quarta-feira, 31 de maio de 2023

Por que Venezuela tem dívida bilionária com Brasil — e quem paga a conta

Após oito anos, Nicolás Maduro veio ao Brasil para encontro com Lula e reunião com outros líderes sul-americanos

Lula e Maduro em Brasília (CRÉDITO,EPA)

A visita de Nicolás Maduro ao Brasil após um hiato de quase oito anos não só gerou polêmica pelas acusações que pesam contra o presidente venezuelano e pelas falas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o país vizinho, mas também pela dívida bilionária que a Venezuela tem com o governo brasileiro.

Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula.

A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).

Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil.

Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia.

Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada.

Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?".

O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos".

De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento.

Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto.

Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta?

Qual o tamanho da dívida da Venezuela?

Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões).

"Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE".

O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE).

O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais.

Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor.

O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações.

De onde vem a dívida da Venezuela?

Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação.

"As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota.

O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal.

Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros.

No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil.

Como o próprio banco explica em seu site, "nessas operações, assim como em todas as outras que o banco realiza, o BNDES desembolsa os recursos exclusivamente no Brasil, em reais, para a empresa brasileira, à medida que as exportações vão sendo realizadas".

Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso.

Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros.

Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE.

A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato.

Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES.

"Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco.

O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote".

No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal.

"Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz.

O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países.

Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015.

Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente".

"Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista.

"Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote."

Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora.

Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo.

"Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.

Luís Barrucho, de Londres para a BBC News Brasil, em 31.05.23

Lula envergonha o Brasil

Para petista, inúmeras evidências de atrocidades na Venezuela não passam de ‘narrativas’ contra o ‘companheiro Maduro’; vexame rasga de vez a fantasia da ‘frente ampla democrática’

O presidente Lula da Silva envergonhou o Brasil de uma maneira como poucas vezes se viu nos últimos tempos – e olhe que o País passou muita vergonha durante o mandato do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Depois de estender o tapete vermelho para Nicolás Maduro, pária mundial por razões óbvias, o petista declarou que o tirano venezuelano é um governante legitimamente eleito e que a Venezuela, portanto, é uma democracia exemplar.

Na opinião de Lula, todas as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”.

“Eles”, no caso, são os “nossos adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7 milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais, e não da ruína do país promovida pelo chavismo.

Não há dúvidas de que o Brasil deveria restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de 2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no Brasil.

Nada disso significa, no entanto, que o Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um “companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que, por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.

É difícil saber o que governou a decisão de Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de construir governabilidade.

Nada disso parece importar para Lula. Em seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China, junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como grande líder desse tal “Sul Global”.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.05.23

Lula tapa o sol com a peneira

 Lula pediu que fosse cobrado; pois vamos cobrá-lo


Maduro e Lula no encontro da Unasul - (Ueslei Marcelino/Reuters)

Ao ver Lula e Maduro na maior confraternização, não há como não pensar: cadê um amigo para dar um toque? Não tem. Apoiadores e aliados políticos tratam o presidente como uma criança mimada que não deve ser contrariada. Imaginam que, com o silêncio, conseguem falsear apoio irrestrito do eleitorado às ações do presidente, quando, de fato, servem de trampolim para que ele se jogue na fogueira.

Lula, por sua vez, usa a Presidência em situações delicadas para fazer seu próprio cercadinho para o militante incondicional. Sabemos o que acontece com quem governa assim. Não pegou bem nem entre os líderes no encontro de sul-americanos. O uruguaio Luís Lacalle Pou, por exemplo, estranhou o encontro bilateral antecipado e o endosso de Lula de que a crise democrática na Venezuela é "narrativa": "É tapar o sol com a mão", disse Pou.

O festerê em torno do ditador venezuelano é um vexame mundial, mas principalmente um escárnio diante dos brasileiros que só apertaram 13 contra a ameaça de que o Brasil virasse exatamente o que foi feito no país vizinho, uma ditadura. A bajulação com a qual Maduro foi recebido parece desdém em relação a um momento em que os alicerces da nossa própria democracia ainda estão fragilizados depois do último governo e sua agenda golpista.

Os eleitores preferem tapar o sol com a peneira e se calam, porque criticar Lula seria engrossar o coro da oposição, que deita e rola. Mas silenciar diante do enaltecimento de um ditador é assumir a própria falta de compromisso com o fortalecimento de nossas instituições.

Em dezembro, ao anunciar seu ministério, Lula pediu que fosse cobrado. "Não deixem de cobrar, porque se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando. Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia."

Pessoal, está liberado.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 19h15.

Mesuras ao ditador

No afã de apoiar autoritarismo da Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira

Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - (Gabriela Biló/Folhapress)

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política —mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.

Não chegaram a surpreender, portanto, as mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes da América do Sul.

Nada há de errado, do ponto de vista diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação por liberdade e direitos humanos.

Nesse sentido, a política de enfrentamento a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o discurso persecutório do vizinho.

Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a defender o regime chavista.

De acordo com o mandatário brasileiro, a caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma "narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".

Há zonas cinzentas entre uma democracia plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há muito cruzou essa fronteira. Esta Folha considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria oposicionista.

Mas o processo de degradação da democracia venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a 2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios poderes.

Maduro assumiu quando os ventos econômicos já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa crise humanitária comparável aos impactos de guerras.

No afã de defender uma esquerda arcaica, obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas. Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de cidadãos em um país devastado.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 22h00 (e-mail: editoriais@grupofolha.com.br)

Pressionado na Câmara, governo Lula bate novo recorde e libera R$ 1,7 bilhão em emendas em um dia

Autorização para pagamentos ocorreu nesta terça-feira, dia da votação do Marco Temporal na Câmara dos Deputados


Arthur Lira e LulaArthur Lira e Lula (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Em meio a uma semana conturbada nas relações com o Congresso Nacional, o governo Lula empenhou nesta terça-feira mais R$ 1,7 bilhão em emendas para os parlamentares. O governo enfrenta dias decisivos na Câmara dos Deputados, que ontem aprovou, contra os interesses do Palácio do Planalto, o PL do Marco Temporal. Nesta quarta-feira, deputados e senadores irão votar a MP da Esplanada, outro projeto prioritário para o governo, já que define a organização dos ministérios.

Essa liberação de recursos é a maior, em um só dia, de todo o governo Lula. No início de maio, o GLOBO revelou que o governo tinha realizado empenhos de R$ 700 milhões em um só dia. O governo decidiu acelerar a autorização de pagamento após a derrota na votação que derrubou os decretos de Lula sobre o Marco do Saneamento.

Boa parte do valor saiu dos cofres do Ministério da Saúde. A liberação ocorre também no prazo final programado pelo Fundo Nacional da Saúde, que executa esses pagamentos. O envio de propostas de trabalho pelas prefeituras e governos que receberam os valores terminou nesta semana.

Nesta quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu com seus principais líderes no Congresso e com os ministros da Casa Civil e das Relações Institucionais, Rui Costa e Alexandre Padilha, respectivamente. Após o encontro, o presidente ligou para Arthur Lira, presidente da Câmara. Na conversa, segundo interlocutores do parlamentar, Lira reclamou de dificuldades na articulação do governo. Há a possibilidade de os dois se reunirem ainda hoje.

Incômodos de Lira

Na conversa com o presidente, Lira também relatou incômodo com ataques que tem recebido do senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado do Planalto, nas redes sociais. Os dois são adversários políticos em Alagoas. O presidente da Câmara disse ser preciso "respeito" na política.

A ligação de Lula ao presidente da Câmara acontece na véspera de os deputados votarem a Medida Provisória que reestruturou os ministérios do governo. O texto foi alterado pelo relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), esvaziando as pastas do Meio Ambiente e Povos Indígenas.

Dimitrius Dantas, de Brasília - DF, para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Política externa de Lula tem tom passadista

Presidente brasileiro teve de ouvir, ‘em casa’, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric

Lula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privadaLula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privada Brenno Carvalho/Agência O Globo

Em poucas áreas o governo Lula dá tantos sinais de envelhecimento de ideias quanto em política externa. Aguardado por governos do mundo todo e de diferentes matizes políticos com a expectativa de uma nova fase de inserção global do Brasil graças às novas diretrizes, sobretudo concernentes à política ambiental, o presidente decidiu tomar o caminho, também nesse front, de revisitar um passado que a ele parece mais glorioso que aos que olham de fora. O resultado tem sido frustração e um grande grau de constrangimento.

Depois do vaivém retórico relativo à possibilidade, nunca transformada num plano de ação factível, de que o Brasil liderasse um grupo de países para buscar o fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que teve no desencontro com Volodymyr Zelensky no Japão um último capítulo meio pastelão, Lula resolveu usar uma cúpula de que era anfitrião para lustrar a biografia de Nicolás Maduro e reescrever a História atual da Venezuela, produzindo justamente aquilo que apontou nos críticos ao ditador vizinho: uma narrativa falsa.

O resultado não poderia ser mais embaraçoso. Lula teve de ouvir, “em casa”, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric. Não há nem espaço para que se dê de ombros para a admoestação de Lacalle Pou, pela simplificação de que se trata de um político de direita: as frases duras de Boric frustraram essa saída, sempre conveniente.

O episódio evidencia que, nos sete anos em que esteve longe do poder, o PT perdeu a oportunidade de promover uma atualização da sua diretriz de política externa. Não para se tornar menos progressista ou deixar de ser um partido de esquerda.

Mas para travar contato com e se aprofundar no que a esquerda progressista mais moderna professa em termos de defesa da democracia sem alinhamentos ideológicos automáticos e de prevalência de agendas como a ambiental sobre outras que fizeram mais sucesso no século XX, às quais o presidente brasileiro e seu entorno para temas internacionais permanecem atados.

Boric faz parte dessa nova safra de políticos de esquerda, para os quais não apenas não é tabu chamar ditadores do “mesmo campo” por aquilo que são, como também é necessário diante da ameaça de autocratas de extrema direita em várias partes do mundo. Para ter legitimidade, coerência e sobretudo inteligência para lidar contra o avanço desses ditadores, é preciso não estar comprometido com outros que apenas trocam o garfo de mão.

E, vamos e venhamos, chega a ser difícil mesmo por qualquer viés chamar Maduro ou o ditador nicaraguense Daniel Ortega de políticos progressistas ou de esquerda, dadas a perseguição a inimigos políticos, a violação sistemática de direitos humanos, a opressão a povos originários e a grupos como mulheres e comunidades LGBTQIA+ nos dois países e noutras ditaduras camaradas.

Enquanto insiste em tirar do armário uma roupa cheia de naftalina que, como cantou Belchior, não nos serve mais, Lula vai perdendo também seu grande passaporte para ser o líder que almeja aos olhos do mundo: o protagonismo na agenda verde.

O avanço do Congresso e de setores do próprio governo sobre o Ministério do Meio Ambiente e sobre a política voltada aos povos indígenas tem o potencial de levar o Brasil de volta à condição de pária internacional que gozou nos anos Jair Bolsonaro e de evidenciar a contradição entre o discurso enfático da campanha e a ação dúbia da gestão.

É preciso calcular melhor o poder de estrago das falas de Lula em temas de política externa, sob pena de queimar muito cedo o cacife que ele reuniu ao vencer, que pode, mesmo, ser um ativo importante para ele e para o Brasil. Um chefe de Estado não deve confiar apenas no passado e em sua intuição para falar de temas complexos. Porque aí quem produz narrativas vazias é ele.

 Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Com oito palavras, Boric desmontou discurso de Lula sobre Venezuela

Presidente teve chance de se corrigir, mas insistiu em negar fatos para defender Maduro

O chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em BrasíliaO chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em Brasília (Evaristo Sá / AFP)

Gabriel Boric tem 37 anos. É o presidente mais jovem da América do Sul. Quando nasceu, em fevereiro de 1986, Lula já iniciava sua segunda campanha. Nove meses depois, seria eleito o deputado mais votado da Assembleia Constituinte.

A julgar pela experiência de cada um, o brasileiro teria lições a dar ao chileno. Não foi o que ocorreu na cúpula de ontem em Brasília. Diante de uma dúzia de chefes de Estado, Boric desmontou o discurso de Lula sobre a Venezuela. Ao fim do encontro, resumiu a questão em oito palavras: “Não é uma construção narrativa. É uma realidade”.

Lula acertou ao restabelecer relações diplomáticas com Caracas. Em seguida, errou feio ao relativizar o autoritarismo no país vizinho. Nicolás Maduro sufocou a oposição, amordaçou a imprensa e produziu um êxodo de 7 milhões de refugiados. Seus abusos foram documentados pelas Nações Unidas e são investigados no Tribunal Penal Internacional, que apura crimes contra a Humanidade.

O presidente sabe de tudo isso, mas preferiu apresentar o aliado como vítima de “narrativas”. “O preconceito contra a Venezuela é muito grande”, disse. “Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela”, emendou.

Boric não foi o único a contestar as declarações de Lula. Os presidentes de Uruguai, Paraguai e Equador também usaram a cúpula para condenar o regime de Maduro. A crítica do chileno chamou mais atenção porque ele é um político de esquerda. Apesar disso, recusou-se a fazer vista grossa aos desmandos na Venezuela.

Ontem Lula teve uma chance de se corrigir, mas insistiu em negar os fatos. Ainda cobrou respeito à “soberania” venezuelana, como se criticar um autocrata fosse equivalente a desacatar o país que ele subjuga.

O petista alegou que não pode avaliar a situação no país porque não pisa lá há dez anos. Bastava ler o relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, assinado por outra socialista chilena. No texto, Michelle Bachelet empilha casos de “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura” contra críticos de Maduro.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Recepção de Lula a Maduro foi vexatória

 Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

O presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia FloresO presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia Flores (Evaristo Sá/AFP)

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

Editorial de O Globo, em 31.05.23

terça-feira, 30 de maio de 2023

Brasil legal e Brasil real

 Há uma incontestável verdade diante da dessintonia entre a Lei de Execução Penal e a realidade: a prisão se tornou um eficiente fator de aumento da criminalidade

Há um aspecto da vida nacional marcado pelo retrocesso e que gera profundo desalento quanto ao futuro do País. Refiro-me às condições de vida de milhões de brasileiros. Elas estão piorando a olhos vistos. Novas expressões da miséria estão chegando às nossas portas. Como exemplo, temos os moradores de rua e a chamada cracolândia.

Significativa parte da sociedade não se comove e vem se acostumando a conviver com toda sorte de mazelas que deveriam cobrir de vergonha especialmente os segmentos mais privilegiados.

Pode-se pensar que o ordenamento legislativo passou ao largo de todos esses problemas sociais e não editou normas a respeito das respectivas situações. Ao contrário, há leis – e boas leis. Basta citar duas: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Execução Penal, que rege o sistema penitenciário.

A questão crucial é precisamente a diferença entre o que é e o que deveria ser segundo o disposto pelas leis. O que está no mundo real é captado pelo legislador. Mas o que consta da lei não é aplicado à realidade. Daí a existência de dois países: o legal e o real.

Essa dicotomia entre o querer do legislador e a sua execução parece ter as suas raízes fincadas no próprio modo de ser do brasileiro. Temos dificuldade de nos submeter a normas e regras de conduta. O jeitinho virou uma prática nacional e criou uma verdadeira cultura da desobediência. Os pequenos e os grandes desvios de conduta nos levam a contornar o cumprimento das leis.

Não apenas as que impõem regras de condutas individuais são desobedecidas, mas também aquelas que são chamadas de leis programáticas. Estas são editadas para regrar situações específicas que necessitam de ter suas dificuldades superadas e as suas mazelas sanadas.

Nessas hipóteses, as razões do descumprimento são outras. Pode-se apontar a inércia do Estado e a insensibilidade da sociedade. O desinteresse histórico pelas carências sociais encontra as suas raízes na ausência de solidariedade, no individualismo egoísta e na rígida divisão das várias camadas sociais, que pouco se comunicam.

O sistema penitenciário é regido por uma dessas leis, a de Execução Penal. Pois bem, em seu artigo primeiro está gravado que o seu objetivo é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Inúmeros dos seus dispositivos estão voltados para o alcance daquele objetivo. Assim, a lei prevê: a existência de um Comitê de Classificação composto por psiquiatra, psicólogo e assistente social; assistências à saúde, jurídica, educacional, religiosa; trabalho interno e externo; preparação técnica do pessoal penitenciário; apoio ao egresso; e vários outros comandos voltados ao desiderato de inserção social de quem cumpriu pena. As normas contidas nessa lei têm como fonte a Constituição federal.

No entanto, o sistema de proteção ao encarcerado e ao egresso é sistematicamente descumprido sem nenhum escrúpulo ou sinalização de futura obediência à lei. Ao contrário, a situação carcerária se agrava e entra no rol já extenso das trágicas iniquidades sociais.

O Estado se empenha na construção de prisões, mas não investe no homem preso e não o prepara para a liberdade. A sociedade, por sua vez, em face do crime, exige o encarceramento como única resposta a ele. Este lavar de mãos coloca o detento no quase total abandono. Esquece-se de que as prisões não são perpétuas. O preso se transformará em egresso e voltará a conviver em sociedade, estando, em face do esquecimento, com uma carga criminógena superior a quando entrou no sistema. O corpo social deveria acolher o egresso ao menos por uma questão de autopreservação. Se não por solidariedade humana, por egoísmo.

Tanto os preceitos da Lei de Execução Penal não são cumpridos que, dos 900 mil presos no Brasil, 70% já foram clientes do sistema. Voltam ao cárcere porque a maioria não foi preparada para a liberdade. Sem apoio, o egresso encontra a família desagregada, são inexistentes as oportunidades de trabalho e o estigma de ex-presidiário o acompanha. Ele acaba por não resistir aos apelos do crime organizado e volta a delinquir. Note-se que, desse total, 45% não foram ainda julgados.

Há uma verdade incontestável em face da dessintonia entre a lei que regula o sistema penitenciário e a sua realidade: a prisão se transformou em eficiente fator de aumento da criminalidade. Há uma trágica equação: mais prisões, mais crimes. Mesmo sendo notória as suas inumanas e repugnantes condições, a cadeia não constitui fator de inibição da prática de novos crimes.

O brado da sociedade por mais prisões deve transformar-se em apelo humanitário para que o Estado atenda a todas as imposições legais de adequação do sistema penitenciário aos desideratos de reinserção do preso à sociedade. É imprescindível que o sistema não mais atue em sentido contrário aos seus próprios objetivos. O Brasil legal precisa se impor ao Brasil real.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é Advogado. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.23

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Acabou o presidencialismo?

Na intersecção dos planos externo e doméstico, o meio ambiente é símbolo dos percalços do governo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante evento da Fiesp, em São Paulo - (Bruno Santos/Folhapress)

Durante a campanha eleitoral, Lula referiu-se a Bolsonaro como um "bobo da corte". "Acabou o presidencialismo. Bolsonaro não manda nada, é refém do Congresso". Na primeira reunião ministerial do governo reconheceu o risco de tornar-se um: "nós não mandamos no Congresso, nós dependemos dele". Decorridos cinco meses, já vemos os sinais que o risco está se materializando.

Era previsível: trata-se de um presidente hiperminoritário cujo partido detém 13% da Câmara e que conta com um apoio leal de meros 130 deputados (1/4 da câmara). Essa configuração já existiu no passado. Mas muita coisa mudou: a economia, estressada; o Legislativo, muito mais centralizado (legado da pandemia e Bolsonaro), muito menos fragmentado, e com muito mais recursos; o país virando à direita.

Sim, as derrotas do governo foram muito além do esperado. Não se trata de batalhas perdidas em iniciativas pontuais: a sina da MP da reorganização do Executivo atinge a própria capacidade do governo de definir a estrutura ministerial e nela distribuir competências. É o núcleo duro da estratégia do Executivo na montagem da coalizão governativa. O malogro aqui é inédito no presidencialismo brasileiro. E surpreende sobretudo porque começou com um bônus inesperado (o 8 de janeiro).

A forma do Executivo acomodar uma maioria congressual com preferências distintas envolve antes de tudo a partilha do gabinete.

Por isso Lula criou 17 pastas novas. A reorganização é uma forma de acomodar inúmeros interesses. É por isso que em países hiperfragmentados os ministérios chegam a mais de 70, como já discuti aqui na coluna.

A estratégia global do governo é nova. Marcada por uma espécie de hiperdelegação no plano doméstico, ele subestimou enormemente as dificuldades potenciais. No plano externo os frutos mais fáceis de colher, o malogro virou vexame.

Na intersecção dos dois planos, o meio ambiente é crítico. O símbolo do fracasso.

Há dois cenários polares nas relações Executivo-Legislativo. O primeiro é ilustrado pelo cesarismo do presidente colombiano, Gustavo Petro, que, em resposta à derrota de sua reforma sanitária, destituiu titulares dos ministérios e ameaçou: "a tentativa de restringir as reformas pode levar à revolução. O que é preciso é que o povo esteja mobilizado". Chamemos de pesadelo de Juan Linz (1926-2013): a crise de legitimidade dual quando um presidente minoritário unilateralmente tenta impor a sua agenda ao Congresso. O segundo, seria um presidente que navega os mares da governabilidade em modelo pleno de partilha de poder, característico de frentes amplas.

Entre um e outro há um continuum de possibilidades intermediárias. Todos complicados.

 Marcus André Melo, o autor deste artigo. é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 28.05.23, às 15h23

Liberdade presa e corrupção solta

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por incrível arquitetura de narrativa visando à demolição da verdade e reconstrução da história

A sociedade assiste, atônita, a um fenômeno surreal patrocinado por altas autoridades da República. A liberdade de expressão, fortemente protegida no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, vem sendo fustigada e solapada. O constituinte, certamente movido por uma compreensível reação aos anos da ditadura militar, quis dar à liberdade um valor essencial e inegociável. O que se observa, no entanto, é a frequente negação do espírito e da letra da Constituição. Sempre em nome da defesa da verdade e da democracia.

O combate à mentira factual, que deveria se pautar pelo que Alexandre de Moraes chamou de “intervenção mínima”, com a posse do ministro na presidência da Corte Eleitoral acabou não tendo rigorosamente nada de mínimo. Em vez da ação pontual, destinada então a remover da propaganda eleitoral e das mídias sociais as informações factuais comprovadamente falsas, dezenas – talvez centenas – de cidadãos brasileiros tiveram tolhido o seu direito de se manifestar sobre qualquer tema, graças à exclusão de suas contas em mídias sociais, violando tanto a liberdade de expressão quanto o princípio de proporcionalidade. E este tipo de intervenção desproporcional cresceu muitíssimo, mesmo depois da realização do pleito.

Estamos assistindo, em nome do combate às fake news, à desconstrução programada da liberdade de expressão e à destruição das próprias normas constitucionais. Atualmente, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia, promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que estamos vendo no eterno inquérito das fake news.

Por outro lado, o ministro da Justiça reúne representantes das mídias sociais para dizer sem qualquer sutileza que a liberdade de expressão não existe mais. Está sepultada. Assume o papel de defensor da verdade, da liberdade e da democracia. Ele é, juntamente com o ministro Moraes, mais um tutor dos brasileiros. Julga-se responsável pelo que podemos ou não ler, falar ou comentar. O ministro, juiz e político, é um bom orador. Deveria, no entanto, medir as consequências das suas palavras e conter os arroubos de uma oratória claramente intimidatória.

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por uma incrível arquitetura de narrativa com o objetivo de demolição da verdade e de reconstrução da história. Alguém duvida de que a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, ex-procurador da Lava Jato, é mais um capítulo do desmonte da operação e um precedente preocupante na Justiça Eleitoral?

Uma decisão surpreendentemente unânime, que consumiu cerca de um minuto, foi vivamente comemorada por um governo que tem como projeto a vingança e como visão estratégica o olhar fixo no retrovisor. Ao longo de mais de 30 anos como ministro, Marco Aurélio Mello foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em três períodos diferentes. Para ele, o julgamento de Deltan deixa a Justiça Eleitoral “muito mal”. E prosseguiu: “Enterraram a Lava Jato, agora querem fazer a mesma coisa com os protagonistas. Isso, a meu ver, não é justiça, é justiçamento”, avaliou o ministro, conhecido pela franqueza. Eles esquecem algo que Machado de Assis ressaltou: o chicote muda de mão. É isso. Festejar o arbítrio hoje pode ser chorar o abuso amanhã.

Independentemente das razões jurídicas esgrimidas, a cassação de Deltan Dallagnol foi a cassação de 345 mil eleitores. Foi, sem dúvida, um triste capítulo na sequência de politização da justiça brasileira. Protegem-se os corruptos, sobretudo o líder inconteste da criminalidade. Descaradamente. Usam-se artifícios formais para deformar a justiça. Mas os que combatem os crimes são perseguidos e punidos. Trata-se de recado claro: o crime compensa.

Agora, numa tentativa de recuperação da imagem e depois de anos de silêncio, apresentam o julgamento do ex-presidente Fernando Collor como um troféu de firmeza contra a corrupção. Serão implacáveis. Como se isso apagasse uma história de assustadora leniência.

Armados de um cinismo cortante, argumentam que a Operação Lava Jato, “com sua sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para esta gente, no entanto, tudo precisa ser apagado. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte da falsidade.

O Brasil, não obstante os reiterados esforços de implosão da verdade, ainda conserva importantes reservas éticas. Apelo, por isso, aos homens de bem, aos cidadãos que têm brilho nos olhos. Eles existem. E são mais numerosos do que podem imaginar os voluptuosos detentores do poder.

Apelo, mais uma vez, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Respeito-os. Não julgo suas intenções. Conversem, façam uma autocrítica, revejam posições e pensem no bem maior do Brasil.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é Jornalista e consultor de empresas de comunicação. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.05.23

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O desencontro em Hiroshima

As chances de avançar na mediação da guerra na Ucrânia não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho


Assessor de Zelenski diz que fala de Lula distorce a verdade

Nos últimos anos de minha passagem pelo Congresso Nacional, percebi a crescente importância da política externa no Brasil pelo número grande de estudantes que vinham acompanhar as sessões da Comissão de Relações Exteriores. O Brasil se internacionalizava cada vez mais e o interesse dos jovens abarcava também novas chances no mercado de trabalho.

O governo que se instalou em 2023 talvez seja o mais voltado para uma política externa, desde o início da redemocratização. Isso também pode ser um reflexo dos novos tempos.

Dois importantes fundamentos de nossa inserção no mundo estão sendo enfatizados: a proteção dos recursos naturais, incluindo o desenvolvimento sustentável da Amazônia, e a luta pela paz mundial.

A política de meio ambiente foi esboçada pelo presidente Lula no seu discurso em Sharm elSheikh, no Egito. Foi uma espécie de passaporte para a volta do Brasil como protagonista no cenário internacional. Depende ainda de realização prática, mas as intenções foram claras.

O presidente Lula decidiu levar adiante nossa tradição de luta pela paz. No passado recente, já tivemos um papel importante mediando conflitos entre Equador e Peru e contribuindo, em 1988, para resolver uma disputa de quase dois séculos.

Mas agora, ancorado na nossa tradição diplomática, Lula decidiu elevar o sarrafo de nossa capacidade mediadora, tratando de um conflito na Europa, a guerra na Ucrânia, que envolve, de um lado, os principais países ocidentais e, de outro, a Rússia, que, além de europeia, tem raízes na Ásia. De um ponto de vista biográfico, é uma escolha inteligente. Mesmo em caso de fracasso, Lula passará à História como aquele que tentou, sem êxito, promover a paz numa Ucrânia devastada pela guerra.

Há muitos caminhos para quem se interessa em fortalecer o papel do Brasil no mundo. É possível criticar a iniciativa de Lula, da mesma forma que é possível aplaudi-la incondicionalmente. No entanto, há uma espécie de trilha entre esses dois caminhos que significa aceitar o grande desafio de mediar uma guerra desta proporção e, simultaneamente, contribuir para que a mediação seja muito bem feita, isto é, colocar o sarrafo mais alto ainda. Alguns erros foram cometidos no caminho. Mas ninguém pode afirmar que a mediação esteja irremediavelmente perdida.

A primeira dificuldade surgiu quando Lula afirmou a um jornal francês que a Ucrânia poderia abrir mão da Crimeia. Não se trata de uma tese estapafúrdia. Intelectuais como Edgar Morin a defendem abertamente. Morin, aos 101 anos de idade, acaba de lançar um livro sobre a guerra propondo que a Ucrânia abra mão da Crimeia, onde a população russa é maioria, seguida dos tártaros e ucranianos. O escritor francês vai além, propondo que a Ucrânia abra mão também de Donbass, região industrializada por Stalin, e se integre na Otan.

A diferença entre Edgar Morin e Lula é muito simples: um é potencial mediador, o outro, apenas um intelectual.

As declarações na China condenando a ajuda militar do Ocidente à Ucrânia também não foram bem recebidas, a ponto de muitos observadores afirmarem que Lula estava próximo de Vladimir Putin.

E, finalmente, na reunião do Grupo dos 7, em Hiroshima, Lula e Zelensky se desencontraram, o que torna ainda mais difícil a mediação.

Não se trata, aqui, de determinar a culpa a partir de relatos diferentes na imprensa. O importante é que o encontro tivesse acontecido. Outros líderes, inclusive mais próximos da Rússia, como o indiano Narendra Modi, se encontraram com Zelensky. O argumento de Lula de que o a reunião dos 7 não tratava de guerra não se sustenta: um potencial mediador precisa aproveitar todas as oportunidades para realizar sua tarefa.

As chances de avançar na mediação da guerra não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho e não se contentar apenas com a intenção mediadora, mas com a eficácia da iniciativa.

Em primeiro lugar, seria importante que Lula falasse desses temas a partir de um texto, nunca improvisando. Não há nada demais nisso, apenas um reconhecimento de que relações internacionais são delicadas e demandam uma cuidadosa escolha das palavras.

Em segundo lugar, seria importante que o governo brasileiro mostrasse alguma empatia com a Ucrânia, além, naturalmente, de condenar a invasão armada. Uma das hipóteses é receber para uma audiência os representantes da colônia ucraniana no Brasil. Existe uma falsa impressão de que os ucranianos são de direita e que a resistência é formada por fascistas. O presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, Vitório Sorotiuk, lutou contra a ditadura, se asilou no Chile e na Europa e mantém um bom nível de informações sobre o que se passa por lá.

É verdade que o ex-ministro Celso Amorim esteve na Ucrânia como enviado especial, mas, no pé em que as coisas estão, seria necessário reencontrar a aura de neutralidade.

O governo e seus apoiadores podem achar um pouco audacioso fazer sugestões não tendo nenhum tipo de vínculo ou de relação com eles. O problema central é que é muito difícil de se desvincular da condição de brasileiro e tratar nossa política externa como se fosse algo desenvolvido em outro país. Nada demais esperar dela que funcione na prática.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 26.05.23

"Saída de Marina seria desastre internacional para Lula"

Em entrevista à DW, ambientalista Pedro Roberto Jacobi diz que reorganização ministerial pode comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental e prejudicar a ministra Marina Silva, respeitada mundialmente.

Pedro Roberto Jacobi (Foto: Leonor Calasans/IEA-USP)

O Congresso impôs mais uma derrota à pauta ambiental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (24/05). Na apreciação da Medida Provisória (MP) 1.154/23, que reorganiza a estrutura ministerial, os parlamentares enfraqueceram o Ministério do Meio Ambiente (MMA), retirando da pasta chefiada pela ambientalista Marina Silva atribuições de fiscalização importantes, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional das Águas (ANA).

Além disso, o texto também transferiu a demarcação de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, de Sônia Guajajara, para o Ministério da Justiça.

A matéria se soma a outras que têm sido criticadas por ambientalistas, como o novo marco do saneamento e, mais recentemente, o embate entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério de Minas e Energia sobre a extração de petróleo pela Petrobras na foz do rio Amazonas, no Amapá.

Em entrevista à DW, o ambientalista Pedro Roberto Jacobi, professor titular do Instituto de Energia e Ambiente da USP, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e presidente do conselho América do Sul da instituição Governos Locais pela Sustentabilidade (ICLEI), considera que as mudanças podem comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental do governo.

Jacobi, no entanto, diz que o governo Lula está emparedado por um Congresso "conservador" e "negacionista", que tenta manter o esvaziamento do mecanismo de combate ao desmatamento que ocorreu nas gestões anteriores.

O ambientalista também vê a necessidade de o presidente Lula negociar a questão do clima internacionalmente, assim como tem feito com as tentativas de paz na Ucrânia.

Segundo Jacobi, as disputas na área ambiental, atualmente, são diferentes da questão de Belo Monte, que causou a saída de Marina Silva na segunda administração de Lula, em 2008. O ambientalista também não vê uma possível repetição das consequências políticas dentro do governo como naquela ocasião.

"Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga ‘tchau'", destaca, acrescentando que, se isso ocorresse, seria um "desastre internacional" para a terceira gestão do pestista.

Leia a entrevista na íntegra:

DW: O que essas mudanças previstas na MP representariam em termos de combate ao desmatamento?

São várias questões. No caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vai para o Ministério de Gestão e Inovação, é uma ferramenta fundamental de combate ao desmatamento. Mas é uma questão muito desafiadora que exige fiscalização, porque é autodeclaratório. E o que está colocado aí é que há um risco de que essa mudança afete diretamente a política de monitoramento e controle do desmatamento.

Já o tema da demarcação das terras indígenas, que vai para o Ministério da Justiça, a própria ministra [dos Povos Indígenas], Sônia Guajajara, afirmou que não é algo muito problemático, porque o ministro da Justiça, Flávio Dino, tem uma preocupação com esse tema. Mas, de qualquer maneira, se coloca uma questão real: se cria um Ministério dos Povos Indígenas e já se tira poder dele.

Temos também a Agência Nacional das Águas (ANA), que fica com o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional. É um órgão que está muito fragilizado, foi muito enfraquecido. Existe uma parcela considerável de pessoas sem acesso a água e sem acesso a saneamento.

O MMA estava totalmente fragilizado pela gestão desastrosa dos últimos anos e, com isso, vai perder um tanto da sua potência. Uma das grandes questões do MMA é que já não se tem muitos recursos financeiros, que agora estão indo para outras pastas.

É uma quantidade de problemas que se acumulam. Quando falamos do MMA, estamos considerando novamente a questão de não se ter recursos, e isso faz com que a pressão dos agentes econômicos fale mais alto – e eles estão representados no Congresso, essa é a realidade.

Quais interesses econômicos seriam esses? O setor ruralista, por exemplo?

Sem dúvidas, o setor ruralista. Mas também há os interesses econômicos por trás da privatização do saneamento. E acho que não dá para desconsiderar essa visão também economicista que está presente numa visão desenvolvimentista mais clássica. A palavra que temos que usar hoje é desenvolvimento sustentável, por mais que seja genérica. Isso é o que as Nações Unidas propõem, que é chegar a metas mais sustentáveis. Nem toquei no tema do clima porque ainda está indefinido qual será a autoridade climática dentro dos ministérios.

Esses interesses econômicos estão presentes nas câmaras municipais, nas assembleias estaduais, no Congresso. E, lamentavelmente, a sociedade tem escolhido cada vez piores representantes para a democracia, que são pessoas que têm um discurso falso, negacionista, e não estão enxergando questões muito concretas.

É preciso se adaptar a uma realidade que está colocada hoje. O tema clima é transversal a todos os outros temas, porque falamos em energias não renováveis, impactos sobre o clima. Falamos de água, do impacto no clima com excesso de água e falta de água.

Até que ponto o Congresso está impondo essa realidade ao governo Lula?

Temos que lidar com a realidade política, que não é nem um pouco favorável ao governo que foi eleito. Ele está altamente emparedado por um Congresso que é composto por um conjunto de partidos políticos que fazem parte dessa coalizão muito problemática que o governo conseguiu organizar, dentro das suas extremas precariedades, para garantir aprovações no Congresso, como no caso recente da área econômica.

É sempre bom lembrar que em qualquer governo, não há exceção no planeta, o que fala mais alto é a economia e, depois, o social.

É claro que, do ponto de vista internacional, para a imagem do Brasil, é extremamente importante o tema ambiental e da Amazônia. O que vai se ver depois de todo alarde, de toda a fala do Lula no G7 e em outros momentos no exterior. Está colocada uma questão que pode trazer enormes riscos, inclusive para os apoios e financiamento.

Mas nós temos que lidar com isso concretamente. É claro que há preocupação. Mas existe uma palavra-chave que é governabilidade, e essa realidade não podemos ignorar.

Até que ponto isso mostra um certo descaso de Lula com as questões ambientais, já que tivemos recentemente o Ibama proibindo, à revelia do governo, a exploração de petróleo no Amapá? O discurso internacional do Brasil como potência ambiental é só teoria?

Se for só teoria, vai ser muito ruim para nós. É a única coisa que posso dizer. O Lula se meteu a negociar a questão da paz na Ucrânia, mas ele também tem que negociar o clima, tem que estar em cima desse tema. O presidente foi um negociador a vida inteira, até mesmo pela sua história como sindicalista.

Acho que, neste momento, o Lula está tomando um pouco de cuidado, ao mesmo tempo em que está sinalizando vetar uma legislação predatória para a Mata Atlântica. Aí ele já diz "isso, não". Mas, na hora está se discutindo uma reorganização de ministérios a partir de uma proposta do Congresso, porque é assim que se vê – o governo não ia propor um ministério e desmontá-lo.

Essa é uma herança de todos esses anos, que vem desde o Michel Temer, aqueles atores que perderam espaço querem voltar a ganhar. Eu entendo um pouco dessa maneira.

Os próprios negociadores internos do Lula, o [ministro da Articulação] Alexandre Padilha e o [ministro das Cidades] Rui Costa não vêm de um histórico ambientalista. Inclusive o histórico do Rui Costa, na Bahia, como governador, não é dos melhores. O próprio [ministro da Fazenda] Fernando Haddad não foi um grande defensor do meio ambiente, é só ver na gestão municipal dele em São Paulo.

Eu diria que temos que esperar fatos concretos, o que vai ser vetado quando chegar a hora da aprovação da matéria. Vejo um pouco dessa maneira. Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga "tchau".

Seria uma catástrofe na área ambiental do governo caso Marina Silva deixasse o comando do Ministério do Meio Ambiente?

Seria um desastre, não do ponto de vista brasileiro, porque somos pouco preocupados com o meio ambiente. Mas, internacionalmente, seria um desastre. Não tenho dúvidas, porque houve todas essas promessas ambientais, e ela é uma pessoa que está ancorando, legitimando isso.

Quem é Alexandre Silveira [ministro de Minas e Energia] em termos internacionais? 

Mas quem é a Marina, já sabemos. É alguém que tem uma história que vai desde a época do Chico Mendes. Tem todo um reconhecimento, é uma pessoa íntegra, que conheço bem.

Em termos nacionais, [uma possível saída dela] não ia ser uma questão pesada, mas em termos internacionais, impactaria. E acho que o Lula deve estar medindo isso muito bem e conversando com ela.

O Congresso tem essa cara. Além disso, há um passivo terrível em todas as áreas [deixado do governo de Jair Bolsonaro]. Penso em uma perspectiva em que a Marina sabia em que encrenca estava entrando. Acho que ela vai ter que se acostumar a negociar, a ganhar os espaços de alguma maneira. Agora, não é uma questão interna do governo, como foi no caso de Belo Monte. É uma disputa diferente. Quem está emparedado é o governo, e a Marina faz parte do governo.

Fábio Corrêa para a Deutsche Welle Brasil, em 25.05.23

Símbolos importam

Governo Lula adota pragmatismo em estado bruto e abandona meio ambiente e povos indígenas

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em entrevista à Folha - Gabriela Biló - 12.jan.23/Folhapress - Folhapress

Um bom político é um ser medularmente pragmático, mas que conserva a capacidade de manipular os simbolismos a seu favor.

Na parte do pragmatismo, Lula dá sinais de que entendeu os últimos recados. É a curva do aprendizado. A correlação de forças entre Executivo e Legislativo não é mais a mesma de 20 anos atrás. Depois de algumas barbeiragens, em que amargou derrotas vistosas, há indicações de que o governo se conformou com o fato de que sua base parlamentar programática é diminuta e aceitou a ideia de que, nas votações importantes, é refém de Arthur Lira e seu centrão, o que envolve acertos "ad hoc", projeto a projeto.

Mais do que isso, a administração parece ter decidido centrar toda sua atenção na pauta econômica. A avaliação, da qual não discordo, seria a de que, se as coisas desandarem nessa seara, o mandato de Lula ficaria irremediavelmente comprometido. Mobilizou-se até para enquadrar os parlamentares da esquerda do PT e os fez votar a favor do arcabouço fiscal.

No que diz respeito aos simbolismos, porém, a trajetória foi a oposta. O governo que fizera de sua cerimônia de posse uma apoteose de alegorias, com Lula subindo a rampa ao lado de minorias, agora não parece dar muita trela para temas emblemáticos como meio ambiente e povos indígenas. Eu pelo menos não vejo outra maneira de interpretar as votações dos últimos dias que, entre outros retrocessos, esvaziaram significativamente os dois ministérios responsáveis por essas questões.

Era mais ou menos inevitável que a administração sofresse reveses impostos por bancadas poderosas como a ruralista. Mas ver parlamentares do PT votando a favor de pautas reacionárias só para acelerar os trâmites foi para mim chocante. Governo e partido deveriam ter demonstrado alguma contrariedade, nem que fosse só para constar. Símbolos, afinal, importam.

Marina Silva tem todos os motivos para sentir-se traída e abandonada.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião na Folha de S. Paulo.  É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na FSP, edição impressa, em 25.05.23, às 17h00.

Bolsonaro é condenado em 2ª instância por ataques à imprensa

Ex-presidente terá de pagar R$ 50 mil em indenização por dano moral coletivo. Ação aberta em 2021 pelo Sindicato de Jornalistas de SP exigia fim das ofensas e condenava falas misóginas e homofóbicas

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado em segunda instância na Justiça de São Paulo a pagar indenização no valor de R$ 50 mil por dano moral coletivo à categoria dos jornalistas.

A 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça confirmou a sentença proferida pela 24ª Vara Cível de São Paulo em junho de 2022, mas reduziu pela metade o valor da compensação, que havia sido estabelecido em R$ 100 mil na primeira instância.

O valor da indenização será revertido para o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) entrou com uma ação civil pública contra Bolsonaro em abril de 2021, exigido que ele parasse de ofender, deslegitimar ou desqualificar a profissão de jornalista ou profissionais da imprensa e de vazar ou divulgar dados pessoais destes.

Para o advogado Raphael Maia, coordenador jurídico do SJSP, Bolsonaro tratava a imprensa "de forma hostil, desrespeitosa e humilhante, com a utilização de violência verbal, palavras de baixo calão, expressões pejorativas, homofóbicas, xenófobas e misóginas".

Tais manifestações "extrapolam seu direito à liberdade de expressão e importam assédio moral coletivo contra toda a categoria de jornalistas, atentando contra a própria liberdade de imprensa e a democracia", considerou.

"Incompatível com a dignidade do cargo"

A defesa de Bolsonaro argumenta que jamais houve censura por parte do ex-presidente e que suas declarações não se referiam à classe dos jornalistas como um todo, mas sim, a "determinados profissionais".

Em junho de 2022, na condenação em primeira instância, a juíza Tamara Hochgreb Matos, da 24ª Vara Cível de São Paulo, considerou que Bolsonaro abusou do direito à liberdade de expressão para ofender profissionais de imprensa.

Segundo a juíza, as ofensas se deram "de forma absolutamente incompatível com a dignidade do cargo" de presidente, "sob alegação de que essa liberdade lhe outorgaria, enquanto instrumento legal e necessário ao livre exercício da liberdade pessoal do Chefe do Poder Executivo Federal, verdadeiro salvo conduto para expressar as suas opiniões, ofensas e agressões".

"Com efeito, tais agressões e ameaças vindas do réu, que é nada menos do que o chefe do Estado, encontram enorme repercussão em seus apoiadores, e contribuíram para os ataques virtuais e até mesmo físicos que passaram a sofrer jornalistas em todo o Brasil, constrangendo-os no exercício da liberdade de imprensa, que é um dos pilares da democracia", afirmou a magistrada.

A juíza também mencionou declarações homofóbicas e misóginas de Bolsonaro contra jornalistas, como a de que "mulheres somente podem obter um furo jornalístico se seduzirem alguém", além de "comentários xenófobos, expressões vulgares e de baixo calão". E apontou que o então presidente ameaçou jornalistas e incentivou seus apoiadores a agredi-los.

"O réu manifesta, com violência verbal, seu ódio, desprezo e intolerância contra os profissionais da imprensa, desqualificando-os e desprezando-os, o que configura manifesta prática de discurso de ódio", concluiu.

Advogados alegam "defesa da reputação"

Ainda em primeira instância, os advogados de Bolsonaro afirmaram que seus comentários constituíam "apenas o seu direito de crítica a reportagens que, na sua visão, não representavam a verdade dos fatos, e que eram ofensivas e atentatórias à sua própria reputação", não sendo, portanto, ilícitos.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 557 agressões de Bolsonaro aos meios de comunicação e profissionais de imprensa em 2022, ano em que ele disputou a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2021, foram contabilizados 453 casos, além de outros 130 em 2019.

Dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) utilizados pelo SJSP no processo apontam que em 2020 o ex-presidente fez 175 ataques à imprensa.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 26.05.23

Como funcionará programa do governo que pode baratear carros no Brasil

O governo federal anunciou nesta quinta-feira (25/5) que adotará medidas para baixar o preço de automóveis no país

Programa tem potencial de baratear um quarto dos modelos à venda hoje, dizem analistas

Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, afirmou que para isso haverá uma redução de impostos federais para carros de até R$ 120 mil.

A decisão foi comunicada após uma reunião no Palácio do Planalto entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e representantes da indústria automobilística.

Na mesma ocasião, Alckmin também anunciou que o governo disponibilizará uma linha de crédito de R$ 4 bilhões em dólares para financiamento de exportações, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A medida, segundo ele, serve como uma proteção cambial e abrangerá não apenas o setor automotivo, mas a indústria como um todo.

Lula já havia reclamado publicamente sobre os preços de veículos no país.

"A fábrica de automóveis não está vendendo bem, mas qual pobre pode comprar um carro popular de R$ 90 mil?", questionou Lula da Silva durante sessão inaugural do Conselho de Desenvolvimento, Econômico e Social, no início de maio.

No entanto, detalhes de como será o programa de fato ainda serão anunciados nos próximos 15 dias, após uma análise da Fazenda sobre o programa.

A BBC News Brasil conversou com analistas sobre o que foi divulgado até agora e os possíveis impactos destas medidas. Entenda a seguir.

O que foi anunciado?

O governo anunciou que fará uma redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), aplicado sobre a fabricação, importação e venda destas mercadorias, inclusive automóveis, e do tributos do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incidem sobre o faturamento das empresas e usados para financiar a saúde pública e Previdência Social.

O índice de redução ainda não divulgado pelo governo, mas o governo afirmou que a porcentagem do desconto será baseada em três critérios: social, eficiência energética e densidade industrial.

Isso significa que, na prática, automóveis mais baratos, menos poluentes e mais econômicos em gasto combustível, assim como os que possuem mais peças nacionais em sua composição, terão mais desconto.

De acordo com Alckmin, quanto mais critérios forem atendidos, maior será a redução no preço. Ele também sinalizou com a possibilidade de desconto maior por venda direta da indústria.

"Isso acontecerá para aqueles que têm um CNPJ de empresa e decidirem usar na hora de comprar o carro. A legislação brasileira permite que a montadora tenha uma taxa menor de impostos vendendo para empresas", explica Paulo Cardamone, presidente da Bright Consulting, especializada no mercado automobilístico.

Algumas duvidas continuam em aberto como por exemplo se a indústria será obrigada a repassar as reduções nos impostos para o consumidor final.

Ou, por exemplo, por quanto tempo essas medidas vão valer, já que o governo afirmou que se trata de um programa transitório que visa reduzir a ociosidade da indústria automobilística brasileira.

O preço dos carros vai cair?

A expectativa do governo é que a redução de impostos faça o preço dos automóveis cair entre 1,5% a 10,79%.

Cardamone avalia que a redução de impostos tem o potencial de baratear mais de um quarto dos modelos à venda atualmente.

"Para se ter uma ideia do tamanho da mudança, hoje nós temos aproximadamente 600 modelos de veículos sendo vendidos e cerca de 160 deles, 25%, estão dentro dessa faixa de preço passível de desconto, e representam 47% do volume de carros no mercado", diz o analista.

Cardamone afirma que, considerando o objetivo de tornar os veículos mais acessíveis para quem tem menor renda, o limite de R$ 120 mil é razoável.

"A redução para faixa de preço mais altas privilegiaria apenas quem tem renda muito alta."

No entanto, detalhes da fórmula que será aplicada ainda não são conhecidos para se poder precisar quanto o preço de cada modelo poderá cair.

Após o anúncio, o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio Lima Leite, pode levar o preço dos modelos mais em conta ficar abaixo de R$ 60 mil.

No entanto, os carros mais baratos hoje no Brasil, Renault Kwid e Fiat Mobi, ficariam acima disso com os índices anunciados pelo governo.

Se eles recebessem a redução máxima prevista, de 10,79%, por exemplo, passariam dos R$ 68.990 atuais para R$ 61.545.

Quais podem ser os outros impactos do programa?

Analistas apontam que uma redução de impostos que barateie os carros tem o potencial de aumentar as vendas e, portanto, reaquecer a produção indústrial.

Isso, por sua vez, aumentaria a oferta de empregos e a renda de parte da população, estimulando o consumo e aumentando a arrecadação do governo, beneficiando a economia de forma geral.

“Se bem desenhado, o programa do veículo acessível poderia trazer, inclusive, um equilíbrio na arrecadação, porque estaria substituindo veículos usados que geram imposto menor, com marginal impacto positivo nos empregos, agradando o governo em termos políticos", avalia Cardamone.

O faturamento do setor, que caiu 43% em dez anos, também é um fator importante por trás da medida.

"O Brasil já produziu cerca de 3,8 milhões de veículos em um ano, e hoje esse número está estagnado em um patamar de 2 milhões de veículos. É uma ociosidade de quase 50% da produção, o que não é normal no setor automotivo, que precisa ocupar ao menos 70% de sua capacidade produtiva", afirma Cardamone.

"O governo olha esse setor, que já teve grande contribuição tributária, e procura uma forma de tentar recuperar isso."

Cardamone aponta que um ponto importante a ser considerado é a duração do benefício. (Getty Images)

"A medida não pode ser eterna porque é uma renúncia fiscal importante. Não se sabe se vai durar seis meses, um ano… Particularmente, eu acho que em um intervalo entre julho a dezembro, por exemplo, funciona."

O analista calcula que o programa teria o potencial de aumentar as vendas em aproximadamente 120 a 130 mil automóveis em seis meses - um crescimento 6% acima do previsto atualmente para o setor.

Por outro lado, aponta o analista, a renúncia fiscal neste mesmo período deve girar em torno de R$ 4 bilhões.

"Se a medida durar um ano, já são R$ 8 bilhões a menos para um governo que não passa por um momento econômico fácil."

Antonio Jorge Martins, coordenador acadêmico dos cursos da área automotiva na Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que não vê estes impactos acontecendo "da noite para o dia" e acrescenta que pode ser necessário ir além do corte de impostos.

"Talvez não somente a redução dos preços, mas também as melhores condições de obtenção de financiamento, resultem em um cenário melhor para aumentar a produção do setor."

Lula tocou neste ponto horas depois do anúncio, em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), quando voltou a criticar o preço atual dos carros e os altos juros que impedem o consumidor de buscar crédito.

O presidente afirmou que a maioria dos carros vendidos no ano passado foram vendidos à vista, segundo ele, "porque não tem política de crédito para financiar. E a classe média baixa não está comprando mais carro, porque um carro popular de R$ 90 mil não é mais popular".

Martins ressalta ainda que o imposto que mais impacta o preço de veículos atualmente é o ICMS, cobrado pelos Estados.

"Eu não sei exatamente do entendimento do governo federal com os Estados no sentido de propiciar também a redução do ICMS, mas acredito, inclusive, que a redução desse imposto seria mais relevante do que os impostos federais."

O 'carro popular' vai voltar?

Embora haja uma expectativa de redução nos preços, a volta dos carros populares como os brasileiros já conheceram não deve acontecer, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Isso porque os veículos vendidos com este mote em épocas passadas, quando a indústria tinha números de produção e venda bem superiores aos atuais, se tornaram ultrapassados e não têm mais lugar no mercado hoje.

"O carro popular antes se caracterizava por um baixo nível de segurança e opções bastantes reduzidas de conforto e tecnologia. Não é mais possível usar esse termo - o que teremos daqui para frente são 'carros de entrada'", afirma Martins.

Cardamone explica que o aumento dos preços nos últimos anos se deveu a um processo de modernização dos modelos.

"É importante para o Brasil ter segurança em termos de menos acidentes e ser responsável com o meio ambiente. Ou seja, se juntar a regulação ideal com esse consumidor de maior poder aquisitivo, que quer tudo no carro, conectividade, infoentretenimento, ter o 'iPhone' dos carros, não tem o que fazer - o preço sobe."

Há também outros motivos, mais abrangentes, que afetaram os preços e a capacidade de compra da população.

Custos gerais de logística, frete e acesso à elementos de tecnologia encareceram no Brasil e no mundo afetados pela pandemia da covid-19, conforme apontado em uma reportagem da BBC News Brasil.

"Paralelamente, aqui no Brasil, nós tivemos uma desvalorização cambial e também tivemos a inflação. Isso tudo fez com que as empresas passassem a repassar esses custos aos seus consumidores finais", complementa Martins.

Giulia Granchi, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 25.05.23

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Lula e o ‘piston de gafieira’


As confusões dentro de um governo em disputa são o reflexo da ausência de coordenação

Era 1959 quando Billy Blanco compôs a música Piston de Gafieira. É aquela que retrata o que acontece quando o clima esquenta no salão: “A porta fecha enquanto dura o vai não vai, quem está fora não entra, quem está dentro não sai”. Nada mais parecido com o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Das confusões do ministro Juscelino Filho, passando pela titular do Turismo e pelas brigas entre as pastas de Minas e Energia e do Meio Ambiente e, agora, entre o Itamaraty e os militares, tudo parece lembrar o samba gravado por Silvio Caldas e Moreira da Silva. E qual o papel de

Lula, o presidente, nessa história? Na hora da confusão, o samba dizia que a orquestra na gafieira sempre tomava a mesma providência: tocava alto para a polícia “não manjar”. E concluía: “E nessa altura, como parte da rotina, o ‘piston’ tira a surdina e põe as coisas no lugar”.

Pela história do PT, Lula devia ser o “piston de gafieira” do governo. Em vez disso, passou cinco meses assistindo – quando não participava – ao vai não vai. Uma hora a briga era pelos juros, noutra por causa da Ucrânia e, por fim, até com quem o ajudou em sua eleição para se ver livre de Jair Bolsonaro. Pior. Quando devia tocar o trompete e mediar a briga entre o seu partido e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o presidente deixou a confusão rolar no governo até a oposição “manjar”.

As intrigas palacianas, os ciúmes e os egos terríveis vão desgastando ministros e secretários como Ariel de Castro Alves (Direitos da Criança e Adolescente), defenestrado após a primeira-dama Janja da Silva ter marcado um reunião com ele sem avisar seu chefe, o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos). O titular da pasta não aceitava dividir os holofotes com Ariel. E ficou ainda mais contrariado porque teve de se deslocar até o gabinete do subordinado para se encontrar com Janja...

Foi ainda preciso que a disputa entre Marina Silva (Meio Ambiente) e Alexandre Silveira (Minas e Energia) ficasse exposta, sem falar nas consequências no Senado (Alcolumbre e Randolfe que o digam), para que Lula resolvesse ameaçar a tocar o trompete para defender a Petrobras. Mas, quando se tratava de vender blindados Guaranis como ambulância à Ucrânia, o presidente escutou as queixas do Itamaraty. Dará também ouvidos à base industrial da defesa? Qual a política do governo afinal?

No Congresso, petistas se somam a bolsonaristas para emparedar os comandantes das três Forças e o ministro da Defesa, José Múcio. Enquanto isso, Arthur Lira já prepara a campanha de 2026. Nela, talvez, não exista mais Bolsonaro para garantir uns 2 milhões de votos a mais ao PT. E, nessa altura, com o desgaste da rotina, nem o trompete vai pôr as coisas no lugar. •

Marcelo Godoy, ao autor deste artigo é repórter especial d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 24.05.23

Placebo fiscal

Com aumento de despesas e queda nas receitas, governo admite que déficit primário neste ano será pior que o projetado. Nova regra fiscal já parece insuficiente para estabilizar dívida pública

O governo reconheceu que o déficit fiscal deste ano será maior que o inicialmente projetado. A nova estimativa para o saldo negativo entre receitas e despesas subiu a R$ 136,2 bilhões, R$ 28,6 bilhões maior que os R$ 107,6 bilhões previstos em março, o que obrigou o governo a contingenciar um total de R$ 1,7 bilhão em gastos do orçamento. O valor também está muito distante da meta de déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), escolhida pelo Ministério da Fazenda na apresentação da proposta do arcabouço fiscal.

A piora nos números não surpreende, pois é mero reflexo das escolhas feitas do governo nos primeiros meses deste ano e do Congresso no ano passado. O salário mínimo já havia sido elevado em janeiro, mas o presidente Lula quis conceder um reajuste real a partir de 1.º de maio. Com aposentadorias, pensões, abono salarial e seguro-desemprego vinculados ao piso, era evidente que a projeção de gastos públicos também teria de ser elevada.

O governo também teve de aumentar o repasse a Estados e municípios para resolver o impasse do piso da enfermagem e as transferências para apoio do setor cultural no pós-pandemia, ambos aprovados pela Câmara e pelo Senado no ano passado sem que houvesse indicação das receitas que bancariam as propostas. Além disso, problemas climáticos no Sul do País prejudicaram os produtores rurais e elevaram os desembolsos com subvenções do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro).

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que o déficit pode cair quando as regras do novo arcabouço fiscal entrarem em vigor. Mas há dúvidas sobre se a proposta terá tanto impacto quanto o governo diz esperar. Na tentativa de construir uma base de apoio sólida no Congresso, em vez de trabalhar para convencer os parlamentares a apoiar suas propostas, o governo tem apelado à liberação de recursos para emendas, o que amplia as despesas da União e, consequentemente, o déficit fiscal.

Para completar, o parecer do relator, Cláudio Cajado (PP-BA), diminuiu o espaço do governo para fazer contingenciamentos e limita os bloqueios a 25% dos gastos discricionários, justamente a rubrica em que as emendas se inserem. Cumprir a meta, portanto, exigirá necessariamente aumentar a arrecadação. Ceron disse que o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do 2.º Bimestre ainda não incorporou decisões judiciais favoráveis ao governo na área tributária, que podem agregar receitas de R$ 50 bilhões ao orçamento deste ano, nem as alterações no voto de minerva do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que precisam do aval de um Congresso ainda reticente sobre o tema. Mas, passados os primeiros cinco meses do ano, tudo indica que o otimismo que o governo havia manifestado a respeito sobre a recuperação de até R$ 150 bilhões em receitas neste ano não vai se concretizar.

Apesar de o governo ter elevado a projeção do crescimento da economia de 1,61% para 1,91%, o que tende a aumentar a arrecadação, o relatório, ao contrário, revelou uma piora na projeção de receitas. Isso, por óbvio, fragiliza a credibilidade das metas fiscais e do próprio arcabouço, mas também alimenta as dúvidas a respeito do discurso da Fazenda sobre a reforma tributária. Com esses números, fica ainda mais difícil afirmar que a proposta não resultará em um aumento da carga e que se limitará a corrigir distorções legais e onerar setores que hoje pagam proporcionalmente menos impostos do que deveriam.

Com a estrutura de receitas atual e a rigidez das despesas públicas, a conta não fecha neste ano nem em 2024, o que dirá no médio e longo prazos. Em algum momento o País terá de encarar a realidade e rever o tamanho de suas despesas com reformas estruturais ou aceitar mais um inevitável aumento da carga tributária – quanto antes isso for definido, melhor. Com tantas incertezas, é hora de rever seus números e projeções com pragmatismo e transparência. Do contrário, estabilizar a trajetória da dívida pública, o verdadeiro objetivo do projeto do arcabouço fiscal, continuará a ser uma meta intangível. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.05.23