quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Embargos de declaração, esse recurso tão maltratado

 Ora, se a legislação permite que o juiz ou tribunal elaborem decisões omissas, obscuras ou contraditórias (está na lei) sem que, por isso, sejam nulas, por qual razão o Judiciário constrói uma jurisprudência defensiva tão contundente?

Lenio Luiz Streck - "Precisamos, portanto, falar sobre a jurisprudência defensiva predatória. Do contrário, o direito brasileiro será sempre essa esquizofrenia."

Como figura pública que participa dos debates cotidianos do país, recebo amostragens acerca dos problemas da aplicação do Direito. Um deles diz respeito aos desgastados e desidratados embargos de declaração. Por isso a coluna de hoje é sobre esse tema, em homenagem aos causídicos de todo o Brasil.

Lê-se na jurisprudência — e com apoio de setores da doutrina — que, no julgamento dos embargos de declaração, "o magistrado não é obrigado a se manifestar sobre todos os dispositivos invocados pelas partes quando resolve fundamentadamente a lide, expondo de maneira clara e precisa as razões que lhe formaram o convencimento". Em muitas versões, em vez de convencimento lê-se "livre convencimento". Quer dizer: não é obrigado a responder porque possui duas vezes o livre convencimento: para decidir e depois para dizer que não vai aceitar os embargos.

Outro tipo de decisão em embargos é: no nosso sistema processual, o juiz não está adstrito aos fundamentos legais apontados pelas partes. Exige-se, apenas, que a decisão seja fundamentada, aplicando o juiz, ao caso concreto, a solução por ele considerada pertinente, segundo o princípio do livre convencimento fundamentado do magistrado.

Ora, se a legislação permite que o juiz ou tribunal elaborem decisões omissas, obscuras ou contraditórias (está na lei) sem que, por isso, sejam nulas, por qual razão o Judiciário constrói uma jurisprudência defensiva tão contundente?

A boa doutrina deveria dizer: em face do artigo 93, IX, da Constituição, uma decisão omissa, por exemplo, deveria ser nula. Mas o Brasil, benevolentemente, permite que se corrija esse tipo de falha por meio de um recurso chamado embargos. De todo modo, isso até funcionaria bem, se os embargos de declaração fossem respeitados como recurso e não como "algo que atrapalha". Já ouvi magistrados dizendo "lá vem os advogados com esses embargos".

Meu ponto: quando a fundamentação é exigência do direito positivo (está na lei e na CF) — nem estou falando aqui de princípios, já que a discussão filosófica seria de segundo nível —, não deveríamos precisar do instituto "embargos". Mas já que o temos, e é um bom "second best", que ao menos fosse respeitado.

De sorte que os embargos viraram a "geni" do processo. Uma sentença por mais que seja omissa, dificilmente será consertada via embargos. Na maioria das decisões lê-se o que acima está transcrito. Ou coisas como "nada há a esclarecer" e/ou "a parte está pretendendo rediscutir a prova". Ou estou exagerando?

Há uma posição (repetida em vários outros) em acordão assim: "Inexistente qualquer das hipóteses de Embargos, não merecem acolhida embargos de declaração com nítido caráter infringente". Mas sequer o que foi alegado nos embargos é discutido. Lendo o acórdão, não se sabe. E se o causídico fizer embargos sobre esses embargos, será multado.

Veja-se: se uma decisão é omissa ou contraditória, automaticamente ao ser consertada via embargos trará efeitos modificativos. Quantas vezes a omissão não tem o condão de "virar o jogo"?

Veja a contradição interna do próprio acordão que critica "embargos com nítido caráter infringente". Ora, embargos com efeitos infringentes são permitidos pela lei. No caso, se o acordão diz isso sem fundamentar nitidamente está incorrendo em uma contradição. Uma contradição lógica.

Não esqueçamos que: a) o artigo 489 do CPC, espelhado no artigo 315 do CPP, diz que não estará fundamentada a decisão que... e seguem seis incisos; b) ora, se a fundamentação é deficitária, isso significa no mínimo uma omissão. Sanada, os efeitos infringentes são de consequência natural.

Há uma ligação lógico-estrutural entre o artigo 1.022 e os artigos 489 (CPC) e 315 (CPP).

Na verdade, os embargos deveriam ser extirpados do ordenamento, obrigando, assim, a uma fundamentação mais aprofundada que seria sancionada por nulidade (embora sabendo que o sistema, fosse feita essa alteração, rapidamente se adaptaria; afinal, quantas alterações foram feitas com o novo CPC e que são ignoradas solenemente nos tribunais, inclusive no que tange aos embargos de declaração, proibidos de ser manejados contra decisão que inadmite REsp e RE nos tribunais?).

Bastaria que se respeitasse a coerência e a integridade. Está lá no 926. Não precisaríamos dessa discussão sobre "precedentes" à brasileira. Nem precisaríamos de embargos. Mas quando temos dificuldade em fazer cumprir os próprios artigos 926 e 489, a coisa fica ainda mais difícil.

Já vi casos em que o assessor não quis reconhecer seu erro cometido no "esboço da sentença" e, assim, nega-se o recurso até mesmo quando este apenas aponta erro de premissa, algo como "a decisão tratou de outro caso..." (houve erro no recorta e cola). Como há um padrão de negativas, esses tipos de embargos caem na vala comum.

Há casos em que o apelante opôs embargos de declaração alegando ausência de manifestação expressa sobre os dispositivos legais que nortearam o acórdão proferido pelo órgão fracionário. O pior de tudo é que nem sequer o tal acórdão — nem no relatório nem no corpo — menciona quais foram os dispositivos alegados pelo embargante. E sabem por quê? Para que o acórdão possa ser repetido em recorta e cola, no melhor método "Ctrl+C e Ctrl+V". Uma violação constante erga ommnes — um recorta e cola pronto para ser usado tabula rasa em outros casos.

Esse é um dos périplos enfrentados pela pobre e sofrida classe dos advogados de Pindorama. "Ganhar" embargos passou a ser uma benção. Um favor real, tipo "Lord Chanceler". Assim como é o caso dos Habeas Corpus nas instâncias superiores, que para ser concedidos (de ofício — sic) não devem ser conhecidos.

Como na maior parte das vezes os embargos estão intimamente relacionados ao pré-questionamento, lá se foram as possibilidades recursais. Estamos tratando de liberdades... e propriedades. Mais uma vez, isso mostra que "somos um milhão de advogados e dezenas de carreiras jurídicas... e fracassamos".

E, atenção: muitas vezes, por se tratar, em segundo grau, de matéria exclusivamente de fato, as portas do REsp e RE estão fechadas (rediscussão de prova). O único caminho é dos embargos. Explico: o que fazer se a decisão estiver eivada de omissões e contradições? Nesses casos, os embargos são a última chance de consertar o erro judiciário. Claro que, no limite, se o órgão fracionário do tribunal proferir decisão deixando de apreciar o que foi alegado nos embargos, há precedente (ao que consta persuasivo e não qualificado) que admite REsp sobre negativa de vigência-validade do artigo 1022 que dá direito aos embargos (v.g., 4ª Turma do STJ, REsp 1.911.324, rel. min. Antonio Ferreira) [1]. Muito difícil, de todo modo. Terá que ser uma obra de arte. O primeiro problema será a decisão da vice-presidência do tribunal que inadmitirá o REsp. E poderá ser por meio de uma decisão eivada de omissões e contradições. Paradoxalmente, segundo o STF, não cabem embargos (ver aqui) contra essa decisão. Vida dura a de advogado, pois não?

Precisamos, portanto, falar sobre a jurisprudência defensiva predatória. Do contrário, o direito brasileiro será sempre essa esquizofrenia.

Insisto: se a Constituição estabelece que a decisão deva ser fundamentada e esta é uma garantia fundamental, parece(ria) óbvio que nenhuma decisão pode ser obscura, omissa ou contraditória (ou ambígua) e, ao mesmo tempo, válida juridicamente. Simples, pois. Questão lógica, inclusive. De respeito ao próprio ordenamento, à própria Constituição.

Os que militam no foro sabem do que falo. Paradoxalmente, alguns acórdãos dizem: "o apelante deveria ter oposto embargos com efeito expressamente prequestionador" (só que, no caso referido acima, foi exatamente isso que fez o causídico!) ou "deveria ter interposto um recurso especial alegando violação do artigo 1.022 do CPC" (claro, isso depois de "Inês-já-estar-morta").

O problema é que, ao contrário do que se usa dizer, o juiz e o tribunal têm, sim, o dever de responder a todas as alegações juridicamente relevantes articuladas pelas partes. Nem que seja para dizer que elas não são... juridicamente relevantes! E isso por uma questão de democracia. Para que serve, enfim, a garantia do contraditório? Esse é o ponto. O que é isto — a fundamentação? Estou escrevendo livro sobre isso. Como é possível que se considere normal que o Judiciário não precise enfrentar os argumentos das partes? Que seja para dizer que os argumentos são irrelevantes, ruins ou não prestam. O cidadão tem, no mínimo, um direito de saber por que seus argumentos não servem.

Os embargos de declaração são um "autêntico legado" da chamada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769. Também são um jeitinho brasileiro, uma espécie de Macunaíma do Direito, conforme magnificamente escreve o juiz João Luis Rocha do Nascimento, em sua dissertação na Unisinos (Do cumprimento do dever de fundamentar as decisões judiciais: morte dos embargos de declaração, o Macunaíma da dogmática jurídica), editora Juspodivm [2].

Atuando como "válvula de escape", os "EDs" impedem os necessários desgastes advindos da acumulação da pressão decorrente das nulas decisões judiciais não fundamentadas, as quais deveriam servir de estopim para ocorrência de indispensáveis reformas jurídicas e administrativas.

[1] Aqui uma observação: a empresa Jusbrasil copia a jurisprudência dos tribunais e coloca à disposição cobrando por isso. Interessante. E os direitos autorais? Também há artigos de professores. Por exemplo, o ConJur oferece esse leque de artigos e entrevistas e não cobra do utente. E mais interessante: o Jusbrasil coloca parte do acórdão e, para obter o resto — que é público, não é da empresa — exibe um modo de cobrar mensalidade. Essa é uma questão que particularmente não entendo. Alguém já reclamou disso ou perdi algo nessa discussão? Se perdi ajudem-me a entender o mecanismo que permite isso.

[2] Vale referir também o excelente livro de Rodrigo Mazzei, Embargos de Declaração, editora Thoth

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor, doutor em direito e advogado sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br. Publicado originalmente n'Consultor Jurídico, em 17.08.23

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