provocando assim a imposição da prisão domiciliar. Seria ingênuo acreditar que os advogados de Bolsonaro não o alertaram sobre essa consequência.

No círculo de Bolsonaro sabe-se muito bem que a tentativa de golpe permanece abstrata no imaginário da maioria dos brasileiros e, portanto, também facilmente negável. Já as imagens de um ex-presidente com tornozeleira eletrônica e em prisão domiciliar são concretas e permanecem na memória. Nas redes do bolsonarismo (e do trumpismo), hermeticamente fechadas à realidade e a qualquer forma de complexidade, essas imagens têm o efeito desejado: Jair, o salvador do Brasil, está sendo perseguido pelo poder.

Essa narrativa não se destina apenas ao público brasileiro, mas também a Donald Trump e seus capangas, como o secretário de Estado americano Marco Rubio. A tentativa de Trump de exercer pressão sobre o governo Lula por meio da ameaça das tarifas de importação mais altas do mundo não foi bem recebida no Brasil. A sociedade brasileira pode estar politicamente extremamente polarizada – mas a maioria dos brasileiros rejeita tentativas de ingerência externa nos assuntos internos do país; e compreende (espera-se!) o que significa separação de poderes.

Foi um erro de cálculo do clã Bolsonaro imaginar que, com ameaças totalmente desproporcionais, seria possível exercer tamanha pressão a ponto de fazer com que a denúncia contra Bolsonaro fosse arquivada ou que Lula concedesse anistia aos golpistas. No círculo de Bolsonaro isso parece já ter sido compreendido. Agora, trata-se de continuar alimentando a espiral de escalada e manter Trump engajado. O presidente americano deve continuar acreditando que há uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro – assim como teria havido contra ele, o grande Donald.

Protagonismo de Moraes acaba servindo aos bolsonaristas

É absolutamente legítimo criticar que o Supremo Tribunal Federal do Brasil seja sobrecarregado com decisões que pertencem ao campo da política. Também é válida a crítica às decisões monocráticas e ao excesso de poder que é atribuído a juízes individuais em casos específicos. O resultado são decisões muitas vezes tidas como impulsivas e excessivas, que colocam os juízes sob fogo cruzado. Cria-se a impressão de que há duelos pessoais entre juiz e acusado. Foi assim no caso Moro vs. Lula; e agora se repete no caso Moraes vs. Bolsonaro.

Por maiores que sejam os méritos de Moraes em defesa da democracia e do Estado de Direito, por não se deixar intimidar por aspirantes a ditador, seu protagonismo involuntário acaba servindo aos bolsonaristas. Pois, naturalmente, apresentam a situação como se Moraes estivesse em uma cruzada pessoal contra Bolsonaro e seus seguidores – quando, na verdade, trata-se de um processo judicial contra criminosos.

Seria bom que o caso Bolsonaro chegasse logo ao fim e que o ex-presidente fosse condenado a uma pena de prisão justamente merecida (que, como de costume no Brasil, ele de todo modo não cumpriria integralmente). Também seria desejável que os conservadores brasileiros se libertassem do feitiço maligno de Bolsonaro e de seu clã. Há tempo demais o país não se ocupa com a modernização necessária em quase todas as áreas (que também não está sendo promovida pelo governo Lula), mas sim com os assuntos familiares e as fantasias de onipotência desse senhor paranoico e medíocre.

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Philipp Lichterbeck, oo autor deste artigo,  queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. / Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 11.08.25

Israel mata cinco jornalistas da emissora Al Jazeera em Gaza

Entre os mortos está o conhecido correspondente Anas al-Sharif. Israel admite ataque proposital e diz que repórter "era membro do Hamas", o que foi negado pela rede de TV. Organizações de imprensa repudiam mortes.

O jornalista Anas al-Sharif, que era o principal rosto da Al Jazeera na cobertura da guerra em Gaza (Foto: AL JAZEERA/AP Photo/dpa/picture alliance)

Um conhecido jornalista da emissora de televisão Al Jazeera foi morto juntamente com quatro colegas em um ataque israelense neste domingo (10/08) na Faixa de Gaza. A ação militar direcionada, admitida por Israel, foi condenada por organizações de jornalistas e grupos de direitos humanos.

Os militares israelenses confirmaram ter alvejado e matado Anas al-Sharif, alegando que ele liderava uma célula do Hamas e estava envolvido em ataques contra Israel.

A Al Jazeera rejeitou a alegação. Antes de morrer, Sharif também havia rejeitado acusações de Israel de que ele tinha ligações com o Hamas, grupo fundamentalista considerado uma organização terrorista pela União Europeia (UE), Alemanha, Estados Unidos (EUA) e outros.

ONGs que repudiaram o ataque afirmaram que Sharif se tornou um alvo por causa de suas reportagens na linha de frente da guerra em Gaza e que a alegações de Israel carecem de provas.

"Tentativa de silenciar vozes"

Sharif, de 28 anos, estava entre um grupo de quatro jornalistas da rede catari Al Jazeera e um assistente que morreram em um ataque direcionado contra uma tenda em que estavam perto do Hospital Al-Shifa, no leste da Cidade de Gaza, segundo informações das autoridades de Gaza e da rede Al Jazeera. Um funcionário do hospital disse que o ataque matou outras duas pessoas e danificou a entrada do setor de emergências do complexo hospitalar. 

Chamando Sharif de "um dos jornalistas mais corajosos de Gaza", a Al Jazeera afirmou que o ataque foi uma "tentativa desesperada de silenciar vozes em antecipação à ocupação de Gaza".

Os outros jornalistas mortos foram Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher e Mohammed Noufal, informou a Al Jazeera.

O primeiro-ministro do Catar, país de origem da Al Jazeera, Sheikh Mohammed bin Abdul Rahman al-Thani, condenou a morte dos jornalistas. "Esses crimes são inimagináveis" e revelam "a incapacidade da comunidade internacional e de suas leis de impedir essa tragédia".

Prêmio Pulitzer

Sharif fazia parte de uma equipe da Reuters que, em 2024, ganhou o Prêmio Pulitzer na categoria Fotografia de Breaking News pela cobertura da guerra entre Israel e o Hamas.

Os militares israelenses afirmaram em um comunicado que Sharif era o chefe de uma célula do Hamas e "responsável por promover ataques com foguetes contra civis israelenses e tropas das Forças de Defesa de Israel (FDI)", citando informações de inteligência e documentos encontrados em Gaza.

Israel acusa jornalista de ser "terrorista"

Em uma publicação nas redes sociais, as Forças de Defesa de Israel (FDI) justificaram o ataque contra Sharif afirmando que ele era"um terrorista".

"Atingido: O terrorista do Hamas Anas Al-Sharif, que se passou por jornalista da Al Jazeera. Al-Sharif era o líder de uma célula terrorista do Hamas e promoveu ataques com foguetes contra civis israelenses e tropas das FDI. Informações de inteligência e documentos de Gaza, incluindo listas de membros, listas de treinamento de terroristas e registros de salários, comprovam que ele era um agente do Hamas integrado à Al Jazeera. Um crachá de imprensa não é um escudo para o terrorismo", diz a publicação.

De acordo com a rede BBC, há indícios de que Sharif tenha trabalhado num braço de mídia do Hamas antes do conflito, mas não há sinais concretos de que ele tenha "chefiado uma célula terrorista" como Israel alega. Israel também não teve a dizer sobre os outros jornalistas mortos no ataque. 

Foi a primeira vez desde o início da guerra que as forças de Israel assumiram rapidamente a responsabilidade pela morte de um jornalista em um ataque.

Ruínas em Gaza: pouco antes de morrer, Sharif, ganhador do renomado prêmio Pulitzer, reportou que a cidade era bombardeada por mais de duas horas (Foto: Rizek Abdeljawad/Xinhua/IMAGO)

Associações de jornalistas criticam ataque

Um grupo de liberdade de imprensa e representantes das Nações Unidas alertaram anteriormente que a vida de Sharif estava em perigo devido às suas reportagens de Gaza. A relatora especial da ONU, Irene Khan, afirmou no mês passado que as alegações de Israel contra ele eram infundadas.

A Al Jazeera afirmou que Sharif havia deixado uma mensagem nas redes sociais para ser publicada em caso de sua morte, que dizia: "nunca hesitei em transmitir a verdade como ela é, sem distorção ou deturpação, na esperança que Deus seria testemunha por aqueles que permaneceram em silêncio".

Em outubro passado, os militares israelenses identificaram Sharif como um dos seis jornalistas de Gaza que, segundo alegaram, eram membros do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina, citando documentos que, segundo eles, mostravam listas de pessoas que concluíram cursos de treinamento e salários.

"A Al Jazeera rejeita categoricamente a descrição das forças de ocupação israelenses de nossos jornalistas como terroristas e denuncia o uso de evidências fabricadas", afirmou a rede em uma declaração na época.

O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), que em julho instou a comunidade internacional a proteger Sharif, afirmou em comunicado que Israel não apresentou nenhuma evidência para respaldar suas alegações contra ele.

"O padrão israelense de rotular jornalistas como militantes sem fornecer evidências confiáveis levanta sérias questões sobre sua intenção e respeito à liberdade de imprensa", disse Sara Qudah, diretora do CPJ para o Oriente Médio e Norte da África.

Após o início da guerra em Gaza, em outubro de 2023, Israel proibiu jornalistas internacionais de entrar em Gaza. Desde então, a tarefa de documentar a guerra recaiu quase exclusivamente sobre jornalistas palestinos locais, muitas vezes sob intenso risco.

De acordo com o CPJ, 186 jornalistas foram mortos desde o início da ofensiva militar de Israel.

Em julho,  três grandes agências internacionais de notícias — Reuters, AP e AFP — emitiram uma declaração conjunta expressando "profunda preocupação" com seus jornalistas na Faixa de Gaza, apontando que eles estão cada vez mais incapazes de alimentar a si mesmos e suas famílias.

Última postagem minutos antes de morrer

Sharif, cuja conta no X contava com mais de 500 mil seguidores, publicou na plataforma minutos antes de sua morte que Israel vinha bombardeando intensamente a Cidade de Gaza por mais de duas horas.

O grupo militante palestino Hamas, que controla Gaza, afirmou que o assassinato pode sinalizar o início de uma ofensiva israelense. "O assassinato de jornalistas e a intimidação daqueles que permanecem abrem caminho para um grande crime que a ocupação planeja cometer na Cidade de Gaza", afirmou o Hamas em um comunicado.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que lançaria uma nova ofensiva para desmantelar os redutos do Hamas em Gaza, onde a crise de fome se agrava após 22 meses de guerra.

"Anas al-Sharif e seus colegas estavam entre as últimas vozes restantes em Gaza a transmitir a trágica realidade ao mundo", afirmou a Al Jazeera.

A assessoria de imprensa do governo de Gaza, administrada pelo Hamas, informou que 237 jornalistas foram mortos desde o início da guerra em 7 de outubro de 2023. O CPJ afirmou que pelo menos 186 jornalistas foram mortos no conflito de Gaza.

Relação conflituosa

Em 2024, Israel baniu o funcionamento da Al Jazeera no país, alegando que sua cobertura representava uma ameaça à segurança nacional.

À época, a proibição veio na esteira de uma lei aprovada em abril pelo Knesset, o Parlamento de Israel, que autorizou o fechamento de emissoras estrangeiras que ameacem a segurança nacional diante da guerra que o país trava contra o Hamas na Faixa de Gaza. No mesmo ano, militares invadiram e fecharam uma sucursal da emissora na Cisjordânia ocupada.

A emissora catari foi fundada em 1996 e se destacou internacionalmente pela sua cobertura também crítica do mundo árabe. Israel, por sua vez, tem uma relação tensa com a organização de mídia, cuja cobertura da guerra em Gaza tem focado especialmente no lado dos palestinos.

Israel costuma acusar o canal de atuar em parceria com o Hamas e fazer propaganda do grupo radical islâmico.

A jornalista Shireen Abu Akleh, que foi morta em 2022 na Cisjordânia ocupada (Foto: Al Jazeera Media Network/AP/picture alliance)

Na última década, A Arábia Saudita e a Jordânia também chegaram a fechar redações locais do canal. O sinal da emissora também já foi bloqueado nos Emirados Árabes Unidos, no Egito, na Síria e no Bahrein.

Um dos poucos veículos de imprensa que seguiu funcionando em Gaza após o início do conflito, em 7 de outubro de 2023 – quando o Hamas perpetrou uma ofensiva terrorista contra Israel –, a Al Jazeera transmitiu imagens e vídeos de bombardeios aéreos mortais e hospitais lotados sob fogo israelense.

Em janeiro de 2024, a emissora já havia acusado as forças de Israel de matarem deliberadamente dois dos seus jornalistas em Gaza. Em 2022, o canal também acusou tropas israelenses de assassinarem a jornalista palestina-americana Shireen Abu Akleh.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 11.08.25

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Por 30 horas, bolsonaristas realizaram sonho de fechar o Congresso

Para salvar ex-presidente, extrema direita quer forçar guerra entre Legislativo e Judiciário

Os bolsonaristas realizaram por 30 horas o sonho de fechar o Congresso. Na manhã de terça, parlamentares de extrema direita se entrincheiraram nos plenários da Câmara e do Senado. Foi um motim contra a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, decretada na véspera pelo ministro Alexandre de Moraes.

A rebelião evoluiu para um sequestro do Parlamento. Os amotinados avisaram que só permitiriam a retomada dos trabalhos mediante três exigências: anistia aos golpistas, fim do foro especial e impeachment do ministro Moraes.

Porta-voz dos sequestradores, Flávio Bolsonaro apresentou a pauta como “pacote da paz”. Na verdade, o senador quer empurrar o Legislativo para uma guerra contra o Judiciário. Tudo em nome da impunidade do pai.

O pacote dos bolsonaristas é triplamente enganoso. O objetivo da anistia não é salvar os autoproclamados “manés” do 8 de Janeiro, que invadiram e depredaram prédios públicos. A ideia é melar o julgamento do ex-presidente, chefe e beneficiário da trama golpista.

A proposta de acabar com o foro privilegiado não tem nada de moralizante. O que a extrema direita quer é livrar o capitão e seus generais do alcance do Supremo. Enviada à primeira instância, a investigação teria que voltar à estaca zero. Isso também ocorreria com dezenas de inquéritos que apuram desvios em emendas parlamentares.

A ideia do impeachment de Moraes não passa de uma agenda de vingança. Os bolsonaristas pregam a cassação do ministro para retaliá-lo por decisões e votos no Supremo. Aberto o precedente, ele seria apenas o primeiro na lista de expurgos.

O motim terminou na noite de quarta, após um acordo cujos termos só devem ser conhecidos nas próximas semanas. Da arruaça, ficarão as imagens de senadores enrolados em correntes e deputados de esparadrapo na boca, como se estivessem proibidos de falar. Dizendo-se censurados, eles cassaram a palavra de colegas que pretendiam usar a tribuna para comentar o fato da semana: a prisão de Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.08.25.

Golpismo explícito

A punição dos que sequestraram o Congresso a título de livrar a cara de Jair Bolsonaro tem de ser exemplar. Não se pode premiar com a leniência quem atenta contra o funcionamento de um Poder

Motim a bordo (Crédito da foto:Metropóles)

O País assistiu, estarrecido, ao sequestro das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado por parlamentares bolsonaristas que decidiram rasgar o Regimento de ambas as Casas, afrontar a Constituição e manchar a história do Congresso fazendo-o refém de uma chantagem. Durante mais de 30 horas – que não deveriam ter durado nem 30 minutos –, os trabalhos legislativos foram suspensos na marra por uma súcia de deputados e senadores que puseram seus mandatos a serviço da impunidade de Jair Bolsonaro, e não do melhor interesse do Brasil. O que se viu não foi nada menos do que uma nova tentativa de golpe no coração da democracia representativa.

Chamemos as coisas pelo nome. Não há outra forma de descrever o que aconteceu em Brasília. Impedir o livre trabalho do Congresso não é outra coisa senão um atentado contra o Estado Democrático de Direito. Pior ainda quando a violência é perpetrada de dentro da instituição democrática por excelência por indivíduos que, malgrado terem sido legitimamente eleitos, agiram como traidores da mesma democracia que os consagrou nas urnas. Um absurdo.

Obstrução parlamentar é prática legítima em todas as democracias maduras. Porém, o que os vândalos bolsonaristas praticaram naquelas horas de caos não foi obstrução, mas coerção. Não foi protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro, foi delinquência. Em última análise, não foi política, foi seu exato oposto: a imposição de vontades por meio da força bruta.

Os presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, falharam miseravelmente em impedir o sequestro. A Polícia Legislativa deveria ter sido acionada minutos após a paralisação dos trabalhos legislativos. Ulysses Guimarães, um dos mais altivos deputados a tomar assento na presidência da Câmara, não teria hesitado em fazê-lo. Já Motta e Alcolumbre, lamentavelmente, mostraram-se menores do que suas cadeiras ao se omitirem por tempo demasiado longo enquanto as Casas que presidem eram violadas por uma turba de parlamentares que, na prática, comportou-se como uma facção criminosa a serviço de Bolsonaro.

Passada a tibieza inicial, o único caminho republicano que se abre diante de Motta e Alcolumbre, se preocupados estiverem com suas biografias, é a restauração da autoridade moral e política do Congresso. E isso só será possível por meio de duas ações. Em primeiro lugar, a imediata e rigorosa punição de cada deputado e cada senador que participou do sequestro do Legislativo federal. O que eles fizeram é intolerável para um país que se pretende sério. Em segundo lugar, os presidentes da Câmara e do Senado devem enterrar definitivamente as demandas apresentadas pelos delinquentes a título de resgate. Avançar com a proposta de anistia a Bolsonaro e outros golpistas ou com o impeachment desarrazoado do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes equivalerá a uma capitulação. Não se negocia com delinquentes. A democracia não se rende – ou deixa de ser democracia.

Por ora, é desconhecido o inteiro teor da barganha que Motta e Alcolumbre fizeram com os sequestradores travestidos de parlamentares para a retomada de seus assentos. Mas, se há um cálculo político que ambos têm de fazer agora, é este: caso não punam exemplarmente os radicais bolsonaristas, sinalizarão que sua tática bandida é aceitável e, consequentemente, pode ser repetida no futuro. Por óbvio, não pode. Em uma democracia digna do nome, não é normal o que essa gente fez.

O Congresso precisa dar uma resposta clara e firme aos bolsonaristas irresignados com os ritos democráticos: no Estado Democrático de Direito não há espaço para aventuras autoritárias que pretendem subverter as instituições em nome de interesses particulares de quem quer que seja. Deputados e senadores têm o dever de defender os interesses da sociedade e da Federação, e não do líder de um movimento político que cada dia mais se desvela como seita.

É hora de Motta e Alcolumbre, do alto dos cargos que ocupam, fazerem uma escolha entre a leniência que estimula a baderna e a firmeza institucional que a debela. A Câmara e o Senado precisam se erguer em defesa de sua própria autoridade. O País precisa de paz. E ela só virá se o Congresso não se ajoelhar diante dos que pretendem sabotá-lo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.08.25

Pós-democracia: O fim de uma ordem mundial?

Hoje, parece que a democracia deixou de ser a força motriz do desenvolvimento político que foi durante o último meio século. Há sinais de que isso é evidente.

Cédula de votação primária presidencial, Santiago, Chile, 29 de junho de 2025.  (Crédito: Cristobal Venegas) 

A ordem mundial estabelecida ao final da Segunda Guerra Mundial concebia a democracia como a forma ideal de governo, baseada em três ideias fundamentais: eleição popular de autoridades por meio de eleições livres, competitivas, igualitárias e secretas; a separação de poderes; e a expansão dos direitos humanos no âmbito do Estado de Direito. Tudo isso, além disso, ocorreu em um contexto de crescente reconhecimento do pluralismo.

Esse panorama consolidou-se no contexto da "terceira onda" teorizada por Samuel Huntington, que abrange os processos democratizantes ocorridos nas duas décadas que separam os do sul da Europa e os do leste. O fracasso do comunismo, do militarismo desenvolvimentista e de vários modelos de regimes sultanistas era evidente, e quase todos os países latino-americanos se viram imersos nesse movimento. Restaram apenas casos desviantes, como Cuba , mas a maioria aparentemente seguiu o caminho da chamada consolidação democrática.

O sucesso dessa transformação no final do século passado traduziu-se em um novo impulso na ciência política e em uma agenda para a "qualidade da democracia", que consiste em mensurar seu comportamento de acordo com abordagens teóricas pioneiras e desenvolvidas por, entre outros, Guillermo O'Donnell e Leonardo Morlino. Isso levou a avanços significativos na análise da democracia com base na avaliação de seus componentes. A Freedom House, a The Economist Intelligence Unit, a Fundação Bertelsmann, a International IDEA e o Projeto V-DEM foram os agentes mais proeminentes na condução desses estudos.

A reviravolta global provocada pela pandemia exacerbou os sintomas de fadiga que vários países, em diferentes níveis do arcabouço democrático, vinham experimentando. A desconfiança nas instituições, o descaso pela democracia e a crise de representação política, evidentes em partidos fragmentados e voláteis, com uma identidade reduzida e turva, eram evidentes. Isso também foi articulado pela centralidade de líderes inexperientes, empurrados para a arena política por consultores de comunicação especializados. Além disso, na maioria dos países latino-americanos, os fracos resultados no combate à insegurança pública e à corrupção desacreditaram ainda mais a política.

Esse cenário foi completado por uma sociedade transformada pela revolução digital exponencial: o crescente individualismo, a articulação de diferentes identidades nas redes sociais emergentes (que romperam com as formas anteriores de interação social), novos mecanismos de informação e comunicação que alcançavam as pessoas de forma personalizada, imediata e viral, e o domínio da pós-verdade (com a presença de formas de manipulação da realidade). Tratou-se, em suma, da consolidação de uma "sociedade da fadiga", segundo Byung-Chul Han, que explorou o estado da "sociedade líquida", conforme teorizado por Zygmunt Bauman, para o qual ele havia defendido a sociedade de consumo.

Hoje, parece que a democracia deixou de ser a força motriz do desenvolvimento político que foi durante o último meio século. Nada sugere que o inegável consenso estabelecido se mantenha. Os sinais são claros

Além disso, o mundo é movido por conglomerados tecnológicos em constante crescimento, com escala financeira sem precedentes. Eles agem em conjunto com a alienação dos seres humanos, desenvolvendo novas formas de ação coletiva incompatíveis com a forma como a democracia, agora desarticulada, evoluiu ao longo de décadas, e abrindo caminho para um cenário pós-democrático incomum e incerto, onde a polarização emocional se mostra um instrumento eficaz.

Dentro da ambiguidade do termo, e em meio ao desmantelamento do multilateralismo como caminho para uma ordem mundial minimamente operacional, três fenômenos estão emergindo, aos quais agora se soma a disrupção provocada pela inteligência artificial (IA).

A primeira delas refere-se à capacidade autodestrutiva que sempre foi considerada inerente à democracia. Há atores internos cujo comportamento é desleal, ou mesmo "semileal", como denunciou Juan Linz. Um exemplo é Vladimir Putin, que já foi presidente graças ao voto popular, mas imediatamente começou a corroer o credo democrático, esmagando a oposição e tomando todas as alavancas do poder. O chavismo, Daniel Ortega e Nayib Bukele fizeram o mesmo , com resultados devastadores para seus países.

A segunda diz respeito ao caminho perigoso trilhado por Donald Trump e seus doze seguidores na Europa e na América Latina. Seu comportamento mina os direitos humanos ao bloquear políticas de inclusão, diversidade e igualdade, e ao criar bodes expiatórios para desabafar a ira de uma população seduzida por múltiplas formas de manipulação da realidade. A retórica nacionalista, bem como os ataques à mídia independente, a intelectuais e a grupos de oposição, minam qualquer estrutura de consideração e respeito ao pluralismo.

Em terceiro lugar, há o modelo chinês de inegável sucesso econômico e enorme transformação social, impulsionado pela urbanização e pela elevação dos padrões educacionais e de saúde. Assim, o autoritarismo chinês tornou-se um estímulo à manutenção de formas antidemocráticas em outros países.

Por sua vez, a IA está se mostrando uma ferramenta disruptiva que impacta drasticamente a desinformação e fomenta o conhecimento das preferências das pessoas, tornando a participação política convencional obsoleta. Não será surpresa, portanto, que a forma como os eleitores vão regularmente às urnas seja imediatamente substituída, assim como a forma como elegem seus representantes.

A pós-democracia, em suma, representa um espaço incerto que responde aos desafios da sociedade digital, ao mesmo tempo em que é consequência do cerco histórico sofrido pela democracia representativa e de suas falhas em enfrentar os problemas dos cidadãos e atender às suas demandas.

Manuel Alcántara Sáez, cientista politico, para o EL PAÍS. Publicado originalmente em 05.08.25

Brasil convoca chefe diplomático dos EUA em Brasília após ameaça da embaixada a aliados de Moraes

O Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, convocou nesta sexta-feira (8/8) o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Gabriel Escobar, para uma reunião na sede da pasta, em Brasília.

Na ausência de um embaixador no Brasil, Gabriel Escobar é o encarrego pela Embaixada dos EUA em Brasília (Crédito,Umeys Sulejman/Anadolu Agency via Getty Images)

A convocação aconteceu após a Embaixada dos Estados Unidos fazer uma postagem nas redes sociais chamando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de "principal arquiteto da censura e perseguição contra (Jair) Bolsonaro e seus apoiadores".

O texto ainda alerta que integrantes do Judiciário e de outras esferas "estão avisados para não apoiar nem facilitar" a conduta do magistrado, acrescentando que Washington "monitora a situação de perto".

A convocação de Escobar foi confirmada pela assessoria de imprensa da Embaixada à BBC News Brasil.

"O encarregado de Negócios da Embaixada e Consulados dos EUA, Gabriel Escobar, se reuniu hoje com representantes do Ministério das Relações Exteriores. A Embaixada não divulga conteúdo de reuniões privadas", diz a assessoria.

Escobar é o atual principal representante do governo dos EUA no Brasil, já que o presidente americano ainda não nomeou um embaixador para atuar em Brasília.

A convocação é uma medida séria em relações internacionais e uma demonstração de desagrado com a outra nação.

A publicação no perfil da Embaixada dos EUA é uma reprodução de uma postagem feita na quarta-feira (6/8) pelo subsecretário de Diplomacia Pública dos Estados Unidos, Darren Beattie, e acontece na mesma semana em que Moraes determinou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Suas flagrantes violações de direitos humanos resultaram em sanções pela Lei Magnitsky, determinadas pelo presidente Trump", diz a postagem.

Em julho, os EUA já haviam incluído o ministro na lista de sancionados pela Lei Magnitsky, bloqueando ativos e proibindo sua entrada no país por alegadas violações de direitos humanos.

Alguns dias antes da postagem da embaixada, o Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental, órgão que coordena a política externa norte-americana para as Américas, também havia se manifestado.

"O juiz Moraes, agora um violador de direitos humanos sancionado pelos EUA, continua a usar as instituições brasileiras para silenciar a oposição e ameaçar a democracia. Impor ainda mais restrições à capacidade de Jair Bolsonaro de se defender em público não é um serviço público. Deixem Bolsonaro falar!", disse o órgão em nota.

A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro

O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo julgado no STF por tentativa de golpe de Estado. Portanto, ele ainda não foi condenado nesse processo.

A prisão domiciliar determinada por Moraes ocorre porque o ex-presidente teria descumprido medidas estabelecidas anteriormente.

Em 17 de julho, Moraes impôs uma série de medidas cautelares ao ex-presidente, entre elas o uso de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e proibição de usar redes sociais, direta ou indiretamente.

Segundo Moraes, haveria indícios de que ele estaria praticando ao menos três crimes: coação no curso de processo legal; obstrução de investigação; e atentado à soberania.

Quatro dias depois, em 21 de julho, a Primeira Turma do STF referendou a decisão e reforçou que a proibição de uso das redes se estendia também à veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em perfis de terceiros.

Moraes esclareceu que entrevistas e discursos públicos usados como "material pré-fabricado" para alimentar redes sociais por meio de aliados também seriam considerados descumprimento da ordem judicial.

Na decisão da prisão assinada em 4 de agosto, o magistrado afirma que Bolsonaro violou as restrições definidas em 17 de julho, quando foi obrigado a usar tornozeleira eletrônica e ficou proibido de utilizar redes sociais, direta ou indiretamente.

De acordo com Moraes, o ex-presidente seguiu se comunicando com o público por meio de aliados e familiares.

O ministro destacou a divulgação de vídeos e áudios feitos por Bolsonaro, durante os atos realizados no domingo (4/8), publicados nas redes por seus filhos e apoiadores. Para Moraes, o conteúdo reforça uma tentativa de obstruir a Justiça e pressionar o STF.

No documento, Moraes especifica que a prisão deve ser cumprida integralmente no endereço residencial de Bolsonaro. Qualquer saída de casa deve ser previamente comunicada, solicitada e autorizada.

Na quinta-feira (7/8), Moraes autorizou Bolsonaro a receber visitas de aliados políticos.

Segundo a decisão, enquanto estiver em regime de prisão domiciliar, Bolsonaro deve obedecer às seguintes medidas:

Proibição de receber visitas, com exceção de seus advogados e pessoas previamente autorizadas pelo STF, entre elas a ex-primeira dama Michele Bolsonaro e a filha do casal;

Os visitantes autorizados estão proibidos de utilizar celular, tirar fotos ou gravar imagens;

Proibição de uso de celular, diretamente ou por intermédio de terceiros.

Além disso, outras medidas cautelares, que já estavam em vigor, foram mantidas e devem continuar a ser cumpridas no regime de prisão domiciliar, segundo o STF. São elas:

Proibição de manter contatos com embaixadores ou quaisquer autoridades estrangeiras;

Proibição de aproximação e acesso a embaixadas e consulados de países estrangeiros;

Proibição de manter contatos com os demais réus e investigados nas ações penais da trama golpista, inclusive por intermédio de terceiros. Todos os réus e investigados também foram proibidos de visitar Bolsonaro;

Proibição de uso de redes sociais, diretamente ou por intermédio de terceiros.

Para garantir o cumprimento da proibição do uso dos aparelhos celulares e a prisão domiciliar, o ministro Alexandre de Moraes determinou a busca e apreensão de quaisquer celulares que estivessem em posse de Jair Bolsonaro.

Leandro Prazeres, jornalista, de Brasília-DF para a BBC News Brasil, em 08.08.25

‘Me sinto pronto’, diz Eduardo Leite sobre plano de disputar o Planalto

Em entrevista ao PlatôBR, o governador do Rio Grande do Sul defendeu a necessidade de o país superar a polarização e o ódio na política. Ele também apontou como urgente a adoção de medidas para ajustar as contas públicas

Eduardo Leite, Governador do Rio Grande do Sul (Foto: Daniel Medeiros/PlatôBR)

Eduardo Leite se diz pronto para ser candidato ao Palácio do Planalto. E já tem o discurso equalizado: quer ser o caminho alternativo à polarização entre o petismo e o bolsonarismo e resgatar nos brasileiros um “sentimento de esperança” no lugar “da raiva e do rancor”.

Recém-filiado ao PSD, o governador gaúcho também tem na ponta da língua um argumento talhado para reivindicar prioridade em relação a seus concorrentes na centro-direita, em especial Tarcísio de Freitas (Republicanos), que nos bastidores é apontado como a opção predileta do comandante de seu novo partido, Gilberto Kassab: para além de lembrar que o governador de São Paulo pode buscar mais um mandato no Palácio dos Bandeirantes para “seguir semeando novos projetos” e consolidar seus feitos, ele promete que, se chegar ao Planalto, uma de suas prioridades será trabalhar pelo fim da reeleição. Sustenta que quer apenas um mandato – seria o suficiente, diz, para fazer o que pretende.

“O recado é o seguinte: me ajudem a fazer as reformas, me ajudem a colocar o país nos eixos e não se preocupem com a próxima eleição porque não serei candidato”, disse em entrevista exclusiva ao PlatôBR nesta quarta-feira, 6 (leia aqui).

Nas entrelinhas, é um discurso para assegurar aos demais pretendentes, em especial aqueles que correm na mesma raia, como Tarcísio, que não precisarão esperar tanto tempo na fila caso topem abrir mão da candidatura em 2026. Eduardo Leite, que diz ter como referências na política Fernando Henrique Cardoso e Barack Obama, ainda tem aparecido modestamente nas pesquisas de intenção de voto no primeiro turno (menos de cinco pontos percentuais), mas acredita que pode avançar. Em cenários de segundo turno, ele chega a empatar tecnicamente até com o presidente Lula.

Se repete incansavelmente o discurso de que o Brasil precisa superar a polarização, o governador também insiste em outra necessidade premente: ajustar as contas públicas, sob pena de a máquina parar. “Nós temos um déficit monumental nas contas públicas, projeções futuras de falta de dinheiro para pagar o custeio básico da máquina pública. Não é faltar dinheiro para investir. Vai faltar dinheiro para pagar os serviços para a população”, afirma, em tom grave.

Eis a entrevista:

O senhor se vê como candidato a presidente da República?

Eu participei das prévias do PSDB lá atrás, então acho que já demonstrei que tenho disposição, energia e me sinto pronto para exercer essa função. Agora, uma candidatura à Presidência não é uma decisão só nossa. Eu, sim, me sinto pronto, disposto e com energia, mas a gente tem que construir isso dentro do partido. Eu defendo que o Brasil possa superar esse momento de polarização e que a gente saia desse clima bélico de hoje, que tenta sempre tachar quem pensa diferente de alguém mal-intencionado. É preciso sair da discussão sobre as pessoas e passar a discutir os problemas. E se eu defendo esse movimento de despolarização, eu tenho responsabilidade com ele, inclusive para liderar esse movimento. Acho que, a partir do segundo semestre, com a retomada dos trabalhos legislativos, teremos um momento de tensionamento, especialmente em função de episódios relacionados ao ex-presidente (Jair) Bolsonaro e das questões das tarifas. Mas imagino que, mais perto do final do ano, a gente tenha um cenário mais claro do ponto de vista do tabuleiro eleitoral e, assim, possamos definir melhor as candidaturas. Mas, sim, eu me disponho. Me interessa e quero ajudar o país a sair dessa difícil situação em que está, inclusive me tornando candidato a presidente.

O presidente de seu partido, Gilberto Kassab, é secretário de Tarcísio de Freitas, do Republicanos, outro nome colocado como pré-candidato ao Planalto. No próprio PSD tem ainda governador do Paraná, Ratinho Júnior, que também é apontado como interessado na disputa. Como o senhor entende que Kassab vai lidar com isso?

O presidente Kassab tem sido muito habilidoso e competente na condução do partido, e também muito firme em posições relacionadas ao país. Acho que o que ele construiu no PSD foi fruto de uma articulação que reuniu nomes verdadeiramente interessados em oferecer alternativas para o Brasil. Ao me movimentar para o PSD, eu estou justamente dizendo isso: “Olha, não contem comigo para dividir”. Se eu quisesse simplesmente ser candidato a qualquer custo, de qualquer jeito, para atender a uma aspiração pessoal, eu ficaria onde estava e provavelmente teria candidatura garantida. Mas não é sobre atender à minha aspiração. O político naturalmente também tem a aspiração de ascender. Eu fui prefeito, fui governador, e ser presidente da República será uma honra. Mas, antes da minha aspiração como político, vem a minha aspiração como brasileiro, e como brasileiro eu não quero mais ver o país se engalfinhando em conflitos. O governador Ratinho é um bom governador, tem habilidade e faz um governo correto no Paraná, com bons resultados. O governador Tarcísio também tem talento para a gestão e entrega bons resultados em São Paulo, modernizando a máquina pública. Temos convergências e divergências, e uma delas é justamente o posicionamento em relação ao ex-presidente Bolsonaro. Essa é uma diferença que nós temos. Eu não apoiei Bolsonaro, não sou apoiador dele, assim como não sou apoiador de Lula. Isso me dá mais independência para ajudar o país a superar o quadro de polarização. Mas a definição vai se dar mais à frente. Nós vamos ter que discutir projeto. Não é só sobre ganhar a eleição. É sobre viabilizar um projeto de país. Que projeto é esse, quais são as prioridades? O país precisa modernizar a máquina pública, precisa fazer reformas. Nós temos um déficit monumental nas contas públicas, projeções futuras de falta de dinheiro para pagar o custeio básico da máquina pública. Não é faltar dinheiro para investir. Vai faltar dinheiro para pagar os serviços para a população. É isso o que o próprio governo reconhece em seus relatórios. Qual é a agenda para superar isso? A gente vai ter que promover uma união em torno de um projeto. E tendo uma união em torno de um projeto, a gente vai identificar quem melhor pode liderar esse projeto na hora certa.

O senhor fala muito em convergências e divergências com o governo Lula. Seu novo partido está na base do governo e, ao mesmo tempo, na oposição. Qual é a sua postura em relação a isso?

Eu me posiciono como oposição ao governo Lula. Oposição no sentido de divergência de ideias, não para inviabilizar o governo. Discordo da forma como o país é conduzido. As manifestações do presidente Lula relacionadas aos Estados Unidos, por exemplo, são, na minha visão, absolutamente equivocadas. Elas abrem um cenário de instabilidade e prejudicam relações com um parceiro tão importante e histórico como os Estados Unidos. Por isso, me coloco como oposição. Mas insisto: sou, antes de tudo, governador de um estado que faz parte de uma federação e que tem um presidente da República. O povo me escolheu, e o presidente Lula governa também para os gaúchos e brasileiros do meu estado. Nós temos coincidência de público, mesmo que sejamos oposição, e precisamos trabalhar juntos. Sou muito republicano nisso e minha tarefa não é buscar inviabilizar governos. O PSD, em 2022, não teve candidato à Presidência. Até fui convidado a migrar para o PSD naquela oportunidade, mas achei que não era oportuno às vésperas da eleição. Não tendo candidatura própria, grupos do partido escolheram um lado ou o outro. Agora, em 2026, acho que teremos a oportunidade de ter candidatura própria do PSD, algo que o presidente Kassab mira e busca. Se houver necessidade de composição em torno de um projeto de superação da polarização. Pode ser que não tenha, mas é muito provável que haja.

O senhor entende que o PSD, pelo tamanho que ganhou, merece a cabeça de chapa?

Eu entendo que sim, chegou a hora. Acho que houve uma articulação correta ao longo do tempo. Muitos do PSDB migraram para o PSD, como eu, por enxergar não apenas uma agenda correta para o país, mas uma forma de fazer política. Porque na política não é só o que fazer, é também como fazer. Numa democracia, a política é instrumento fundamental para arbitrar diferenças. Se você despreza a política, cria um ambiente de atritos, como temos visto, que inviabiliza políticas públicas. Então, o “o quê” e o “como” são igualmente importantes. E acho que o PSD reúne pessoas que têm apreço pela política bem feita, não a de concessão de benefícios, mas a que promove consensos mínimos críticos para o país avançar.

E, nessa equação, como resolver o fator Tarcísio de Freitas? Nos bastidores, há quem diga que o presidente do seu partido tem certo pendor pela candidatura de Tarcísio. Como resolver isso?

O governador de São Paulo sempre será um presidenciável, seja quem for. É possível que seja um nome, mas ele ainda está no primeiro mandato, no seu primeiro cargo eletivo. É razoável pensar que queira continuar. Eu sou governador reeleito e sei que boa parte do que colhemos agora foi plantado no primeiro governo. Ele terá a oportunidade, se reeleito, de colher o que plantou e seguir semeando novos projetos. Mas o contexto político pode desenhar outro caminho. E eu também ouço dos analistas que nada é garantido. O governador de São Paulo vai ser sempre um presidenciável. É um estado que tem quatro vezes a população do Rio Grande do Sul, grande força econômica e, naturalmente, concentra a cobertura dos veículos de comunicação. A cobertura jornalística sobre São Paulo é imensamente maior do que a dos outros estados. Nós, lá no Sul, ficamos gritando para mostrar: “Olha, botamos as contas em dia, reduzimos indicadores de criminalidade, retomamos capacidade de investimento”. Tem um monte de coisa boa que a gente fez, mas conseguimos entrar nas notícias nacionais apenas em notas menores. Já em São Paulo, qualquer coisa que se faça é mega, é grande, é gigante, e isso ocupa muito mais espaço. Então é natural que seja sempre um nome que desponte.

O senhor declarou que encarou com desânimo a prisão domiciliar do ex-presidente Bolsonaro. O senhor é contra a prisão?

O meu desânimo não é simplesmente por uma prisão ou não, é pelo contexto todo. O país elegeu cinco presidentes desde a redemocratização. Desses cinco presidentes eleitos, apenas um — Fernando Henrique (Cardoso) — não foi nem preso nem sofreu impeachment. Todos os outros ou sofreram impeachment ou foram presos, ou as duas coisas, como foi o caso do ex-presidente Collor. É muito triste isso. Não tem como ficarmos felizes, como brasileiros, vendo o país vivenciar algo assim. Também me preocupa o contexto da decisão do ministro Alexandre de Moraes. Vamos lá: até vi algumas pessoas que trouxeram minha declaração quando o presidente Lula foi preso, porque Lula foi preso num contexto de decisão de órgão colegiado. O processo passou pela primeira instância, segunda instância (TRF-4), depois por órgão colegiado no STF. A Justiça cumpriu toda uma jornada para chegar àquela decisão. Não é o que aconteceu agora. A jornada do processo do presidente Bolsonaro ainda está acontecendo. Depois do inquérito da Polícia Federal, da denúncia da Procuradoria-Geral da República e da instrução com depoimentos e provas, haverá o voto do relator (ministro Alexandre de Moraes) e aí vai para um órgão colegiado decidir sobre a condenação ou não. Pelo que observamos, e não tive acesso às milhares de páginas do processo, parece que há indícios de uma trama para ruptura institucional ou golpe. Se houver esse conjunto probatório, vai ter o voto, possivelmente pela condenação, e será apreciado por um órgão colegiado formado por ministros indicados por diferentes presidentes e chancelados pelo Congresso Nacional. Mas, nesta prisão especificamente, estamos falando de decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, bastante criticada por juristas e especialistas, porque é de difícil cumprimento. É complexo proibir que um ex-presidente, figura política relevante, use redes sociais próprias ou de terceiros. Até então, com tornozeleira, ele podia sair. Se alguém o gravar num mercado, por exemplo, e ele disser algo que seja interpretado como uso de rede social de terceiro… É uma decisão ruim, equivocada, que criou a condição para a prisão domiciliar. Quero deixar claro: não é uma crítica sobre Bolsonaro ser preso ou não no curso normal do processo. Se for condenado, que cumpra a pena. Mas prisão domiciliar por causa de manifestação em rede social, dentro desse contexto específico, é algo complexo e, na minha visão, um equívoco.

O senhor considera exagerada a decisão?

Como disse, a prisão domiciliar é sustentada por decisão anterior que proibia Bolsonaro de se manifestar em redes próprias ou de terceiros. Essa decisão é que considero equivocada, porque criou algo de difícil cumprimento. É quase impossível impedir que uma figura política tão relevante, com movimento político em torno de si, não se manifeste de qualquer forma. No momento em que botar o pé na rua, alguém vai filmar e perguntar algo. Ele vai ignorar? É difícil. Por isso, acho que aquela decisão foi equivocada e gerou, naturalmente, uma medida cautelar também equivocada. Mas insisto: isso não significa dizer que Bolsonaro não deva ser preso se, no processo regular, ficar provada uma trama de ruptura institucional. Nesse caso, que seja julgado por órgão colegiado, como entendo que deveria ser no pleno do STF (embora a estrutura interna direcione para uma das turmas). O importante é que haja decisão colegiada. Todos podemos falhar… Jornalistas, políticos, juízes. A forma de reduzir riscos é justamente ter um processo com vários elos: investigação pela PF, denúncia do MPF e decisão colegiada na Suprema Corte.

Falta moderação e comedimento na cena política brasileira hoje? Isso também vale para o Judiciário?

Acho que a política tem sido exercida de uma forma que nosso sistema eleitoral acaba favorecendo. Não existe sistema infalível, mas o nosso modelo proporcional em lista aberta estimula posturas radicais. Um candidato a deputado, por exemplo, pode ser odiado por 95% da população e ainda assim se eleger, se conquistar 1% ou 2% de votos. Isso é suficiente. Por isso defendo o voto distrital. Ele estimula a moderação, porque o candidato precisa agradar a uma média do distrito, não apenas a um segmento. Também melhora o accountability, ou seja, a possibilidade de o eleitor saber quem representa seu distrito e cobrar diretamente. No sistema atual, o voto é disperso e muitas vezes acaba elegendo alguém em quem o eleitor não votou. Acho melhor o distrital misto, como na Alemanha, que mantém vagas por lista fechada para garantir representação de segmentos — mulheres, etnias, orientações sexuais, crenças religiosas. Isso tempera a composição do Parlamento. Hoje vemos desprezo pela política e um jogo individualista. Os partidos perderam força, e, mesmo com a cláusula de barreira, a lógica de emendas parlamentares e financiamento estimula atuações individuais. Com a política fragilizada, o Judiciário é mais acionado, pois o Parlamento emperra a discussão de temas críticos. Como a Constituição é abrangente, tudo acaba indo parar no STF.

Sua gestão no Rio Grande do Sul foi marcada por reformas e também pela enchente de 2024. Como isso reforça seu nome para o cenário nacional?

Acho que minha trajetória me proporcionou ser testado em momentos muito difíceis. Comecei o mandato com uma crise fiscal violenta: o estado não conseguia pagar salários no fim do mês, atrasava fornecedores, não tinha capacidade de investimento e os serviços públicos se deterioravam. Não conseguíamos repor servidores em áreas críticas, como segurança pública e inteligência do governo. Somos o único estado em que a contribuição de servidores civis e militares é igual. Os outros estados seguiram o modelo nacional, com contribuições diferentes para servidores civis e militares. Nós fizemos uma reforma administrativa profunda, que limitou e restringiu o benefício de vantagens temporais para servidores de todos os poderes, incluindo a vedação a esse tipo de vantagem. Privatizamos as companhias estaduais de saneamento, de energia e de gás. Foi um programa muito forte e robusto de reforma da máquina pública. O resultado é visto hoje nos indicadores. Na segurança pública, por exemplo, tivemos redução de mais de 50% nos homicídios, quase 80% nos roubos a pedestres e quase 90% dos roubos de veículos. Somos o estado com menos roubos de celulares no Brasil, segundo dados oficiais. O estado saiu de 2% para 10% de capacidade de investimento no ano passado. É verdade que, nesse período, contamos com o acordo com a União que suspendeu o pagamento da dívida para viabilizar investimentos. Mas no ano anterior já tínhamos alcançado 6% ou 7% de capacidade de investimento. Triplicamos antes mesmo desse fôlego extra. Vale lembrar que, quando assumi, o estado também não estava pagando a dívida, mas, mesmo assim, não conseguia investir. Hoje, deixamos de pagar a dívida para direcionar recursos a um fundo de reconstrução, e alcançamos 10% de capacidade de investimento. Essa experiência de lidar com crises — estiagens, pandemia, enchente em 2024 — nos dá muito aprendizado para enfrentar situações difíceis. E está claro que o Brasil terá situações difíceis pela frente, exigindo coordenação política e priorização de uma agenda de transformação do gasto público. 

Qual é a sua maior referência na política?

Nacionalmente, eu diria que é o presidente Fernando Henrique, alguém que, com serenidade, conduziu o país mesmo sofrendo muitos ataques. É importante lembrar: o PT, que hoje fala tanto sobre o golpe do impeachment da Dilma e sobre democracia, nos anos 1990 tentava incendiar o cenário político contra Fernando Henrique. Era campanha de “Fora FHC” para todos os lados. Esse cenário belicoso vem de longe, com uma forma de fazer política contestadora e raivosa. Em alguma medida, o que o bolsonarismo fez contra o PT tem conexão com o que o PT fez com outros. Mas não acho que devemos responder da mesma forma. Internacionalmente, das figuras políticas mais recentes, cito Barack Obama. Assisto a vídeos da época em que ele era presidente e dá saudade de ver a liderança americana exercida com serenidade, respeito e convencimento por meio de uma agenda de avanços civilizatórios, e não por imposição do medo.

O senhor fala em necessidade de ajuste das contas públicas, mas sabemos que isso não dá voto. Se sua candidatura se confirmar, que plataforma adotaria? E, na hipótese de chegar ao Planalto, quais seriam suas primeiras medidas?

A candidatura é, antes de tudo, o momento de validar uma agenda para o país. A eleição deve aproveitar esse momento para angariar apoio a uma visão macro de governo, mesmo sem entrar em todos os detalhes de um plano de gestão. O que realmente impulsiona uma campanha é despertar um sentimento. A chave é captar o sentimento das pessoas. Na polarização, os polos acionam medo, raiva, ódio, sentimentos que mobilizam, mas não constroem. E isso tem sido exitoso eleitoralmente: um lado tentando destruir o PT, o outro tentando destruir Bolsonaro. Mas a partir disso não se construiu algo novo para o país. Se for para despertar um sentimento, que seja de esperança. Que as pessoas votem com confiança no futuro do Brasil, e não com rancor. Em 2022, muita gente votou mais contra alguém do que a favor de um projeto. Quero que o eleitor leve seus melhores sentimentos para a urna. Se for candidato, quero dizer a quem votou no Bolsonaro que entendo sua dor: indignação com corrupção, incômodo com a atuação do Judiciário em certos assuntos. Mas também não posso desprezar a dor de quem vota no PT por valorizar diversidade, políticas sociais e atenção aos mais vulneráveis. Não são coisas incompatíveis. É possível combater a corrupção, modernizar o país, abrir a economia, equilibrar as contas e, ao mesmo tempo, ser socialmente sensível, olhar as camadas mais vulneráveis e respeitar a diversidade em todas as dimensões. Não apenas a da orientação sexual, mas a diversidade religiosa, ideológica, de gênero, de tantas formas de ser do nosso povo, e conciliar as coisas, e não ficar dividindo o país.

E quais seriam suas primeiras medidas?

Eu sei que a pauta fiscal não seduz eleitoralmente, mas precisa estar entre as primeiras medidas. Talvez a primeira, se não tiver sido aprovada até lá, seja justamente encaminhar o fim da reeleição. O país está tão polarizado que, se elegermos um “terceiro caminho”, os polos vão querer derrubá-lo para voltar ao poder, então têm que buscar atrapalhar o presidente. Então, se tiver essa oportunidade, a primeira coisa que vou encaminhar é acabar efetivamente com a reeleição. Porque é sobre resolver os problemas do país e não sobre viabilizar outro mandato.

Isso é um sinal para o Tarcísio, não? O senhor há pouco disse que Tarcísio tem mais quatro anos, e poderia portanto seguir mais um pouco como governador…

Não só para o Tarcísio, mas para qualquer outro. O recado é o seguinte: me ajudem a fazer as reformas, me ajudem a colocar o país nos eixos e não se preocupem com a próxima eleição porque não serei candidato. Eu quero é poder endereçar as soluções de curto prazo para o país e superar essa polarização. Então, essa é uma das primeira medidas, além das reformas que vão ter que ser feitas, na Previdência novamente, a (reforma) administrativa, que ajudem o país a recuperar o equilíbrio das contas.

Em 2022, o senhor sofreu ataques homofóbicos na campanha e, na posse, teve o gesto de levar seu namorado à cerimônia. O senhor sente algum tipo de preconceito?

Claro que há manifestações preconceituosas o tempo todo. Já orientei minha equipe jurídica: não passa nada. Qualquer ataque homofóbico em rede social deve ser responsabilizado. Não defendo censura, mas sim responsabilização. Há os ataques mais frontais e há os que não são verbalizados, mas estão no ambiente. Existem muitos preconceitos no país: contra mulheres, por religião, por raça. Não vou dizer que este (preconceito) que sinto e percebo em relação à minha orientação sexual seja maior ou mais grave que esses outros, porque não considero que seja. Eu tenho uma série de outros privilégios, como costumam chamar, de ser um homem branco, de família de classe média. Isso não me permite equiparar o preconceito que eu sofro com o de outros, inclusive homossexuais, que por pertencerem a outras minorias são ainda mais segregados e vítimas de preconceito, às vezes até de agressão. Acho que é sobre nós empurrarmos a sociedade na direção correta. Rupturas são sempre traumáticas, e traumas nunca são bons. Quando decidi falar publicamente sobre minha orientação sexual e me recusei a criar um personagem para convencer que era algo que não era, e fiz questão de levar o Thales, estava tentando ajudar, dar alguma colaboração, como tantas outras pessoas dão tanta ou mais colaboração, por respeito à diversidade. É um processo de evolução de todos nós. Quando eu falei que eu era homossexual, perguntaram para o Bolsonaro sobre isso e ele disse: “Tudo bem, mas eu não quero que imponha sua forma de ser aos outros”. Eu não estou dizendo para ninguém ser gay. Estou dizendo que eu sou. E que respeitem, que respeitem a mim e tantas outras pessoas, sejam elas o que elas quiserem ser. Se a gente tentar destruir as pessoas pelo que elas são, não é do ponto do vista civilizatório, humano, o correto e a nossa energia vai para algo que não constrói absolumente nada. O que na vida dos brasileiros está melhorando por causa desse enfrentamento?

O governo Lula está errando na resposta ao tarifaço imposto por Donald Trump?

É muito claro que a responsabilidade desse tarifaço vem dos Bolsonaro. Não tem como dizer que não. Eles mesmo avocam essa responsabilidade. Mas não dá pra negar que o presidente Lula, com as suas declarações, sempre, recorrentemente, com o sentimento antiamericano e criticando e atacando o dólar, cria um ambiente desfavorável para essa relação. Eu espero que isso traga algum aprendizado ao presidente Lula, no sentido de ser mais pragmático. O Canadá foi fortemente agredido na sua soberania. Quer agressão maior à soberania do que dizer para um país que ele deve se tornar o 51º estado americano? Isso é, de fato, enfrentar a soberania de um país, e o Canadá reagiu com firmeza, sem ser grosseiro, sem atacar de volta, mas firmemente defendendo a sua soberania, com pragmatismo, bom senso e equilíbrio. Aqui, ser firme na defesa da soberania nacional não é atacar de volta os Estados Unidos. Temos uma relação histórica com os americanos e isso deve ser preservado.

O senhor vê solução?

A situação está muito nebulosa, infelizmente, porque depende muito de gestos de muitas pessoas. Mas eu espero que sim, porque o presidente Trump já disse que está disposto a falar com o presidente Lula quando ele quiser. Então, não é hora de o presidente Lula dizer que não quer conversar. Vai lá e vai conversar. Se fosse eu, já tinha ligado há muito tempo. Aliás, se fosse eu já tinha buscado o presidente americano logo depois que ele foi eleito, que tomou posse, para termos essas relações bem estabelecidas. E, se fosse eu, não faria discursos contra os americanos, como o presidente Lula faz. Mas se aconteceu um episódio como esse, imediatamente tem que procurar. Não é hora de vaidade, (de dizer) “olha, sou muito importante aqui, então não vou ligar, ele que me procure”… E o outro, que se acha mais importante, então não vai procurar também, e não vai conversar. O que que é isso? Tem que ser muito sereno. Claro que tem que ter cautela, tem que ter cuidados, é claro que tem riscos, mas tem que ter senso de urgência. Tem empresas brasileiras que podem sucumbir completamente. A gente precisa superar esse quadro imediatamente.

Entrevista de Eduardo Leite, Governador do Rio Grande do Sul, a Rafaela Rosa e Rodrigo Rangel para o PLATÔBR. Publicada originalmente em 07.08.25.