quinta-feira, 29 de maio de 2025

"Tenho fé nos Estados Unidos, mas precisamos ter cuidado. A democracia é um ser vivo e pode morrer."

Glória Estefan, A cantora cubano-americana apresenta "Raíces", seu primeiro álbum em espanhol em 18 anos. Em entrevista ao EL PAÍS, a artista fala sobre seu sucesso, Cuba e Miami, sua família e Donald Trump.

Gloria Estefan durante o ensaio fotográfico para o álbum 'Raíces'.

Muito antes da música latina ser ouvida o tempo todo em todos os cantos do planeta, um casal de exilados cubanos deixou sua marca em 1985 com a canção Conga . Um single com o qual Emilio e Gloria Estefan bateram na porta da Sony até sete vezes, sem sorte. Mas a sorte estava do seu lado. Conga foi o primeiro sucesso mundial de Gloria (Havana, 67 anos), seguido por centenas de outros. A artista, que já vendeu mais de cem milhões de discos, apresenta nesta quinta-feira Raíces , seu primeiro álbum em espanhol em 18 anos.

Sete anos depois da Conga , o próprio Emilio era presidente da Sony Latino e o casal começou a criar um império com sede em Miami, de onde moldaram e ajudaram a dar à luz dezenas de artistas latinos, como Shakira e Ricky Martin. Miami é o lugar que eles chamam de lar, assim como milhares de exilados cubanos. Ela chegou à Flórida quando tinha dois anos e nunca mais saiu. Agora, ele acompanha a tendência anti-imigração de Donald Trump com "preocupação e medo ". É por isso que ele acredita que é mais importante do que nunca celebrar as "raízes latinas".

Gloria recebe EL PAÍS nos estúdios da Sony em Nova York dias antes de seu último lançamento. Ela está acompanhada de Emilio, que escreveu várias letras, e está tão feliz como se fosse a primeira vez que ele lançasse um álbum. Enquanto ouvem as músicas no estúdio, eles batem os pés no ritmo e às vezes se olham com certa timidez. “Sim, estamos felizes”, ela dirá mais tarde. Nada menos.


Capa do álbum Raíces

Quais são suas raízes?

- Minhas raízes são asturianas. Meu avô tinha uma família grande em Pola de Siero e foi para Cuba. Os avós da minha avó também eram espanhóis, como a maioria dos cubanos. Fiquei em Cuba apenas dois anos quando nasci, mas é uma raiz muito forte. Minha mãe me incutiu isso, acho que ela engoliu José Martí . Quando chegamos aos Estados Unidos, a ideia era voltar, e era muito importante para ela manter essas raízes cubanas na música, na comida, no seu jeito de ser. E quando ele viu que não voltaríamos, ainda mais. Então na minha casa só se falava espanhol. Cresci ouvindo música cubana: Cachao, Celia Cruz, Olga Guillot, La Lupe... E também pessoas como Nat King Cole, que ia muito a Cuba e minha mãe era fã. Andy Williams, Los Panchos Trio, Javier Solís. Tudo isso são minhas raízes. Também me sinto um pouco libanesa porque convivi com Emilio por mais tempo do que sem ele e pude viver muito perto de seus pais. Então me sinto uma cidadã do mundo, estou confortável onde quer que eu vá.

Você vai pisar em Cuba novamente?

Pisei em Cuba em 1979, com Jimmy Carter. Queríamos levar o irmão do Emilio com seus dois filhos. Foi muito difícil para mim, minha mãe não queria que eu fosse. Ainda não éramos conhecidos, mas era difícil; Isso me deu uma espécie de fobia. Senti o que Emilio chama de castrofobia , em vez de claustrofobia. Comecei a sonhar que não conseguíamos sair. Gostaria de cantar em uma Cuba livre um dia, embora o sonho esteja cada vez mais distante.

O que Miami significa para você?

Miami é minha casa. Morei no exterior por alguns anos quando meu pai estava no exército americano. Os anos mais felizes da minha infância foram na Carolina do Sul, porque minha irmã mais nova, meu pai e minha mãe estavam juntos, até que ele foi para o Vietnã e voltamos para Miami com minha avó. Miami é como estar na Cuba de antigamente e na América Latina ao mesmo tempo que está nos Estados Unidos.

Já faz um tempo que você não canta em espanhol. O que o espanhol oferece que o inglês não oferece?

- É a linguagem do meu coração. Em inglês, você tem que ser mais cuidadoso porque em canções de amor, você é acusado de ser muito meloso ou de ser muito expressivo com emoções. O espanhol me dá liberdade.

Você alcançou sucesso, prêmios e dinheiro. Ele formou uma família que parece unida. Você tem uma vida perfeita?

- Não poderia pedir mais! Somos uma família normal e há coisas em toda família, mas não posso pedir mais porque vivi mais do que qualquer sonho que eu poderia ter. E sim, estamos felizes. Somos uma família que se ama e gosta uns dos outros, o que é a parte difícil.

Emilio disse recentemente ao EL PAÍS que o segredo para estar casado há 47 anos era sempre dizer sim.

- Isso é uma piada. Mas pensando bem... ele nunca disse não a nada que eu propus a ele. Temos muito respeito um pelo outro. Se é algo que tenho que encarar de frente, essa é uma decisão minha. Da mesma forma, se for algo que ele está fazendo com outro artista, a decisão é dele. Compartilhamos qualquer opinião, mas sabemos até onde o gerente irá antes de arruinar a situação do marido. Aprendemos isso ao longo dos anos.

O que significa ser latina nos Estados Unidos?

- É difícil agora e nunca foi difícil para mim. Agora estou um pouco assustado ao ver o que está acontecendo. Tenho medo pelos outros, não por mim. E eu sei pela experiência dos meus pais que você pode pensar que tudo está perfeito e, de repente, de um dia para o outro, tudo pode desmoronar.


Glória Estefan. (Crédito: Gato Rivero)

Fale sobre a experiência cubana.

- Sim, um dia eles tinham tudo e no dia seguinte...

Este é um momento chave para os Estados Unidos?

- Os americanos que vivem aqui há muito tempo não percebem o quão frágil a liberdade é. Porque isso sempre existiu, obviamente dependendo de quem você é, porque a comunidade afro-americana neste país passou e continua passando por muita coisa. E quanto aos latinos, estou acostumado com o fato de que em toda eleição, a última pessoa a entrar no país é quem paga o preço. Mas as coisas que mantiveram este país como ele é sempre estiveram lá, e agora as estamos vendo ruir, como quando alguém ignora uma ordem de um juiz. Então estou rezando muito e não assistindo muita TV.

Isso te deprime?

- Isso me preocupa e me deixa um pouco ansioso. Não gosto de como isso me faz sentir. Obviamente, fechar os olhos não é a coisa certa a fazer, e se chegasse a hora de dizer algo, eu diria.

Você nunca esteve politicamente situada nos Estados Unidos.

- Emilio e eu não somos afiliados . Não somos democratas nem republicanos. Acho que há dois partidos e todos estão no meio. Extremos são sempre o que mais ouvimos, mas a maioria das pessoas não é assim. Tenho fé neste país, tenho fé no sistema judiciário, mas temos que ter cuidado. A democracia é um ser vivo que respira e, se você não lhe der oxigênio, ela pode morrer.

Você diria algo a Trump?

- Se eu tiver algo a dizer a ele, eu direi, mas ele não me ouvirá.

O que seria?

- Meu Deus, nem quero pensar nisso!

Dizem que os Estefans criaram um império. Você é a senhora do império?

- Nenhum dos dois. Emilio ainda se sente um emigrante; toda vez que vamos a um hotel, ele leva seus chinelos. Ele não percebe o que fez, nem pensa sobre isso.

A Sony rejeitou a música Conga sete vezes e sete anos depois Emilio era presidente da Sony Latino. Como você faz isso?

- Bem, nós os convencemos. Tivemos muito sucesso. Emilio começou a fazer discos, levou Ricky Martin ao Grammy e houve uma explosão. Tommy Mottola é um homem muito inteligente e sabia que havia pessoas vindo para Emilio para fazer produções. Shakira chegou com seu primeiro álbum e eu disse a ela: 'Shaki, você pode atravessar o oceano.' E para mostrar a ele como isso poderia funcionar em inglês, escrevi Eyes Like That, You e Inevitable . Shakira é superinteligente e criativa, e ela imediatamente se recompôs, começou a aprender e a compor em inglês.

Shakira, Karol G, Bad Bunny... são eles os pais do boom latino?

- Tenho muito orgulho deles. Obviamente eles têm um estilo de música diferente, mas isso não tem nada a ver: eles são latinos. Quando vi Bad Bunny no Saturday Night Live fiquei muito feliz porque isso não teria acontecido antes.

Você gosta de reggaeton?

- Há algumas que são, há outras que são muito gráficas. Para mim, a música inspira e faz você se sentir feliz, mas existe a liberdade de expressão do artista. Eu venho de um mundo que vivia em duplo sentido, em Cuba tudo era duplo sentido. Falo muito claramente, mas também é preciso haver romance na vida. Tem um reggaeton que eu adoro e que é divertido, mas tem um que é um pouco forte para mim.

Inés Santaeulalia, a autora e editora desta entrevista, é chefe do escritório do EL PAÍS nos EUA, tendo sido anteriormente responsável pela Colômbia, Venezuela e região andina. Ele começou sua carreira no jornal em 2011, no México, onde fez parte da equipe que fundou o EL PAÍS América. Em Madri, trabalhou nas seções Nacional e Internacional e como artista de capa do site. Texto publicada no EL PAÍS, em 28.05.25 (atualizado em 29.05.25)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Lula escolhe desembargador Carlos Brandão, do TRF-1, para vaga no STJ

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) escolheu nesta terça-feira (27/5) o desembargador Carlos Brandão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para ser ministro do Superior Tribunal de Justiça

A escolha será publicada no Diário Oficial da União desta quarta-feira (28/5), mas Brandão terá de se submeter a sabatina no Senado antes de ser nomeado. Se for aprovado pelos senadores, ele vai ocupar a cadeira deixada vaga pela aposentadoria da ministra Assusete Magalhães, em janeiro de 2024.

Brandão se credenciou ao cargo ao integrar uma lista tríplice com membros da Justiça Federal. Ele concorreu com as desembargadoras Daniele Maranhão e Marisa Santos, também do TRF-1.

No STJ, o magistrado pode fazer parte de alguma das turmas criminais — as vagas estão na 5ª e 6ª Turmas, que se dedicam ao tema. Se for aprovado pelo Senado, ele terá o direito de escolha. E, se optar pela 5ª Turma, assumirá a relatoria dos caso da “lava jato” de Curitiba.

Há ainda outra vaga aberta na corte, para a qual Lula não fez sua escolha. Ela decorre da aposentadoria da ministra Laurita Vaz e será ocupada por um membro do Ministério Público.

Os candidatos são: Sammy Barbosa, do Ministério Público do Acre; Marluce Caldas, do MP de Alagoas; e Carlos Frederico, do Ministério Público Federal.

Demora na escolha

Brandão foi escolhido mais de sete meses depois da formação da lista tríplice pelo Pleno do STJ. A demora se deveu a uma série de intercorrências políticas, enquanto os candidatos batalhavam nos bastidores por apoio de autoridades.

O desembargador não é um estranho na corrida por vagas no STJ — em 2022, bateu na trave e quase entrou na lista tríplice. Desta vez, apareceu com força desde o princípio e foi o primeiro escolhido pelo Plenário do STJ.

O fato de Brandão concorrer com duas mulheres foi uma questão relevante no processo de escolha de Lula, que vinha sendo criticado pela escolha recente de homens para vagas no Judiciário e no governo.

Embora a escolha de Brandão dê mais munição para os críticos do presidente, na prática ela não reduz o número de mulheres no STJ porque a ministra Daniela Teixeira, escolhida em 2023, substituiu um homem, o ministro Felix Fischer.

Quem é Carlos Brandão

Natural de Teresina, Carlos Brandão se formou em Engenharia Elétrica pela UFMG (1986) antes de se tornar bacharel em Direito pela UPFI, em 1993. Fez especialização na Universidade Zaragoza (2015), na Espanha, e é doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB (2019).

Ele foi advogado da União, promotor de Justiça no Piauí (1996) e ingressou na magistratura federal em 1997. Em 2015, foi empossado desembargador do TRF-1, no qual presidiu a Comissão de Jurisprudência e de Gestão de Precedentes e coordenou os Juizados Especiais Federais.

Publicado originalmente pelo Consultor Juridico, em 27 de maio de 2025, às 20h21

Temos que confrontar os Estados Unidos de Trump

A Europa deve responder decisivamente à guerra comercial, buscar soberania estratégica em defesa e alta tecnologia e estender a mão a países com ideias semelhantes e ao sul global.

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante uma visita a uma base americana em Doha, Catar, na quinta-feira. (Brian Snyder - REUTERS)

Em 2 de maio, o Escritório Federal Alemão para a Proteção da Constituição determinou que a Alternativa para a Alemanha (AfD) atende aos requisitos para classificação como um partido de extrema direita . Em resposta, Marco Rubio (Secretário de Estado do presidente dos EUA, Donald Trump) defendeu a AfD e denunciou a decisão como um ato de "tirania secreta".

Assim como o discurso do vice-presidente dos EUA, JD Vance, em fevereiro, na Conferência de Segurança de Munique e o apoio veemente e repetido de Elon Musk à extrema direita europeia, esses ataques confirmam que os Estados Unidos não são mais um aliado da Europa, mas se tornaram seu adversário.

Trump não apenas sinalizou sua disposição de deixar a Ucrânia à mercê da Rússia, mas também está buscando abertamente destruir o modelo social, ecológico, econômico e democrático da Europa.

O objetivo de Trump é criar uma ordem mundial autoritária e antiliberal. Ele quer desmantelar o estado democrático do seu país; forjar alianças transacionais com os principais regimes iliberais do mundo e criar uma fortaleza americana inexpugnável ao estabelecer a soberania dos EUA sobre o Canadá, a Groenlândia e o Canal do Panamá. E para isso, ele não descarta o uso da força.

A queda da Ucrânia na órbita da Rússia não é problema para ele, porque ele acolhe o retorno a um mundo de grandes potências com "esferas de interesse". Todos esses objetivos representam desafios geopolíticos, econômicos e de segurança para a Europa.

Alguns europeus se apegam à esperança de que essa ruptura nas relações transatlânticas seja temporária e que as eleições legislativas de 2026 ou as eleições presidenciais de 2028 resolverão a situação. Mas seria muito arriscado basear a estratégia europeia nessa ideia.

Qualquer timidez na resposta da Europa à agressão de Trump só o encorajará. Assim como o presidente russo Vladimir Putin, Trump acredita apenas na luta pelo poder e na lei do mais forte.

Além disso, a capacidade de Trump de inclinar permanentemente os Estados Unidos em direção à autocracia (o oposto dos valores europeus) é maior do que muitos pensavam. Na verdade, estamos testemunhando uma rápida putinização da política americana.

O antieuropeísmo do governo Trump não surge do nada. Os Estados Unidos há muito tempo têm os olhos postos na Ásia e vêm tentando se distanciar da Europa. Isso foi demonstrado pelas decisões do presidente Barack Obama de não resistir firmemente à invasão da Crimeia pela Rússia em 2014 e de não impor a "linha vermelha" que ele mesmo havia traçado quando o presidente sírio Bashar al-Assad usou gás venenoso contra os cidadãos de seu país .

Embora o apoio dos EUA à Ucrânia durante a presidência de Joe Biden tenha interrompido essa tendência, foi insuficiente comparado ao que a situação exigia. E estava claro que a desconexão da Europa continuaria depois dele. Muito antes da reeleição de Trump em novembro do ano passado, eu já havia chegado à conclusão de que Biden seria, com toda a probabilidade, o último presidente americano verdadeiramente atlantista. Para muitos americanos, a OTAN é cada vez mais vista como um resquício de tempos passados.

O que a Europa pode fazer? Primeiro, precisamos responder decisivamente à guerra comercial de Trump e não ceder à sua extorsão sobre nossa regulamentação de empresas de megatecnologia. Temos, de fato, uma dependência perigosa dos Estados Unidos quando se trata de tecnologia digital. Isso precisa mudar: precisamos tentar reduzir os riscos, como fazemos com a China. Mas os Estados Unidos também dependem da Europa. A União Europeia ainda é responsável por um quinto do consumo global e está se tornando cada vez mais importante para empresas americanas que enfrentam a perda de acesso ao mercado chinês.

Em segundo lugar, a Europa deve buscar incansavelmente a soberania estratégica nas áreas de defesa e alta tecnologia. Há muitos relatórios sobre o que precisa ser feito. Os investimentos necessários exigirão uma quantidade significativa de recursos e, consequentemente, novas emissões de dívida pan-europeia. (Ao contrário do fundo NextGenerationEU, o pagamento da dívida deve ser garantido com novos recursos de toda a UE.)

Terceiro, precisamos nos aproximar de outros países com ideias semelhantes que sofreram com a agressão de Trump: Japão, Coreia do Sul, Canadá e Austrália. As vitórias de Mark Carney e Anthony Albanese no Canadá e na Austrália , respectivamente, demonstram que o Ocidente não se renderá ao novo iliberalismo. Precisamos criar um G-6 (um G-7 sem os Estados Unidos) e construir uma arquitetura de defesa totalmente europeia que inclua países como o Reino Unido e a Noruega.

Quarto, precisamos nos aproximar do Sul Global para aliviar a pressão de Trump e Putin e preservar o multilateralismo. Mas isso exigirá mudanças significativas. Teremos que nos afastar das políticas migratórias baseadas na ideia de uma Europa fortificada e da permissividade que demonstramos em relação ao governo de extrema direita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Ao tolerar o intolerável em Gaza, perdemos grande parte da nossa autoridade moral.

É realista declarar a independência da Europa dos Estados Unidos? Após oito décadas de estreita aliança, é compreensível que os europeus tenham dificuldade em se acostumar com um presidente americano que age como um ditador russo. As mudanças necessárias, sem dúvida, encontrarão resistência de alguns países da UE que estão politicamente alinhados com o trumpismo.

Também será difícil para a Comissão Europeia, que nos últimos anos tem demonstrado uma tendência sistemática (e até certo ponto negligente) de se alinhar aos Estados Unidos em todas as questões. Felizmente, as declarações recentes do novo chanceler alemão, Friedrich Merz , sugerem que um dos países mais tradicionalmente atlantistas da Europa entende o novo desafio que enfrentamos.

O Partido Popular Europeu e suas forças nacionais constituintes também devem parar de tentar obter favores de populistas de extrema direita que estão totalmente alinhados com Trump e Putin. Os partidos europeus de centro-direita precisam retornar às alianças tradicionais com os sociais-democratas, os liberais e os verdes para formar uma frente unida contra Trump.

Tornar a Europa independente dos Estados Unidos não será fácil. Mas se não agirmos agora e de forma decisiva, um futuro terrível pairará sobre nosso modelo social e democrático.

Josep Borrell, o autor deste rtigo, foi Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Vice-Presidente da Comissão Europeia, Presidente do Parlamento Europeu e Ministro dos Negócios Estrangeiros da Espanha. Presidente da Cidob. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 15.05.25.

Como funcionava a rede de espiões russos que operava a partir do Brasil

A utilização do Brasil como uma espécie de "berçário" de espiões russos voltou à tona na semana passada após a publicação de uma reportagem do jornal norte-americano The New York Times.

Da esquerda para a direita: Sergey Cherkasov, Artem Shmryev e Mikahil Mikushin. Os três, segundo investigações, eram espiões russos que usaram documentos brasileiros como parte de seus disfarces. (Crédito:Montagem/Redes Sociais).

Segundo o jornal, uma investigação liderada pela Polícia Federal brasileira identificou pelo menos nove supostos espiões russos que usaram documentos brasileiros como parte dos seus disfarces. A informação foi confirmada pela BBC News Brasil.

Apesar de ter voltado a chamar atenção nos últimos dias, o caso é relativamente antigo e, parte dele, foi revelado pela BBC News Brasil em reportagens entre os anos de 2022 e 2024.

Com base em documentos e depoimentos colhidos ao longo de meses, a BBC News Brasil revelou, por exemplo, como a Rússia orquestrou uma operação diplomática para retirar um dos seus supostos espiões da prisão e levá-lo de volta ao seu país natal.

Fontes ligadas à investigação com quem a BBC News Brasil conversou nos últimos dias informaram que dos nove supostos espiões russos identificados até o momento, apenas um continua em solo brasileiro: Sergey Cherkasov. E foi com ele que essa intrincada rede de disfarces veio à tona e começou a ruir.

Uma rede que, segundo as investigações, utilizava disfarces inusitados. Um dos supostos espiões atuaria como dono de uma joalheira em Brasília, outro seria um estudante e apaixonado pelo forró enquanto uma outra atuaria como modelo.

Sergey Vladimirovich Cherkasov se apresentava como Victor Muller Ferreira e havia se candidatado a posto de estágio não remunerado no Tribunal Penal Internacional. Ele é suspeito de ser espião russo (Crédito: Departamento de Justiça dos Estados Unidos)

A descoberta

Em abril de 2022, Sergey Cherkasov foi detido em Amsterdã, na Holanda, quando tentava entrar no país e mandado de volta ao Brasil.

Ele se apresentava como o brasileiro Victor Muller Ferreira e havia sido aprovado em um programa de estágio no Tribunal Penal Internacional, em Haia.

As investigações conduzidas por holandeses, americanos e brasileiros apontam que Cherkasov era um agente do GRU, um dos serviços de inteligência das Forças Armadas russas.

Devolvido ao Brasil, Cherkasov foi preso, processado e condenado a 15 anos de prisão no Brasil por uso de documento falso. Sua pena, no entanto, foi reduzida para cinco anos. Ele hoje se encontra preso em uma penitenciária federal, em Brasília. No processo, ele admitiu ter se passado por brasileiro, mas sempre negou ser um espião.

Poucos meses depois, em novembro de 2022, a polícia norueguesa prendeu outro "brasileiro".

Seu nome era José de Assis Giammaria, mas as autoridades do país europeu afirmam que ele se chamava, na verdade, Mikhail Mikushin e seria um espião russo infiltrado em uma universidade na região do Ártico, na fronteira entre Noruega e Rússia.

O terceiro caso surgiu pouco depois, no final de 2022, depois que uma brasileira reportou o desaparecimento de seu namorado, o também "brasileiro" Gerhard Daniel Campos.

As autoridades, no entanto, alegam que Campos, na realidade, seria outro espião russo cujo verdadeiro nome é Artem Shmyrev. Ele deixou o Brasil pouco antes de a Polícia Federal deflagrar uma operação para prendê-lo e ele nunca mais foi visto.

A reportagem do The New York Times enumera outras seis pessoas que teriam usado documentos brasileiros como parte de seus disfarces: Yekaterina Leonidovna Danilova, Vladimir Aleksandrovich Danilov, Olga Igorevna Tyutereva, Aleksandr Andreyevich Utekhin, Irina Alekseyevna Antonova e Roman Olegovich Koval.

Utekhin, por exemplo, segundo as investigações, se disfarçava em Brasília como empresário do ramo de joias.

Outra suposta espiã, cujo nome brasileiro seria Maria Isabel Moresco Garcia atuaria como modelo.

De acordo com as investigações da Polícia Federal, nenhum dos supostos espiões identificados até agora colhiam informações sobre o Brasil.

A passagem pelo país, segundo o que se apurou, fazia parte de uma estratégia de criar um disfarce sólido o suficiente para não chamar atenção nos países onde, de fato, os agentes deveriam realizar as suas missões.

Cherkasov, por exemplo, passou pelo Brasil, mas também morou na Irlanda e nos Estados Unidos, onde chegou a morar a poucos quilômetros da sede da Agência Central de Inteligência (CIA).

Em março de 2023, a BBC News Brasil revelou como Cherkasov teria, segundo as investigações, "esquentado" documentos brasileiros com o auxílio de uma funcionária de um cartório.

De acordo com os documentos obtidos pela BBC News Brasil, Cherkasov teria oferecido um colar de US$ 400 para que a funcionária o ajudasse. Não havia indícios, no entanto, de que ela soubesse que Cherkasov seria um espião a serviço do governo russo.

Ao longo dos últimos anos, a Embaixada da Rússia no Brasil nunca atendeu os pedidos de resposta feito pela BBC News Brasil sobre o caso.

O mais próximo que o governo russo chegou de admitir que alguém desse grupo de nove pessoas era, de fato, um espião foi quando Mikhail Mikushin foi incluído em um acordo de troca de prisioneiros entre a Rússia e os Estados Unidos, em agosto de 2024.

Polícia Federal encontrou diversos documentos incluindo passaportes com Sergey Cherkasov. Alguns deles seriam usados, segundo as investigações, no processo que ele movia para obter a cidadania portuguesa

Os "ilegais"

Sergey Cherkasov, Mikhail Mikushin, Artem Shmyrev e outros seis identificados pela PF brasileira são suspeitos de pertencer a um exemplo clássico de agente secreto infiltrado amplamente adotado pela Rússia desde que o país ainda fazia parte da União Soviética e celebrizado pela teledramaturgia, como no seriado The Americans. Eles são conhecidos como "ilegais".

Eles não apenas mudam de nome, mas adotam novas nacionalidades, profissões, personalidades, hobbies e interesses e até mesmo criam laços familiares e de amizades ao longo de anos ou mesmo décadas.

É comum que eles formem casais durante o treinamento. O processo de trabalhar no exterior por décadas sob disfarce pode causar imensa tensão e, portanto, ter um parceiro que conhece seu trabalho costuma ser visto como uma vantagem.

Centenas de diplomatas russos foram expulsos desde a invasão da Ucrânia, muitos considerados espiões. As redes de espionagem foram atingidas.

Nos casos detectados no Brasil, as investigações até o momento apontam como os supostos espiões teriam tentado se manter acima de qualquer suspeita.

Cherkasov, por exemplo, chegou a fazer aulas de forró enquanto morou em São Paulo, de acordo com as investigações brasileiras.

Além disso, segundo o FBI, Cherkasov chegou a pedir permissão aos seus superiores para se casar com uma mulher que não tinha treinamento como oficial de inteligência.

"Eu disse que se eu não me casar neste ano, nós estaremos com certeza acabados. A mulher não pôde suportar mais", teria afirmado Cherkasov em uma conversa encontrada pelos investigadores.

Ainda de acordo com o FBI, o fato de que seria preciso Cherkasov pedir permissão para casar mostraria o nível de controle que seus superiores teriam sobre sua vida pessoal.

Shmyrev, por sua vez, teria mantido um relacionamento com uma brasileira até pouco antes de desaparecer, em janeiro de 2023.

No Rio de Janeiro, segundo os investigadores, ele seria conhecido por ter uma empresa de impressão em 3D que teria realizado serviços para órgãos públicos como os comandos do Exército, da Marinha e para o Ministério da Cultura.

Segundo esses relatos, apesar do relacionamento com sua namorada brasileira, ele seria casado com outra suposta espiã russa chamada Irina Romanova, que viveria na Grécia sob o nome falso de Maria Tsalla e que também teria mantido um relacionamento amoroso no país. Ela também desapareceu, e as suspeitas são de que os dois teriam fugido juntos.

O parceiro de "Maria" em Atenas aparentemente foi informado por ela por uma mensagem de texto que ela estava saindo.

Acredita-se que Irina tenha sido chamada de volta pelo SVR por medo de ter sido identificada. Acredita-se que as autoridades gregas a estivessem observando ou investigando.

Ela partiu deixando sua loja e seu gato para trás o que pode indicar a pressa com que se desligou.

Nos últimos anos, oficiais de inteligência acreditam que a GRU se tornou mais ativa - e agressiva.

A GRU é suspeita de ter enviado uma equipe de agentes sob identidade falsa para matar Sergei Skripal em 2018, em Salisbury, no Reino Unido. A Rússia, no entanto, nega seu envolvimento neste caso.

O principal trabalho dos agentes, no entanto, é coletar informações e realizar atividades de apoio às Forças Armadas da Rússia.

Normalmente, quando são pegos, o governo russo trabalha para levá-los de volta à Rússia por meio de algum tipo de acordo - geralmente uma troca de espiões.

Foi o que aconteceu com um grupo de russos presos nos EUA em 2010, que foram trocados por agentes detidos em prisões russas por espionagem.

Mas por que o Brasil?

Integrantes da comunidade de inteligência brasileira, investigadores e pessoas que conhecem o sistema de registro cartorial no Brasil pontuam três motivos que talvez tenham levado o Brasil a ser um dos países escolhidos pela Rússia como "berçário" para seus espiões:

1 - fragilidades dos sistemas de emissão e controle de documentos no Brasil;

2 - histórico de não envolvimento do país em conflitos internacionais;

3 - população miscigenada

No caso de Cherkasov, sua certidão teria sido expedida em abril de 1989 em um cartório do Rio de Janeiro.

Foi a partir dessa certidão, segundo as investigações, que teria conseguido obter carteira de identidade, carteira nacional de habilitação, passaporte e até o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).

No caso de Mikushin, sua certidão de nascimento foi emitida em um cartório da cidade de Padre Bernardo, no interior de Goiás, município com pouco mais de 35 mil habitantes.

Com o documento em mãos, ele teria conseguido se passar por um estudante universitário brasileiro e concluído a graduação e o mestrado em duas universidades canadenses diferentes, antes de partir para sua última missão: atuar junto a um grupo de pesquisadores noruegueses que estudam ameaças e guerras híbridas.

"Quando soubemos do caso, nós fomos aos livros do cartório e verificamos que a certidão é original e que ela está na ordem exata de emissão. Não conseguimos descobrir como é que ela foi parar nas mãos dessa pessoa e como ele conseguiu, depois, todos os outros documentos", disse à BBC News Brasil a oficial do cartório de registro civil de Padre Bernardo, Eloália Nunes Ferreira, em maio de 2023.

Um integrante da comunidade de inteligência brasileiro disse à reportagem em caráter reservado que as certidões usadas pelos dois supostos espiões identificados até agora são, de fato, materialmente verdadeiras.

Isso quer dizer que elas não foram forjadas, rasuradas ou submetidas a algum tipo de adulteração.

Segundo essa fonte, isso indicaria que essas certidões foram, efetivamente, emitidas pelos cartórios ou tabelionatos brasileiros, mas ainda não se sabe exatamente como os russos conseguiram obtê-las.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, também foi um agente da KGB, o temido serviço secreto da União Soviética, antes de entrar na política (Getty Images)

Batalha pelo espiãoA prisão de Cherkasov no Brasil colocou o país em meio a uma disputa entre os Estados Unidos e a Rússia pelo destino do primeiro suposto espião identificado no Brasil.

Em agosto de 2022, poucos meses após a prisão dele no Brasil, o governo da Rússia pediu a extradição de Cherkasov para o seu país natal.

O país, como era esperado, não declarou que ele fosse espião. O pedido alega que Cherkasov seria, na realidade, um traficante de drogas procurado na Rússia.

Com base nesse pedido, o STF autorizou a entrega de Cherkasov ao governo russo, mas a entrega ainda não aconteceu porque o Tribunal condicionou a partida dele ao fim de outras investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre sua atuação no Brasil.

Por outro lado, o governo dos Estados Unidos também pediu a extradição de Cherkasov alegando que ele teria atuado ilegalmente como agente de inteligência durante os anos em que morou naquele país.

Em 2023, a BBC News Brasil reportou que os governos brasileiro e norte-americano discutiram um possível acordo prevendo a entrega de Cherkasov caso os Estados Unidos cumprissem um pedido de extradição feito pelo Brasil contra o blogueiro Allan dos Santos, apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e investigado no Brasil por ataques a autoridades.

O acordo não foi adiante e, em março de 2024, os Estados Unidos negaram a extradição do blogueiro.

Uma das informações reveladas pelo The New York Times e confirmada pela BBC News Brasil foi uma estratégia usada pela Polícia Federal brasileira e por autoridades uruguaias que, na prática, dificultou a atuação desse grupo de espiões no futuro.

Brasil e Uruguai emitiram alertas aos 196 países da Interpol solicitando informações sobre cinco dos oito supostos espiões.

Os dados, agora, estão no banco de dados da Interpol e podem ser usados por autoridades policiais e de imigração ao redor do mundo para identificar uma eventual próxima parada do grupo.

Leandro Prazeres, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 27.05.25

terça-feira, 27 de maio de 2025

Quem deve teme

Promessa de ‘governo transparente’ virou fumaça. Governo Lula multiplica sigilos, oculta gastos e restringe acesso a documentos públicos, expondo o engodo da ‘frente ampla democrática’

Durante a campanha eleitoral, Lula da Silva agitou a bandeira da transparência como um dos ativos morais de sua candidatura. Em mais de uma ocasião, fustigou o governo anterior por ocultar informações do cidadão: “Se é bom, não precisa esconder”, disse o petista a Jair Bolsonaro durante um debate. Já instalado no Palácio do Planalto, em maio de 2023, Lula afirmou que a Lei de Acesso à Informação (LAI) havia sido “estuprada” e prometeu recuperá-la: “O povo brasileiro vai ver essa criança se transformar em adulto”.

Dois anos depois, essa criança continua sendo violentada – agora, por aqueles que juraram protegê-la.

Há mais de um ano o governo bloqueia o acesso a cerca de 16 milhões de documentos que, por 17 anos, estiveram abertos ao escrutínio do cidadão: notas fiscais, termos de parceria, relatórios de execução, planos de trabalho – arquivos que revelam como se gastou mais de R$ 600 bilhões do contribuinte em transferências da União para Estados, municípios e ONGs, incluindo emendas parlamentares.

Para justificar o apagão na plataforma Transferegov.br, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos alegou que haveria risco de violação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, haja vista que os documentos conteriam informações “sensíveis”. A argumentação, além de tecnicamente frágil, é juridicamente insustentável: além de existirem soluções técnicas de anonimização, a própria Advocacia-Geral da União afirmou, em parecer oficial, que nada impedia a manutenção da publicidade dos dados. A decisão de opacidade não foi um imperativo legal, mas uma escolha política. O recuo anunciado pelo governo só faz confirmá-la. Mas a promessa de reativar o acesso aos arquivos não apaga o fato central: o sigilo só foi revertido por constrangimento público, e não por convicção republicana. O dano à confiança pública está feito, e o episódio retrata um governo que subverte, à sua conveniência, o princípio da publicidade.

O medo da luz é sistemático. O governo aumentou os gastos sigilosos no cartão corporativo e manteve o segredo de cem anos sobre as despesas, como fez Bolsonaro. O Planalto se recusa a divulgar dados sobre viagens presidenciais, visitas à primeira-dama, relatórios sobre emendas parlamentares e até registros de entrada e saída em edifícios públicos. Ademais, ministros de Estado frequentemente descumprem prazo legal para divulgar suas agendas. Em vários desses casos, recorreu ao artigo 24 da LAI, que trata da segurança do presidente, ou ao artigo 31, sobre dados pessoais – mas em interpretações abusivas, calculadas para esconder o que deve estar exposto.

Um exemplo particularmente ilustrativo veio do Ministério da Justiça. Sob a gestão de Ricardo Lewandowski, a pasta negou três pedidos do Estadão via LAI aos estudos, pareceres e memorandos que embasaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública. A justificativa é de que os documentos ainda são “preparatórios” e que o sigilo deve permanecer até a promulgação da PEC. Trata-se de um sofisma: o ato administrativo do Executivo se concluiu com o envio da proposta ao Legislativo, e, portanto, a publicidade já se impõe, por força da própria LAI.

A insistência em manter o sigilo é reveladora da má-fé institucional que anima este governo. Transformou-se em regra o que deveria ser exceção em um processo de poluição dos arquivos públicos engendrado por subterfúgios técnicos, mas motivado por razões políticas. É exatamente a atitude que Lula jurava combater. A diferença está no discurso, e não na prática.

Segundo levantamento da Controladoria-Geral da União, nos dois primeiros anos de Lula, 7,9% dos pedidos via LAI foram negados. Sob Bolsonaro, no mesmo período, foram 7,7%. A média de recusa por “dados pessoais” se manteve alta, revelando que, se o Executivo mudou de cor, não mudou de conduta. Em alguns aspectos, até retrocedeu.

Lula se elegeu prometendo liderar uma “frente ampla” contra o obscurantismo e a opacidade. Prometeu restaurar a verdade, abrir arquivos, democratizar a informação. Entregou o oposto, perpetuando o sigilo e instrumentalizando a legislação para ocultar dados.

Prometer luz e entregar sombras é mais que contradição ou hipocrisia – é estelionato eleitoral.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.05.25

STF abre inquérito para investigar Eduardo Bolsonaro nos EUA

Abertura de inquérito ocorre após pedido da PGR, que atribui ao deputado campanha de intimidação a ministros do STF junto ao governo Trump.

Em março deste ano, Eduardo pediu licença do mandato parlamentar e foi morar nos Estados Unidos. (Foto: Fabio Pozzebom/Agencia Brasil)

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu nesta segunda-feira (26/05) abrir um inquérito para investigar o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) por suspeita de crimes de coação, obstrução de investigação e abolição violenta do Estado democrático de Direito

O pedido de abertura de investigação foi feito ao STF pelo procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, para apurar suposta atuação do parlamentar para incitar o governo dos Estados Unidos a adotar medidas contra Moraes, que foi escolhido relator do caso por também atuar no comando das ações da trama golpista e no inquérito das fake news.

Moraes ainda determinou que a Polícia Federal monitore o conteúdo publicado por Eduardo Bolsonaro nas redes sociais que tenha relação com os possíveis crimes.

O ministro também autorizou o depoimento do ex-presidente Jair Bolsonaro para prestar esclarecimentos por ser "diretamente beneficiado" pelas ações de seu filho. O ex-presidente é apontando como suspeito de ser o principal beneficiado pelas condutas de Eduardo, além de possivelmente ser o responsável financeiro pela manutenção do filho nos EUA. Diplomatas brasileiros também devem ser ouvidos.

A PGR também anexou ao inquérito a notícia-crime enviada em março ao STF pelo deputado Lindbergh Farias (PT-RJ). Na ocasião, o deputado pediu a apreensão do passaporte de Eduardo Bolsonaro para evitar a saída dele do Brasil. No entanto, a procuradoria e Alexandre de Moraes rejeitaram o pedido.

Lindbergh denunciou que Eduardo Bolsonaro fazia viagens aos Estados Unidos para articular com deputados daquele país ataques contra Moraes. Segundo o parlamentar, o filho de Bolsonaro comete crime de lesa-pátria por constranger o ministro e o Poder Judiciário brasileiro.

Com a nova decisão de Moraes, Lindbergh Farias vai depor contra o filho de Bolsonaro no inquérito.

Em março deste ano, em meio ao julgamento no qual Bolsonaro virou réu, Eduardo pediu licença de 122 dias do mandato parlamentar e foi morar nos Estados Unidos. Por estar no exterior, ele poderá depor por escrito.

Na semana passada, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, confirmou que há "uma grande possibilidade" de Moraes sofrer sanções do país. Gonet destacou o comentário de Rubio na representação ao STF. "A seriedade das ameaças levadas a efeito pelo sr. Eduardo Bolsonaro se mostrou tanto mais deletéria quando se percebeu, em pronunciamento do titular da Secretaria de Estado dos Estados Unidos, que, efetivamente, as medidas de sanção por que o sr. Eduardo Bolsonaro tanto se bate, estão sendo analisadas", disse.

Reação

Em postagem nas redes sociais, Eduardo Bolsonaro considerou que o pedido de investigação é uma medida "injusta e desesperada".

"Eles estão confirmando tudo aquilo que a gente sempre falou, de que o Brasil é um Estado de exceção, que depende do cliente, dos fatos políticos. Eles vão tomar as ações judiciais, que não tem nada mais baseado em lei", disse.

"O processo no Brasil virou um meio de achaque. Um gângster faria igual, um mafioso faria igual. Eles estão deixando isso aí para todo mundo ver, e a cereja do bolo é que eles estão empurrando, pressionando o Trump para estabelecer as sanções", disse o deputado.

Publicado originalmente por Deutsche Welle em 27.05.25 (jps/as (Agência Brasil, ots)

segunda-feira, 26 de maio de 2025

'Putin ficou louco': a reação enfurecida de Trump a violento ataque da Rússia à Ucrânia

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, expressou com raiva seu descontentamento com o líder russo, Vladimir Putin, no domingo (25/5), após o maior ataque aéreo de Moscou contra a Ucrânia até o momento.

Trump criticou Putin e Zelensky neste fim de semana (Getty Images)

"O que diabos aconteceu com ele? Ele está matando muita gente", disse Trump a jornalistas no Estado de Nova Jersey, chamando Putin de "completamente louco" nas redes sociais.

"Ele ficou completamente LOUCO! Ele está matando muita gente desnecessariamente, e não estou falando só de soldados", escreveu Trump em sua rede Truth Social.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, havia dito que o silêncio de Washington sobre os recentes ataques russos estava encorajando Putin e pediu "forte pressão" — incluindo sanções mais duras — sobre Moscou.

Pelo menos 12 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas na Ucrânia na noite de domingo, depois que a Rússia disparou 367 drones e mísseis, o maior número em uma única noite desde a invasão em grande escala de Putin em 2022.

No domingo, a capital ucraniana foi atacada por drones russos pela terceira noite consecutiva, disse o chefe da administração militar da cidade.

Em uma publicação no Telegram, Timur Tkachenko diz que os ataques causaram danos no distrito de Dnipro, mas que não houve mortes.

Críticas a Putin e Zelensky

Sirenes de ataque aéreo alertando para drones e mísseis ainda soavam em muitas regiões da Ucrânia na manhã desta segunda-feira (26/5).

Pelo menos três pessoas, incluindo uma criança, ficaram feridas em Kharkiv, no nordeste do país, em ataques russos, disse o prefeito da cidade, Ihor Terekhov.

Falando a jornalistas no domingo, Trump disse sobre Putin: "Eu o conheço há muito tempo, sempre me dei bem com ele, mas ele está lançando foguetes em cidades e matando pessoas, e eu não gosto disso nem um pouco."

Trump conversou com jornalistas no Estado de Nova Jersey (Getty Images)

Pouco depois, Trump escreveu na Truth Social que Putin "enlouqueceu completamente".

"Eu sempre disse que ele quer toda a Ucrânia, não apenas parte dela, e isso pode ser verdade, mas se ele fizer isso, levará à queda da Rússia!"

O presidente dos EUA, no entanto, também teve palavras duras para Zelensky, dizendo que "ele não está fazendo nenhum favor ao seu país falando dessa maneira".

"Tudo o que ele diz causa problemas, eu não gosto, e é melhor ele parar."

Embora os aliados europeus de Kiev estejam preparando novas sanções contra a Rússia, os EUA indicaram que continuarão tentando mediar negociações de paz. Mas os EUA também alertaram que se retirarão do processo de negociações caso não haja progresso.

Na semana passada, Trump e Putin mantiveram uma conversa por telefone de duas horas na qual discutiram uma proposta de acordo de cessar-fogo dos EUA para interromper os conflitos.

O presidente dos EUA declarou que acreditava que a ligação havia transcorrido "muito bem" e disse que a Rússia e a Ucrânia "iniciariam imediatamente" negociações para um cessar-fogo e o fim da guerra.

Ataques destruíram prédios em Kiev (Getty Images)

A Ucrânia declarou publicamente que aceitaria um cessar-fogo de 30 dias.

Putin apenas declarou que a Rússia trabalhará com a Ucrânia para redigir um memorando sobre uma "possível paz futura", uma atitude que o governo ucraniano e seus aliados europeus disseram que é mera tentativa de retardar os esforços de paz.

As primeiras negociações diretas entre a Ucrânia e a Rússia desde 2022 foram realizadas em 16 de maio em Istambul, na Turquia.

Com exceção de uma grande troca de prisioneiros de guerra na semana passada, houve pouco ou nenhum progresso em favor de uma trégua nos combates.

Atualmente, a Rússia controla cerca de 20% do território da Ucrânia, incluindo a Crimeia, a península no sudeste da Ucrânia anexada por Moscou em 2014.

Publicado originalmente porBBC News Brasil, em 26.05.25

sábado, 24 de maio de 2025

Por que pênis humano não tem osso para ajudar na ereção como em outros animais?

Ao contrário dos seres humanos, os chimpanzés e os bonobos possuem ossos penianos


Ao contrário dos seres humanos, os chimpanzés e os bonobos possuem ossos penianos (Getty Images)

Todos nós nos preocupamos com o bom funcionamento do nosso corpo. Mas nem todos vivemos da mesma forma nossas deficiências e patologias físicas.

A prioridade número 1 é nos mantermos vivos. Por isso, é claro que órgãos como o cérebro, os pulmões e o coração recebem preferencialmente nosso interesse.

Em relação ao resto do corpo, mesmo que não sejam absolutamente vitais, o funcionamento adequado das engrenagens biológicas que interferem na nossa fisiologia sexual gera muita inquietação. E, no caso específico do sexo masculino, a impossibilidade de atingir a ereção corretamente pode representar um verdadeiro drama.

Mas o que acontece com outros animais? Eles também manifestam problemas de ereção?

O que é, fisiologicamente, uma ereção?

Em condições normais, o ambiente propício para a prática sexual ativa o sistema nervoso autônomo. Isso provoca o aumento dos níveis de óxido nítrico, que é vasodilatador, nas artérias trabeculares e na musculatura lisa do pênis.

Consequentemente, ocorre afluência de sangue para os corpos cavernosos penianos e, em menor quantidade, para o corpo esponjoso.

Ao mesmo tempo, os músculos isquiocavernoso e bulboesponjoso comprimem as veias dos corpos cavernosos, restringindo a saída e a circulação daquele sangue para fora do pênis.

Em consequência da abertura da porta de entrada de sangue e do fechamento das portas de saída, os corpos cavernosos ficam cheios de fluido, incham devido ao aumento progressivo da pressão sanguínea (que pode atingir várias centenas de mmHg, milímetros de mercúrio, unidade de pressão) e o pênis fica ereto.

Quando a atividade parassimpática diminui e os músculos se relaxam, o sangue é drenado pelas veias mencionadas e o pênis retorna ao seu estado flácido.

Por isso, é evidente que, para que o pênis entre em ereção, é necessário tempo e estímulo. Mas, frente a determinados problemas de saúde física (basicamente, cardiovasculares) ou psicológica, este sistema deixa de funcionar corretamente, impossibilitando a cópula e estressando o usuário.

Existem mecanismos alternativos na natureza?

Pode parecer surpreendente, mas a modalidade peniana humana é bastante excepcional. Na verdade, a maioria dos mamíferos conta com "assistência óssea" para manter o pênis ereto.

Trata-se do chamado báculo, um osso localizado no eixo longitudinal do pênis. Ele possibilita ao macho manter penetração eficiente a qualquer momento – mas, sobretudo, proporciona o aumento do tempo de cópula.

Esta haste surpreendente possui formas muito variadas. Ela chegou a ser denominada "o mais diverso de todos os ossos".

O báculo não só adquire diversas formas, como também manifesta tamanhos muito diferentes. Ele pode ser quase vestigial em algumas espécies de lêmures ou adquirir dimensões surpreendentes, como os 65 cm de comprimento que podem chegar a apresentar os machos das morsas.

Já os marsupiais, as hienas, alguns lagomorfos (como os coelhos) e os equídeos compartilham esta mesma ausência (do báculo) com os seres humanos.

Este grupo de "machos discriminados" também não conta com uma segunda vantagem. O báculo, quando alongado, protege a uretra em cópulas prolongadas, limitando sua constrição distal. Assim, a uretra é mantida aberta, facilitando o fluxo do esperma no seu interior.

As hienas compartilham esta mesma ausência com os seres humanos (Getty Images)

Mas por que os seres humanos não têm o osso do pênis?

Se os primeiros primatas, que surgiram no fim do período Cretáceo, tinham báculo (que se manteve na maioria dos grupos de mamíferos que surgiram posteriormente), por que esse osso se perdeu na linha evolutiva que gerou a nossa espécie?

A explicação poderia estar no fato de que o báculo favoreceria as estratégias reprodutivas em populações com altos níveis de seleção sexual pós-copulatória.

As espécies primatas poligâmicas (que mantêm concorrência sexual muito intensa) possuem báculos mais longos do que as monogâmicas. Isso permitiria a elas alongar o coito.

Em outras palavras, este processo manteria a fêmea "ocupada" por mais tempo, evitando que ela copulasse com outros machos. Consequentemente, aumentariam as probabilidades de o macho - que conseguiu usar o "báculo" - fazer seus genes chegarem à geração seguinte.

Esta hipótese foi confirmada em um curioso experimento com dois grupos de ratos, um dos quais foi forçado a praticar a monogamia. E... surpresa! Depois de 27 gerações, o tamanho do osso peniano se reduziu no grupo monogâmico.

Aparentemente, portanto, se formos monogâmicos, a pressão da seleção em favor da manutenção do báculo é reduzida.

Por outro lado, cerca de dois milhões de anos atrás, o pedaço de cromossomo que continha a sequência de DNA codificadora do báculo se perdeu.

Esta mutação (deleção) ocorreu quando nossa linha de primatas bípedes (os hominíneos) já estava bem avançada e separada há quatro milhões de anos. Dela se originaram os chimpanzés e os bonobos, que são polígamos e possuem báculo.

Isso nos levaria à interessante conclusão de que os hominídeos se tornaram monogâmicos nessa forquilha temporal, fazendo desaparecer as pressões evolutivas a favor da manutenção do báculo.

Quem realmente perde, os homens ou as mulheres?

No meu livro recentemente publicado, El Sexo Injusto ("O sexo injusto", em tradução livre), explico que as coisas nem sempre são o que parecem, quando contempladas do ponto de vista da evolução.

No caso do osso peniano, aparentemente, precisar "trabalhar" a ereção do pênis parece uma clara desvantagem, ainda mais que qualquer contratempo, físico ou psicológico, pode gerar uma situação mais do que comprometedora para os homens.

No entanto, analisando do ponto de vista evolutivo, isso não é tão claro assim. Afinal, sem os altos níveis de concorrência sexual pós-copulatória, o único objetivo dos hominídeos machos durante a cópula se restringiria exclusivamente à ejaculação.

Se, em termos de eficiência biológica, não faz diferença que os coitos sejam "rapidinhos"... não poderíamos concluir que quem realmente sai perdendo são as mulheres?

A. Victoria de Andrés Fernández, a autora deste artigo,  é professora titular do Departamento de Biologia Animal da Universidade de Málaga, na Espanha. Publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation, em 14.01.25, e republicado sob licença Creative Commons.


sexta-feira, 25 de abril de 2025

Collor estava 'calmo' quando foi preso no Aeroporto de Maceió e aguarda em sala da PF transferência para Brasília

Ex-presidente foi detido por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF


Então senador, Fernando Collor discursa no plenário — Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado/04-05-2022

O ex-presidente Fernando Collor estava "calmo" quando foi preso nesta madrugada, segundo interlocutores, e aguarda em uma sala da Superintendência da Polícia Federal em Alagoas até o momento de ser transferido para Brasília. Ele foi detido por volta das 4h no aeroporto de Maceió, onde embarcaria para a capital federal com o intuito de se entregar às autoridades.

A detenção imediata foi determinada na noite de ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), após se esgotarem os recursos no processo no qual ele foi condenado por participar de um esquema de corrupção.

Por que Fernando Collor foi preso?

Na noite de ontem, Moraes rejeitou o segundo recurso da defesa e determinou o cumprimento imediato da pena imposta a Collor. Ele foi condenado a oito anos e dez meses, em regime inicial fechado, por participação em uma esquema de corrupção na BR Distribuidora, descoberto pela Operação Lava-Jato.

Prisão de Collor destoa no contexto do desmonte da Lava Jato

Como funcionava o esquema de corrupção?

Na decisão, Moraes diz que Collor, com a ajuda dos empresários Luis Pereira Duarte de Amorim e Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, recebeu R$ 20 milhões para viabilizar irregularmente contratos da BR Distribuidora com a UTC Engenharia para a construção de bases de distribuição de combustíveis.

A vantagem foi dada em troca de apoio político para indicação e manutenção de diretores da estatal.

Após a decisão de Moraes, o plenário do STF deverá julgar se mantém a prisão de Collor. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, determinou a inclusão do processo em sessão virtual do plenário desta sexta-feira, com início previsto para 11h e término às 23h59.

'Quem será que entregou a BR Distribuidora?': Após Moraes decretar prisão de Collor, Moro associa caso ao PT

De Fiat Elba à prisão: Relembre acusações envolvendo Fernando Collor preso após decisão de Moraes

O STF já havia rejeitado recursos do ex-presidente (embargos de declaração) em que ele afirmava que a pena não seria correspondente ao voto médio apurado no Plenário. No novo recurso (embargos infringentes), a alegação é de que deveria prevalecer, em relação ao tamanho da pena (dosimetria), os votos vencidos dos ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

"Quanto ao caráter protelatório do recurso, a defesa demonstrou que a maioria dos membros da Corte reconhece seu manifesto cabimento. Tais assuntos caberiam ao Plenário decidir, ao menos na sessão plenária extraordinária já designada para a data de amanhã", argumentou a defesa de Collor após a decisão de Moraes.

Na decisão, Moraes observou que este tipo de recurso só é cabível quando há, pelo menos, quatro votos absolutórios próprios, o que não ocorreu no caso, mesmo se forem considerados os delitos de maneira isolada. O ministro explicou que, em relação à dosimetria, o STF tem entendimento consolidado de que esse tipo de divergência não viabiliza a apresentação de embargos infringentes.

Moraes destacou que o STF tem autorizado o início imediato da execução da pena, independentemente de publicação da decisão, quando fica claro o caráter protelatório de recursos que visem apenas impedir o trânsito em julgado da condenação.

(Malu Gaspar: Prisão de Collor por ordem de Alexandre de Moraes reforça temor de aliados de Bolsonaro)

Político foi condenado por participação em esquema de corrupção: STF decide nesta sexta se mantém prisão 'imediata' do ex-presidente Fernando Collor

“A manifesta inadmissibilidade dos embargos, conforme a jurisprudência da Corte, revela o caráter meramente protelatório dos infringentes, autorizando a certificação do trânsito em julgado e o imediato cumprimento da decisão condenatória”, afirmou.

Na mesma decisão, o ministro rejeitou recursos dos demais condenados e determinou o início do cumprimento das da pena de Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, sentenciado a quatro anos e um mês de reclusão, em regime inicial semiaberto, e das penas restritivas de direitos impostas a Luís Pereira Duarte Amorim.

Patrik Camporez, de Brasília - DF para O Globo, em 25.04.25

Moraes rejeita recurso da defesa e manda prender o ex-presidente Collor

Pena de ex-presidente é de 8 anos e 10 meses de prisão, decorrente de decisão tomada nos desdobramentos da Operação Lava Jato

Em 2023, o STF condenou o ex-presidente a 8 anos e 10 meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes mandou prender o ex-presidente da República Fernando Collor após negar recurso da defesa que tentava protelar o início do cumprimento de pena. Collor foi condenado a oito anos e dez meses de prisão por corrupção na Operação Lava Jato.

Em nota, a defesa do ex-presidente afirmou que ele vai se entregar à Justiça para o cumprimento da decisão de Moraes. Também afirmou ele que recebeu a ordem de prisão com “surpresa e preocupação”. “Ressalta a defesa que não houve qualquer decisão sobre a demonstrada prescrição ocorrida após trânsito em julgado para a Procuradoria-Geral da República. Quanto ao caráter protelatório do recurso, a defesa demonstrou que a maioria dos membros da Corte reconhece seu manifesto cabimento. Tais assuntos caberiam ao plenário decidir”, disse a defesa de Collor. “De qualquer forma, o ex-presidente Fernando Collor irá se apresentar para cumprimento da decisão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, sem prejuízo das medidas judiciais previstas.”

Segundo a Polícia Federal, a ordem de prisão deve ser cumprida na manhã de hoje, mas o ex-presidente pode optar por se entregar antes.

Em maio de 2023, o STF condenou Collor por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele não foi preso de imediato porque a defesa ainda podia entrar com recursos. Como o processo transitou em julgado, Moraes mandou a pena ser cumprida imediatamente.

Na decisão, o ministro afirmou que Collor deve cumprir imediatamente a pena em regime fechado, além de pagar 90 dias-multa. Pelo crime de corrupção passiva, a pena é de quatro anos e quatro meses de prisão. Por lavagem de dinheiro, é de quatro anos e seis meses. O delito de associação criminosa teve a punibilidade extint

Moraes submeteu sua decisão para ser referendada pelo plenário do Supremo, que vai julgar o caso a partir das 11h de hoje. Antes disso, porém, o ministro disse que o ex-presidente já poderia ser detido.

INVESTIGAÇÃO. Collor foi declarado culpado pelo recebimento de R$ 20 milhões em propinas da UTC Engenharia em troca do direcionamento de contratos de BR Distribuidora. O ex-ministro Pedro Paulo de Leoni Ramos e o operador Luís Pereira Duarte de Amorim também foram condenados. A sentença determina que os três devem pagar solidariamente multa de R$ 20 milhões por danos morais coletivos.

Além de determinar a prisão, Moraes disse que Collor deve ser submetido a exames médicos para que a execução da pena comece a ser contabilizada. “A expedição de guia de recolhimento, devendo ser o réu submetido a exames médicos oficiais para o início da execução da pena, inclusive fazendo constar as observações clínicas indispensáveis ao adequado tratamento penitenciário”, diz a decisão.

IMPEACHMENT. Primeiro presidente que venceu uma eleição direta após a ditadura militar (1964-1985), em 1989, Collor ocupou o Planalto entre 1990 e 1992, quando, em decisão até então inédita, sofreu impeachment. Agora, ele se torna o terceiro dos sete presidentes que governaram o País desde a redemocratização a ser preso. Os outros foram Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer.

Após sofrer o i mpeachment, Collor ficou inelegível por oito anos. Ele tentou ser prefeito de São Paulo em 2000, mas teve a candidatura barrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2006, o ex-presidente voltou à cena política ao ser eleito senador por Alagoas, e ocupou a cadeira até 2023.

Segundo a denúncia, os crimes que resultaram na prisão de Collor ocorreram enquanto ele esteve no Congresso. 

Publicada n'O Estado de S. Paulo, em 25.04.25 

A infame proposta de Trump para a Ucrânia

Exigir a capitulação da Ucrânia é uma abjeção moral e um brutal erro geopolítico: longe de garantir a paz, será só um incentivo para que a Rússia retome sua agressão com mais tranquilidade


Pela biografia de Donald Trump, sabe-se que ele genuinamente tem aversão a guerras e genuinamente superestima seus talentos como negociador. Na campanha, ele disse que a guerra na Ucrânia nunca teria acontecido se fosse presidente e prometeu acabar com a “guerra de Joe Biden” em um dia. Isso explica sua impaciência, em quase cem dias de mandato. Como genuíno populista, Trump está pronto a sacrificar os interesses de seu país em troca de uma satisfação imediata para si e seus eleitores. O acordo que ele está propondo para pôr fim à guerra – basicamente a capitulação do agredido e a recompensa ao agressor – não só seria moralmente abjeto, mas geopoliticamente contraproducente: longe de garantir uma paz duradoura, será só um incentivo para que no futuro o agressor retome suas agressões com mais confiança. Ou seja, a paz hoje seria conquistada ao custo de uma guerra maior e pior amanhã.

Seria paranoia conspiratória dizer em sentido não figurado e sem aspas que Trump é um “agente russo”, mas, de fato, ainda que involuntariamente, é o que vem sendo. Um ficcionista que tentasse imaginar o comportamento de um agente russo na Casa Branca dificilmente se sairia com algo melhor. Não faltam nem algumas “críticas” e “exigências” à Rússia, como faria um agente para não revelar seu disfarce. Mas, no conjunto da obra, o que ele fez só fortaleceu a posição de Vladimir Putin como nunca desde o começo da guerra.

Desde o início, o governo Trump descartou a entrada da Ucrânia na Otan ou a restauração integral de suas fronteiras. Depois, sugeriu a intenção de suspender as sanções à Rússia e votou contra resoluções na ONU críticas à Rússia. E uma das poucas exceções ao tarifaço de Trump foi, ora vejam, a Rússia de Putin.

Para a Rússia, afagos, para a Ucrânia, safanões: suspensões temporárias de assistência militar e cooperação de inteligência; a promessa de que não haveria novos envios de recursos; extorsão de direitos de exploração de recursos minerais; um ritual público de humilhação do presidente Volodmir Zelenski no Salão Oval; pressões para que ele reconheça ganhos territoriais de Putin.

O plano mais recente de Trump não chega a entregar tudo o que a Rússia quer, mas quase. Os territórios anexados desde 2022 não seriam reconhecidos e a Ucrânia não precisaria se desmilitarizar. Fora isso, Washington oferece o fim das sanções à Rússia, um cessar-fogo congelando as linhas atuais e o reconhecimento da Crimeia como território russo. Em troca, a Ucrânia não recebe praticamente nada, além de promessas vagas de segurança de Trump, que não valem nada.

É algo que Zelenski não pode aceitar, nem que quisesse. A sociedade ucraniana jamais toleraria essa decisão. A instabilidade social poria em risco a própria continuidade de seu governo. Putin sabe disso e possivelmente tem pressionado os americanos por essa concessão. Das duas, uma: ou a equipe de Trump não sabe, e isso expõe seu amadorismo, ou sabe, e isso expõe sua má-fé. Nesse último caso, essas exigências estariam sendo feitas para acusar Zelenski de intransigência, criando um pretexto para “lavar as mãos”, ou seja, abandonar a Ucrânia à sua própria sorte e normalizar as relações com Putin.

Foi exatamente o que Trump fez nos últimos dias. Enquanto ele só manifestou irritação com os ataques de Putin à Ucrânia, acusou Zelenski de obstruir a paz, lançando-lhe um ultimato: ou aceita todas as condições, ou os EUA lhes darão as costas.

O mais inacreditável é que legitimar a demanda russa pela Crimeia seria danoso aos interesses dos EUA, seja por degradar sua reputação, seja por encorajar outros agressores (como a China contra Taiwan), seja por alienar aliados como os europeus, seja por fomentar a divisão na sociedade americana. Os americanos estavam exaustos com 20 anos de guerra no Afeganistão, mas nunca perdoaram Biden pela retirada desastrosa que acabou entregando todas as posições ao Taleban. Muitos podem estar cansados ou desinteressados na guerra na Ucrânia, e todos sabem que Kiev terá de fazer concessões, mas não perdoarão Trump por trair um aliado e entregar de bandeja tudo o que Putin, um inimigo declarado de seu país, quer. •

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.04.25

Trump tropeça nos próprios erros em um governo sem adultos na sala

Seu objetivo é extrair o máximo de lealdade e inspirar o máximo de ódio, um alimentando o outro

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante visita do premiê norueguês, Jonas Gahr Store, na Casa Branca Foto: Saul Loeb/AFP

Harold Macmillan, o primeiro-ministro britânico de meados do século XX, teria dito que o que os estadistas mais temiam eram “os eventos, meu caro, os eventos”. Infortúnios acontecem: um desastre natural, um ataque terrorista, uma crise internacional. Lideranças políticas são julgadas por sua habilidade ou incompetência ao lidar com o inesperado.

Felizmente, o governo Donald Trump ainda não teve tais infortúnios. Seu único infortúnio — e, portanto, o infortúnio de todos — é o próprio governo.

Muita coisa ficou óbvia novamente esta semana, graças a duas histórias que são, em sua essência, a mesma. Primeiro, houve a revelação de que Pete Hegseth, o secretário de Defesa, havia compartilhado detalhes sensíveis do ataque militar ao Iêmen com sua esposa, irmão e advogado pessoal em mais um grupo de bate-papo do Signal. Em seguida, veio um ensaio no Politico de um ex-assessor próximo de Hegseth, John Ullyot, descrevendo um “colapso total no Pentágono” — um colapso que incluiu a demissão de três dos principais funcionários do departamento. Donald Trump Jr. respondeu dizendo que Ullyot está “oficialmente exilado do nosso movimento” 

Para você

Em seguida, o mercado despencou e o dólar sofreu uma queda acentuada, graças aos ataques indecorosos e descontrolados do presidente Trump a Jerome Powell, o presidente do Fed. O pecado de Powell foi ter a audácia de descrever os prováveis efeitos das tarifas do presidente: ou seja, que elas farão os preços subir e o crescimento desacelerar. Isso deixou Trump furioso, com ameaças da Casa Branca de analisar se Powell pode ser demitido — um potencial ataque à independência do banco central digno dos piores dias econômicos da Argentina.

Ambos os casos envolvem a supervisão de adultos: a ausência dela no primeiro caso, a presença dela no segundo, e a forte preferência do presidente pela primeira alternativa. Por quê? Provavelmente pelo mesmo motivo que ditadores de meia-tigela elevam bajuladores incompetentes a altos cargos de segurança: eles são mais dependentes e menos ameaçadores. A última coisa que Trump quer no Pentágono é outro Jim Mattis, seguro de si o suficiente para estar disposto a renunciar por princípio.

O mesmo vale para outros departamentos do governo.

Um secretário de Estado adulto jamais teria permitido que seu departamento fosse destruído em suas primeiras semanas por um funcionário não oficial (Elon Musk) de um suposto departamento (DOGE) por funcionários adolescentes irresponsáveis com apelidos como “Big Balls” (Grandes Bolas). Mas Marco Rubio tem um apelido com um significado muito diferente: Pequeno Marco. Ele fará o que lhe mandarem até ser demitido, provavelmente (como um de seus antecessores, Rex Tillerson) por meio de uma publicação nas redes sociais.

Um procurador-geral adulto teria acatado rapidamente uma decisão da Suprema Corte de “facilitar” o retorno de Kilmar Armando Abrego Garcia, de El Salvador, que foi deportado por engano pelo governo em março e preso injustamente em seu país natal. Mas Pam Bondi preferiria servir seu chefe com lealdade, mas de forma tola, em vez de usar a inteligência e ter independência. Um dia, ela terá que escolher entre uma aquiescência humilhante a uma ordem judicial mais contundente ou uma batalha politicamente debilitante com o tribunal.

Uma equipe adulta de assessores econômicos teria dissuadido o presidente de anunciar e suspender tarifas repetidamente, mesmo que apenas para preservar sua credibilidade política, evitar incertezas comerciais e prevenir a previsível revolta dos mercados. E eles teriam se mostrado particularmente interessados em evitar uma guerra comercial total com Pequim, já que a capacidade da China de absorver e impor sofrimento econômico excede em muito a de Washington. Mas esta equipe, não. Seja por covardia ou arrogância, eles preferem correr o risco de um caos econômico global do que o de desagradar seu chefe.

Quanto a Trump, seu objetivo é extrair o máximo de lealdade e inspirar o máximo de ódio, um alimentando o outro. É um método de controle: quanto mais imprudente ele se torna, mais obriga seus asseclas a se humilharem para defendê-lo. Quanto mais o fazem, mais os oponentes de Trump se convencem de que a tirania está nascendo. Será ele outro Viktor Orban? Ou Mussolini? Cada vez que um crítico recorre a uma comparação exagerada (eu também já cometi esse erro), isso apenas enfraquece sua própria força moral e poder explicativo.

Trump é Trump. Vamos pensar nele em seus próprios termos.

Quando completou seu extraordinário retorno à política em novembro, o presidente estava no auge de seu poder político. Ele o erodiu a cada dia desde então. Com Matt Gaetz como sua primeira opção para procurador-geral. Com as disputas de confirmação desnecessariamente contundentes envolvendo a escolha absurda de Hegseth, Robert Kennedy Jr., Kash Patel e Tulsi Gabbard.

Com a transformação do Canadá em inimigo. Com a grotesca aproximação de J.D. Vance com a extrema direita alemã. Com o abuso de Volodmir Zelenski no Salão Oval. Com o regime tarifário desordenado. Com ameaças de conquista que antagonizam aliados históricos sem nenhum benefício plausível. Com prisões duvidosas e deportações ilegais que podem transformar indivíduos antipáticos em heróis. E agora com ameaças à ordem econômica básica que levaram o ouro a uma alta recorde, chegando a US$ 3.500 a onça, e empurram o Dow Jones no caminho de seu pior abril desde o final do governo Hoover.

Os democratas que se perguntam como se opor a Trump de forma mais eficaz podem considerar o seguinte. Parem com as comparações com ditadores. Recapitulem os fatos acima. Prometam normalidade e apresentem planos para recuperá-la. E lembrem-se de que, por mais maligno que ele seja, não há adversário melhor do que um presidente de cara no chão, tropeçando nos cadarços próprios desamarrados. 

Bret Stephens, o autor deste artigo, é colunista de opinião do 'The New York Times', escrevendo a respeito de política externa, política doméstica e questões culturais. Publicado no Brasil por O Estado de S. Paulo com tradução de Augusto Calil, em 24.04.25

terça-feira, 22 de abril de 2025

Um papa em movimento

Como um legítimo vicário de Cristo, Francisco foi um sinal de contradição para progressistas e conservadores. Vindo da periferia do mundo, ele levou a Igreja à periferia do mundo

Foto - reprodução de Euro News.

“Parece que meus irmãos cardeais foram quase aos confins da Terra” para dar um bispo a Roma, disse o papa Francisco do balcão da Basílica de São Pedro em seu discurso inaugural. Doze anos depois, ninguém se pergunta mais “Jorge quem?”. Mas quem pode dizer que entende plenamente o significado de seu pontificado?

A familiaridade e a simplicidade estavam lá desde o início, a começar pelo nome, o santo de Assis que conclamou os cristãos, em especial os clérigos, a imitar Jesus vivendo na pobreza e respeitando o mundo natural. Bergoglio recusou um aposento no Palácio Apostólico em favor de uma hospedaria do Vaticano, calçava sapatos simples e viajava num Fiat. “O carnaval acabou”, disse a um cerimonialista papal. Suas primeiras visitas foram a prisioneiros e refugiados. Espontâneo, sempre a caminho de pessoas às margens da sociedade, Francisco parecia ignorar as regras da lei em favor das regras do amor.

“Somos a imagem do Senhor, e Ele faz o bem e todos nós temos este mandamento em nosso coração: faça o bem, não faça o mal”, disse com sua simplicidade característica. “‘Mas eu não acredito, padre, eu sou ateu!’ Mas faça o bem: nós nos encontraremos lá”.

São traços que atraíram os que veem a Igreja como restritiva e legalista. Seu acolhimento aos homossexuais e imigrantes despertou a simpatia dos progressistas. Os conservadores se irritaram com um pontificado que parecia transformar a Igreja numa espécie de ONG humanitária. Mas, desconcertando ambos os lados, Francisco apelava incisivamente a temas incômodos à sensibilidade liberal, como a atividade demoníaca na vida humana ou o papel central da Virgem Maria na vida cristã.

Muitos viram nessa atitude uma espécie de populismo religioso, na esteira da tradição argentina. “Todo o ponto do peronismo é que não se pode fixá-lo”, disse o escritor irlandês Colm Toíbín. “Ser um peronista significa ser nada e tudo. Significa que você pode por vezes estar de acordo com as próprias coisas que em outras circunstâncias não é realmente a favor”. Mas, nas palavras de Francisco, trata-se de “abraçar a vida tal como ela vem”.

Quem esperava mudanças radicais em temas como as regras do celibato, sacerdócio das mulheres ou casamento homossexual sentiu-se frustrado. Mas a Igreja não é uma democracia e suas tradições e ensinamentos não estão sujeitos ao voto popular. Francisco, no entanto, submeteu essas e outras controvérsias ao debate. Antes dele, os sínodos eram pouco mais que eventos coreografados para ratificar a vontade do alto cardinalato.

Francisco foi um papa que pensou em termos de processos. Assim, ele incomodou tanto “aqueles que querem mudanças (e esperam decisões rápidas) quanto aqueles que, ao contrário, querem deixar tudo como está”, disse o teólogo e repórter do Vaticano Hendro Munsterman. “O profético e o cautelosamente duvidoso se juntam no papa Francisco.”

Francisco se foi com mais idade que Bento XVI tinha quando renunciou e que João Paulo II quando morreu. Num momento em que o mundo se fragmenta, “Francisco foi o primeiro papa verdadeiramente global”, disse o historiador da Igreja Massimo Faggioli. Foi o primeiro latino-americano e o primeiro não europeu desde o século 8.º. Foi o primeiro a visitar a Península Arábica, onde, num gesto simbólico com o grande imã do Cairo, falou dos muçulmanos como irmãos. Numa Igreja que definha na Europa e cresce na África e na Ásia, ele trouxe o olhar das periferias, tal como o cristianismo primitivo nasceu, das periferias do Império Romano. O Colégio de Cardeais que escolherá seu sucessor será muito diferente daquele que o elegeu, incluindo uma amplitude regional muito maior.

“Comecemos esta jornada, os bispos e o povo, esta jornada da Igreja de Roma, que preside em caridade todas as Igrejas numa jornada de fraternidade em amor, confiança mútua”, disse Francisco em seu discurso inaugural. “Rezemos todos uns pelos outros.” Que seu sucessor saiba conduzir a Igreja no espírito de humildade, simplicidade e abertura legado por Francisco.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.04.25

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A democracia no divã

Índice da Democracia mostra que a recessão é severa. Mas, ao contrário das autocracias, o remédio para os males das democracias liberais está nelas mesmas: mais liberdade e representação

Manchetes do mundo destacaram 2024 como “o maior ano eleitoral da História”. Metade da população foi às urnas em 75 países. Mas, a julgar pelo Índice da Democracia da Economist Intelligence Unit, a celebração global da democracia poderia ser uma festa de despedida.

O Índice da Democracia avalia 167 países por cinco critérios – processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política, e liberdades civis –, agrupando-os em quatro categorias: democracias plenas e falhas, e regimes híbridos e autoritários. Segundo o estudo mais recente, a democracia está em sua pior forma em duas décadas. O número de democracias diminuiu e o de autocracias aumentou. Os fatores que mais se deterioraram foram liberdades civis e processo eleitoral e pluralismo. Nos últimos anos, a degradação foi impulsionada sobretudo pelo avanço das autocracias e declínios na governança e no pluralismo.

O índice foca no problema: por que a democracia não está funcionando? Mas a questão em si é problemática: não está? À primeira vista, não. O alto índice de retaliação a incumbentes e apoio a insurgentes populistas exprime a irritação popular. Por outro lado, a marca distintiva das democracias é justamente a alternância de poder. As alternativas populistas, frequentemente apontadas como causa do mal-estar das democracias, também podem ser um sintoma. Os populistas podem ter as respostas erradas, mas a adesão popular sugere que estão fazendo as perguntas certas.

Com o perdão do clichê, essa situação de “copo meio cheio, meio vazio” é evidenciada por pesquisas globais que registram uma ampla adesão aos valores democráticos. Ou seja, as pessoas não estão frustradas com a democracia em si, e sim com seu funcionamento. Mas se a democracia não está funcionando, aparentemente há vastas reservas morais para fazê-la funcionar.

O modo de fazê-la funcionar depende da identificação dos problemas. A biópsia do índice evidencia uma história de “falhas” (de governos, partidos, políticos) e “déficits” (de igualdade, integridade, opções, ideias, cidadania). A restauração do vigor da democracia depende da reversão dessas falhas e déficits.

As causas da recessão são multidimensionais – geopolíticas, econômicas, políticas, culturais, sociais – e sua interação é complexa, mas todas apontam para uma solução, como o ponto de fuga de uma perspectiva: a representatividade. Em todos esses anos, a fé nos ideais democráticos se manteve. Mas o mundo mudou, e os canais de representação não acompanharam essas mudanças. Governos e partidos se alienaram dos cidadãos e não respondem aos seus anseios.

O problema das democracias é que estão funcionando pela metade. Quando as urnas punem incumbentes ou premiam líderes que se insurgem contra o status quo, funcionam como uma válvula de escape da insatisfação popular, mas não como um motor de sua satisfação.

“A resposta aos desafios enfrentados pela democracia representativa é não jogar o bebê com a água do banho. O desafio é renová-la e revigorá-la trazendo questões reais de volta à arena do debate público”, pondera o Índice da Democracia. “Isso significa ter uma verdadeira disputa sobre políticas públicas entre partidos em competição. E significa (re)construir relações entre os partidos e o eleitorado. A democracia é um trabalho duro – ela exige novas ideias, políticas claras, engajamento com os eleitores, vencer discussões com eles e mobilizá-los para criar uma maioria que possa vencer eleições.”

Não se pode subestimar a crise da democracia, tampouco sua resiliência. Há pouco mais de dois séculos só havia autocracias no mundo, e ninguém tinha direitos democráticos. Hoje metade das nações são democráticas e no ano passado 4 bilhões de pessoas foram às urnas. As democracias já tiveram sua morte decretada e sofreram recessões severas, notadamente no entreguerras e nos “anos de chumbo” da guerra fria. Mas, ao contrário das autocracias, só precisam buscar em si mesmas os remédios para seus males. É uma lei histórica: a agonia dos países autocráticos se cura com menos autocracia; a agonia das democracias liberais, com mais liberdade e representação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 21.04.25

domingo, 20 de abril de 2025

Nunca temi tanto pelo futuro dos EUA

Se não mudar comportamento, Trump destruirá tudo o que torna o país forte, respeitado e próspero


Protestos contra Trump em Washington, DC

Tanta loucura acontece no governo Trump todos os dias que algumas coisas absolutamente estranhas, mas incrivelmente reveladoras, se perdem no ruído. Um exemplo recente foi a cena de 8 de abril na Casa Branca, na qual, em meio à sua acirrada guerra comercial, o presidente americano decidiu que era o momento perfeito para assinar um decreto destinado a impulsionar a mineração de carvão.

“Estamos trazendo de volta uma indústria que foi abandonada”, disse o presidente Donald Trump cercado por mineiros de carvão com capacetes, membros de uma força laboral que caiu de 70 mil trabalhadores para cerca de 40 mil na década recente, segundo noticiou a agência Reuters. “Vamos colocar os mineiros de volta ao trabalho.”

Para completar, Trump acrescentou sobre esses mineiros: “Se lhes déssemos uma cobertura na Quinta Avenida e um outro tipo de emprego eles ficariam infelizes. Eles querem extrair carvão, é isso o que eles amam fazer”.

É louvável que o presidente homenageie homens e mulheres que trabalham com as mãos. Mas escolher elogiar mineiros de carvão ao mesmo tempo que tenta zerar a geração de empregos em tecnologias limpas – em 2023, a indústria de energia eólica dos EUA empregava aproximadamente 130 mil trabalhadores, e a indústria de energia solar, 280 mil – sugere que Trump está preso a uma ideologia de direita que não reconhece os empregos nas indústrias verdes como trabalhos “reais”. De que forma isso fortaleceria os EUA?

FARSA. Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel. Trump concorreu a outro mandato não por saber minimamente como transformar os EUA para o século 21. Ele concorreu para ficar fora da cadeia e se vingar daqueles que, com evidências reais, tentaram responsabilizá-lo perante a lei. Duvido que ele já tenha passado cinco minutos estudando a força de trabalho do futuro.

Portanto, Trump retornou à Casa Branca com a cabeça ainda repleta de ideias dos anos 70. De volta ao poder, ele lançou uma guerra comercial sem aliados nem nenhuma preparação séria – razão pela qual ele altera suas tarifas quase que diariamente – e sem compreender a medida em que a economia global é atualmente um ecossistema complexo no qual produtos são montados a partir de componentes fabricados em vários países.

E então ele nomeia para travar essa guerra um secretário de Comércio que acredita que milhões de americanos estão mortos de vontade de substituir os trabalhadores chineses “que aparafusam pequenos parafusos para fabricar iPhones”.

CONFIANÇA. Mas essa farsa está prestes a afetar todos os americanos. Ao atacar os aliados americanos mais próximos – o Canadá, o México, o Japão, a Coreia do Sul e a União Europeia – e sua maior rival, a China, ao mesmo tempo deixando claro que favorece a Rússia em vez da Ucrânia e prefere indústrias de energia que destroem o meio ambiente a indústrias voltadas para o futuro, e o planeta que se dane, Trump está provocando uma grave perda de confiança global nos EUA.

O mundo percebe agora os EUA de Trump exatamente na forma que o país está se tornando: uma nação delinquente, liderada por um ditador impulsivo e desconectado em relação ao Estado de Direito e a outros princípios e valores constitucionais americanos.

E você sabe o que os aliados democráticos dos americanos fazem com Estados delinquentes? Liguemos alguns pontos.

RISCOS. Primeiro, eles deixam de comprar títulos do Tesouro como antes. Portanto, os EUA precisarão oferecer-lhes taxas de juros mais altas para que isso aconteça – o que afetará toda a economia americana, do financiamento de carros até o financiamento imobiliário, passando pelo custo dos serviços da dívida nacional, em detrimento de tudo mais.

“Será que as decisões espasmódicas e os impostos aduaneiros do presidente Trump estão fazendo com que os investidores do mundo se afastem do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA?”, questionou um editorial do Wall Street Journal, no dia 13, sob o título “Existe um novo prêmio de risco para os EUA?”.

É cedo demais para dizer, mas não para questionar, já que os rendimentos dos títulos continuam subindo e o dólar continua se enfraquecendo – sinais clássicos de uma perda de confiança que não precisa ser muito grande para surtir um impacto significativo sobre toda a nossa economia.

Outra coisa: os aliados vêm deixando de acreditar nas instituições americanas. O Financial Times noticiou no dia 14 que a União Europeia “está distribuindo telefones descartáveis e laptops básicos para alguns funcionários que viajam aos EUA para evitar o risco de espionagem, uma medida tradicionalmente reservada para viagens à China”. A UE deixou de acreditar no estado de direito nos EUA.

A terceira coisa que pessoas de outros países têm feito é dizer a si mesmas e aos seus filhos – e eu ouvi isso repetidamente na China poucas semanas atrás – que talvez não seja mais uma boa ideia estudar nos EUA. O motivo: acham que seus filhos e parentes poderão ser presos arbitrariamente e deportados para prisões salvadorenhas.

Isso é irreversível? Minha única certeza hoje é que, em algum lugar por aí, enquanto você lê este texto, existem indivíduos como o pai biológico de Steve Jobs, um sírio que veio para os EUA na década de 50 cursar um doutorado na Universidade de Wisconsin, alguém que planejava estudar nos EUA, mas que agora pensa em ir para o Canadá ou para a Europa.

Se o país encolheu tudo isso – sua capacidade de atrair os imigrantes mais enérgicos e empreendedores do mundo, o que o permitiu ser o centro mundial de inovação; o poder de atrair uma parcela desproporcional da poupança mundial, o que o permitiu viver além de suas possibilidades por décadas; e sua reputação de defensores do estado de direito – com o tempo veremos EUA menos prósperos, menos respeitados e cada vez mais isolados.

Mas espera aí, você pode dizer, a China também não continua extraindo carvão? Sim, continua, mas com um plano de longo prazo para eliminá-lo gradualmente e usar robôs para fazer o trabalho perigoso e prejudicial à saúde dos mineradores.

PLANEJAMENTO. E eis a questão. Enquanto Trump faz seu “planejamento” – divagando sobre qualquer assunto que lhe pareça uma boa política num determinado momento – a China planeja a longo prazo.

Em 2015, um ano antes de Trump virar presidente, o então primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, revelou um plano de crescimento voltado para o futuro chamado “Made in China 2025”. O plano começou perguntando: qual será o motor de crescimento no século 21?

Pequim fez então enormes investimentos nos componentes desse motor para que as empresas chinesas fossem capazes de dominá-lo no país e no exterior. Estamos falando de energia limpa, baterias, veículos elétricos e autônomos, robôs, novos materiais, máquinas, ferramentas, drones, computação quântica e inteligência artificial.

O Nature Index mais recente mostra que a China se tornou “líder global em produção de pesquisa em bancos de dados em química, ciências da terra e ambientais e ciências físicas – e é o segundo em ciências biológicas e ciências da saúde”.

Isso significa que a China deixará os EUA para trás? Não. Pequim está cometendo um erro enorme se pensa que o restante do mundo vai deixar a China suprimir indefinidamente sua demanda interna por bens e serviços para que seu governo possa continuar subsidiando indústrias exportadoras e tentar fabricar tudo para o mundo inteiro, deixando os outros países esvaziados e dependentes. Pequim precisa reequilibrar sua economia, e Trump está certo em pressioná-la a fazêlo.

JOGADA. Mas a arrogância constante de Trump e sua imposição intermitente de tarifas não são uma estratégia – não quando se enfrenta a China no 10.º aniversário de sua política Made in China 2025. Se o secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, realmente acredita no que declarou estupidamente, que Pequim está “jogando com um par de dois” apenas, então alguém por favor me avise quando for noite de pôquer na Casa Branca, porque eu gostaria de jogar. A China construiu um motor econômico que lhe dá opções.

A questão para Pequim – e para o restante do mundo – é: como a China usará todos os superávits que gerou? Investindo na construção de um Exército mais ameaçador? Em mais ferrovias de alta velocidade e rodovias de seis pistas para cidades que não precisam delas?

Ou em mais consumo e serviços domésticos ao mesmo tempo que se oferece para construir a próxima geração de fábricas e cadeias de fornecimento chinesas nos EUA e na Europa, com estruturas de propriedade 50-50? Nós precisamos encorajar a China a fazer as escolhas certas. Mas pelo menos a China tem opções.

Compare isso com as escolhas que Trump está fazendo. Trump está minando o sagrado estado de direito americano, afastando os aliados do país, enfraquecendo o valor do dólar e destruindo qualquer esperança de unidade nacional. Trump fez até os canadenses boicotarem Las Vegas porque eles não gostam de ouvir que logo os americanos serão donos de seu país.

Então, me diga, quem está jogando com um par de dois? Se não parar com seu comportamento delinquente, Trump destruirá tudo o que tornou os EUA fortes, respeitados e prósperos. Nunca em minha vida eu temi tanto pelo futuro dos EUA. •

Thomas L. Friedman, o autor deste artigo, é colunista do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Publicado pelo O Estado de S. Paulo, em 20.04.25, com tradução e Guilherme Russo.