sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Zelensky: "Espero ver Putin no tribunal de Haia"

O presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, afirmou que os crimes cometidos pela Rússia na Ucrânia "não podem ficar impunes".

"Espero ver [Vladímir] Putin em tribunal em Haia. Tantas mortes não podem ficar impunes", afirmou durante a conferência de imprensa em que o presidente ucraniano faz o balanço da guerra no dia do aniversário do conflito. "[Putin] é o líder da Rússia e ele tem que responder. O que ele fez não pode ser perdoado. Esse número de pessoas mortas é uma tragédia e devemos responder", afirmou Zelensky.

Ucrânia e Polônia realizam a entrega dos primeiros tanques Leopard


Na foto distribuída pelo governo ucraniano, Denís Shmihal (esquerda) e Mateusz Morawiecki, na entrega dos tanques Leopard à Ucrânia. 

O primeiro-ministro ucraniano, Denís Shmihal, e o seu homólogo polaco, Mateusz Morawiecki, protagonizaram esta sexta-feira a entrega dos primeiros quatro tanques Leopard de fabrico alemão ao exército ucraniano. 

"Um ano atrás, os tanques entraram na Ucrânia para privá-la de sua liberdade", escreveu Shmihal em sua conta no Telegram. "Hoje os tanques entraram na Ucrânia, mas para proteger sua liberdade." 

Shmihal indicou que as tripulações dos tanques "têm experiência de combate" e foram treinadas para seu uso. "Continuamos a expandir a coalizão de tanques para devolver a liberdade a todos os territórios ucranianos." 

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 24.02.23

A Ucrânia se dedica a homenagear seus mortos e reivindicar sua resistência no aniversário da guerra

“O mundo não se esquece de nós. Se nossos aliados fizerem seu trabalho, a vitória é inevitável", diz Zelenski.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky na cerimônia oficial do primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia em Kiev na sexta-feira. (Foto: DPA VIA EUROPA PRESS )

A Ucrânia prestou homenagem aos mortos no primeiro aniversário da grande invasão russa do país, que começou em 24 de fevereiro de 2022. Enquanto a guerra não terminar e essa possibilidade não estiver à vista, esta data é marcada não oficialmente como o novo dia dos mortos A morte é um drama diário que ocupa um lugar preferencial na vida de um país em guerra. De norte a sul e de leste a oeste, as homenagens se espalharam nesta sexta-feira em forma de flores, orações, cantos e lágrimas. Enquanto isso, as autoridades de Kiev e Moscou oferecem números de suas baixas que não são reais.

Na guerra, as figuras também são armas nas mãos de cada lado, que as utiliza para promover sua causa. Em meio a essa incerteza sobre o impacto humano real, fontes de inteligência ocidentais estimam as mortes em cerca de 25.000 a 30.000 no lado ucraniano e cerca de 100.000 no lado russo. Outras fontes aumentam o número de vítimas ucranianas.

O presidente Volodímir Zelenski, que se tornou uma figura influente na política mundial ao liderar a resistência de seu país, recebeu o primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki, em Kiev para coincidir com o aniversário. O presidente do país vizinho viajou acompanhado da primeira entrega de tanques Leopard 2, de fabricação alemã, que a Ucrânia reclama há meses e que também receberá da Espanha. Zelensky, embora não pare de pedir mais e mais armas, apreciou a ajuda recebida de seus aliados ao longo desses meses, pois esse apoio é o que lhes permitiu impedir a tentativa do presidente russo Vladimir Putin de assumir o controle do país. e estabelecer um governo fantoche. “O mundo não está esquecendo a Ucrânia. Isso nos permite ficar fortes, invencíveis”, agradeceu. "Se todos os nossos aliados fizerem seu trabalho, a vitória será inevitável."

Fotos de oito dos mortos nas mãos dos russos em Bucha se destacam acima de um arranjo de flores vermelhas em uma das paredes externas do que se tornou o quartel-general do exército do Kremlin nesta cidade nos arredores de Kiev. Natalia Verbova, 50, acaricia a primeira dessas imagens. É a de Andrii Verbovii, seu marido. A acompanhá-lo, entre duas bandeiras nacionais, estão Vitalii Karpenko, Denis Rudenko, Sviatoslav Turkovskii, Anatolii Prikhidko, Andrii Dvornikov, Andrii Matviichuk, Valerii Kotenko. Este último é quem os acolheu em sua casa nas primeiras horas de ocupação de Bucha, quando, segundo os familiares souberam da polícia, um jovem os traiu.

O grupo foi capturado em 4 de março, de acordo com imagens de câmeras de rua obtidas pelo The New York Times.. Eles foram assassinados no mesmo dia, segundo as investigações, embora a princípio se pensasse que fosse 5 de março, data da morte que aparece em todas as fotos. Os corpos, alguns algemados segundo fotos da agência Associated Press, permaneceram no mesmo local até um mês depois, quando as tropas invasoras tiveram que se retirar, deixando atrás de si um rastro de morte e brutalidade. É ali mesmo que os familiares ergueram a oferenda floral e onde esta sexta-feira foram lembrados num acto simples mas emocionante. Alguns deles mostram na tela do celular fotos dos corpos espalhados no mesmo local em que agora estão com os pés.

400 vítimas civis em um mês de ocupação

Mais de 400 civis perderam a vida em Bucha durante um mês de ocupação e pesadelo. Alguns foram, segundo as primeiras indicações, torturados e assassinados a sangue frio. A rua Yablunska, em cujo número 144 está o prédio tomado como centro de comando pelos russos, foi encontrada repleta de cadáveres quando eles fugiram depois de fracassar em sua tentativa de tomar Kiev. “É muito difícil supor o que aconteceu. Os corpos tinham vestígios de tortura. Também é um pesadelo saber que eles ficaram aqui por um mês. Procurávamos por eles com a esperança de que estivessem vivos”, lamenta Natália.

Ao lado dela, Oleksander, 68 anos e pai de Sviatoslav Turkovskii, outro dos oito assassinados. “No dia 23 de fevereiro meu filho completou 35 anos e no dia 24 começou a invasão. Nesse dia ele me ligou e disse que havia sido dispensado do trabalho para ingressar na defesa territorial. O último contato que tive com ele foi no dia 4 de março, quando ele me mandou uma mensagem no celular dizendo que eles estavam escondidos na casa de Valerii Kotenko. Ele me disse para não ligar para ele, que não podíamos nos ver”, lembra o pai.

No cemitério local, um padre rezou uma resposta enquanto várias famílias de soldados mortos em combate compareceram com flores que posteriormente foram colocadas em seus túmulos. Ao fundo, alguns choros e o som do vento gelado, que faz esvoaçar as bandeiras e os plásticos que envolvem alguns buquês. Depois de cantar o hino nacional, cada um vai ao túmulo de seu ente querido.

Anastasiya, 27, não tira os olhos da foto do marido, Yurii, que morreu aos 28 anos em agosto passado em Marinka (região de Donetsk, leste da Ucrânia). Acompanhada dos sogros, a jovem conta que tem um filho, Iván, que completou 10 anos na véspera e que não para de relembrar os melhores momentos que passou com o pai. “Hoje é um dia muito doloroso. Em 24 de fevereiro do ano passado, nossas vidas se partiram em duas. E quebrou pela segunda vez com a morte do meu marido”, diz Anastasiya. “Não posso sentir mais dor, mas também sinto pena do resto das vítimas”, acrescenta.

Em Kiev, vários homens vestidos de soldados e vários grupos de mulheres depositam flores na parede que lembra aqueles que morreram desde o início da guerra em 2014 no leste da Ucrânia. Seus rostos, milhares, somam-se à parede que ladeia o mosteiro de San Miguel de las Cúpulas Doradas. Olha, de 40 anos, vai para lá com um buquê nas cores da bandeira nacional, azul e amarelo. Um dos retratos é de seu marido, Ivan, que morreu perto de Bakhmut (região de Donetsk) há quatro meses. “Muitos de nosso povo, nossos soldados e nossas crianças estão morrendo. Esperamos a vitória todos os dias. Pode ser amanhã, hoje…”.

Luis de Vega, o autor deste artigo, é o enviado especial do EL PAÍS ao front da resistência da Ucrânia à invasão da Russia ordenada por Vladimir Putin. Publicado originalmente em 24.03.24

Guerra na Ucrânia: por que planos de Putin falharam e o que a Rússia quer agora

Após uma série de retiradas humilhantes, seu plano inicial de invasão claramente fracassou — mas a Rússia não vê a guerra como perdida.


Quando o presidente russo, Vladimir Putin, enviou cerca de 200 mil soldados para a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, ele presumiu erroneamente que poderia invadir a capital, Kiev, em questão de dias e depor o governo.

Qual era o objetivo inicial de Putin?

Até hoje, o líder russo descreve a maior invasão europeia desde o fim da Segunda Guerra Mundial como uma "operação militar especial". E não como uma guerra em larga escala que bombardeou civis em toda a Ucrânia, levando mais de 13 milhões a cruzar a fronteira como refugiados ou a se deslocar dentro do próprio país.

Seu objetivo declarado em 24 de fevereiro de 2022 era "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia — e não ocupá-la pela força —, dias depois de reconhecer a independência de duas regiões separatistas no leste da Ucrânia, ocupadas por forças rebeldes apoiadas pela Rússia desde 2014.

Ele prometeu proteger a população de oito anos de intimidação e genocídio ucranianos — uma alegação da propaganda russa sem qualquer fundamento na realidade. Ele falou em impedir o avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) por meio da Ucrânia, e depois acrescentou o objetivo de garantir o status neutro da Ucrânia.

Putin nunca disse isso com todas as letras, mas no topo da sua agenda estava derrubar o governo do presidente eleito da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

"O inimigo me designou como alvo número um; minha família é o alvo número dois", declarou Zelensky. As tropas russas fizeram duas tentativas de invadir o complexo presidencial, segundo o assessor dele.

As alegações russas de nazistas ucranianos cometendo genocídio nunca fizeram sentido, mas a agência de notícias estatal russa Ria Novosti explicou que "a desnazificação é também inevitavelmente a desucranização" — que, na prática, seria apagar o Estado moderno da Ucrânia.

Durante anos, o presidente russo negou à Ucrânia sua soberania, escrevendo em um longo artigo de 2021 que "russos e ucranianos eram um só povo", o que remontaria ao fim do século 9.

Como Putin mudou seus objetivos de guerra

Um mês após a invasão, suas metas de campanha foram drasticamente reduzidas depois que suas tropas bateram em retirada de Kiev e Chernihiv. O objetivo principal se tornou então a "libertação de Donbas" — que se refere amplamente a Luhansk e Donetsk, duas regiões industriais no leste da Ucrânia.

Forçada a se retirar também de Kharkiv, no nordeste, e de Kherson, no sul do país, a Rússia manteve seus objetivos inalterados, mas tem mostrado pouco sucesso em alcançá-los.

Esses reveses no campo de batalha levaram o líder russo a anexar quatro províncias ucranianas em setembro passado, sem ter controle total sob nenhuma delas: nem sob Luhansk ou Donetsk, no leste, nem sob Kherson ou Zaporizhzhia, ao sul.

Putin anunciou a primeira convocação militar da Rússia desde a Segunda Guerra Mundial, embora parcial e limitada a cerca de 300 mil reservistas.

Uma guerra de atrito está ocorrendo agora ao longo de uma linha de frente ativa de 850 km — e as vitórias russas são pequenas e raras. O que era para ser uma operação rápida, se tornou uma guerra prolongada que os líderes do Ocidente estabeleceram que a Ucrânia deve vencer. Qualquer perspectiva realista de neutralidade para a Ucrânia já não existe mais.

Putin alertou em dezembro que a guerra "poderia ser um processo demorado", mas depois acrescentou que o objetivo da Rússia era "não girar o volante do conflito militar", mas acabar com ele.

O que ele alcançou?

O maior sucesso que Putin pode reivindicar é estabelecer uma ponte terrestre ligando a fronteira da Rússia com a Crimeia, anexada ilegalmente em 2014, de modo a não depender mais da ponte sobre o Estreito de Kerch.

Ele falou da captura deste território, que inclui as cidades de Mariupol e Melitopol, como um "resultado significativo para a Rússia". O Mar de Azov, dentro do Estreito de Kerch, "se tornou o mar interno da Rússia", ele declarou, lembrando que nem mesmo o czar russo Pedro, o Grande, conseguiu isso.

Ele fracassou?

Além de tomar um corredor territorial para a Crimeia, a guerra foi um desastre para a Rússia em si e para o país em que foi desencadeada. Até agora, conseguiu pouco mais do que expor a brutalidade e a inadequação das forças armadas russas.

Enquanto cidades como Mariupol foram arrasadas, vieram à tona detalhes de crimes de guerra cometidos contra civis em Bucha, perto de Kiev. As denúncias levaram a um relatório independente que acusa a própria Rússia de incitação ao genocídio orquestrada pelo Estado.

Mas são os fracassos militares que expõem a fragilidade Rússia:

- A retirada de 30 mil soldados russos de Kherson pelo Rio Dnipro, em novembro, foi uma falha estratégica;

- Um comboio blindado de 56 km que parou de avançar perto de Kiev, no início da guerra, foi uma falha logística;

- As mortes de um grande número de soldados recém-convocados em um ataque de mísseis ucraniano no ano novo, em Makiivka, foram uma falha de inteligência;

- O naufrágio do Moskva, principal cruzador russo do Mar Negro, foi uma falha defensiva, assim como o ataque espetacular em outubro de 2022 que fechou a ponte do Estreito de Kerch por semanas.

As advertências feitas pela Rússia ao Ocidente contra armar a Ucrânia foram ignoradas, com garantias de apoio do Ocidente "pelo tempo que for necessário".

A artilharia da Ucrânia foi reforçada por mísseis Himars, fabricados nos EUA, e a promessa de tanques alemães Leopard 2.

Mas a guerra não acabou. A luta por Donbas continua. A Rússia capturou a cidade de Soledar neste ano e espera tomar a cidade de Bakhmut, ao leste, na rota para cidades-chave a oeste, além de recapturar o território que perdeu no outono passado.

Especialistas acreditam que Putin vai tentar ampliar o controle das quatro regiões que declarou fazerem parte da Rússia, não apenas em Donbas, mas em direção à cidade-chave de Zaporizhzhia.

Se for necessário, o presidente russo pode estender a mobilização militar e prolongar a guerra. A Rússia é uma potência nuclear, e ele indicou que estaria disposto, se necessário, a usar armas nucleares para proteger a Rússia e manter as terras ucranianas ocupadas.

"Certamente faremos uso de todos os sistemas de armas disponíveis. Não é um blefe", alertou.

Kiev acredita que a Rússia também está tentando depor o governo pró-europeu na Moldávia, onde as tropas russas estão baseadas na região separatista da Transnístria, na fronteira com a Ucrânia.

Putin foi prejudicado?

Aos 70 anos, Putin tentou se distanciar dos fracassos militares, mas sua autoridade, pelo menos fora da Rússia, foi minada — e ele faz poucas viagens além das fronteiras do país.

Internamente, a economia da Rússia aparentemente resistiu a uma série de sanções ocidentais, embora o déficit orçamentário tenha disparado e as receitas de petróleo e gás tenham caído drasticamente.

Qualquer tentativa de avaliar sua popularidade esbarra em dificuldades.

A dissidência na Rússia é altamente arriscada, com penas de prisão aplicadas a qualquer um que espalhe "notícias falsas" sobre os militares russos. Aqueles que se opõem ao governo da Rússia fugiram ou foram colocados atrás das grades, como aconteceu com a principal figura da oposição, Alexei Navalny.

Mudança da Ucrânia para o Ocidente

As sementes desta guerra foram plantadas em 2013, quando Moscou convenceu o então líder pró-Rússia da Ucrânia a cancelar um pacto planejado com a União Europeia, provocando protestos que acabaram por derrubá-lo e levaram a Rússia a tomar a Crimeia e preparar a apropriação de terras no leste.

Quatro meses após a invasão da Rússia em 2022, a União Europeia concedeu à Ucrânia o status de candidata — e Kiev está pressionando para o país ser aceito o mais rápido possível.

O líder russo de longa data também estava desesperado para impedir que a Ucrânia entrasse na órbita da Otan, mas sua tentativa de culpar a aliança militar do Ocidente pela guerra é falsa.

A Ucrânia não apenas concordou antes da guerra com um acordo provisório com a Rússia para ficar fora da Otan, como o presidente Zelensky se ofereceu, em março, para manter a Ucrânia como um Estado não-alinhado e não-nuclear: "É uma verdade e precisa ser reconhecida ."

A Otan é culpada pela guerra?

Os Estados membros da Otan têm enviado cada vez mais sistemas de defesa aérea à Ucrânia para proteger suas cidades, assim como sistemas de mísseis, artilharia e drones que ajudaram a virar o jogo contra a invasão russa.

Mas a aliança militar não é culpada pela guerra. A expansão da Otan vem como uma resposta à ameaça russa — Suécia e Finlândia só solicitaram adesão por causa da invasão.

Culpar a expansão da Otan para o leste é uma narrativa russa que ganhou algum espaço na Europa. Antes da guerra, Putin exigiu que a Otan voltasse no tempo para 1997 e retirasse suas forças e infraestrutura militar da Europa Central, do leste europeu e dos países bálticos.

A seus olhos, o Ocidente prometeu em 1990 que a Otan não se expandiria "nem um centímetro para o leste", mas avançou assim mesmo. No entanto, como isso foi antes do colapso da União Soviética, a promessa feita ao então presidente soviético Mikhail Gorbachev se referia apenas à Alemanha Oriental no contexto de uma Alemanha reunificada.

Gorbachev disse mais tarde que "o tema da expansão da Otan nunca foi discutido" na época.

A Otan afirma que nunca teve a intenção de mobilizar tropas de combate em seu flanco oriental, até que a Rússia anexou a Crimeia ilegalmente em 2014.

Paul Kirby para a BBC News. Publicado originalmente em 22.02.23

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Fantasmas no Congresso

Parlamentares se dão de presente verbas imorais diante da realidade do país

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Marcos Oliveira/Agência Senado

Deputados e senadores deveriam ser os maiores interessados em ver a imagem dos políticos melhorar no país, mas, em vez de se aplicarem para receber aplausos da população, eles parecem se esforçar para piorar sua situação diante dos olhos da sociedade.

Não se trata somente de seus salários, generosos no contexto da realidade orçamentária nacional: são R$ 39,3 mil mensais, que em abril passarão a R$ 41,7 mil e chegarão a R$ 46,4 mil em 2025.

Tampouco se trata apenas das inúmeras outras verbas a que têm direito. Deputados, por exemplo, recebem R$ 8.400 de auxílio-moradia, além de R$ 45 mil, em média, para reembolsar despesas com passagens aéreas, combustível, hospedagem e alimentação, entre outras.

Insatisfeitos com tantos mimos e mordomias, os parlamentares ainda se consideram em posição de angariar um salário extra no começo e no final de seus mandatos.

Neste ano, as duas Casas do Legislativo transferiram 1.080 dessas cotas, relativas a 513 deputados e 27 senadores eleitos, além de 513 deputados e 27 senadores em fim de mandato. Somados, esses regalos montam a mais de R$ 42 milhões.

Tamanha gastança transcorre sem nenhuma explicação digna desse nome. Como se não precisassem justificar de forma adequada o destino dado aos impostos do contribuinte, os parlamentares se agarram a um óbvio ilusionismo.

Dizem que a verba que cai nas suas contas representa uma ajuda de custo para que se mudem de seus estados para Brasília, quando são eleitos, e da capital federal de volta para casa, quando encerram seu trabalho representativo.

Supondo que fosse verdade, seria o caso de perguntar por que o valor equivale a um salário extra, visto que nem todas as mudanças têm o mesmo orçamento. E seria o caso de questionar que mudança é essa, dado que muitos parlamentares não residem em Brasília e todos recebem reembolso de passagem aérea e hospedagem.

A fantasmagoria, que já era evidente, revela-se por inteiro quando se dá conta de que até parlamentares reeleitos têm o privilégio da verba extra, embora não estejam se mudando para lugar nenhum. Pior: a mamata cai nos seus bolsos duas vezes, uma pelo mandato que termina, outra pelo que começa.

Diante dessa desfaçatez, parlamentares devem saber que só há uma atitude a tomar: recusar o dinheiro e derrubar a lei que legitima esse absurdo.

Editorial de Folha de S. Paulo, em 23.02.23 (editoriais@grupofolha.com)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Os verdadeiros inimigos do País

Combinação desastrosa de burrice, ignorância e paroquialismo eleitoral revela que Lula manterá o Brasil alijado do mundo que dá certo

Quando Luís Napoleão conquistou o poder na França, Karl Marx descreveu o retorno do bonapartismo como “a história se repete, primeiro como tragédia e, depois, como farsa”. O epítome serve também para classificar a volta do PT ao poder. Após 14 anos na Presidência da República, o PT deixou um país esgarçado pela polarização política, dilacerado pela pior recessão econômica da história, inflação de dois dígitos, 13 milhões de desempregados e um gigantesco rombo fiscal que culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff por suas pedaladas fiscais. Foi uma tragédia.

A volta do bonapartismo lulista já tem as sementes de uma farsa. Seu revisionismo histórico pretende sepultar os escândalos de corrupção do PT e tratar o impeachment de Dilma como golpismo. Sua visão diplomática consiste em reatar a aliança com ditadores e presidentes populistas latino-americanos e financiá-los com o dinheiro do BNDES. Sua ideia de governabilidade é a velha política de distribuir cargos e verbas públicas para aliciar partidos em troca de apoio no Congresso. Esse comportamento mostra que Lula não aprendeu nada e não esqueceu nada.

Lula não compreendeu que o “inimigo” não é a direita nem a oposição ou o mercado. O nosso inimigo é o baixo crescimento econômico, que já dura quatro décadas. É a perpetuação de um Estado caro e ineficiente, que gera desigualdade social, presta serviço público de péssima qualidade e sustenta uma casta de privilegiados na máquina pública. É o populismo, que debilita o funcionamento da democracia e avilta os pilares sagrados do Estado de Direito e das liberdades individuais. É a educação pública de péssima qualidade, que destrói a igualdade de oportunidade e trava o crescimento da produtividade. É um país que ignora o seu extraordinário ativo ambiental, que pode ser convertido em prosperidade econômica, geração de renda, emprego e investimento no mundo da economia de baixo carbono.

Exceto a questão ambiental, que é um desafio para todos os países que precisam reduzir a emissão de carbono sem comprometer a geração de riqueza e prosperidade, os demais desafios já foram superados por vários países há mais de 40 anos. A abertura comercial foi responsável pelo crescimento da economia global, redução da pobreza mundial e desenvolvimento dos países emergentes desde os anos 80 do século passado. O Brasil, ao contrário, ainda se apega ao mercantilismo do século 18, que acredita em reserva de mercado, protecionismo e Estado interventor na economia. As desastrosas falas de Lula sobre a economia provocaram a reação do mercado, que já perdeu a paciência com populistas. O Banco Central já deixou claro que continuará a subir a taxa de juros para brecar a irresponsabilidade da gastança pública desenfreada e o desequilíbrio fiscal. O presidente do Uruguai, Lacalle Pou, foi enfático ao dizer que trilhará caminho próprio, caso o Mercosul continue a protelar os acordos de abertura comercial. O Uruguai não seguirá o caminho do precipício econômico defendido pelos governos do Brasil e da Argentina.

No século 19, as duas grandes potências econômicas do mundo, Reino Unido e Estados Unidos, compreenderam que era impossível criar um Estado eficiente com uma burocracia incompetente e dominada pelo clientelismo político, sinecuras e indicações partidárias. Iniciou-se um ciclo virtuoso de reformas para criar uma burocracia eficiente, profissional, meritocrática e blindada de indicações políticas. A profissionalização da burocracia tornou-se obrigatória para todos os países que buscam criar regras estáveis, previsibilidade e continuidade de políticas públicas eficazes. Já no Brasil a reforma administrativa ainda sofre resistência de uma classe política que rechaça a criação de uma burocracia profissional, meritocrática e baseada em desempenho porque entende que o clientelismo, as indicações políticas e as ilhas de privilégios da elite do funcionalismo público são importante ativo político-eleitoral.

A educação pública de qualidade tornou-se o pilar central da geração de igualdade de oportunidade, mobilidade social e ganho de produtividade. A educação focada no aprendizado do aluno, na formação e valorização da carreira do professor e na avaliação da aprendizagem se tornou padrão perante todos os países que deram um salto qualitativo na educação. No Brasil, essas lições foram ignoradas. O País está entre os piores do mundo nas avaliações internacionais de aprendizagem. No fim do governo Dilma, 50% das crianças não estavam devidamente alfabetizadas. Não é por outra razão que o Brasil continua a ser um dos países mais desiguais do mundo.

Esta combinação desastrosa de burrice (não aprender com os exemplos que deram certo), ignorância (o misticismo ideológico prevalece sobre os fatos e as evidências) e paroquialismo eleitoral (perpetuar os vínculos do corporativismo e do clientelismo para ganhar votos) revela que Lula manterá o Brasil alijado do mundo que dá certo e longe das soluções práticas para combater os verdadeiros inimigos do País.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é Cientista político, autor do livro ‘10 Mandamentos – Do brasil que Somos para o País de Queremos’, foi candidato à Presidência da República (2021).

Perigoso legado de Bolsonaro

Número de armas nas mãos de particulares saltou de 1,3 milhão para 2,9 milhões, um evidente absurdo

A atuação do então presidente Jair Bolsonaro para facilitar o acesso a armas de fogo durante seu mandato produziu um dado impressionante: o número de armas nas mãos de particulares mais do que dobrou entre 2018 e 2022, passando de 1,3 milhão para 2,9 milhões. Eis o resultado concreto da pregação e das ações do então presidente para flexibilizar restrições ao armamento da população. Hoje a sociedade brasileira está mais armada, e isso traz riscos. Um legado com efeitos de curto, médio e longo prazos.

Como noticiou o Estadão, dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz e pelo Instituto Igarapé mostram que o acervo particular no Brasil cresceu ano a ano durante o governo Bolsonaro. Não tinha como ser diferente: o acesso a armas, inclusive a fuzis, foi um dos temas explorados pelo então candidato na campanha eleitoral de 2018, com sua ideia equivocada de que as deficiências da segurança pública deveriam − como se isso fosse possível − ser supridas por cidadãos devidamente armados. Um disparate capaz de gerar consequências em sentido contrário, sobretudo num país já tão violento como o nosso.

Tão logo assumiu o cargo, em janeiro de 2019, Bolsonaro passou a assinar decretos e a recorrer a outras medidas infralegais para facilitar o acesso da população a armas de fogo. Foi assim que flexibilizou a exigência de comprovação de “efetiva necessidade” para ter arma em casa ou permitiu que Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) adquirissem até 60 armamentos, dos quais 30 de uso restrito das forças de segurança, além de 180 mil balas por ano. Um exagero injustificável. Vale lembrar que algumas das iniciativas se deram ao arrepio da lei e, por isso, foram barradas pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, infelizmente, o boom de armas de fogo está longe de ser surpresa. Cabe ao atual governo agora dar sequência às medidas já adotadas para corrigir equívocos estimulados nos últimos quatro anos. É evidente que tamanho aumento do acervo particular impõe um cuidado especial de fiscalização. De imediato, é preciso verificar se as pessoas que adquiriram esses armamentos cumprem os requisitos legais, da mesma forma que se faz necessário adotar mecanismos de controle mais rigorosos, combatendo fraudes para evitar que criminosos consigam comprar armas legalmente − um efeito indesejável da política de acesso desenfreado estimulada por Bolsonaro.

É acertada a iniciativa do atual governo de exigir que todas as armas de fogo sejam registradas no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal, sob pena de apreensão. Lamentavelmente, a liberalização do acesso no governo anterior foi acompanhada de descontrole por parte do poder público – a ponto de que nem o Exército se disse capaz de mapear as armas adquiridas por CACs, o grupo que mais cresceu nos últimos anos entre os detentores de armamentos, de acordo com o balanço do Sou da Paz e do Igarapé.

A melhoria das condições de segurança pública é um imperativo, mas a violência legítima é monopólio do Estado, que não pode terceirizar essa responsabilidade permitindo que os cidadãos se armem sem qualquer controle.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 2.02.23

Lira e Pacheco silenciam sobre 'mudança fantasma' bancada pelo Congresso

Verba ultrapassa R$ 40 milhões e tem objetivo de custear deslocamento mesmo de reeleitos e de quem é do DF

Os presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara) - Ueslei Marcelino - 12.dez.2022/Reuters

Reportagem da Folha mostrou que congressistas estão recebendo neste início de ano verba que totaliza mais de R$ 40 milhões e que tem como justificativa uma situação que não encontra amparo na realidade.

A Folha enviou perguntas por email ao gabinete dos cinco senadores e de todos os cerca de 280 deputados federais reeleitos e pediu, entre outros pontos, comprovante de gastos ou de orçamentos relacionados à mudança do estado para Brasília, ou vice-versa.

Procurou também as assessorias das duas Casas e, diretamente, os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Lira, que foi reeleito e receberá duas vezes neste início do ano a verba para a "mudança fantasma", e Pacheco, que está no meio do mandato de oito anos, não se pronunciaram.

Quase todos os 513 deputados federais e 27 senadores da legislatura que teve início no dia 1º, além de quase todos os 513 deputados e 27 senadores da legislatura que terminou em 31 de janeiro, embolsaram ou embolsarão R$ 39,3 mil brutos a título de ajuda de custo para se mudarem para Brasília ou para fazerem o caminho inverso, de volta aos estados de origem.

Desse total, cinco senadores e cerca de 280 deputados federais reeleitos receberam ou receberão duas cotas da verba-mudança, uma pelo fim da legislatura passada e outra pelo início da atual, somando R$ 78,6 mil extras neste início de ano.

Além de não haver nenhuma justificativa do fornecimento de auxílio-mudança para quem já mora na capital federal e para reeleitos, que trabalham e continuarão a trabalhar no Congresso, os demais casos —daqueles que de fato deixaram de ser congressistas e os que ingressaram na Câmara ou Senado pela primeira vez— também são questionáveis.

O Congresso já fornece aos parlamentares outras generosas cotas para custeio de passagens aéreas e hospedagem, entre outros gastos, além de há muitas décadas não ser mais comum deputados e senadores se mudarem em caráter permanente para a capital federal.

A Câmara disse que só após o pagamento da próxima terça terá um balanço sobre eventuais devoluções. O Senado afirmou que todos os senadores em fim e início de mandato receberam a verba, a exceção de Reguffe (DF), que renunciou ao benefício.

Nenhum dos senadores reeleitos —Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), Omar Aziz (PSD-AM), Otto Alencar (PSD-BA), Romário (PL-RJ) e Wellington Fagundes (PL-MT)—, além de Damares Alves (Republicanos), que é do DF, responderam.


O que é?Verba para deputados e senadores se mudarem para Brasília ou de volta ao estado, no início e no final da legislatura
Quanto é?*R$ 39,3 mil em 31 de janeiro (fim da legislatura passada) e R$ 39,3 mil em 28 de fevereiro (início da atual)
Quem recebe?Todos os parlamentares da legislatura passada e todos os parlamentares da legislatura atual
Alguém receberá duas cotas agora?Sim, cerca de 300 parlamentares da legislatura passada que se reelegeram para a atual
Até parlamentares do DF recebem?Sim
Congressistas se mudam pra Brasília?Muito dificilmente. Isso era mais comum no século passado, quando havia ainda poucas opções de voos
Como eles fazem então?A Câmara e o Senado bancam, em outra verba, passagens aéreas para várias idas e voltas mensais estado-Brasília
Onde eles ficam em Brasília?Em imóveis funcionais ou hotéis e flats, mediante auxílio-moradia de até R$ 8.401 ao mês

Apenas 7 dos mais de 280 deputados federais procurados se manifestaram —Daniel Trzeciak (PSDB-RS), Reginaldo Veras (PV-DF), Sanderson (PL-RS), Luiza Erundina (PSOL-SP), Celso Russomanno (Republicanos-SP), Gilson Marques (Novo-SC) e Adriana Ventura (Novo-SP).

Eles afirmaram que recusaram ou devolveram a verba para a Câmara ou que vão doar o dinheiro para instituições de caridade.

"Não considero adequado o pagamento do auxílio-mudança. Não só agora, como reeleito, mas também em minha primeira legislatura doei os valores recebidos para entidades sociais. Em 2019, doei em prol do Hospital de Pronto Socorro do Município de Pelotas [RS]. Este ano, doarei a três instituições gaúchas", afirmou Trzeciak, acrescentando ter apresentado em 2019 e agora em 2023 projetos de decreto legislativo para acabar com o pagamento da verba para os reeleitos.

"Entendo que não tem necessidade, considerando que a gente não vai mudar de lugar nenhum, mas como o recurso é depositado, eu já tinha assumido o compromisso de que iria doar", afirmou Veras, que mora em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, e está assumindo o primeiro mandato na Câmara.

Sanderson enviou à reportagem comprovante de GRU (Guia de Recolhimento da União) com devolução para a Câmara, no último dia 9, da íntegra do valor líquido recebido a título do auxílio em janeiro (R$ 28,5 mil). Ele afirmou que fará o mesmo com o segundo repasse.

Erundina afirmou considerar abusivo o pagamento e esperar que ele seja extinto, o que, segundo ela, "contribuirá para a preservação da imagem do Poder Legislativo, atualmente desgastada, o que não é positivo para a democracia".

Ela disse ter encaminhado ofício a Lira renunciando ao benefício e solicitando instrução para a devolução dos valores.

Russomanno afirmou ter devolvido para os cofres da Câmara R$ 3,6 milhões da verba de gabinete, durante seus mandatos, além de não cobrar da Câmara ressarcimento pelo aluguel do escritório político no estado nem usar em Brasília apartamento funcional ou auxílio-moradia. Ele afirma que compensará o valor da verba-mudança continuando a cortar o uso da verba de gabinete.

"Considero o valor do auxílio-mudança um absurdo por si só, mas para os reeleitos chega a ser revoltante. Assim como no primeiro mandato, eu renunciei aos seguintes privilégios: auxílio-mudança, auxílio-moradia, auxílio-saúde e aposentadoria especial, com economia de mais de R$ 5,7 milhões", disse Gilson Marques.

Adriana Ventura afirmou que um deputado que ganha R$ 39,3 mil não deveria ter benefícios extras e que os considera imorais.

"Quando tratamos então de um deputado reeleito, que já está morando em Brasília, a situação é ainda mais absurda! Eu, bem como todos os deputados do Novo, abri mão de todos os privilégios, inclusive o auxílio-mudança, desde o meu primeiro mandato. Inclua aí: auxílio moradia, aposentadoria especial, reembolso ilimitado de saúde, entre outros."

Após a publicação da reportagem, as assessorias de Marcel van Hattem (Novo-RS) e de Heitor Schuch (PSB-RS) entraram em contato afirmando não ter recebido ou visto o email da Folha e informaram que os parlamentares renunciaram ao recebimento da verba desde o primeiro mandato.

Ranier Bragon, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo, em 21.02.23. Publicado originalmente em 22.02.23.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Governando com o fígado

Lula parece se sentir credor do Brasil. Não se governa um país com sede de vingança.

O Diretório Nacional do PT aprovou há poucos dias uma resolução eivada de ressentimentos e mentiras, cujo único objetivo parece ser reescrever a história recente do País para lavar a alma da militância depois de uma série de reveses políticos e judiciais sofridos pelo partido. Quem lê aquele documento sai com a nítida impressão de que o Brasil tem uma dívida praticamente impagável com os petistas, sobretudo com a sra. Dilma Rousseff e com o presidente Lula da Silva.

Ora, todos sabemos que Lula da Silva é hoje muito maior do que o PT. Ao longo de mais de quatro décadas, o lulismo se firmou como um movimento político de expressão muito mais relevante que o petismo, se é que, de fato, existe essa distinção. É óbvio, portanto, que o teor da resolução aprovada pelo partido reflete exatamente o que sente e pensa o presidente da República hoje. E isso não é nada bom para o País.

No universo paralelo de Lula e do PT, Dilma Rousseff era a timoneira de um país que ia de vento em popa rumo ao inescapável encontro com seu futuro de paz social e prosperidade econômica até sofrer um “golpe”, em 2016, perpetrado pelas “elites”, pelos “inimigos do povo brasileiro” ou coisa que o valha. Já o partido, nessa visão mendaz da história, teria sido vítima de “falsas denúncias” de corrupção à época dos escândalos do mensalão e do petrolão.

Não é o caso, aqui, de contrapor com uma enormidade de evidências factuais as grosseiras lorotas difundidas pelo PT em sua resolução, até porque seria um trabalho inútil. Petistas fanáticos jamais aceitariam o fato, de resto incontestável, de que o impeachment de Dilma foi conduzido estritamente segundo a Constituição – salvo quando, em seu desfecho, preservou os direitos políticos de Dilma em vez de cassá-los, numa maracutaia típica daqueles tempos esquisitos. Os fiéis da seita lulopetista igualmente ofendem-se quando se demonstram os inúmeros crimes de corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro cometidos pela patota.

A questão de fundo é menos a resolução do PT – que, afinal, é uma organização privada e pode defender o que bem entender – e mais o que ela representa: os humores de Lula da Silva.

Seja pelo que se depreende do texto da resolução, seja pelos discursos do próprio presidente, que se recusa a descer do palanque mesmo tendo sido eleito para governar no interesse de todos os brasileiros, este terceiro mandato presidencial do petista, o quinto do PT, parece orientado a reparar as “injustiças” que teriam sido cometidas contra o partido e alguns de seus próceres, e não a reconstruir o País e o tecido social após a tragédia que foi o governo de Jair Bolsonaro.

Ao que parece, o triunfo eleitoral de Lula da Silva na difícil eleição presidencial passada, aos olhos dos petistas, tem o condão de autorizar o presidente a privilegiar os interesses particulares do PT e a trair a aspiração maior de muitas forças políticas que o apoiaram no segundo turno da eleição de 2022: a construção de uma frente ampla pela democracia não só para derrotar Bolsonaro, mas também para governar o País.

Se os ressentimentos de Lula da Silva e a sede de vingança que parece animar as lideranças petistas são genuínos ou nada mais que tática para manter a militância mobilizada a despeito de certas decisões impopulares que o governo logo terá de tomar, pouco importa. O fato é que não é assim que se governa um país. Menos ainda um país que precisa tanto se reconciliar e se reunir em torno de consensos mínimos como o Brasil.

O presidente Lula da Silva precisa ser magnânimo e reconhecer a existência de um centro liberal democrático que foi fundamental para sua vitória, por entender que era ele, e não Bolsonaro, a pessoa mais indicada para governar o Brasil pelos próximos quatro anos. Voltar as costas para essas forças políticas é, na prática, aniquilar as chances de reconstrução nacional já no nascedouro.

O rancor nunca foi um bom guia. Do presidente Lula da Silva se espera a grandeza de compreender que, nesta quadra da história do País, é justamente a diversidade que deve prevalecer, não o espírito de corpo.

Editorial d'O Estado de S. Paulo, em 21.02.23

Putin suspende o último acordo com os EUA para o controle de armas nucleares

O presidente russo avisa que levará a guerra na Ucrânia até o fim: "Não se pode vencer a Rússia no campo de batalha"

O presidente russo, Vladimir Putin, antes de fazer seu discurso sobre o estado da nação na terça-feira.(Foto: SERGEI KARPUKHIN - PISCINA) 

O presidente russo, Vladimir Putin, lançou o desafio ao Ocidente na terça-feira, sob aplausos do próprio, ao garantir que nada impedirá sua guerra até o fim porque considera a Ucrânia "território histórico da Rússia". O presidente, que encerrou seu primeiro discurso desde 2021 perante a Assembleia Federal, antes da invasão, com a frase "a verdade está conosco", também anunciou a suspensão do último acordo de controle de armas nucleares com os Estados Unidos que ambos países permanecem em vigor. “A Rússia, passo a passo, superará cuidadosa e continuamente os desafios que encontrar. (...) Você não pode vencer a Rússia no campo de batalha", disse Putin.

O presidente insistiu que seu objetivo vai além do controle da região de Donbass (no leste) porque "o objetivo do Ocidente é tirar da Rússia os territórios históricos que hoje são chamados de Ucrânia". Putin referiu-se à invasão de um país soberano nestes termos: "A Rússia defende seu lar". E acrescentou: "Quanto mais recursos o Ocidente der a Kiev a longo prazo, mais a Rússia será forçada a evitar a própria ameaça."

Durante seu discurso de quase duas horas, Putin anunciou a suspensão unilateral do acordo New Start, em um cenário já marcado pela ameaça nuclear em torno da guerra na Ucrânia. “A Rússia não abandona, não. Congela temporariamente” sua participação no pacto, afirmou o presidente, descrevendo a exigência dos Estados Unidos de supervisionar seus arsenais atômicos como um “teatro do absurdo”. Essa é uma das principais obrigações do tratado, assinado pelos governos dos dois países em 2010 para a redução e controle de armas estratégicas, mas Moscou não permite desde a pandemia de 2020. "Sabemos que algumas armas nucleares estão próximas de sua data de vencimento nos EUA”, acrescentou o presidente russo, que exigiu a volta do acordo que inclui Reino Unido e França.

O tratado foi prorrogado em 2021 até 2026, embora o Kremlin tenha sugerido em janeiro que poderia abandoná-lo assim que a extensão expirasse. Já em setembro de 2022, Moscou havia exigido esclarecimentos do Pentágono sobre sua alegação de que várias plataformas de armas nucleares, incluindo dezenas de bombardeiros B-52 e quatro silos de mísseis intercontinentais, haviam sido convertidas para outros fins. No total, ambas as potências respondem por 90% das armas nucleares do mundo.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, chamou o anúncio de Putin de "muito decepcionante e irresponsável". "Mas, obviamente, continuamos prontos a qualquer momento para conversar com a Rússia sobre a limitação de armas estratégicas", acrescentou ele a repórteres na Embaixada dos Estados Unidos em Atenas. Enquanto isso, o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, instou Putin a "reconsiderar" sua decisão de suspender o tratado, "desmantelando assim toda a arquitetura de controle de armas", relata Silvia Ayusode Bruxelas. “Mais armas nucleares e menos controle de armas tornam o mundo um lugar mais perigoso. E é por isso que nós da OTAN temos trabalhado tanto para incluir a Rússia nas questões de controle de armas, e é por isso que os aliados da OTAN apoiam o Novo START. Por esta razão, peço à Rússia que reconsidere sua decisão", disse Soltenberg em declarações com o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba, e o alto representante da UE para Política Externa, Josep Borrell.

Por sua vez, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, garantiu que a Rússia continuará cumprindo os limites de ogivas nucleares estabelecidos pelo tratado e culpou os Estados Unidos pela suspensão. Moscou não se recusará a retomar a participação no acordo se Washington mudar sua política em relação à Rússia, acrescentou Lavrov.

Numa linha que aprofunda a ruptura com o Ocidente, Putin acusou a Aliança Atlântica de estar envolvida nos ataques de dezembro contra bases aéreas em território russo, para onde foram implantados vários de seus bombardeiros nucleares. “Sabemos que o Ocidente está diretamente envolvido nas tentativas do regime de Kiev de atacar nossa aviação estratégica. Os drones usados ​​para isso foram equipados e modernizados com a ajuda de especialistas da OTAN", disse Putin.

Pouco depois de concluir a intervenção do líder russo, seu Itamaraty convocou a embaixadora dos Estados Unidos no país, Lynne Tracy, para exigir explicações sobre seu apoio à Ucrânia. Um dia antes, na véspera do primeiro aniversário do ataque-relâmpago a Kiev, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez uma viagem histórica à capital ucraniana para se encontrar com seu homólogo, Volodimir Zelensky.

Duas pessoas em frente a um ecrã gigante onde é projetado o discurso de Putin, esta terça-feira em Sebastopol, na península da Crimeia. (Foto: ALEXEY PAVLISHAK - REUTERS)

Grande parte do discurso de Putin girou em torno de sua repressão à Ucrânia. Durante meses, desde o contra-ataque de Kiev em setembro do ano passado, o discurso de Putin parou de enfatizar que tudo "está indo conforme o planejado". No início do seu discurso de terça-feira, o presidente russo reconheceu que é "um momento difícil" para o seu país, embora justifique a sua decisão de atacar a Ucrânia com a guerra que os EUA desencadearam no Iraque em 2003. "Ninguém no mundo esqueceu e não vai esquecer disso", disse ele.

O líder russo reiterou suas acusações de que a Ucrânia é governada por um suposto "regime nazista" e citou o nome Edelweiss para uma nova brigada ucraniana como exemplo. Além de ser o nome de uma flor que cresce nas montanhas e de uma antiga divisão do Terceiro Reich, Putin se esqueceu de mencionar que Edelweiss também é o nome de uma instalação militar no Quirguistão da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSO), a aliança militar liderada pela Rússia.

Embora considere a Ucrânia parte do mundo russo , Putin criticou a adesão à OTAN de países que fazem fronteira com a Rússia. “Em dezembro de 2021, enviamos oficialmente rascunhos com garantias de segurança aos EUA e à OTAN, mas recebemos uma recusa direta em todos os pontos-chave, fundamentais para nós”, disse ele sobre uma negociação em que o Kremlin exigia que fossem expulsos do Aliança Atlântica todos os países a leste da Alemanha.

O presidente também sustentou como pretexto para sua guerra que o Ocidente descreveu os acordos de Minsk e o Formato da Normandia como um "blefe" para resolver a guerra em Donbass. Putin justificou sua versão dos acontecimentos com declarações recentes da ex-chanceler alemã Angela Merkel sobre os pactos de paz de 2014 e 2015 para Donbass. para uma guerra futura. Diante da versão de Putin, seu próprio negociador desses pactos, o então gerente russo para a Ucrânia, Vladislav Surkov, destacou há uma semana que Moscou não negociou com o objetivo de implementar os pontos acordados.

Putin, durante seu discurso nesta terça-feira perante a Assembleia Federal, em Moscou.(Foto: Ag.SPUTNIK - VIA REUTERS)

Além da Ucrânia, Putin também deixou claro que todos os países que se tornaram independentes após o colapso da União Soviética fazem parte de seu quintal. O líder russo acusou o Ocidente de "incendiar" todos os Estados pós-soviéticos após seu colapso em 1991 "para finalmente acabar com a Rússia", segundo o presidente durante seu longo discurso.

Putin compareceu perante os legisladores depois de ter violado em 2022 o mandato constitucional pelo qual deve prestar contas uma vez por ano perante a Assembleia Federal, o poder legislativo do país composto pela Duma Estatal (a câmara baixa) e o Conselho da Federação (o Câmara Alta). Além de abordar a guerra, ele também se gabou de que a economia russa não sucumbiu às sanções e anunciou um aumento de 18,5% no salário mínimo, para 19.242 rublos, cerca de 240 euros ao câmbio atual.

As duas grandes preocupações dos cidadãos russos são a mobilização de 300.000 reservistas decretada por Putin em setembro e uma possível nova grande ofensiva, que poderá ser desencadeada nos próximos dias por ocasião do primeiro aniversário da guerra, no dia 24, e que a OTAN considera que já começou. O porta-voz do presidente, Dmitri Peskov, reconheceu na segunda-feira que os russos estão ansiosos por um avanço em um conflito que já custou milhares de vidas. “Numa fase tão difícil e responsável da nossa história, das nossas vidas”, disse o representante do Kremlin, “todos aguardam a mensagem na esperança de ouvir a sua avaliação do que está a acontecer (…). Toda a nossa vida agora gira em torno da operação militar especial.”

Espera-se que a guerra seja longa e, para encorajar as centenas de milhares de civis levados para o front, Putin anunciou que todas as tropas que lutam na Ucrânia terão uma licença de descanso de 14 dias a cada seis meses. E, ao contrário, o presidente mandou um recado aos que fugiram do país: “Não vamos acertar contas com quem se afastou e abandonou a pátria. Deixe-o permanecer em sua consciência, deixe-os viver com isso. O importante é que o povo, os cidadãos da Rússia, viram seu nível moral."

Os participantes aplaudem durante o discurso de Putin em Moscou na terça-feira. (Foto: Ag. SPUTNIK VIA REUTERS)

O acesso ao centro de Moscou foi proibido um dia antes por ocasião do discurso de Putin perante a Assembleia Federal. A intervenção do presidente aconteceu no antigo mercado Gostiny Dvor, junto à Praça Vermelha. As forças de segurança bloquearam o tráfego no centro da cidade e implantaram vários postos de controle da polícia.

Pedofilia, degeneração e condenação do coletivo LGTBIQ

O presidente russo voltou a insistir que seu país está travando uma guerra contra os valores ocidentais, que ele considera atolados em total depravação. “Veja o que eles estão fazendo com suas próprias cidades. A destruição da família e da identidade cultural e nacional. A perversão, o abuso infantil, até a pedofilia, são a norma, a norma da vida, e os padres são obrigados a abençoar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo”, atacou Vladimir Putin numa acusação genérica sem fundamento.

“Deus os abençoe, deixe-os fazer o que quiserem. E aqui? Os adultos têm o direito de viver como quiserem. Na Rússia ninguém se intromete na vida privada e nós não o vamos fazer”, afirmou o dirigente russo poucos meses depois de entrar em vigor uma lei que proíbe qualquer declaração pública de apoio ao coletivo LGTBIQ e veta a sua realidade em conteúdos culturais. Da mesma forma, as ONGs que defendem esses grupos são as únicas cujos endereços aparecem publicamente na lista negra de agentes estrangeiros do Kremlin.

Putin afirmou que nas escrituras sagradas de todas as religiões do mundo "a família é considerada a união de um homem e uma mulher" e lamentou que a Igreja Anglicana esteja explorando a ideia de uma divindade neutra em termos de gênero. "Que dizer? Que Deus me perdoe, eles não sabem o que estão fazendo", acrescentou Putin, citando Jesus na cruz. 

No grande discurso anterior de Putin, proferido em setembro do ano passado por ocasião da anexação dos territórios ucranianos ocupados, o líder russo afirmou que as sociedades europeias e norte-americanas adotaram “uma religião reversa, o satanismo absoluto”. "Queremos ter, aqui, em nosso país, na Rússia, em vez de mamãe e papai, um pai número um, um número dois, um número três?" ele disse.

“As elites ocidentais estão enlouquecendo e parece não haver cura, mas esses são os problemas deles. Somos obrigados a proteger nossas crianças e o faremos: protegeremos nossas crianças da degradação e da degeneração", disse o presidente na terça-feira, que elevou a militarização das escolas a um novo patamar. O vosso Governo introduziu este ano lectivo uma nova disciplina, Conversação do que é importante , em cujos manuais os professores são instados a ensinar aos menores que "não há medo de morrer pela pátria". Da mesma forma, os ministérios da Educação e da Defesa estudam recuperar as aulas soviéticas onde se ensinava o uso de armas e outras preparações para o serviço militar.

Javier G. Cuesta, de Moscou, em 21.02.23 para o EL PAÍS.

Desafio e humilhação de Putin

Não há mensagem de maior força política ou mesmo significado militar do que a visita de Biden a Zelenski

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky (à esquerda) e seu colega americano Joe Biden diante de uma placa dedicada ao presidente dos EUA em Kiev na segunda-feira. (Foto: SERVIÇO DE IMPRENSA PRESIDENCIAL DA UCRÂNIA - EFE)

Por surpresa. Acompanhado por sirenes de alarme. Em dias importantes e altamente simbólicos, o primeiro aniversário da invasão russa e o nono aniversário do massacre dos mártires de Euromaidan, os cerca de cem manifestantes crivados de balas pelos provocadores e pela polícia especial de Victor Yanukovych, o então presidente Putinista expulso, justamente quando a invasão russa de Donbass e a anexação da Crimeia começaram sub-repticiamente. Com as imagens altamente significativas transmitidas pela televisão para todo o mundo da caminhada de ambos os presidentes pelo centro monumental da capital, as impressionantes lâmpadas douradas da Catedral de San Miguel e a parede Maidan onde é venerado o Cem Celestial, aqueles que caiu em 2014, recebeu o nome do tipo de unidade guerreira cossaca e se tornou o motivo da mais alta condecoração por coragem civil concedida pelo governo àqueles que lutam pela liberdade, democracia e direitos humanos.

Tem sido uma visita inusitada, histórica como poucas. Não há mensagem de maior contundência ou significado político, mesmo militar. Putin quer destruir a nação ucraniana com a guerra e o presidente dos Estados Unidos, comandante-em-chefe do exército mais poderoso do mundo, vai à sua capital garantir pessoalmente ao seu presidente, Volodimir Zelensky, que não permitirá o ditador russo para fazer o que quer ou lidar, com o revés que significaria a derrota da Ucrânia, uma derrota para a democracia e a ordem mundial civilizada, regida pelas regras.

A viagem de Biden a Kiev de trem da Polônia não era óbvia, sem a possibilidade de usar os pesados ​​​​e blindados meios aéreos do exército dos EUA. Foi repleto de riscos e um desafio de um presidente de 80 anos a um ditador dez anos mais novo que vive em reclusão e isolamento no Kremlin e apenas ocasionalmente se aventurou de forma extremamente cautelosa e breve na Crimeia, ocupada por seu exército.

Biden chegou a Kiev em um momento especial, no qual todas as partes colocam suas cartas na mesa. Os militares de uma extensa ofensiva russa que se anuncia especialmente na frente entre Donbass e Crimeia para o início da primavera, talvez na próxima sexta-feira, coincidindo com o aniversário exato da invasão, embora muitas fontes militares sejam céticas sobre as capacidades russas, consideram que a operação já começou e está obtendo resultados muito medíocres. Também os diplomatas, após a implantação de cargos observados no último fim de semana na Conferência de Segurança de Munique, em que o anúncio de um plano de paz por Pequim criou enormes expectativas e não poucas sensibilidades, coincidindo com os temores expressos por Washington quanto à chegada de suprimentos militares chineses a Moscou.

A identificação de Biden com as posições do governo Zelensky, expressa com extrema clareza em Munique no debate entre o secretário de Estado, Antony Blinken, e o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, constitui o quadro em que as propostas de paz vindas de Pequim, dificilmente aceitáveis ​​se se limitarem a um frágil cessar-fogo que sirva para reabastecer as tropas russas ou se não contemplarem a restauração da integridade territorial e da soberania nacional da Ucrânia garantida por todos os tratados e pactos internacionais, incluindo a Carta das Nações Unidas, à qual a Rússia está vinculado. Elas se resumem em poucas palavras de Biden com ressonâncias épicas e comprometedoras: “Um ano depois, Kiev resiste, a Ucrânia resiste, a democracia resiste”.

Luís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele escreveu, entre outros, 'O ano da Revolução' (Taurus), sobre as revoltas árabes, 'A grande vergonha. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol' (Península) e um diário pandêmico e confinado com o título de 'Les ciutats interiors' (Galaxia Gutemberg). Publicado originalmente em 21.02.23

Putin não quer e não irá negociar

Discurso do presidente russo deixa claro que acordos com a Rússia não são possíveis no momento – e talvez nunca mais sejam, opina Christian Trippe

Putin culpa o Ocidente pela guerra na Ucrânia (Foto: REUTERS)

A pergunta deve ser feita: vale mesmo a pena comentar o discurso sobre o estado da nação feito pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin? É mesmo necessário analisar, de novo, com quais mentiras Putin justifica sua guerra à Ucrânia?

É o Ocidente que é responsável por tudo, foi o Ocidente que começou a guerra na Ucrânia – é nessas acusações insolentes que Putin resume sua loucura revisionista. Mas ele as usa como ponto de partida para considerações que deixam entrever além da superfície.

Mais uma vez, Putin sustenta que sua guerra de conquista na Ucrânia é uma guerra de defesa contra o Ocidente. Essa derivação absurda é normalmente designada como mera narrativa de propaganda e, com isso, minimizada. Pois analisa de forma superficial aquele que vê nessa afirmação apenas um meio retórico de um ditador que quer cerrar fileiras, atiçar sentimentos patrióticos e mobilizar a sociedade e o setor produtivo.

Há muito que Putin se tornou prisioneiro de sua própria propaganda. O seu desvario cesarista – ou melhor, czarista – revela profundos sentimentos feridos que se refletem no povo russo. Pois, na Rússia, não é só a elite no Kremlin ou nas Forças Armadas que sente de fato a dor imaginária de uma potência mundial caída.

Cheio de complexos

É no contexto desse sentimento, tanto complexo quanto cheio de complexos, que Putin recebe aplausos por sua afirmação de que é a existência da Rússia que está em jogo.

Uma análise tão fixada no aspecto psicológico, e com isso necessariamente politicamente ilógica, não deve afastar o olhar dos enormes interesses imperialistas de uma país que promove a guerra.

Porém, depois deste discurso, no qual Putin quebrou mais algumas pontes com o Ocidente, ficou ainda mais claro como será difícil retornar àquele denominador comum que é requisito para se conversar.

Observadores esperavam que Putin fosse declarar oficialmente guerra à Ucrânia, que ele fosse anunciar uma nova onda de mobilizações, declarar a lei marcial, fechar as fronteiras da Rússia, fazer novas ameaças de guerra atômica.

Nada disso. Putin anunciou que não quer mais negociar com os Estados Unidos sobre um acordo para limitar as armas nucleares. Negociações de desarmamento, de paz ou de cessar-fogo não são, no momento, possíveis com a Rússia de Putin – esse é o triste resumo desse discurso. Talvez não sejam até impossíveis com esse regime formado por uma claque de devotos cegos que o presidente russo reuniu em torno de si.

Contraste entre Putin e Biden

Ao se referir à guerra na Ucrânia, Putin foi estranhamente vago. Mas ele deixou entrever que os combates ainda vão durar muito, e que ele, consequentemente, aposta numa guerra de desgaste. Seu cálculo geopolítico é evidente: Putin aposta que, no fim do ano que vem, os Estados Unidos vão eleger um presidente que não priorize as relações transatlânticas tanto quanto Joe Biden. Que na Casa Branca estará um republicano que não estará mais disposto a garantir a sobrevivência da Ucrânia com envios de armas e transferências de dólares.

Putin prepara seu país para um confronto longo, duradouro e, sob todas as perspectivas, custoso, e defende um isolamento contra o Ocidente.

Enquanto isso, Biden viaja pela Europa, mostra-se numa Kiev marcada pela guerra, apresenta-se em Moscou como o líder do mundo livre.

O contraste entre os discursos desses dois presidentes não poderia ser maior.

Christian Trippe, o autor deste artigo, é o Chefe do Departamento Leste Europeu da Deutsche Welle. Publicado originalmente em 21.02.23

"Ucrânia jamais será uma vitória para a Rússia", diz Biden

Em discurso na capital da Polônia após ida surpresa a Kiev, presidente americano alerta para dias "duros e difíceis" pela frente e reforça apoio dos EUA contra invasão russa.

Um dia após sua visita não anunciada a Kiev, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou nesta terça-feira (21/02) durante um discurso na capital da Polônia, que a Ucrânia "jamais será uma vitória para a Rússia".

"Um ditador determinado a reconstruir um império jamais conseguirá diminuir o amor do povo pela liberdade. A brutalidade jamais vai triturar a vontade dos livres. A Ucrânia jamais será uma vitória para a Rússia – jamais", disse Biden a uma multidão reunida diante do Castelo Real de Varsóvia.

Biden alertou que haverá "dias duros e difíceis pela frente", mas disse que os Estados Unidos e seus aliados irão "apoiar a Ucrânia" em um momento que a guerra de agressão russa entra no seu segundo ano.

"Há um ano, o mundo estava se preparando para a queda de Kiev", disse Biden. "Eu posso dizer: Kiev segue forte, Kiev segue com orgulho, de pé, e o mais importante: livre."

Um pouco antes, o presidente russo, Vladimir Putin, proferiu um discurso em que prometeu seguir com a guerra na Ucrânia, culpou o Ocidente pelo conflito e anunciou a suspensão da participação do país no tratado de desarmamento nuclear New Start.

Polônia: rota de armas e refugiados

No início desta terça-feira, Biden encontrou-se com o presidente polonês, Andrzej Duda, um dos mais eloquentes defensores de um apoio do Ocidente mais forte a Kiev.

Duda disse que a visita de Biden mostrou o compromisso dos EUA em manter a segurança na Europa, e descreveu a parada de Biden em Kiev como um "gesto incrível".

A Polônia tem a mais longa fronteira da Otan com a Ucrânia e tem sido a principal rota de entrada de armas e de ajuda humanitária e de saída para os refugiados.

"Apelo a todos os Estados europeus, Estados da Otan, para que se mostrem solidários com a Ucrânia, para que deem apoio militar à Ucrânia", disse Duda.

A Polônia esteve sob o domínio comunista por quatro décadas até 1989 e foi membro da aliança de segurança do Pacto de Varsóvia, liderado por Moscou. Agora faz parte da União Europeia e da Otan.

Biden saudado por poloneses e refugiados ucranianos

A visita de Biden foi bem recebida pelos poloneses e pelos cerca de 1,5 milhão de ucranianos, em sua maioria mulheres e crianças refugiadas do conflito, que agora vivem no país.

Muitos pediram um apoio mais arrojado do Ocidente a Kiev, incluindo o fornecimento de jatos de combate, que Biden tem se negado a oferecer.

"Esperamos que eles [os EUA] aumentem o envio de armas, que as coisas na frente de batalha melhorem e que nós vençamos", disse Alina Kiiko, 32 anos, ucraniana, no centro de Varsóvia.

Na rotatória Roman Dmowski, no centro da cidade, uma gigantesca tela publicitária exibia o apelo em inglês: "Biden, give F-16 to Ukraine" (Biden, dê F-16 à Ucrânia), referindo-se aos aviões de caça americanos pedidos por Kiev.

Mais apoio e sanções

Enquanto Biden esteve em Kiev na segunda-feira, o Departamento de Estado dos EUA anunciou uma nova rodada de apoio à Ucrânia, incluindo 450 milhões de dólares em munições de artilharia, sistemas antiblindados e radares de defesa aérea, e 10 milhões de dólares para infraestrutura de energia.

No final desta semana, Washington anunciará sanções adicionais contra indivíduos e empresas que estão "tentando fugir das sanções e encher a máquina de guerra russa", disse um porta-voz da Casa Branca.

Há um ano, Biden alertou países aliados então céticos de que um acúmulo maciço de tropas russas ao longo das fronteiras da Ucrânia seria o precursor da guerra. Na época, mesmo alguns dentro de seu próprio governo questionavam a capacidade da Ucrânia de resistir a uma invasão por um inimigo muito mais poderoso.

Mas as forças ucranianas seguraram Kiev e expulsaram a Rússia de parte do território que ela tomou nas primeiras semanas da guerra, apoiada por armas, munições e equipamentos ocidentais.

Os Estados Unidos já enviaram mais de 24 bilhões de dólares em assistência de segurança à Ucrânia, mas as autoridades americanas estão se preparando para uma sangrenta ofensiva da Rússia na primavera europeia, e dizem que a guerra pode continuar por muitos meses mais ou mesmo anos.

Publicado oriiginalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.02.23

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Cuidado com o que se deseja

Plano petista de apresentar PEC sobre Forças Armadas, como forma de combater interpretações golpistas do artigo 142, erra no diagnóstico do problema e dá margem a graves retrocessos

O PT planeja levar adiante, depois do carnaval, uma articulação na Câmara dos Deputados para obter as 171 assinaturas necessárias para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sobre as Forças Armadas, informou o Estadão. O objetivo é reformular o art. 142 da Constituição, para proibir a participação de militares da ativa em cargos públicos e excluir as chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Em 2020, uma tentativa similar do partido não prosperou. Agora, depois dos atos do 8 de Janeiro, os deputados petistas Carlos Zarattini e Alencar Santana, autores da proposta, entendem que existem condições para reapresentar o tema. “Achamos que esse é o melhor momento para resolver o problema do artigo 142, porque houve uma tentativa de golpe, e a extrema direita está mais fraca”, disse Zarattini.

Não há dúvida de que o texto constitucional pode ser aprimorado; por exemplo, a proibição de militares da ativa em postos do governo representaria um aperfeiçoamento institucional. No Estado Democrático de Direito, o poder político deve ser exercido exclusivamente por civis. No entanto, é preciso advertir dois pontos importantes sobre o assunto.

Em primeiro lugar, o art. 142 da Constituição não representa rigorosamente nenhum problema. Resultado de negociação durante a Assembleia Constituinte, ele estabelece corretamente o papel das Forças Armadas dentro do Estado Democrático de Direito. Depois de defini-las como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República”, a Constituição explicita a sua finalidade: “Destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

A interpretação, aventada por setores da extrema direita, de que o art. 142 atribuiria um papel de poder moderador às Forças Armadas é pura invenção de quem discorda do funcionamento do Estado Democrático de Direito e, em concreto, do princípio da separação de Poderes. O texto da Constituição não autoriza essa leitura. As Forças Armadas estão submetidas ao poder civil, e não o contrário.

Pior ainda é o discurso dos que, incapazes de pôr limites a seus devaneios golpistas, pregam a possibilidade de uma intervenção militar com base no art. 142 da Constituição. Trata-se de cabal loucura, violência explícita contra toda a ordem constitucional.

Essas duas criações interpretativas, sem nenhum respaldo no texto, não constituem, portanto, motivo para alterar a Constituição. O problema não está na redação do art. 142, e sim na cabeça dos golpistas. Mais do que mudar o dispositivo constitucional – como se a desinformação sobre o art. 142 tivesse algum fundamento na realidade –, é preciso difundir, explicar e consolidar o que a Constituição já prevê para as Forças Armadas.

O segundo ponto refere-se à necessária prudência sobre tema tão sensível. Ainda que se possa vislumbrar a possibilidade de aperfeiçoamento da Constituição a respeito das Forças Armadas, não se deve ignorar o cenário atual de desinformação, com reflexos sobre o próprio Congresso. Colocar em tramitação, nos tempos atuais, uma PEC sobre as Forças Armadas é comportamento de alto risco, rigorosamente temerário, que pode suscitar não pequenos retrocessos. Com todas as ressalvas que possam ser feitas, a Constituição de 1988 assegura, em relação às Forças Armadas, os pontos essenciais para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito.

Não raro, tem-se a ilusão de que uma alteração legislativa – no caso, uma Emenda Constitucional – pode ser a grande solução para os problemas relativos a determinado tema. De fato, muitas vezes o que faz falta é uma boa e equilibrada reforma legislativa, provendo um novo marco jurídico. No entanto, quando a origem do problema não é o texto da Constituição, alterá-lo não muda os termos da questão. Além de alimentar as falsas percepções, atiça os oportunistas de plantão. É melhor que fique como está.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 18.02.23