sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Bolsonaro e as joias: entenda em detalhes o caso que envolve ex-presidente e aliados

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu entorno são foco de uma investigação da Polícia Federal (PF) que apura um suposto esquema de negociação ilegal de joias dadas por delegações estrangeiras à Presidência da República.

Segundo Polícia Federal, itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer Jair Bolsonaro (Reuters)

Segundo a PF, os itens de alto valor foram omitidos do acervo público e vendidos para enriquecer o ex-presidente.

A revista Veja publicou nesta quinta-feira (17/8) que o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e um dos principais envolvidos no caso, pretende confessar em breve que teria negociado a venda das joias a mando do ex-presidente. Cid está preso.

A intenção de confessar foi revelada à revista pelo advogado de Cid, Cezar Bitencourt, que posteriormente confirmou também a informação ao jornal Folha de S. Paulo e à TV Globo.

Pouco depois da publicação da Veja, o portal G1 e a Folha divulgaram que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a quebra do sigilo fiscal e bancário do presidente e sua esposa, Michelle Bolsonaro.

A Polícia Federal havia pedido a quebra de sigilo do casal em meio à investigação sobre as joias.

Ainda segundo o portal G1, Moraes autorizou a cooperação da Polícia Federal com autoridades dos Estados Unidos, para que a quebra de sigilo de Bolsonaro também aconteça neste país.

Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa do STF não confirmou que a quebra de sigilo foi autorizada por Moraes.

O que se sabe até agora sobre este intricado caso?

Operação da PF

Na última sexta-feira (11/8), a PF deflagrou a Operação Lucas 12:2 — o nome foi uma alusão ao versículo bíblico que diz que "não há nada escondido que não venha a ser descoberto".

Quatro pessoas foram alvo da operação, autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF): Mauro Cesar Barbosa Cid; o pai dele, o general do Exército Mauro Cesar Lourena Cid; o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e tenente do Exército Osmar Crivelatti; e o advogado Frederick Wassef, que já defendeu Bolsonaro e familiares em processos judiciais.

Apesar de ter o nome mencionado pela PF como integrante de uma suposta "organização criminosa", Bolsonaro não foi alvo da operação.

Moraes disse haver "fortes indícios de desvios de bens de alto valor patrimonial" no caso das joias negociadas pelo entorno do ex-presidente.

O ministro do STF é relator do inquérito que investiga a atuação de uma suposta milícia digital contra a democracia.

Segundo a PF, os crimes apurados na operação foram lavagem de dinheiro e peculato (desvio de bem público).

A operação atingiu integrantes do núcleo mais próximo de Bolsonaro um mês depois de ele ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ficar inelegível por oito anos.

Presentes recebidos

A investigação envolve os presentes de alto valor que Bolsonaro recebeu quando ainda era presidente da República (2019-2022).

Por lei, tais objetos devem ser incorporados ao acervo da Presidência da República, ou seja, são bens públicos e não pessoais. Uma exceção são itens considerados "personalíssimos", como roupas, perfumes e alimentos.

Mas, segundo os investigadores, esses presentes de alto valor foram incorporados ao patrimônio pessoal de Bolsonaro e negociados com fins de enriquecimento ilícito.

Os objetos sobre os quais a investigação da PF se debruçou são, por enquanto: um kit da marca suíça Chopard, dois relógios (um da marca suíça Rolex, acompanhado por joias, e outro da marca suíça Patek Philippe) e duas esculturas douradas folheadas a ouro.

No entanto, os investigadores não descartam que mais peças tenham sido apropriadas indevidamente por Bolsonaro.

Abaixo, mais detalhes sobre cada um desses itens.

Kit da Chopard

Em outubro de 2021, durante uma viagem do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, à Arábia Saudita, o governo Bolsonaro recebeu um kit com itens da marca suíça Chopard que incluía: uma caneta, um anel, um par de abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio.

Esse kit teria sido trazido pelo próprio ministro na sua bagagem pessoal sem ser declarado e permanecido guardado no cofre do prédio do ministério por mais de um ano, até ser registrado e enviado ao acervo da Presidência da República.

Segundo a investigação da PF, esse kit saiu do Brasil no mesmo voo oficial que levou Bolsonaro, sua família e seus assessores à Flórida, nos Estados Unidos, no dia 30 de dezembro de 2022, o penúltimo dia de seu mandato.

Levadas a leilão pela Fortuna Auctions, uma casa de leilões sediada em Nova York, nos Estados Unidos, com valor inicial de US$ 50 mil (R$ 248 mil, segundo cotação atual) — mas com valor estimado entre US$ 120 mil (R$ 596 mil) e US$ 140 mil (R$ 695 mil) —, as peças não foram arrematadas "por circunstâncias alheias à vontade dos investigados", disse a PF em relatório.

Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que Bolsonaro entregasse esse kit à Caixa Econômica Federal (CEF) — os bens foram posteriormente "resgatados" na casa de leilão e devolvidos ao governo pela defesa do ex-presidente.

Relógio Patek Philippe

O relógio da marca suíça Patek Philippe foi recebido possivelmente, segundo a PF, durante visita oficial de Bolsonaro ao Bahrein, um pequeno país no Golfo Pérsico, em novembro de 2021.

Pela investigação, esse item foi negociado junto com o Rolex que fazia parte de um dos presentes dados pelo governo da Arábia Saudita (ler mais abaixo).

Segundo a PF, o relógio Patek Philippe foi extraviado do acervo oficial "diretamente para a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro".

A investigação aponta que fotos do item foram enviadas por Mauro Cesar Barbosa Cid para um contato cadastrado em sua agenda como "Pr Bolsonaro Ago/21" em 16/11/21, ainda durante a viagem ao Bahrein.

Cid também enviou ao mesmo contato outra foto, do certificado do relógio, indicando que a peça era original de uma loja daquele país, ainda conforme a PF.

Esculturas folheadas a ouro

Segundo a PF, Bolsonaro recebeu, em novembro de 2021, uma escultura de barco folheada a ouro em um seminário com empresários árabes e brasileiros no Bahrein.

A outra escultura, também folheada a ouro, mas em formato de palmeira, não teve a origem identificada.

As duas peças recebidas por Bolsonaro como presentes oficiais também foram levadas no voo oficial para Orlando, antes de o ex-presidente concluir seu mandato.

Dali, os itens foram encaminhados para lojas especializadas nos estados americanos da Flórida, Nova York e Pensilvânia, "para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta".

Segundo a PF, mensagens de Mauro Cid indicam que os objetos foram avaliados com valores baixos porque eram apenas "folheadas", e não de ouro maciço.

Não há menção na investigação quanto ao valor das peças em reais.

Rolex e joias

Em viagem oficial à Arábia Saudita, em outubro de 2019, Bolsonaro recebeu um kit com: anel, abotoaduras, um rosário islâmico ("masbaha") e um relógio da marca Rolex, de ouro branco com diamantes.

Foi um presente pessoal do rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz Al Saud, ao ex-presidente.

Esse Rolex foi, segundo a PF, negociado junto com o relógio Patek Philippe por US$ 68 mil (R$ 346.983,60 na cotação da época).

A PF não estimou o valor dos outros itens em seu relatório.

Segundo os investigadores, esse kit também foi transportado no último voo oficial de Bolsonaro como presidente, em dezembro de 2022.

Mas acabou desmembrado por seus assessores: o relógio foi vendido a uma empresa especializada, e as joias, entregues para venda em outra.

Assim como o kit da Chopard, esse kit teve que ser "resgatado" por aliados de Bolsonaro após decisão do TCU, em março, que determinou que eles teriam que ser devolvidos ao governo federal.

Segundo a PF, essa "operação de resgate" envolveu novamente Mauro Cid — e também Frederick Wassef, amigo de Bolsonaro e ex-advogado dele.

A recompra teria acontecido em uma loja localizada no complexo Seybold Jewelry Building na cidade de Miami, na Flórida.

"Primeiramente o relógio Rolex DAY-DATE, vendido para a empresa Precision Watches, foi recuperado no dia 14/03/2023, pelo advogado Frederick Wassef, que retornou com o bem ao Brasil, na data de 29/03/2023. No dia 02/04/2023, Mauro Cid e Frederick Wassef se encontraram na cidade de São Paulo, momento em que a posse do relógio passou para Mauro Cid, que retornou para Brasília/DF na mesma data, entregando o bem para Osmar Crivelatti, assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro", diz a PF em seu relatório.

Segundo a investigação, Cid chegou ao Brasil em 28 de março com as joias, e Wassef, no dia seguinte, com o Rolex.

O kit foi remontado e entregue em uma agência da Caixa Econômica Federal, em Brasília, em 4 de abril de 2023.

A PF lembra que, no caso do relógio Patek Philippe, ele não havia sido registrado, portanto, não foi necessária a mesma "operação de resgate" para "recuperar o referido bem, pois, até o presente momento, o Estado brasileiro não tinha ciência de sua existência."

Frederick Wassef foi um dos alvos da operação da PF (Reuters)

Segundo a PF, Bolsonaro, assim como outros investigados, são suspeitos de "desviar presentes de alto valor recebidos em razão do cargo pelo ex-Presidente da República e/ou por comitivas do governo brasileiro, que estavam atuando em seu nome, em viagens internacionais, entregues por autoridades estrangeiras, para posteriormente serem vendidos no exterior".

A investigação apontou, além disso, que os montantes obtidos dessas vendas eram convertidos em dinheiro em espécie e ingressavam no patrimônio pessoal do ex-presidente por meio de intermediários e sem utilizar o sistema bancário formal, visando ocultar a origem, localização e propriedade dos valores.

Uma troca de mensagens em janeiro deste ano por Mauro Cid e Marcelo Câmara, assessor especial da Presidência da República, incluiu um áudio no qual Cid faz alusão a 25 mil dólares que pertenceriam a Bolsonaro.

"Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em 'cash' aí. Meu pai estava querendo inclusive ir ai falar com o presidente. (...) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (...). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?", diz Cid.

A investigação da PF mostrou também, a partir da análise de mensagens no WhatsApp, que Mauro Cid teve a ajuda do seu pai, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, para negociar os itens e repassar o dinheiro das vendas.

Uma das evidências disso, segundo a PF, é reflexo dele em uma foto da caixa de uma das esculturas folheadas a ouro que não foi vendida.

Lourena Cid é amigo pessoal de Bolsonaro. Os dois se formaram juntos na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Durante o governo Bolsonaro, Lourena Cid ocupou um cargo na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).

Mais joias

Também na última sexta-feira (11), uma investigação paralela sobre outras joias — também dadas pela Arábia Saudita — que corria na Justiça Federal paulista, foi enviada ao STF a pedido do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo.

Essa investigação foi aberta em maio deste ano, após a apreensão de um conjunto formado por colar, anel, relógio e brincos de diamantes pela Receita Federal no aeroporto internacional de Guarulhos.

As joias seriam presentes para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Os itens foram encontrados na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque.

Como não foram declaradas, as peças acabaram confiscadas.

Pela lei, todo bem avaliado em mais de R$ 5 mil (US$ 1.000) deve ser declarado na chegada ao país.

A revelação sobre a apreensão dos objetos foi feita, em março, pelo jornal Estadão.

Segundo o MPF, o caso sob investigação em São Paulo tem ligação com os fatos em análise no STF.

Reflexo de Mauro Cesar Lourena Cid em caixa de escultura folheada a ouro

Outro lado

Na sexta-feira passada (11), após a operação da PF, a defesa de Jair Bolsonaro afirmou em nota que o ex-presidente "jamais apropriou-se ou desviou quaisquer bens públicos" e que coloca sua movimentação bancária à disposição das autoridades.

A defesa também afirmou que ele "voluntariamente" pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) em março deste ano a entrega de joias recebidas "até final decisão sobre seu tratamento, o que de fato foi feito". A BBC News Brasil está buscando um novo posicionamento do ex-presidente.

À Folha, o advogado criminalista Cezar Roberto Bittencourt, responsável pela defesa do tenente-coronel Mauro Cid, disse nesta quinta (17) que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro não se beneficiou do negócio.

"Ele confessa que comprou as joias evidentemente a mando do presidente", disse Bittencourt à Folha, acrescentando que procurará Alexandre de Moraes na próxima segunda-feira para conversar sobre a confissão.

A jornalistas, Wassef disse na terça (15) que sua viagem aos EUA teve "fins pessoais".

Ele acrescentou que comprou o Rolex com dinheiro vivo, "do meu banco", e declarou a transação à Receita Federal.

"Comprei o relógio, a decisão foi minha, usei meus recursos, eu tenho a origem lícita e legal dos meus recursos", afirmou.

Na entrevista, ele disse ainda que o objetivo da compra era "devolvê-lo à União, ao governo federal do Brasil, à Presidência da República, e isso inclusive por decisão do Tribunal de Contas da União".

Segundo o advogado, o pedido de compra não partiu de Bolsonaro ou de Cid. Ele se recusou a informar para quem entregou o relógio.

"O governo do Brasil me deve R$ 300 mil", acrescentou Wassef, mostrando um recibo de compra de US$ 49 mil.

Ele justificou o pagamento em dinheiro vivo para conseguir um "desconto". "Consegui US$ 11 mil dólares (de desconto). Se comprasse com cartão de crédito, pagaria no Brasil com 5% de IOF."

A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Osmar Crivelatti.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 17.08.23

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Um governo apegado a fórmulas antigas

Lula continua dedicado a buscar no passado perdido uma visão de futuro. A postura vale especialmente para a economia (mas também para política externa), e seu exemplo mais recente foi o relançamento do PAC.

Há consenso sobre o fato de o PAC original não ter sido uma história de sucesso. Ao fim do período petista a economia contraiu, o desemprego aumentou e fracassaram alguns dos principais projetos de industrialização.

Qual a razão de se insistir agora mais uma vez em indústria naval, diante do fracasso das anteriores? Ou de se utilizar estatais e bancos públicos no mesmo tipo de empreitadas que trouxeram maus resultados?

A mesma indagação vale para a expansão da política fiscal, bancada agora por uma enorme campanha de aumento de receita, já que é mínimo o esforço de contenção de despesas públicas. Se gasto é vida e PAC acelera o crescimento, como assim estamos vivendo mais de uma década perdida?

Uma parte da resposta está na inexistência no Brasil de um acompanhamento de políticas públicas que indique se vale a pena prosseguir nelas. Para permanecer no inglês, o tal do “spending review” não passa de “wishful thinking”.

Mas a outra parte da resposta está no fato de que a análise que Lula 3 faz de suas iniciativas no passado é essencialmente política. Ele considera que as políticas (fiscal ou econômica via PAC) não estavam erradas em si, mas foram vítimas de sabotagem, interrupções e de um golpe aplicados por adversários políticos insatisfeitos com um “governo popular”.

Em outras palavras, na visão do atual governo o que deu de errado foi causado por golpes, e não pela natureza equivocada das políticas. E teria menos culpa ainda o conjunto de ideias que dão tanta relevância ao papel do Estado. Não é outro o símbolo de Lula exibindo Dilma Rousseff (a impichada “mãe” do PAC) no relançamento do programa.

Lá fora, curiosamente, são colegas presidentes de esquerda que estão dizendo a Lula como é perigoso ficar preso ao passado. O do Chile, ao lembrá-lo de que valores democráticos são universais e é o que está em jogo na guerra da Ucrânia. O da Colômbia, ao reiterar que combustíveis fósseis não podem mais ser uma proposta de futuro, e é o que está em jogo na transição energética.

Aqui dentro quem indica o perigo para o presidente é o Centrão. É profundamente irônico que seja um personagem com as características de Arthur Lira, mais afeito às truculências da política cotidiana do que a ideias literárias, que ofereça a Lula um “momento Proust”: a busca do tempo perdido é uma tarefa inútil. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 17.08.23

Embargos de declaração, esse recurso tão maltratado

 Ora, se a legislação permite que o juiz ou tribunal elaborem decisões omissas, obscuras ou contraditórias (está na lei) sem que, por isso, sejam nulas, por qual razão o Judiciário constrói uma jurisprudência defensiva tão contundente?

Lenio Luiz Streck - "Precisamos, portanto, falar sobre a jurisprudência defensiva predatória. Do contrário, o direito brasileiro será sempre essa esquizofrenia."

Como figura pública que participa dos debates cotidianos do país, recebo amostragens acerca dos problemas da aplicação do Direito. Um deles diz respeito aos desgastados e desidratados embargos de declaração. Por isso a coluna de hoje é sobre esse tema, em homenagem aos causídicos de todo o Brasil.

Lê-se na jurisprudência — e com apoio de setores da doutrina — que, no julgamento dos embargos de declaração, "o magistrado não é obrigado a se manifestar sobre todos os dispositivos invocados pelas partes quando resolve fundamentadamente a lide, expondo de maneira clara e precisa as razões que lhe formaram o convencimento". Em muitas versões, em vez de convencimento lê-se "livre convencimento". Quer dizer: não é obrigado a responder porque possui duas vezes o livre convencimento: para decidir e depois para dizer que não vai aceitar os embargos.

Outro tipo de decisão em embargos é: no nosso sistema processual, o juiz não está adstrito aos fundamentos legais apontados pelas partes. Exige-se, apenas, que a decisão seja fundamentada, aplicando o juiz, ao caso concreto, a solução por ele considerada pertinente, segundo o princípio do livre convencimento fundamentado do magistrado.

Ora, se a legislação permite que o juiz ou tribunal elaborem decisões omissas, obscuras ou contraditórias (está na lei) sem que, por isso, sejam nulas, por qual razão o Judiciário constrói uma jurisprudência defensiva tão contundente?

A boa doutrina deveria dizer: em face do artigo 93, IX, da Constituição, uma decisão omissa, por exemplo, deveria ser nula. Mas o Brasil, benevolentemente, permite que se corrija esse tipo de falha por meio de um recurso chamado embargos. De todo modo, isso até funcionaria bem, se os embargos de declaração fossem respeitados como recurso e não como "algo que atrapalha". Já ouvi magistrados dizendo "lá vem os advogados com esses embargos".

Meu ponto: quando a fundamentação é exigência do direito positivo (está na lei e na CF) — nem estou falando aqui de princípios, já que a discussão filosófica seria de segundo nível —, não deveríamos precisar do instituto "embargos". Mas já que o temos, e é um bom "second best", que ao menos fosse respeitado.

De sorte que os embargos viraram a "geni" do processo. Uma sentença por mais que seja omissa, dificilmente será consertada via embargos. Na maioria das decisões lê-se o que acima está transcrito. Ou coisas como "nada há a esclarecer" e/ou "a parte está pretendendo rediscutir a prova". Ou estou exagerando?

Há uma posição (repetida em vários outros) em acordão assim: "Inexistente qualquer das hipóteses de Embargos, não merecem acolhida embargos de declaração com nítido caráter infringente". Mas sequer o que foi alegado nos embargos é discutido. Lendo o acórdão, não se sabe. E se o causídico fizer embargos sobre esses embargos, será multado.

Veja-se: se uma decisão é omissa ou contraditória, automaticamente ao ser consertada via embargos trará efeitos modificativos. Quantas vezes a omissão não tem o condão de "virar o jogo"?

Veja a contradição interna do próprio acordão que critica "embargos com nítido caráter infringente". Ora, embargos com efeitos infringentes são permitidos pela lei. No caso, se o acordão diz isso sem fundamentar nitidamente está incorrendo em uma contradição. Uma contradição lógica.

Não esqueçamos que: a) o artigo 489 do CPC, espelhado no artigo 315 do CPP, diz que não estará fundamentada a decisão que... e seguem seis incisos; b) ora, se a fundamentação é deficitária, isso significa no mínimo uma omissão. Sanada, os efeitos infringentes são de consequência natural.

Há uma ligação lógico-estrutural entre o artigo 1.022 e os artigos 489 (CPC) e 315 (CPP).

Na verdade, os embargos deveriam ser extirpados do ordenamento, obrigando, assim, a uma fundamentação mais aprofundada que seria sancionada por nulidade (embora sabendo que o sistema, fosse feita essa alteração, rapidamente se adaptaria; afinal, quantas alterações foram feitas com o novo CPC e que são ignoradas solenemente nos tribunais, inclusive no que tange aos embargos de declaração, proibidos de ser manejados contra decisão que inadmite REsp e RE nos tribunais?).

Bastaria que se respeitasse a coerência e a integridade. Está lá no 926. Não precisaríamos dessa discussão sobre "precedentes" à brasileira. Nem precisaríamos de embargos. Mas quando temos dificuldade em fazer cumprir os próprios artigos 926 e 489, a coisa fica ainda mais difícil.

Já vi casos em que o assessor não quis reconhecer seu erro cometido no "esboço da sentença" e, assim, nega-se o recurso até mesmo quando este apenas aponta erro de premissa, algo como "a decisão tratou de outro caso..." (houve erro no recorta e cola). Como há um padrão de negativas, esses tipos de embargos caem na vala comum.

Há casos em que o apelante opôs embargos de declaração alegando ausência de manifestação expressa sobre os dispositivos legais que nortearam o acórdão proferido pelo órgão fracionário. O pior de tudo é que nem sequer o tal acórdão — nem no relatório nem no corpo — menciona quais foram os dispositivos alegados pelo embargante. E sabem por quê? Para que o acórdão possa ser repetido em recorta e cola, no melhor método "Ctrl+C e Ctrl+V". Uma violação constante erga ommnes — um recorta e cola pronto para ser usado tabula rasa em outros casos.

Esse é um dos périplos enfrentados pela pobre e sofrida classe dos advogados de Pindorama. "Ganhar" embargos passou a ser uma benção. Um favor real, tipo "Lord Chanceler". Assim como é o caso dos Habeas Corpus nas instâncias superiores, que para ser concedidos (de ofício — sic) não devem ser conhecidos.

Como na maior parte das vezes os embargos estão intimamente relacionados ao pré-questionamento, lá se foram as possibilidades recursais. Estamos tratando de liberdades... e propriedades. Mais uma vez, isso mostra que "somos um milhão de advogados e dezenas de carreiras jurídicas... e fracassamos".

E, atenção: muitas vezes, por se tratar, em segundo grau, de matéria exclusivamente de fato, as portas do REsp e RE estão fechadas (rediscussão de prova). O único caminho é dos embargos. Explico: o que fazer se a decisão estiver eivada de omissões e contradições? Nesses casos, os embargos são a última chance de consertar o erro judiciário. Claro que, no limite, se o órgão fracionário do tribunal proferir decisão deixando de apreciar o que foi alegado nos embargos, há precedente (ao que consta persuasivo e não qualificado) que admite REsp sobre negativa de vigência-validade do artigo 1022 que dá direito aos embargos (v.g., 4ª Turma do STJ, REsp 1.911.324, rel. min. Antonio Ferreira) [1]. Muito difícil, de todo modo. Terá que ser uma obra de arte. O primeiro problema será a decisão da vice-presidência do tribunal que inadmitirá o REsp. E poderá ser por meio de uma decisão eivada de omissões e contradições. Paradoxalmente, segundo o STF, não cabem embargos (ver aqui) contra essa decisão. Vida dura a de advogado, pois não?

Precisamos, portanto, falar sobre a jurisprudência defensiva predatória. Do contrário, o direito brasileiro será sempre essa esquizofrenia.

Insisto: se a Constituição estabelece que a decisão deva ser fundamentada e esta é uma garantia fundamental, parece(ria) óbvio que nenhuma decisão pode ser obscura, omissa ou contraditória (ou ambígua) e, ao mesmo tempo, válida juridicamente. Simples, pois. Questão lógica, inclusive. De respeito ao próprio ordenamento, à própria Constituição.

Os que militam no foro sabem do que falo. Paradoxalmente, alguns acórdãos dizem: "o apelante deveria ter oposto embargos com efeito expressamente prequestionador" (só que, no caso referido acima, foi exatamente isso que fez o causídico!) ou "deveria ter interposto um recurso especial alegando violação do artigo 1.022 do CPC" (claro, isso depois de "Inês-já-estar-morta").

O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz e o tribunal têm, sim, o dever de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas partes. Nem que seja para dizer que elas não são... juridicamente relevantes! E isso por uma questão de democracia. Para que serve, enfim, a garantia do contraditório? Esse é o ponto. O que é isto — a fundamentação? Estou escrevendo livro sobre isso. Como é possível que se considere normal que o Judiciário não precise enfrentar os argumentos das partes? Que seja para dizer que os argumentos são irrelevantes, ruins ou não prestam. O cidadão tem, no mínimo, um direito de saber por que seus argumentos não servem.

Os embargos de declaração são um "autêntico legado" da chamada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769. Também são um jeitinho brasileiro, uma espécie de Macunaíma do Direito, conforme magnificamente escreve o juiz João Luis Rocha do Nascimento, em sua dissertação na Unisinos (Do cumprimento do dever de fundamentar as decisões judiciais: morte dos embargos de declaração, o Macunaíma da dogmática jurídica), editora Juspodivm [2].

Atuando como "válvula de escape", os "EDs" impedem os necessários desgastes advindos da acumulação da pressão decorrente das nulas decisões judiciais não fundamentadas, as quais deveriam servir de estopim para ocorrência de indispensáveis reformas jurídicas e administrativas.

[1] Aqui uma observação: a empresa Jusbrasil copia a jurisprudência dos tribunais e coloca à disposição cobrando por isso. Interessante. E os direitos autorais? Também há artigos de professores. Por exemplo, o ConJur oferece esse leque de artigos e entrevistas e não cobra do utente. E mais interessante: o Jusbrasil coloca parte do acórdão e, para obter o resto — que é público, não é da empresa — exibe um modo de cobrar mensalidade. Essa é uma questão que particularmente não entendo. Alguém já reclamou disso ou perdi algo nessa discussão? Se perdi ajudem-me a entender o mecanismo que permite isso.

[2] Vale referir também o excelente livro de Rodrigo Mazzei, Embargos de Declaração, editora Thoth

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor, doutor em direito e advogado sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br. Publicado originalmente n'Consultor Jurídico, em 17.08.23

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Quer dizer que não era ideologia?

‘Militares envolvidos no escândalo das jóias estão sujeitos a punições severas’, diz brigadeiro


Brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex Presidente do Superior Tribunal Militar

A graça irresistível revelava antes o ceticismo de quem não se deixa conduzir por grupos ou arautos da salvação. Despir o rei e exibi-lo é uma das mais velhas funções da crônica política. Gregório de Matos escolheu a poesia, Millôr Fernandes, a frase lapidar. Nesta quarta-feira, o escritor que golpeou como poucos o mundo político brasileiro completaria cem anos.

É impossível não lembrar dele diante do escândalo da venda de joias da Presidência. É já sabido o impacto do caso na caserna. E continuará tendo a partir dos desdobramentos do que foi apreendido com o general Mauro Cesar Lourena Cid.

Diante da barafunda do bolsonarismo, o brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar, lembra ter alertado no passado para “a violação dos pilares ‘hierarquia e disciplina’, base de sustentação da instituição militar e dogma sagrado do enaltecido mito de Caxias”. E prossegue: “O presidente (Bolsonaro), um capitão que não teve condição de prosseguir na carreira militar, exatamente por ter, rotineiramente, violado esses dogmas, se valeu das motivações originadas pela execrável política partidária brasileira para mobilizar radicais e chegar à Presidência”.

Segundo ele, “enaltecendo interesses patrióticos, mobilizou seguidores que execravam verdadeiro mar de lama dentre os quais, infelizmente, militares da ativa e da reserva que, se esquecendo dos compromissos assumidos em juramento solene ao ingressarem na carreira das armas, se associaram e apoiaram inimagináveis ações de afronta e desrespeito às instituições e solapando, inclusive e principalmente, a nobreza presidencial”.

Ferolla é duro: “Com as fardas contaminadas pela hipocrisia e dejetos da baixa política, tentaram envolver as Forças Armadas que imaginavam liderar”. Mas, segundo ele, predominou “a inabalável estrutura das instituições democráticas e, no momento, a caserna luta para recuperar o tradicional e histórico respeito do povo brasileiro, origem dos abnegados servidores e combatentes profissionais”.

Agora é a vez de o Judiciário se manifestar. O brigadeiro conclui: “Quanto aos militares envolvidos nos delitos, se condenados e sem qualquer alusão às origens profissionais, caberá à Justiça Militar julgar e aplicar o estabelecido no Código Penal Militar, estando sujeitos, inclusive, a severas penas que incluem a perda de posto e patente”.

Após o relato de Ferolla, impossível não lembrar a reação de Millôr diante da conta bilionária pendurada no erário para pagar indenizações às vítimas da ditadura. Tal como então, pode-se aplicar agora a mesma pilhéria à turma que pregava o golpe. “Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?” •

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Jprnalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Constitucionalismo imperial

O protagonismo atual do Supremo Tribunal não decorreu de um ato de vontade da Corte, mas por deliberada transferência de competências dos outros dois Poderes

Com a redemocratização e a centralidade normativa da Constituição, era esperado que o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhasse relevo no trabalho diário de consolidação de uma nova ordem jurídica firmada nos valores da liberdade e na consequente imposição de limites ao poder estatal. Dos sonhos de 1988 à realidade do presente, andamos muito e relativamente bem. Não se trata de dizer que foi perfeito nem que poderia ter sido melhor; a marcha do processo histórico, em especial nas complexas democracias contemporâneas, é traçada em linhas sinuosas, entre terrenos difíceis e acidentados, com inarredáveis riscos de retrocessos e suas forças do atraso. Todavia, ao elevar o talento e a inteligência humana, é a via democrática o caminho possível para sermos livres e, assim, guiarmos o progresso civilizatório, ampliando janelas de oportunidade, estudo, trabalho e mobilidade social ascendente à cidadania brasileira.

Nestes 35 anos de caminhada constitucional, apesar de tantos avanços notórios, há uma circunstância que, por seus agudos efeitos deletérios, não mais pode ser ignorada: o grave apequenamento institucional da classe política. Entre as variáveis decadentes, a falência moral e estrutural dos partidos políticos tem peso determinante. É cediço que, sem partidos autênticos, a democracia fica à mercê dos piores falseamentos. Isso porque é dever das agremiações partidárias preparar e selecionar os quadros mais capazes para o exercício digno da função política, afastando os aventureiros ou mal-intencionados. No trabalho pedagógico, deve-se promover uma cultura política séria, historicamente referenciada e com clara visão dos problemas brasileiros e internacionais, enaltecendo, com rigor, os predicados de ética comportamental e da decência de procedimentos. Algo, no entanto, se perdeu; temos partidos aos borbotões, mas nos faltam políticos modelares.

Infelizmente, a teoria cedeu ao pragmatismo existencial raso e imediato. Ao invés de valores, optou-se pelas cifras. Temos atualmente partidos bilionários, embora paupérrimos no bom trabalho democrático. Aliás, a recente votação da reforma tributária, reprisando outras sangrias do passado, foi regada a ouro das emendas parlamentares. Conforme informações da imprensa, foram liberados, num único dia, ao redor de R$ 5,3 bilhões aos congressistas para, pasmem, cumprirem o dever de votar um projeto de lei. O fato chama a atenção. Não se trata de exigir um puritanismo angelical à política, mas há de existir um limite. No desvão da honra, a crença do cidadão nas instituições é a cada dia mais miserável. Olha-se para Brasília, mas não se enxerga o Brasil. Fala-se em democracia, mas o que se vê é o desmando estabelecido. E lá, no espelho da lei, a imagem da impunidade.

Ora, diante da sereia monetária, a política abriu mão de sua autoridade. E, sem a autoridade do Executivo e do Legislativo,

o poder de decisão sobre questões fundamentais da democracia foi gradualmente transferido ao Judiciário, em especial para o Supremo Tribunal Federal. Ou seja, o protagonismo corrente do Supremo não decorreu de um ato de vontade da Corte, mas por deliberada transferência de competências do Parlamento e do Executivo. Tal lógica defectiva de poder correu no tempo e, hoje, os eleitos democraticamente pelo povo pouco podem fazer pelos eleitores. Sim, a democracia vota, mas não manda. O voto elege, mas não tem a palavra final.

Em recente publicação na Harvard Law Review, o prestigiado professor de Stanford Mark A. Lamley afirmou que “estamos na era da Suprema Corte imperial”, que “não é apenas a mais ativista de todas as Cortes do século passado, mas cada vez mais o locus de todo o poder legal”, vindo a asseverar que “é um Tribunal que está consolidando seu poder, enfraquecendo sistematicamente os demais braços do governo, federal ou estadual, que possa ameaçá-lo, ao mesmo tempo que enfraquece direitos individuais”. Como se vê, os desafios e pulsões do constitucionalismo moderno não traduzem exclusividade brasileira. Talvez a grande questão em aberto seja bem calibrar o grau de exposição das Cortes Constitucionais sobre matérias políticas ordinárias que deveriam – e devem – ser analisadas prioritariamente pelo Legislativo e o Executivo. Agora, o que fazer quando a política institucionalizada trai e abandona seus deveres com a democracia?

Decididamente, a saída não é transformar a vida num litígio permanente. Sentenças judiciais resolvem casos jurídicos, mas não solucionam problemas políticos, podendo, inclusive, agravá-los. O atual desarranjo em curso, além de aviltar a alta função do STF, expõe demasiadamente a Corte, retirando-a de sua estratégica posição de retaguarda institucional. Sem cortinas, o corrente constitucionalismo imperial não deixa de ser o último freio de uma engrenagem de poder avariada, cujos metais batem a ferro quente. Ainda há tempo para besuntar a máquina e evitar consequências imprevisíveis. Para tanto, a política deverá voltar a privilegiar as melhores tradições de prestígio, mando e decisão. Não se trata de dinheiro, mas de poder. Um poder político que a democracia outorga aos eleitos. E só aos eleitos. 

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr, o autor deste artigo, é Advogado e Conselheiro de Instituto Millenium. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Vida digna para os mais idosos

Alta do número de idosos em planos de saúde, constatada pela ANS, ameaça o modelo de negócios e cria pressão sobre o SUS; é dever do País cuidar da dignidade dessa população

A população brasileira está envelhecendo, como mostrou o Censo 2022. Essa transição demográfica impõe dois desafios ao País. Primeiro, é preciso aproveitar a última janela do chamado bônus demográfico com vistas ao aumento da produtividade da população economicamente ativa, condição indispensável para que o Brasil escape da sina de ser um eterno país de renda média. Segundo, Estado e iniciativa privada precisam se estruturar o quanto antes para garantir que essa população cada vez mais velha tenha uma vida digna – o que significa, entre outras precondições, ter acesso a serviços de saúde de qualidade, sejam públicos ou privados.

A pedido deste jornal, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) fez um levantamento que revelou que o número de jovens (20 a 39 anos) que utilizam planos de saúde no País caiu 7,6% entre 2013 e 2023, enquanto o de idosos (60 anos ou mais) cresceu 32,6% no mesmo período. Entre estes, houve um aumento de 41,9% dos usuários na faixa de 70 a 74 anos e de 39,5% na faixa de 80 anos ou mais. Some-se a isso o salto no número nos pedidos de reembolso, como também mostrou o Estadão, e se vê que não há como as empresas manterem suas contas no azul sem aumentar as mensalidades dos planos de saúde.

Se a transformação no perfil etário dos usuários de planos de saúde e as fraudes representam enorme risco para o equilíbrio financeiro das empresas, ainda maispreo cu pan teéo transbordamento desse desarranjo econômico empresarial para a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) num futuro muito próximo. Além de estar há décadas subfinanciado e de ter sido submetido a seu maior teste de estresse durante a pandemia de covid-19, o SUS está na iminência de ter de suportar um aumento significativo na demanda por seus serviços.

É consensual entre os especialistas do setor de saúde suplementar o diagnóstico segundo o qual, a serem mantidas as condições atuais, não tardará até que os planos de saúde sejam considerados “artigos de luxo” para os idosos no Brasil. A bem da verdade, ter um plano de saúde já é algo inalcançável para a esmagadora maioria da população. Basta dizer que 8 em cada 10 brasileiros acorrem ao SUS hoje quando precisam de atendimento médico, dos procedimentos mais simples aos mais complexos. A tendência é esse número aumentar no curto prazo.

Historicamente, os beneficiários mais jovens, em geral mais saudáveis, sempre contribuíram para o equilíbrio financeiro das empresas de saúde suplementar. Os mais idosos, por sua vez, quando precisam de atendimento médico, não raro demandam serviços mais complexos – portanto, mais caros. Não é preciso ser um ás da contabilidade para perceber que esse modelo de negócios está com os dias contados. Cada vez mais idosos, sem condições financeiras para arcar com a mensalidade de planos de saúde cada vez mais caros, baterão às portas do SUS em busca de atendimentos cada vez mais especializados e onerosos.

Diante desse cenário desafiador, é fundamental que a sociedade, por meio de seus representantes, reflita sobre o papel do SUS como viabilizador de um imperativo constitucional: o acesso à saúde. É o caso de lembrar que o legislador constituinte tratou a saúde como “um direito de todos e um dever do Estado”. Olhar com o devido cuidado para as necessidades do SUS é, antes de tudo, cumprir o que determina a Constituição. Houve tentativas no Congresso de repensar o modelo de financiamento e dotar o SUS, um patrimônio nacional, de condições materiais e humanas para seguir prestando serviços relevantíssimos à sociedade. Esse movimento, infelizmente, parece ter sido deixado para trás.

O envelhecimento da população não deve ser encarado como um estorvo. É antes algo a ser celebrado. Entretanto, para aproveitar plenamente os benefícios desse processo, é essencial que o Estado, a iniciativa privada e a sociedade em geral atuem de forma conjunta, buscando soluções que garantam uma assistência digna e de qualidade aos idosos. O desafio é grande, mas com um compromisso coletivo, o País tem todas as condições de construir um futuro mais saudável e inclusivo para todos. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Como agem os cupins da República

O suposto esquema de venda de joias da União por auxiliares de Bolsonaro não surpreende; ao contrário, é perfeitamente compatível com o espírito antirrepublicano do bolsonarismo



Caiu a máscara

Deveria ser perturbadora, por si só, a suspeita de que um esquema de venda de joias e outros artigos valiosos da União foi operado durante e pouco depois do mandato de um presidente da República. Entretanto, sendo o presidente o sr. Jair Bolsonaro, essa gatunice, caso venha a ser confirmada pelas investigações da Polícia Federal (PF) ora em andamento, não causa espanto, pois é perfeitamente compatível com o espírito antirrepublicano do bolsonarismo.

A rigor, o bolsonarismo nunca teve a ver com política, na acepção clássica do termo. Aliás, são noções antitéticas. Por princípio, o bolsonarismo sempre esteve orientado pela exclusão de tudo e de todos que lhe sejam diversos, jamais pelo diálogo e pela concertação de interesses. É possível que os bolsonaristas nem sequer concebam a mera ideia de “interesse público”, comprometidos que estão com a defesa inarredável dos interesses particulares do líder de um clã – que em certos aspectos lembra as organizações mafiosas.

Ora, para todos os que se movem na esfera pública imbuídos desse espírito, o vezo patrimonialista, que está na essência do bolsonarismo, decerto nem é percebido como tal. A apropriação de recursos do Estado soa, para esses analfabetos cívicos, como algo mais que aceitável – soa natural.

A ascensão de alguém como Bolsonaro à Presidência levou ao paroxismo a ideia segundo a qual, uma vez legitimado pela vontade popular manifestada nas urnas, a um governante seria dado tomar posse do aparato do Estado para dele fazer o uso que melhor lhe convier. Assim, a partir de sua chegada ao topo da carreira política, Bolsonaro passou a ser visto – e a agir – como uma espécie de mentor dos cupins da República, sendo ele mesmo um desses cupins, e dos mais vorazes de que se tem notícia ao longo de quase 134 anos de história republicana.

Bolsonaro olhou para o Estado brasileiro e viu um apêndice de sua família. Usou-o ao longo da vida, em benefício próprio ou de seus familiares e aliados, de acordo com as possibilidades que cada cargo público lhe proporcionava à época. O caso da suposta venda ilegal de joias da União seria apenas mais uma amostra desse inacreditável uso da estrutura pública para conduzir negócios particulares.

Por mais estarrecedores que sejam para grande parte dos cidadãos os indícios de corrupção, lavagem de dinheiro e peculato tornados públicos até o momento, para alguém como Bolsonaro, que tratou as Forças Armadas como se fossem “suas”, ordenou a troca de agentes da PF em investigações sensíveis para ele e fez da Polícia Rodoviária Federal sua guarda pretoriana, só para citar alguns exemplos, tratar-se-ia de algo absolutamente previsível. Essa mixórdia, afinal, é a marca indelével de seu governo. Todas as ações oficiais e extraoficiais de Bolsonaro na Presidência, e mesmo antes disso, concorreram para o uso desabrido da máquina pública para o atendimento de necessidades pessoais.

A chegada de Bolsonaro à Presidência parece ter sido a senha para que os inimigos do pacto constitucional e do Estado Democrático de Direito se sentissem livres para dispor da estrutura estatal como bem entendessem, comportando-se como se as referências éticas e cívicas da República tivessem sido substituídas por um código de conduta do submundo.

A mentira e o desrespeito pela coisa pública se tornaram valores positivos – e é espantoso que tantos militares, alguns com destacada carreira e ainda na ativa, tenham se deixado enredar por esse movimento que, em tudo, é a negação dos ideais das Forças Armadas.

O bolsonarismo legitimou a ação dos parasitas que se refestelam com recursos do Estado, um bando de desqualificados que jamais teriam espaço em qualquer governo minimamente decente. O caso das joias, se não é o mais grave da terrível passagem de Bolsonaro pelo poder, é talvez o mais significativo: segundo as investigações, mobilizou-se o aparato estatal, de funcionários ao avião presidencial, para passar nos cobres um punhado de presentes que Bolsonaro ganhou na condição de presidente e que não lhe pertenciam. Coisa de gente imoral. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 16.08.23

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava os sintomas e tratamentos; veja lista

Visto de forma negativa, era comum associar sentimento ao desconforto físico e problemas de raciocínio; entre as terapias estão: dormir, conversar, passear ou ter relações sexuais

Paixão era considerada doença na Idade Média, e médico de reis indicava sintomas e tratamentos — Foto: Ford Madox Brown

Ao longo da história, o amor aparece como um dos motores que impulsionou a humanidade — mas também costuma ser considerado um mistério, e passou por transformações. Na Idade Média, por exemplo, este sentimento não era concebido como é hoje: ao invés de ser algo doce ou romântico, ele era visto como algo perigoso, que desviava as pessoas de seus deveres e responsabilidades.

Este aspecto é evidenciado pelas histórias de época, que ilustram como os apaixonados se rendiam ao desejo e provocavam tragédias épicas, além de dilemas morais. Desde Romeu e Julieta até Tristão e Isolda, a maioria das lendas medievais imortalizou a intensidade dos sentimentos amorosos, mas também trouxe à tona as consequências devastadoras de se entregar sem reservas ao amor passional.

Socialmente, acreditava-se que aqueles que se deixavam levar por seus impulsos amorosos eram vítimas de uma aflição da alma, chamada de “amor louco” ou “heroico”. Acreditava-se que os amantes eram possuídos por uma força sobrenatural que os privava de sua racionalidade e os levava a uma emoção desenfreada que desafiava as normas sociais estabelecidas. Como resultado, a paixão era vista como algo a ser condenado e temido, pois ameaçava a estabilidade e a ordem.

De acordo com um escrito da Universidade Autônoma de Barcelona, Arnau de Vilanova, renomado médico de reis e papas da Idade Média, entendia o amor heróico — nome dado na medicina medieval à doença da paixão amorosa — como uma deformação de eros, o “amor-paixão” em grego. Os escritos de Arnau indicam que, naquela época, o apaixonado se submetia à pessoa amada como um vassalo faria com o seu senhor.

Ao contrário de outros autores ou personalidades relevantes da época, Vilanova se destacava por considerar o amor heroico como um sintoma, mais do que uma doença. Segundo ele, a paixão era consequência de um erro de julgamento. Este equívoco provocava um “calor excessivo” gerado pela antecipação do prazer que o indivíduo sentia em relação ao objeto de seu amor. Para o médico, os sintomas da paixão amorosa eram:

Exaustão;

Enfraquecimento do corpo;

Palidez;

Insônia;

Falta de apetite;

Tristeza na ausência da pessoa amada;

Alegria na proximidade dela.

Em seu tratado, Arnau de Vilanova informava, também, que o tratamento médico consistia em: mostrar os defeitos da pessoa amada ou distrair-se do pensamento com atividades agradáveis, como dormir, conversar com amigos, passear pela natureza, ouvir música ou ter relações sexuais com jovens e, acima de tudo, viajar — sendo quanto mais longe, melhor.

A 'doença dos sentidos'

Além disso, a maioria dos Padres da Igreja se baseava em teorias da paixão propostas pelos filósofos e médicos gregos e latinos. Eles também consideravam o amor apaixonado como algo desordenado e perigoso, capaz de levar à loucura e desviar o indivíduo da virtude, classificando assim a paixão como uma “doença dos sentidos” que corrompia a alma.

Conforme indicado no ensaio científico “O ‘amor que dizem heróico’ ou aegritudo amoris”, de Maria Eugenia Lacarra Lanz (ou Eukene Lacarra Lanz), crítica literária e medievalista, o texto que teve maior influência no conhecimento da “doença de amor” foi o “Viaticum”, de Constantino, o Africano — figura proeminente da Escola de Salerno (a primeira escola médica medieval) do século XI.

O texto, que foi amplamente difundido, servia como um manual dirigido a viajantes sem acesso a cuidados médicos. Nele, havia um capítulo sobre esta “doença”. Constantino afirmava que o eros era uma enfermidade cerebral relacionada ao desejo, e que causava uma alteração nos pensamentos. Assim como Galeno — médico, cirurgião e filósofo grego no Império Romano —, ele a localizava no cérebro, e não no coração.

Para ele, a falta de controle emocional era atribuída às tristezas e choros dos apaixonados. Além disso, a obsessão pelo amado dificultava a compreensão de tudo o que não estava relacionado ao amor e àquela pessoa desejada. “O amor romântico/paixão é uma motivação ou um estado orientado a um objetivo que leva a emoções ou sensações como euforia ou ansiedade em quem tem esse desejo”, conclui um estudo publicado no Journal of Neurophysiology.

A pesquisa reconhece a evidência científica sobre a neurociência do amor, que indica que neurotransmissores como a dopamina, adrenalina e serotonina no cérebro causam sintomas físicos experimentados quando se está apaixonado. Segundo Sandra Magirena, médica e sexóloga clínica, o passar do tempo e o surgimento de movimentos sociais questionaram visões de mundo dos antepassados.

— Os laços amorosos foram evoluindo e se modificando ao longo da história da humanidade, dependendo muito dos contextos socioculturais. É comum confundir o que é o amor como um sentimento e o que é a sexualidade. Daí surgem os equívocos, que é o que acredito ter ocorrido na época medieval — afirmou ela, ressaltando que na época havia uma dominação do masculino e, portanto, a noção do prazer, ligada ao feminino, não existia ou tinha aprovação.

A sexóloga destacou, também, que “não se deve confundir amor com emoções tóxicas”, pois estas últimas desencadeiam dependência emocional e relacionamentos dependentes. Para ela, o amor “puro” é “a emoção mais perfeita que os humanos têm, e é a única que pode ser livremente manifestada e expressa com toda a sua intensidade”: “Não é doentio, pelo contrário. O amor cura”.

Victoria Vera Ziccardi, a autora deste artigo, é articulista do La Nacion — Buenos Aires. Publicado no Brasil por O GLOBO, em '6.08.23


16/08/2023 04h00  Atualizado 16/08/2023

Millôr Fernandes foi comentarista mordaz da política brasileira

"Livre como um táxi", humorista criticou poderosos, desafiou a censura e deixou lições para o jornalismo

O jornalista Millôr Fernandes em seu ateliê, em Ipanema — Foto: Leonardo Aversa / 21-09-1994

‘Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira para matar.’ O aviso é de Millôr Fernandes, o autoproclamado guru do Méier. Mas vá perguntar aos poderosos que viveram a desventura de entrar em sua mira.

Millôr faria cem anos hoje. A imprensa gosta de efemérides e já celebrou seu talento como frasista, desenhista, dramaturgo, tradutor e poeta. Faltou lembrar o comentarista mordaz da política brasileira.

Prefeitos, governadores, deputados: ninguém escapava ao risco de uma pedrada. “Política é a mais antiga das profissões”, dizia.

Suas tiradas revelam um espírito insubmisso a qualquer regime: “As principais formas de governo são as ruins e as muito piores”; “A diferença entre a galinha e o político é que o político cacareja e não bota o ovo”; “Todo governante se compõe de 3% de Lincoln e 97% de Pinochet”.

Era perda de tempo tentar enquadrá-lo em caixinhas ideológicas. “A definição mais próxima que você pode dar de mim é de anarquista”, disse, numa rara entrevista na TV.

Millôr tinha predileção por zombar dos inquilinos do Planalto. Enquanto os mortais escreviam longos artigos, ele fulminava presidentes com uma só frase. Sobre Collor: “Deu ao povo uma coroa de espinhos e ainda ficou com os 30 dinheiros”. Sobre FH: “Fernando Henrique Cardoso acha que essas são as três palavras mais bonitas do mundo”. Sobre Lula: “A ignorância lhe subiu à cabeça”.

Quando Sarney assumiu no lugar de Tancredo, o guru resumiu o sentimento nacional com duas palavras: “Fomos bigodeados”.

Na ditadura, Millôr debochou dos militares e fundiu a cuca dos censores. “Quem é de oposição é porque não é de muito falar”, ironizou, em 1973. Em outros momentos, ele não conseguiu driblar a tesoura. Sua revista Pif-Paf, lançada um mês depois do golpe de 1964, sobreviveu por apenas oito edições.

Todo jornalista já ouviu sua máxima “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. O guru também deixou outras lições sobre o ofício. Uma delas: “Em política, o que te dizem nunca é tão importante quanto o que você ouve sem querer”.

Sua independência era inegociável. Para preservá-la, evitava se enturmar e até atender ligações de poderosos. Millôr morreu em 2012, fiel ao lema que bolou para O Pasquim: “Livre como um táxi”.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de política n'O GLOBO. Publicado originalmente em 16.08.23

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Queda de braço

Por ter “poder demais”, a Câmara pretende impor ao governo suas vontades.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão — Foto: Foto: Cristiano Mariz/09-11-2021

O cancelamento da reunião que os líderes partidários teriam na casa do presidente da Câmara para discutir a votação do arcabouço fiscal só confirma que Arthur Lira preside a Casa com mão de ferro e tem, mesmo, muito poder, como comentara o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lira teria ficado irritado com o comentário e mostrou sua força adiando uma discussão de tema fundamental para o governo federal.

Haddad havia dito que a Câmara não podia usar o poder que tem para humilhar o Executivo e o Senado, referindo-se ao fato de a palavra final sobre o assunto agora estar com a Câmara, depois de votações nas duas Casas. A Câmara está “com um poder que nunca vi na minha vida”, disse Haddad em podcast do jornalista Reinaldo Azevedo divulgado ontem.

Tem razão o ministro da Fazenda e, justamente por ter “poder demais”, a Câmara pretende impor ao governo suas vontades. Quer aumentar o fundo eleitoral, já escandalosamente alto — cerca de R$ 5 bilhões — e que também as emendas de comissões, no valor de R$ 7,5 bilhões, sejam impositivas, como outras emendas. Mas quer também controlar o ritmo dos repasses, impedindo que o governo controle o fluxo de acordo com suas necessidades.

Com a dispersão dos partidos políticos, e o aumento do poder do Congresso em relação ao Orçamento, o presidencialismo de coalizão deixou de ter eficácia, pois funcionava justamente pela capacidade do governo de distribuir verbas de acordo com seus interesses, e não os dos parlamentares. Uma das questões mais delicadas da negociação política é a compatibilização do tempo dos parlamentares com o dos governantes.

No Brasil, até recentemente os governantes determinavam o tempo dos políticos, consequência de um hiperpresidencialismo de fato que vigorava. O máximo que o governo admitia era pagar a lealdade de um parlamentar, ou de seu partido, com cargos e nomeações. Mais adiante, com o mensalão e o petrolão, passou a fazer parte dos acordos a participação em esquemas corruptos, mascarados com objetivos políticos supostamente maiores, como financiamentos de campanhas políticas.

Com o controle que ganhou no governo Bolsonaro, que simplesmente delegou ao Congresso a execução do Orçamento, passamos a ter na prática um tipo de parlamentarismo, cujo ápice foi o orçamento secreto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional, para alívio do então presidente eleito, Lula. A fragmentação partidária, que as cláusulas de barreira e o fim das coligações proporcionais estão lentamente coibindo, impede que os governos, sejam eles de que ideologia forem, tenham uma maioria parlamentar estável.

A maioria será sempre teórica, e o governo tem de fechar os olhos para dissidências da base aliada. Na atual situação, com um governo enfraquecido em disputa com políticos que tentam se fortalecer confrontando-o, tudo é possível. Até o governo ganhar, mas pagando um preço muito maior que em tempos ditos normais. É o que está acontecendo agora nas votações fundamentais para o governo, como arcabouço fiscal, reforma tributária e outros temas delicados.

A relação com a Câmara, quando ela tem um presidente como Arthur Lira, como já teve Eduardo Cunha, sempre será delicada para os governantes. Quando, adicionada a essa dificuldade prática, temos, como hoje, e como no governo Dilma, uma dissonância ideológica, todo cuidado é pouco. Lula é um líder popular, diferentemente de Dilma, mas, em seu terceiro mandato, já não tem o brilho político que hipnotizou até líderes mundiais como Barack Obama.

Precisa primeiro mostrar serviço na recuperação da economia e, cada vez que se desvia da rota para tomar atitudes já vistas que deram errado, mais problemas tem com o Congresso e com o mercado financeiro, que ora vibra com boas perspectivas, ora teme seus arroubos populistas.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 15.08.23

Novo PAC é como voltar o relógio em 20 anos

Com um novo programa, Lula quer estimular a economia. A proteção da Amazônia, do meio ambiente e do clima são irrelevantes. O governo parece não ter aprendido nada com os erros dos PACs anteriores, opina Alexander Busch na Deustche Welle Brasil.

Lula apresentou o Novo PAC Desenvolvimento e Sustentabilidade em cerimônia no Rio de JaneiroFoto: Tomaz Silva/Agência Brasil

No início da semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi celebrado como o salvador da Amazônia na cúpula em Belém . Dois dias depois, com o mesmo barulho, apresentou um programa para a economia, o chamado Novo PAC Desenvolvimento e Sustentabilidade.

Mas nele, as questões ambientais quase não desempenham papel. Muito pelo contrário: há vários projetos no programa que são diametralmente opostos ao que Lula anunciou no início da semana.

Um dos itens de maior destaque são os investimentos em petróleo e gás sob o guarda-chuva da estatal Petrobras . Também está prevista a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, cuja autorização o Ibama acaba de recusar.

O pacote também inclui a continuação da construção da usina nuclear Angra 3 , iniciada há 40 anos. Do Mato Grosso, a ferrovia Ferrogrão deve ligar áreas de cultivo de soja através da Amazônia até portos na região Norte. O traçado passa por reservas indígenas é bastante controverso – e não apenas entre os ambientalistas.

São todos projetos que terão um preço alto, porque, literalmente, "poluem" a matriz energética do Brasil. E, por outro lado, aumenta o risco de que a floresta seja destruída ainda mais rapidamente. Com o Novo PAC, o novo papel de Lula como principal líder na proteção do meio ambiente do Sul Global fica enfraquecido.

Repetição de erros

Mas não é só isso: há um grande perigo de que se repitam erros ocorridos desde o início do PAC 1, em 2007, no primeiro governo Lula, e do PAC 2, executado pelo governo Dilma Rousseff, a partir de 2011 

Acima de tudo, isso significa os grandes escândalos de corrupção que vieram ao público a partir de 2014: além da Petrobras, como empreiteiras do Brasil estiveram particularmente envolvidos.

Funcionava assim: a Petrobras financiava os projetos. As construtoras, como a Odebrecht, os executavam – e repassavam parte de sua renda de volta aos políticos que aprovavam os projetos.

Este foi um ciclo lucrativo para os envolvidos, que custou muitos bilhões ao Estado, mas fez muito pouco para o país em termos de infraestrutura. Enormes somas de dinheiro foram gastas em projetos completamente irrealistas.

Alguns dos projetos envolvidos em corrupção massiva agora estão prestes a recomeçar: como a expansão da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, que já custou bilhões nos governos anteriores do PT. Ou a Transnordestina, a ligação do interior do Nordeste aos portos da região. Angra 3 também não produziu um watt de eletricidade, mesmo depois de muitos bilhões terem vazado em canais obscuros.

"Os PACs 1 e 2 não foram bem-sucedidos", criticou Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B e com uma década de atuação no Banco Mundial. "Na verdade, foram programas muito problemáticos."

Provas impressionantes do fracasso são dois projetos emblemáticos no Rio de Janeiro: os grandes estaleiros que deveriam ser usados ​​para a construção de plataformas de petróleo e petroleiros para a Petrobras estão todos falidos. E os teleféricos, que deveriam ligar vários pontos da cidade, como o Complexo do Alemão ao centro do Rio, não funcionam mais.

Conclusão: como o Novo PAC nada mais é do que uma cópia de seus dois antecessores, dificilmente resolverá os grandes problemas do Brasil em infraestrutura, habitação e saneamento.

É mais provável que um ciclo com muitos participantes interessados ​​comece novamente.

Há mais de 30 anos, o jornalista Alexander Busch, o autor deste artigo,  é correspondente da América Latina do grupo editorial Handelsblatt e do jornal Neue Zürcher Zeitung . Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política na Colônia e em Buenos Aires. Quando não está viajando pela região, fica baseado em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 15.08.23

Tentativa de aumentar fundo eleitoral é constrangedora para o Parlamento

Defensores do aumento não estão satisfeitos nem com R$ 4,9 bilhões aprovados em 2022 e querem mais

O Congresso Nacional — Foto Pedro França/Agência Senado

Não tem cabimento a movimentação de parlamentares para aumentar o fundo eleitoral, que financia as campanhas políticas. O Congresso articula mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com o objetivo de elevar os recursos, contrariando a expectativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de manter em 2024 os mesmos R$ 4,9 bilhões de 2022. Defensores do aumento falam em subir o valor para R$ 5,7 bilhões, mesma quantia aprovada pelo Congresso em 2021 e vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, a manutenção dos gastos em R$ 2,1 bilhões (valor de 2018 corrigido pela inflação) teria sido mais que suficiente.

O fundo eleitoral surgiu em 2015, depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as doações feitas por empresas para campanhas políticas. A decisão ocorreu em meio à sucessão de escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava-Jato envolvendo contribuições por caixa dois. A intenção do Judiciário era moralizar as campanhas eleitorais, mas os políticos descobriram outras formas de desvirtuá-las.

Os argumentos para defender a gastança eleitoral são os mais estapafúrdios. Sustenta-se que o fundo atual é insuficiente para os partidos divulgarem todos os seus candidatos num país de dimensões continentais. “É preciso chegar a um valor que seja compatível com o tamanho do Brasil e das eleições”, diz o relator da LDO, deputado Danilo Forte (União-CE). Se o fundo eleitoral fosse realmente insuficiente para realizar as campanhas políticas, não sobraria dinheiro para fazer churrascadas, construir piscinas, comprar talheres e taças de vinho, alugar frotas de carros milionárias e outros descalabros perpetrados com recursos públicos destinados às eleições.

Evidentemente, nem todos os candidatos ou partidos fazem mau uso dos recursos. Em tese, o fundo é importante para proporcionar equilíbrio na disputa. As prestações de contas claudicantes ao TSE mostram, porém, que na prática não funciona assim. O controle sobre os recursos é cada vez mais frágil. Não por culpa da Justiça Eleitoral. Mas porque as maracutaias detectadas nas análises das contas partidárias tendem a ficar impunes. Há sempre uma movimentação do Congresso para perdoá-las. Agora mesmo, quando parlamentares pressionam pelo aumento do fundo eleitoral, tramita no Congresso uma PEC que concede a maior anistia da História recente aos partidos.

Há também quem defenda, como o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira, que o fundo seja corrigido ao menos pela inflação. Seria uma medida razoável, desde que a base adotada fosse o ano de 2020, quando a despesa somou R$ 2 bilhões, mas não os R$ 4,9 bilhões de 2022. No Brasil de “dimensões continentais”, falta dinheiro para atender às necessidades mais básicas. O governo anunciou bloqueio de R$ 1,5 bilhão no Orçamento deste ano (metade em saúde e educação), porque a estimativa de gasto superou o teto. Diante disso, deveria causar constrangimento aos parlamentares reivindicar o aumento do fundo eleitoral.

Editorial de O GLOBO, em 15.08.23

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Malandragem: a origem

Terra sem regra e rei? De modo algum! Terra com muitas leis e muitos mandões. Tantos tribunais, legalidades e códigos que, querendo ou não, somos todos legais-ilegais – ou seja: formidáveis malandros. 

Fui dos poucos (seguindo a trilha pioneiramente aberta por Antonio Candido) a estudar o malandro (por meio de Pedro Malasartes) e a tentar caracterizar sociologicamente a malandragem – esse estilo de navegação social guiado por uma ética dúplice, conforme sugeri em 1979, em Carnavais, Malandros e Heróis.

Não é tarefa simples realizar isso no Brasil porque herdamos hierarquias ao lado de uma relativa obediência a regras. O inferior obedece à lei e ao superior que a canibaliza, como decreta o nosso personalismo. Em outras palavras, quem administra, comanda, governa leis, regras e normas, com elas se confunde e possui o paradoxal direito de não as obedecer, precisamente porque elas fazem parte de sua pessoa.

Esse vínculo do “mandão” ou do “chefe” com a regra é o fundamento das realezas, nas quais o rei era o centro absoluto do poder, que não tinha lugar sem a sua pessoa. Pertenciam ao rei o direito e o poder de mandar. Sua palavra era lei e não podemos esquecer que o Brasil a recebeu – e foi desenhado por um rei e uma corte que saíram do seu local de origem (Portugal), realizando um movimento singular do centro para a periferia colonial, num gesto único na história europeia.

Conta a anedota que Napoleão teria dito que d. João VI (o fujão) teria sido o único monarca europeu que o enganou. De minha parte eu diria que dom João VI inventou a malandragem quando largou, mas não abandonou, o seu reino. Nesse extraordinário movimento, ele ficou “entre reinos”. Ou, para ser mais preciso, ele criou o que Victor Turner chamou de liminaridade e, com isso, instituiu uma ética dúplice, pois fez nascer num só reino duas nobrezas, elites, capitais e – é óbvio – muita ambiguidade. Nesse caso, a lealdade não poderia ser territorial e institucional, mas pessoal.

Seria leviano sugerir que dom João engendrou a malandragem e, com ela, o personalismo que administra a vida de todos nós. Pois quem é capaz de não nomear leais companheiros muito mais valiosos do que protocolos?

Uma das consequências dessa institucionalização de escolher sempre os dois – ou seja: a lei e o amigo, Lisboa e o Rio de Janeiro, a República e a aristocracia sem o império, tem como resultado viver debaixo da sombra de uma densa imprecisão. O formidável meio-termo da terceira margem do rio, como especulou Guimarães Rosa. Pressionados por uma ética dúplice, perseveramos sendo marxistas católicos, espíritas bíblicos, católicos umbandistas, socialistas capitalistas e fascistas anárquicos. Não temos culpa, mas se formos descobertos temos vergonha...

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo, escritor e autor de "Carnavais, Malandros e Heróis". Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 09.08.23 

Rússia aprisiona milhares de civis ucranianos no limbo

Pelo menos 4.000 pessoas capturadas durante a invasão permanecem em cativeiro, sem paradeiro conhecido, assistência jurídica, causa aberta ou possibilidade de troca como prisioneiros de guerra. Entre eles, o espanhol García Calatayud, de 75 anos,

A prisão IK-2, em Pokrov, 85 quilômetros a leste de Moscou, em uma imagem de fevereiro de 2021. (Foto de Kirill Zarubin - AP)

Um dos buracos negros da invasão da Ucrânia encerra milhares de civis em prisões secretas russas, sem acusações, sem direitos, quase sem identidade. Em um limbo que viola o direito internacional do começo ao fim. Um desses internos se chama Igor Steblevski. Sua história é chocante. É contada por seu filho, Roman, de 38 anos. Ele faz isso devagar, sério, cético e incrédulo. Steblevski, seu pai, morava em Hostomel com a esposa, cerca de 30 quilômetros a noroeste de Kiev, a capital ucraniana. Foi por aí que as tropas russas entraram em 24 de fevereiro de 2022. Quase um mês depois, em 22 de março, a esposa de Steblevski, Lyudmila Shevchenko, foi atingida por um morteiro enquanto estava na cozinha. Ele tinha então 62 anos e ela 54. Ele tentou fazer com que os militares russos o ajudassem a levá-la a um hospital em um carro blindado. Foi aí que começou o confinamento de Steblevski. Apenas algumas semanas atrás, Roman viu uma imagem dele novamente. Ele apareceu com o cabelo raspado em um site russo não oficial que relatou seu cativeiro.

O Centro para as Liberdades Civis (CLC), galardoado no ano passado com o Prémio Nobel da Paz , conseguiu documentar a detenção em prisões russas de 4.000 civis ucranianos, presos desde o início da ofensiva russa. Eles estimam que o número pode ser muito maior. O comissário ucraniano para os direitos humanos, Dmitro Lubinets, estima esse número em 20.000.

Igor Steblevski, civil ucraniano detido na Rússia, antes do início da guerra e durante seu cativeiro

O caminho para este buraco negro começa com a prisão de um cidadão ucraniano pelos militares russos durante a ocupação. Ele é frequentemente acusado de colocar suas operações em risco. Ele é enviado para um "campo de filtragem", um centro onde é revistado e interrogado. De lá é transferido para uma prisão russa, normalmente pela vizinha Bielo-Rússia, principalmente no caso daqueles que, como Steblevski, foram detidos no centro do país. E a chave é lançada. Eles entram em um limbo de guerra.

A primeira grande dificuldade para as famílias dos detidos é saber se e onde vivem. Roman tentou de tudo desde que parou de se comunicar com seu pai. Este engenheiro de formação, responsável por uma empresa vidreira em Vishneve, a sudoeste de Kiev, zona que os russos não atingiam, lembra que falava com ele uma vez por semana. "Os atiradores", diz ele de seu escritório, "atiram naqueles que viram com telefones celulares". Agora ele mostra em seu celular as fotos dos estragos que o morteiro que atingiu Shevchenko causou na casa de Hostomel, um terceiro andar em uma área residencial.

Ele entrou em contato com os vizinhos, com voluntários do município; Ele vasculhou as redes, denunciou o desaparecimento aos órgãos de busca, ONGs e polícia. Ela levou 10 dias para reconstituir o que aconteceu, que seu pai tentou ajudar seu companheiro, que eles se separaram quando ela ficou gravemente ferida e nunca mais se viram. Roman prefere não continuar com a história de Shevchenko por respeito à mãe, que é muito idosa e ainda aguarda notícias.

Durante semanas, ele continuou perguntando. Ele se moveu para ver se algum dos soltos tinha visto seu pai. Assim foi. Até duas pessoas que foram liberadas. “Um deles me deu detalhes sobre meu pai que eu só poderia saber se tivesse compartilhado uma cela com ele”, acrescenta. Eles disseram a ele que haviam conhecido Steblevski em uma prisão russa em Bryansk, cerca de 380 quilômetros a sudoeste de Moscou. Nessa mesma prisão é onde o CLC acredita, segundo seus dados, que o pai de Roman tenha estado em algum momento. Agora não sabem o paradeiro dele. Essa prisão foi reformada e os presos, possivelmente, transferidos.

Mikhailo Savva, um doutor em Ciências Políticas de 54 anos de origem russa, sabe como é uma dessas prisões. Ele passou oito meses na prisão de Krasnodar por defender os direitos humanos. E isso na Rússia tem punição. Hoje refugiado na Ucrânia desde 2015, Savva é membro do Conselho de Especialistas da CLC. Ele afirma que o que eles fazem para obter informações sobre esses presos e trabalhar para sua libertação é pressionar seus advogados em território russo, espremer a lei, respeitar esse marco legal e suas brechas e entrar. "A Rússia não pode negar a existência dos direitos humanos e aproveitamos essa lacuna." Ele diz isso de outra maneira: "Eles têm que ter medo de nós, medo de torturar."

Um valenciano, preso por colocar em risco a segurança da Rússia

Um exemplo para entender isso é o do espanhol Mariano García Calatayud , de 75 anos. “Enviamos 50 solicitações, literalmente, e só atenderam uma. Foi o Ministério Público da Crimeia [península ucraniana sob ocupação], em abril passado”. A resposta dizia que García Calatayud foi detido por colocar em risco a segurança da Rússia. Este valenciano, do município de Carlet, trabalhava há oito anos na província de Kherson ajudando crianças deslocadas pela guerra no leste iniciada em 2014. Em março de 2022 participou de uma manifestação contra a ocupação russa que lhe custou o prender prisão.

Conforme relata Savva, a autoridade tributária russa afirma que continua com as investigações. “O direito internacional não prevê que algo assim dure um ano e meio”, diz. Mas ao prisioneiro espanhol acontece a mesma coisa que aos demais. “Se a investigação terminasse e houvesse um caso aberto”, continua Savva, “ele teria o direito de ter um advogado para auxiliá-lo lá”. E não é o que acontece. Novamente, limbo: nem são prisioneiros de guerra, nem estão detidos sob firme acusação. Muitos acreditam que são simplesmente reféns da guerra do Kremlin.

Mariano García Calatayud, em imagem cedida por À Punt NTC

García Calatayud está em uma prisão de Simferópol construída no outono passado. Não porque o Ministério Público russo disse isso, mas porque ex-reclusos daquela prisão deram provas disso. Dizem que é alguém que fala espanhol, que fala muito alto, xinga muito… “Também disseram”, continua Savva, “que ele tem cicatrizes, hematomas, que poderiam ter batido nele… aos 75 anos ”. O CLC sustenta que a pressão da Espanha contribuiria para a causa. O Ministério das Relações Exteriores da Espanha afirmou ao saber da prisão de García Calatayud que está acompanhando o caso e está em contato com a família.

Savva, este especialista na área, tem o mesmo sentimento que Roman Steblevski expressa após meses de busca por seu pai. “Não diria que é mais difícil encontrar um civil do que um militar”, afirma o especialista do CLC, “mas é mais difícil libertá-los” – este centro conta ainda com 340 casos de civis libertados. O governo ucraniano está trabalhando no centro de coordenação para o tratamento de prisioneiros de guerra, sob o comando do general Kirilo Budanov, chefe da inteligência militar. Esta segunda-feira, o centro anunciou a libertação de mais 22 cidadãos ucranianos. Eram militares e se beneficiavam de um intercâmbio com a Rússia . Além disso, sempre com o zelo de sua missão, a Cruz Vermelha colabora nessas tarefas.

Carta da Rússia

Em novembro de 2022, Roman finalmente recebeu uma carta do Ministério do Interior da Rússia informando que seu pai estava realmente preso. "Eles me dizem", diz ele enquanto mostra a carta em seu celular, "que meu pai está detido por resistir à operação militar especial [na Ucrânia], que ele está em território russo e que sua saúde é satisfatória". Roman não está muito convencido disso, porque teve problemas cardíacos e eles podem voltar.

-Como você está?

“Eu achava que era uma pessoa forte e resiliente, mas estou começando a ter problemas de saúde.

"Como você acha que seu pai vai ser?"

―Ele é uma pessoa muito forte e inteligente, não acho que ele faça nada estúpido.

Oscar Gutiérrez, o autor desta reportagem, é Jornalista da seção Internacional do EL PAÍS desde 2011. É especialista em questões relacionadas ao terrorismo e conflito jihadista. Ele coordena as informações sobre o continente africano e está sempre de olho no Oriente Médio. É formado em Jornalismo e mestre em Relações Internacionais. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.08.23

Declaração final da Cúpula da Amazônia frustra expectativas

Documento assinado pelos líderes dos países amazônicos não inclui desmatamento zero e exclui veto a exploração de combustíveis fósseis, embora agrida o controle para integração regional e defesa do bioma.

A Cúpula da Amazônia surgiu de uma iniciativa do governo brasileiro e inclui países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)Foto: Eraldo Peres/AP Photo/picture aliança

Os líderes dos oito países que participaram da Cúpula da Amazônia não conseguiram chegar a um consenso sobre a exploração de petróleo  na região, apesar dos intensos debates nos últimos dias sobre a questão e a forte pressão dos setores da sociedade civil.

O texto final não incluía uma proposta defendida por algumas das lideranças, que desejavam vetar a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia. O documento menciona apenas o início de um diálogo entre os Estados sobre a sustentabilidade de setores como a mineração e hidrocarbonetos.

A chamada Declaração de Belém, divulgada nesta terça-feira (08/08), ressalta o objetivo comum de evitar o "ponto de não retorno da floresta amazônica", o que significa limitar o desmatamento em até 20% do bioma, de modo a impedir um processo irreversível de desertificação.

Os países concordaram em criar uma Aliança Amazônica de Combate ao Desmatamento a partir das metas nacionais, com o fortalecimento da aplicação das legislações florestais.

O documento, no entanto, não menciona metas ou prazos para a conservação florestal. A meta de desmatamento zero, defendida pelo Brasil e pela Colômbia, foi mencionada no preâmbulo da declaração apenas como "um ideal a ser alcançado".

Petro critica "conflito ético" e manda recado a Lula

Durante a cúpula, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro , fez um forte discurso pelo fim da exploração do petróleo na Amazônia  e criticou a falta de um consenso em torno de soluções para os problemas ambientais com base na ciência.

O colombiano argumentou que a Declaração de Belém deveria sinalizar com clareza o compromisso dos países de pôr fim à exploração dos combustíveis fósseis no bioma, o que acabou não caindo.

Petro criticou o distanciamento entre a classe política e os movimentos sociais, e disse haver um "enorme conflito ético, sobretudo por forças progressistas, que deveriam estar ao lado da ciência".

"A direita têm um fácil escape, que é o negacionismo. Negam a ciência. Para os progressistas, é muito difícil. Gera então outro tipo de negacionismo: falar em transições", criticou Petro. O termo "transição" é utilizado em todo o mundo justificando a continuidade da exploração dos combustíveis fósseis em meio a um processo transicional para investimentos em fontes renováveis ​​de energia.

Indígenas protestam durante a Cúpula da Amazônia em BelémFoto: Paulo Santos/AP Photo/picture aliança

A fala foi recebida como um recado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva , após o Brasil não apoiar a inclusão da exigência do fim da exploração de petróleo na Amazônia no texto final da declaração.

"Os desacordos às vezes nos permitem algumas propostas novas também", disse Petro. "A política não consegue se descolar dos interesses médicos que derivam do capital fóssil. Por isso a ciência se desespera, porque ela não está vinculada a esses interesses tanto quanto a política", observou.

"Cada vez mais o movimento social se junta com a ciência e a política cada vez mais está presa na retórica". Segundo afirmou, esta seria a razão do fracasso das Conferências do Clima da ONU.

Petro descreveu a exploração de petróleo na Amazônia como um "contrassenso" e pediu que fossem tomadas decisões para pôr fim a essa prática "sem sentido". "Não vamos colocar na declaração, mas vamos tomar decisões", destacou.

Brasil dividido sobre veto ao petróleo

Mais cedo, Lula chegou a falar em uma "transição ecológica", que disse ser uma oportunidade para a Amazônia deixar de ser fornecedora de matérias-primas para o mundo. Seu governo, porém, demonstrou estar dividido sobre a exploração de petróleo no bioma amazônico.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defendeu que a Petrobras  possa fazer pesquisas para avaliar a viabilidade de petróleo na foz do rio Amazonas .

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva , por sua vez, condenou o que chamou de "atitudes erráticas" e disse que zerar o desmatamento não será suficiente para garantir a sobrevivência da Amazônia, mas sim, o fim do uso de combustíveis fósseis .

A Cúpula da Amazônia surgiu de uma iniciativa do governo brasileiro. O objetivo principal era fortalecer a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), o único mecanismo internacional com sede no Brasil criado para promover o desenvolvimento sustentável na região.

Destaques da declaração final

A Declaração de Belém inclui ainda a criação do Centro de Cooperação Policial Internacional, com sede em Manaus, no intuito de viabilizar a integração das polícias dos oito países.

O texto também prevê a criação de um painel técnico científico da Amazônia, nos moldes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), e do Observatório Regional Amazônico, a ser instalado na estrutura da OTCA, para o compartilhamento de informações em tempo real entre os países.

Os líderes concordaram em estabelecer um Sistema Integrado de Controle de Tráfego Aéreo para o combate ao narcotráfico e outros crimes na região amazônica, além da criação de negociação financeira de fomento do desenvolvimento sustentável, com destaque para a Coalizão Verde, que reúne os bancos de desenvolvimento da região.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.08.23