sábado, 23 de julho de 2022

Covid volta a acender alerta na Europa, que vive 7ª onda e teme nova alta no inverno

OMS destaca risco de 'meses difíceis'; em meio a flexibilização geral, cientistas pedem mais ação de governos

Mulher com máscara caminha em frente ao Louvre, em Paris - Aurelien Morissard - 8.jul.22/Xinhua

Mais de dois anos após o início da pandemia, a Europa volta a lidar com o avanço do coronavírus e um aumento de internações devido à doença. A sétima onda da Covid, impulsionada pela disseminação de subvariantes da ômicron, acende o alerta para o risco de uma explosão de casos no outono e no inverno no hemisfério Norte.

Epicentro das infecções no começo da crise sanitária, o continente voltou ao centro das atenções: o boletim mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), na quinta-feira (21), mostrou que nos sete dias anteriores a Europa concentrou 44% dos novos casos no mundo.

O quadro, ainda que menos grave em relação a outros momentos, fez com que a OMS alertasse para a possibilidade do que chamou de meses difíceis depois do verão europeu, caso as autoridades não tomem providências desde já.

"Esperar para agir no outono [a partir de setembro] será tarde demais", destacou o diretor regional para a Europa, Hans Kluge. O número de novas infecções triplicou nas últimas seis semanas, e as taxas de hospitalização dobraram no mesmo período.

O Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês) indicou que 12 dos 27 países da União Europeia relataram em 10 de julho aumento da ocupação em hospitais em relação à semana anterior, e que 23 registraram aceleração de casos em pessoas com 65 anos ou mais.

Ainda que as internações em UTIs permaneçam, por ora, relativamente baixas, 3.311 pessoas morreram no continente em uma semana, segundo a OMS —número distante do pico de janeiro de 2021, quando, ainda sem a proteção das vacinas, 40 mil pessoas perderam a vida no mesmo período.

A imunização tem taxas relativamente satisfatórias —segundo o ECDC, na UE 75,4% da população recebeu ao menos uma dose. Mas o ritmo de ampliação da cobertura vacinal deixou de avançar numa velocidade desejável. Mais de um ano depois do início das campanhas de imunização, a taxa da segunda dose no bloco é de 72,8%, a da primeira dose de reforço chega a 53% e a da segunda ainda está em 5,1%.

Autoridades de saúde não esperam que a onda atual provoque mortes nos patamares do primeiro ano da pandemia, mas especialistas expressam preocupação com a estrutura dos sistemas de saúde para uma possível enxurrada de novos infectados. Holanda, Hungria e Luxemburgo são os países da UE com o maior percentual de novos casos confirmados em uma semana (61%, 51% e 48% de aumento, respectivamente), e esse avanço não se limita ao bloco.

Editorial conjunto de duas revistas médicas britânicas enfatizou preocupações no Reino Unido ao indicar que, nos últimos 50 anos, nunca tantas áreas do setor de saúde estiveram tão perto de "deixar de funcionar efetivamente", prenunciando o que pode vir a ser um colapso em função da alta na Covid.

Foram 9.000 admissões hospitalares devido ao vírus por semana nos primeiros seis meses e meio deste ano; em 2021, a média era de 6.000, e, no primeiro ano de pandemia, 7.000, indicaram os editores de The BMJ e Health Service Journal, que também criticaram a falta de medidas enérgicas das autoridades.

"Infelizmente, o governo está preocupado demais em resolver os próprios desastres políticos para fornecer à população o apoio que precisa", diz Stephen Griffin, virologista da Universidade de Leeds. Segundo ele, o país tem filas em hospitais por falta de pessoal, ao mesmo tempo que o financiamento de medidas de combate à Covid vem sendo cortado.

Prevalecem entre as novas infecções na Europa as subvariantes da ômicron BA.4 e BA.5 —que superam a marca de 90% dos casos também no Brasil. Estudos apontam que as cepas, detectadas na África do Sul no início de 2022, são mais contagiosas do que as anteriores BA.1 e BA.2.

Outro aspecto que mudou são as medidas de prevenção. Nos últimos meses, governos europeus descartaram muitas das táticas usadas na contenção do vírus, entre as quais o uso obrigatório de máscaras, os testes em massa, o comprovante de vacinação e a exigência de testes para viajantes.

A flexibilização foi autorizada após o avanço da vacinação e a queda no número de mortes, mas contou com a pressão dos impactos econômicos dos lockdowns, agravados neste ano pela Guerra da Ucrânia.

Pesquisa global de março da consultoria McKinsey apontou a instabilidade geopolítica como principal preocupação para o crescimento econômico doméstico, seguida pela inflação e pela volatilidade dos preços da energia —a Covid, que liderava a lista, foi só o oitavo motivo mais citado.

Fora da Europa, outros alertas estão se acendendo. Nos EUA, de 4 a 11 de julho foram registrados 866,4 mil casos, aumento de 17,2% em relação à semana anterior. O número é quase quatro vezes maior do que a média de março, ainda que esteja longe do pico de 5,6 milhões, visto em janeiro. No país, onde a cobertura vacinal também avança mais lentamente, 67% dos habitantes estão com o primeiro ciclo de imunização completo, e a média de mortes é de 414 por dia.

Na ponta oposta, a África é o continente com o menor número de novos casos confirmados em uma semana, mesmo com a taxa mais baixa de vacinação —há que se pesar também a subnotificação. Segundo a OMS, 36,2 vacinas foram aplicadas no continente para cada 100 pessoas, bem distante das 171,2 na Europa e 188,15 nas Américas.

O aumento de casos e hospitalizações em várias regiões é explicado, em parte, porque a resposta imune das vacinas é menor contra as novas subvariantes —os imunizantes, porém, permanecem eficazes. ​

Segundo o presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaez, o quadro sugere que a Covid não se tornou sazonal e, com o surgimento de variantes, é difícil traçar uma perspectiva a longo prazo. "A pandemia não tem a mesma magnitude de antes, mas não temos como prever o fenômeno evolutivo das variantes. Por isso, governos precisam ser muito mais prudentes."

Renan Marra para a Folha de S. Paulo, em 23.07.22

‘Já temos um golpe em curso no País’, diz Janones ao formalizar candidatura a presidente

“Tenho tolerância zero para gente que quer tumultuar a democracia, para esses pilantras que não querem trabalhar, como Bolsonaro e companhia limitada”. O presidenciável ainda disse esperar que as instituições também se posicionem de forma contrária e reajam às falas em prol de uma possível ruptura do processo democrático.

Candidato do Avante aproveita prestígio de Zema em Minas e participa também de convenção do Novo (Foto: Carlos Eduardo Cherem

O Avante formalizou a candidatura do deputado federal André Janones (MG) à Presidência da República neste sábado, 23, durante convenção nacional da legenda, em Belo Horizonte. Ainda não há definição para vice. Sem citar o nome do presidente Jair Bolsonaro (PL), de quem será adversário nas urnas, o postulante ao Planalto fez duras críticas ao governo atual e afirmou haver um “golpe em curso” no País.

“Já temos um golpe em curso no País. As eleições vão decidir se continuaremos sendo governados por fascistas e golpistas ou vamos continuar tendo um regime democrático no Brasil”, afirmou Janones.

Na última segunda-feira, 18, o presidente Bolsonaro reuniu embaixadores no Palácio da Alvorada para desacreditar o sistema eletrônico de votação e fazer críticas aos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em seu discurso neste sábado, o candidato do Avante afirmou que os ataques do chefe do Executivo ao Judiciário e à imprensa fragilizam o estado democrático brasileiro. “Não estamos vivendo em um estado democrático com os sistemáticos ataques feitos, dia e noite, contra a imprensa e o STF”, disse.

Sobre o fato de ter em torno de 2% das intenções de voto nas pesquisas eleitorais, Janones afirmou que “ninguém vai definir até onde vai seu sonho”. O deputado é um dos que disputam espaço entre os eleitores que não apoiam nem Bolsonaro e nem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líderes na corrida pelo Planalto.

O deputado federal André Janones (Avante-MG) foi oficializado como candidato à Presidência neste sábado, 23.  

As críticas endereçadas por Janones ao presidente neste sábado ocorreram na esteira de outras declarações do candidato contra Bolsonaro. Em entrevista ao Estado de Minas nesta sexta-feira, 22, ele afirmou que o chefe do Executivo é um “pilantra que não quer trabalhar”.

Ao jornal, Janones disse que Bolsonaro deseja uma ruptura institucional, mas não tem competência para que uma potencial tentativa tenha sucesso. “Entre a tentativa e a consolidação de um golpe há uma distância gigante”, afirmou.

Mineiro de Ituiutaba (MG), o advogado e deputado André Janones (Avante-MG), 38 anos, ganhou notoriedade ao autoproclamar-se líder da greve de caminhoneiros de 2018, que parou o país, e acabou sendo eleito naquele ano como o terceiro mais votado em Minas Gerais para a Câmara dos Deputados, na esteira do bolsonarismo, com 178.660 votos (1,77% dos votos válidos dos mineiros). Janones tem atualmente cerca de 2 milhões de seguidores nas redes sociais.

O Novo e o PSD, que têm o governador Romeu Zema e o ex-prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), à frente na disputa, realizam suas convenções também neste fim de semana. O Novo faz sua convenção estadual neste sábado, 23, também em Belo Horizonte, formalizando a candidatura de Zema à reeleição e as chapas para deputados estaduais e federais. Os nomes para concorrer a vice-governador e senador na chapa do mandatário ainda dependem de negociações.

O PSD, por sua vez, lança neste domingo (24), a candidatura de Kalil, oficializando a chapa majoritária do ex-prefeito da capital, com o deputado estadual André Quintão (PT), como candidato a vice, e o senador Alexandre Silveira (PSD-MG), que busca a reeleição no Senado.

Carlos Eduardo Cherem para O Estado de S. Paulo, em 23.07.22

Justiça condena a sete anos de prisão ex-presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins por concussão e associação criminosa

Willamara Leila de Almeida, desembargadora aposentada compulsoriamente, foi o principal alvo da Operação Maet, da Polícia Federal, que em 2010 desvendou esquema de venda de sentenças judiciais

Tribunal de Justiça do Tocantins. Foto: Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

O juiz Luiz Zilmar dos Santos Pires, da 2ª Vara Criminal de Palmas, condenou a ex-presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins Willamara Leila de Almeida a sete anos de reclusão, em regime inicial semiaberto por crimes de concussão e associação criminosa. A sentença foi proferida na esteira da Operação Maet – investigação sobre a venda de decisões judiciais – e também atingiu o ex-vice-presidente da corte Carlos Luiz de Souza, condenado a dois anos e oito meses de reclusão, em regime inicial aberto por corrupção passiva qualificada. Willamara, Souza e os outros sentenciados podem  recorrer da decisão em liberdade.

Já com relação ao ex-desembargador Amado Cilton Rosa, também denunciado pelo Ministério Público Federal no âmbito da ‘Maet’, o juiz Luiz Zilmar dos Santos Pires considerou que estava prescrita imputação de concussão. Rosa ainda foi absolvido das acusações de corrupção passiva, corrupção passiva qualificada e peculato.

O caso chegou à primeira instância da Justiça Federal do Tocantins após uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida em 2021. A corte declinou da competência do caso que lá tramitava, após os três desembargadores – Willamara, Souza e Rosa – serem condenados pelo Conselho Nacional de Justiça à pena de aposentadoria compulsória.

A ação na qual os ex-desembargadores do Tribunal de Justiça de Tocantins foram condenados parte de denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal em 2011. A acusação foi elaborada no ano seguinte à deflagração da Operação Maet – em dezembro de 2010, a Polícia Federal abriu a ofensiva e chegou a prender Willamara e Souza, além do desembargador Libertato Póvoa – também denunciado, mas falecido em 2019.

A sentença de 244 páginas da Maet, dada 11 anos após a denúncia ser oferecida pelo MPF, indica que a condenação por concussão de Willamara envolve a liberação de quatro precatórios, entre eles um que previa uma indenização de R$ 100 milhões, no âmbito de uma ação de desapropriação.

Nesse caso, Pires entendeu que dois advogados, também sentenciados por concussão, exigiram propina aos beneficiários do precatório, em conjunto com a desembargadora. A magistrada acabou absolvida de uma imputação de corrupção passiva, também envolvendo precatórios.

Já com relação à condenação por associação criminosa, o juiz federal entendeu que ‘ficou clara a estabilidade’ do grupo que ‘atuou entre 2009 a 2010 exigindo porcentagens para liberação de alvarás, cada um à medida de sua participação exposta.

“A finalidade do grupo era a mesma, ou seja, obtenção de vantagem ilícita mediante o recebimento de valores dos beneficiários dos Precatórios”, escreveu o juiz. O marido da magistrada também foi sentenciado por associação criminosa.

Quanto ao desembargador Carlos Luiz de Souza, a condenação por corrupção passiva se deu em razão da venda de um agravo de instrumento – tipo de recurso – envolvendo o Instituto de Ensino Superior de Porto Nacional (IESPEN), sociedade de economia mista com parte de cotas pertencentes à Prefeitura de Porto Nacional (TO).

O Ministério Público Federal narrou que na primeira sessão de julgamento do recurso, após o voto da relatora, negando o agravo, Carlos Luiz de Souza pediu vista – mais tempo para análise . Já na retomada da discussão do caso, Souza e o desembargador votaram conforme um acerto feito com advogados, acusou a Procuradoria.

Ao analisar tal fato específico, juiz Luiz Zilmar dos Santos Pires considerou que dois advogados intermediaram a compra de votos do caso, para favorecer seu cliente, ressaltando que os desembargadores Carlos Souza e Liberato receberam valores em razão do acerto, juntamente com seus assessores (também condenados).

COM A PALAVRA, A DEFESA DE WILLAMARA

Os advogados de Willamara afirmaram ao Estadão que não vão se pronunciar no momento, uma vez que ainda não puderam analisar a íntegra da decisão, mas afirmaram que têm ‘confiança na inocência’ da ex-desembargadora e já indicaram que vão recorrer da condenação.

COM A PALAVRA, OS DEMAIS CITADOS

A reportagem busca contato com as defesas. O espaço está aberto para manifestações.

Correções

21/07/2022 | 18h57

A matéria foi corrigida para fazer constar que a decisão é da Justiça Estadual do Tocantins. Inicialmente registrava que a decisão era da Justiça Federal.

Pepita Ortega e Fausto Macedo para O Estado de S. Paulo, em 21.07.22.

Rússia vive êxodo de profissionais críticos à guerra

Estima-se que mais de 100 mil profissionais russos já deixaram país por medo de perseguição. Os que ficam, arriscam seus empregos e liberdade. "Há uma espécie de guerra fria civil acontecendo na Rússia", diz professora

As últimas correções feitas antes das férias escolares na Rússia podem ser as últimas da vida profissional da professora de matemática Tatiana Chervenko. Ela espera manter o emprego no próximo ano letivo, mas ainda está incerto.

A docente se tornou um incômodo para a direção da escola em Moscou devido a seu posicionamento decidido contra a guerra na Ucrânia. "Estão me pressionando, devagar mas com constantemente, mesmo envolvendo coisas que parecem triviais", conta, em entrevista à DW.

Como exemplo, Chervenko mostra um caderno de exercícios com a margem rabiscada de caneta. Um rabisco realmente inofensivo feito por um aluno. "Não tinha prestado atenção, é claro, mas a diretora me repreendeu por isso. Eu não teria cumprido meu dever. Eu deveria ter chamado os pais do aluno na escola. Só por esses rabiscos!"

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro, centenas de russos saíram às ruas contra a "operação militar especial" ordenada pelo presidente Vladimir Putin. Chervenko era uma deles. Embora o protesto tenha sido pacífico, foi presa e teve que pagar uma multa equivalente a cerca de 300 euros.

Em seguida, foi chamada pela diretora da escola para uma conversa sobre suas opiniões políticas: "Sabemos da sua ação. É inadmissível." Chervenko  perguntou por que, já que fora ao protesto em seu tempo livre. "Ela respondeu: sim, mas os pais de seus alunos podem ser contra." Desde então, a administração da escola a em na mira.

"Simplesmente vão embora"

A história de Tatiana Chervenko não é única: funcionários públicos estão sendo intimidados em toda a Rússia. Eles ouvem que quem é contra a guerra é contra o Estado, e por isso deveriam abandonar seus cargos voluntariamente.

Ameaças dirigidas a reitores de universidades russas partiram recentemente da Duma, a câmara baixa do parlamento russo. O presidente da Casa, Vyacheslav Volodin, do mesmo partido de Putin, o Rússia Unida, declarou: "É uma questão de segurança do nosso Estado. Trata-se do futuro do nosso país. É por isso que vocês, queridos reitores, devem estar cientes de sua responsabilidade, com toda tolerância. Se não, simplesmente vão embora. Levantem-se e vão embora."

Presidente da Duma, Vyacheslav Volodin dir., diante de Putin), ameaçou reitores de universidades russas: "Trata-se do futuro do nosso país. Vocês devem estar cientes da sua responsabilidade. Se não, levantem-se e vão embora.("Foto: Kremlin Pool/Russian Look/imago images)

A Aliança de Professores do país teme que tais declarações de altas autoridades cheguem à base como um chamado à ação, e que os educadores de pensamento crítico sejam silenciados.

"Isso é fatal para a Rússia. Para toda a sociedade russa. Atualmente estamos passando por uma espécie de guerra fria civil na Rússia", critica Svetlana Lozovskaya, membro da associação de professores. A sociedade está dividida, mas a natural da cidade de Ulan-Ude, espera que os críticos sigam no país e digam a verdade até o fim.

A verdade é que há cada vez menos deles na Rússia. Estima-se que mais de 100 mil profissionais russos já deixaram o país por medo de perseguição após criticarem o Kremlin. Jornalistas, pesquisadores, especialistas em TI, artistas e atores fogem para Alemanha, Geórgia, Turquia ou países bálticos.

Não mais inofensivos

Um deles é Konstantin Mikhailov, um conhecido jovem historiador e erudito religioso. Ele está há algumas semanas em Viena e, como pesquisador, gostaria de poder falar livremente sobre seu trabalho.

"Há cada vez mais proibições; o poder estatal interfere cada vez mais na história, da qual ele sabe muito pouco. Por isso preferi falar até mesmo de coisas inofensivas a uma distância segura."

Porque o que antes era inofensivo deixou de sê-lo para as autoridades russas: Mikhailov faz pesquisas no campo da Igreja Ortodoxa Russa, com foco nas questões de gênero, incluindo a homossexualidade, e esse é um tema arriscado na Rússia moderna.

Atualmente ele trabalha num livro sobre novos movimentos religiosos. Porém cada vez mais movimentos religiosos estão sendo declarados extremistas na Rússia. "É claro que não sou membro desses movimentos, mas eu mesmo poderia ser declarado extremista por pesquisá-los.", conta. Apesar de oficialmente ainda não haver censura na Rússia, "há uma autocensura organizada pelo Estado", afirma Mikhailov.

Sanções também afetam

Além da postura aberta contra a guerra, há também fatores muito práticos que motivam os russos, especialmente os mais jovens, a deixarem o país. É o caso do especialista em TI Roman Stich, de 23 anos, que trabalha principalmente para clientes no exterior.

Com a exclusão da Rússia do sistema internacional de transferência de dinheiro Swift, na esteira das sanções ocidentais devido à guerra, ficou praticamente impossível fazer negócios a partir de Moscou.

"Eu emprego 80 funcionários, e pensei neles acima de tudo. Além disso, há razões políticas. Não quero pagar impostos para uma Rússia militarista e não quero mais ser associado a esse país. Também não quero ter nada a ver com isso no futuro."

Ao contrário de Stich, a professora de matemática Tatiana Chervenko não quer voltar as costas à Rússia. Ela conta que recentemente uma aluna a procurou em lágrimas, dizendo que tinha parentes na Ucrânia e não sabia com quem podia conversar sobre isso. É justamente nesses momentos que ela quer ser procurada como professora.

No momento, Chervenko está de férias. Se perder seu emprego no retorno às aulas, a docente diz que irá à Justiça. Ela quer lutar até o fim.

Juri Rescheto para Deutsche Welle, em 23.07.22

OMS declara varíola dos macacos emergência de saúde global

Mais de 16 mil casos já foram registrados em 75 países, 80% deles na Europa, atual epicentro do surto. Medida visa facilitar a coordenação internacional do combate à doença.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou neste sábado (23/07) a varíola dos macacos uma emergência de saúde global, depois que mais de 16 mil casos já foram declarados (cinco deles fatais) em 75 países, 80% deles na Europa, onde a doença não era endêmica. O continente é atualmente epicentro mundial do surto.

A decisão foi anunciada em conferência de imprensa pelo diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, dois dias depois de uma comissão de emergência com especialistas na doença se reunir para analisar a declaração, que obriga as redes nacionais de saúde a aumentar as suas medidas preventivas.

Essa comissão havia recomendado não declarar a emergência em uma primeira reunião, realizada em junho (quando os casos eram 3 mil). Neste último encontro, segundo Tedros, também não houve consenso total entre os especialistas. Mesmo assim, o diretor-geral decidiu declarar a emergência diante do elevado e crescente número de casos em várias regiões do planeta.

Entre os critérios usados pela OMS para declarar essa emergência, destacou Tedros, está o fato de que "o vírus está se espalhando rapidamente em muitos países onde antes não havia casos".

"Temos um surto que se espalhou rapidamente pelo mundo através de novos modos de transmissão sobre os quais também entendemos pouco e que atende aos critérios dos regulamentos internacionais de saúde'', disse Tedros. "Eu sei que este não foi um processo fácil ou direto e que existem opiniões divergentes entre os membros" do comitê, ele adicionou.

Nível mais alto de alerta

Uma emergência global é o nível mais alto de alerta da OMS, mas a designação não significa necessariamente que uma doença é particularmente transmissível ou letal.

Tedros afirmou ainda que o risco de contágio da varíola dos macacos subiu para um nível "alto" na Europa, que concentra 80% dos casos, mantendo o nível "moderado" no resto do mundo.

O chefe da OMS sublinhou que apesar do alerta global, o surto "está concentrado sobretudo em homens que fazem sexo com outros homens e com múltiplos parceiros", grupo para o qual solicitou assistência e informação sobre a doença.

Ele ressaltou que isso deve ser feito com medidas que protejam a dignidade e os direitos humanos das comunidades afetadas, pois, "o estigma e a discriminação podem ser tão perigosos quanto qualquer vírus".

Sétima emergência global

É a sétima vez que a OMS declara emergência global (mecanismo iniciado em 2005), depois de o ter feito para a gripe A em 2009, o Ébola em 2014 e 2018, a poliomielite em 2014, o vírus Zika em 2017 e o coronavírus, causador da covid-19, em 2020, sendo que o último nível de alerta ainda está em vigor.

 A declaração de emergência serve principalmente como um apelo para atrair mais recursos globais e atenção a um surto. Os anúncios anteriores tiveram impacto misto, uma vez que a agência de saúde da ONU é, em grande parte, impotente em fazer os países agirem.

O chefe de emergências da OMS, Michael Ryan, disse que o diretor-geral tomou a decisão de colocar a varíola nessa categoria para assegurar que a comunidade global leve os surtos atuais a sério.

Embora a varíola dos macacos tenha sido estabelecida em partes da região central e ocidental da África por décadas, não era conhecida por desencadear grandes surtos além do continente ou se espalhar amplamente entre as pessoas até maio, quando autoridades detectaram dezenas de focos na Europa, América do Norte e em outros lugares.

Declarar uma emergência global significa que o surto de varíola é um "evento extraordinário'' que pode se espalhar para mais países e requer uma resposta global coordenada.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 23.07.22

STJ mantém prisão de empregado de pet shop que enforcou cachorro

O crime só foi descoberto após a revelação de imagens feitas por uma câmera da loja de Maceió. Elas mostravam o homem puxando a coleira do animal com violência durante uma tosa. O cachorro morreu e o funcionário foi preso em flagrante.

Funcionário puxou coleira do animal com violência durante tosa (Dollar Photo Club)

Por entender que o pedido de liminar apresentado não se enquadraria nas hipóteses de urgência que justificam a interferência da corte durante o plantão judiciário, o ministro Jorge Mussi, presidente em exercício do Superior Tribunal de Justiça, negou liberdade a um empregado de pet shop acusado de maus-tratos contra um cachorro.

Após a conversão do flagrante em prisão preventiva, a defesa buscou a revogação da medida, ou sua substituição por cautelares diversas.

Em janeiro, o Tribunal de Justiça de Alagoas negou liminar. O desembargador plantonista destacou a gravidade da conduta e a tentativa de ocultar o crime. O magistrado também citou o envolvimento do acusado em outros casos criminais, que acabaram arquivados. Em junho, a corte analisou o mérito do Habeas Corpus e manteve a preventiva.

Ao STJ, a defesa alegou que a prisão teria fundamentação deficiente e seria incompatível com a possível pena máxima para o crime de maus-tratos contra cão, que é de cinco anos. Além disso, a medida só seria plausível quando medidas cautelares alternativas se mostrassem insuficientes ou inadequadas.

No entanto, Mussi considerou que o pedido se confundia com o próprio mérito do caso. "Deve-se reservar ao órgão competente a análise mais aprofundada da matéria por ocasião do julgamento definitivo", assinalou. O ministro ainda ressaltou a brutalidade e crueldade da conduta do funcionário. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 22.07.22 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Zelenski critica neutralidade de Bolsonaro frente à Rússia

Presidente ucraniano compara atitude do governante brasileiro à de líderes que permaneceram neutros no início da Segunda Guerra Mundial. "Preciso de uma posição do Brasil", diz ter cobrado durante telefonema.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, criticou a "neutralidade" do presidente Jair Bolsonaro diante da invasão de seu país pela Rússia, cobrando uma posição brasileira e comparando a atitude do governante brasileiro com a de líderes que permaneceram neutros durante o início da Segunda Guerra Mundial.

Zelenski deu detalhes da conversa telefônica que teve com o colega brasileiro. "Ontem eu falei com o presidente Bolsonaro e sou grato a ele por essa conversa. Não foi a minha primeira conversa com o presidente do Brasil. Eu não apoio a posição dele de neutralidade. Eu não acredito que alguém possa se manter neutro quando há uma guerra no mundo", afirmou Zelenski durante entrevista à TV Globo divulgada nesta terça-feira (19/07).

"Na Segunda Guerra Mundial, muitos líderes ficaram neutros num primeiro momento. Isso permitiu que os fascistas engolissem metade da Europa e se expandissem mais e mais, capturando toda a Europa. Isso aconteceu por causa da neutralidade. Ninguém pode ficar no meio do caminho, ninguém pode dizer ‘vou ser um mediador'. Mediador de quê? Um mediador na guerra? Entre quem?", argumentou o presidente ucraniano.

"Preciso de uma posição do Brasil"

"A guerra não é entre a Ucrânia e a Rússia, é a guerra da Rússia contra o povo ucraniano. Porque, mais uma vez, eles estão no nosso território. Nós não chegaremos a um meio-termo porque um país declarou guerra contra o outro. Não. Um país capturou uma parte do nosso território há oito anos", disse Zelenski, fazendo referência à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.

"E nessa época havia muitas pessoas que queriam ser mediadoras e permanecer neutras. Por causa disso, permitiram, desde 2014, que a Rússia lançasse essa segunda onda de invasão, e eles estão invadindo outras partes. Esse é o significado de ‘neutralidade'", criticou. "Portanto, eu não apoio essa posição. Eu disse isso para o presidente: ‘Preciso de uma posição do Brasil'", acrescentou.

Zelenski afirmou que a Ucrânia não ficaria neutra e apoiaria a soberania brasileira caso uma situação semelhante acontecesse no Brasil.

"Precisamos do apoio que mencionei ontem ao presidente. Eu disse para ele: ‘Queremos o apoio do Brasil'. Eu disse: ‘Se amanhã alguém atacar vocês, não ficaremos neutros, independentemente do histórico da nossa relação com esse país que venha a violar a sua soberania. Se alguém capturar a sua terra, matar o seu povo, estuprar as suas mulheres, torturar as suas crianças, como poderei dizer que sou neutro? Eu não tenho esse direito, esse é o mundo moderno'. Escolhendo a neutralidade, permitimos ao senhor Putin pensar que não está sozinho neste mundo, só isso. E as outras coisas, relações comerciais, são secundárias", afirmou Zelenski.

Respondendo a uma pergunta sobre a conversa com Bolsonaro, o ucraniano disse que o brasileiro afirmou apoiar "a soberania e a integridade territorial da Ucrânia".

"Eu quero acreditar nisso. Ele me falou assim: 'o Brasil realmente compreende a dor do que está acontecendo com vocês, mas a nossa posição é neutra'", relatou Zelenski.

Relação amistosa com Putin

Na segunda-feira, Bolsonaro conversou pelo telefone com Zelenski, na primeira conversa entre os dois desde o começo da guerra, em 24 de fevereiro. O governo brasileiro não divulgou detalhes sobre a chamada.

O presidente ucraniano afirmou no Twitter que ambos falaram sobre medidas para desbloquear as exportações de trigo da Ucrânia, cujo escoamento está prejudicado pela invasão russa. Zelenski também frisou a importância de mais países aderirem às sanções do Ocidente contra a Rússia.

Desde o início da guerra na Ucrânia, Bolsonaro vem tentando manter uma posição não alinhada aos interesses de Moscou ou de Kiev. O presidente brasileiro tem uma relação amistosa com o presidente russo, Vladimir Putin, com quem se reuniu em Moscou poucos dias antes do início da guerra, e não chegou a condenar a invasão russa do país vizinho como os países ocidentais – mas tampouco faz críticas duras às sanções do Ocidente aplicadas contra Moscou, como a China. 

Bolsonaro e o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, disseram que o Brasil quer comprar diesel da Rússia, e que um acordo estaria sendo negociado com o país para adquirir o combustível a um preço mais baixo, em dois meses. No último domingo, Bolsonaro afirmou que essas negociações estavam bastante avançadas, sem dar maiores detalhes.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 20.07.22.

O presidente que desacredita o próprio país

Ao voltar a atacar o sistema que o elegeu e a seus filhos, Jair Bolsonaro continua fiel a si mesmo. Para distrair da incompetência do seu governo, cria controvérsias com absurdos.

Bolsonaro no Palácio da Alvorada após apresentação para embaixadores: poucos aplausosFoto: Eraldo Peres/AP/dp

Quase dava para sentir pena do presidente. Diante de cerca de 40 embaixadores de todo o mundo, Jair Bolsonaro enfatizou repetidamente ter vergonha de seu país. Tinha convidado os diplomatas estrangeiros para informá-los de que o sistema eleitoral brasileiro, através do qual ele, seus três filhos e seus aliados políticos extremistas de direita entraram no Parlamento, não funciona.

Como evidência de sua alegação, citou um ataque de hackers em 2018 ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e uma possível modificação de votos. Essa história foi refutada em 2021, quando o TSE deixou claro: as urnas eletrônicas no Brasil jamais entram em rede e não têm nenhuma conexão com a internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa. Bolsonaro também disse que os votos não são auditáveis – alegação desmentida há tempo.

O presidente mais uma vez abordou a tentativa de assassinato contra ele, que supostamente ainda não teria sido esclarecida pela Polícia Federal. Outra mentira! O presidente do TSE, Edson Fachin, foi chamado por Bolsonaro de "juiz que libertou Lula", e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso, de "advogado do terrorista Battisti". Bolsonaro mencionou o Exército várias vezes, dizendo "nós". Ele também falou sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), chamando-o de "grupo terrorista". Foi uma apresentação delirante. Pouco depois, o TSE rebateu 20 inconsistências e mentiras de Jair Bolsonaro. Os embaixadores presentes devem ter se perguntado em que tipo de república de bananas eles foram parar.

Campanha antecipada

Jair Bolsonaro falou aos embaixadores como chefe de Estado e não como candidato. O discurso em que o presidente minou a credibilidade da democracia brasileira foi, portanto, financiado com impostos.

Mas ficou claro que foi um evento de campanha antecipado. Bolsonaro segue a cartilha de Donald Trump, que anunciou antes das eleições de 2020 que não aceitaria uma derrota eleitoral porque esta só poderia acontecer através de uma conspiração. Bolsonaro, já vendo a derrota para Lula, insinua a mesma coisa. Mas isso não lhe vai adiantar de nada. As pesquisas eleitorais são claras demais. O agronegócio, a indústria e o setor financeiro já começaram a se arranjar com um presidente Lula.

Talvez essa seja a explicação para o tom choroso que permeou a apresentação de Bolsonaro. O homem e seus filhos são ótimos em tripudiar. Insultam, xingam e ameaçam. Mas quando são alvos, viram frouxos. Em alguns momentos de sua apresentação, Bolsonaro parecia à beira das lágrimas. O mundo é tão injusto.

Ao final da palestra de Bolsonaro, houve poucos aplausos dos embaixadores. Parecia que eles tinham comparecido apenas para respeitar o protocolo diplomático.

Narcisismo perigoso

Bolsonaro continua fiel a si mesmo. Evita falar sobre os problemas do Brasil e a incompetência do seu governo para resolvê-las: inflação, fome, destruição da Amazônia e falta de perspectivas para a geração mais jovem. Em vez disso, cria controvérsias. Monopoliza o discurso público com seus delírios. O narcisismo de Bolsonaro é insuportável e perigoso.

Pietro Lazzeri, embaixador da Suíça, tuitou: "Participei hoje no Palácio da Alvorada do encontro do Presidente da República com Chefes de Missão Diplomática. No ano do Bicentenário do Brasil, desejamos ao povo brasileiro que as próximas eleições sejam mais uma celebração da democracia e das instituições."

Em sua brevidade e ênfase em "mais uma", foi essa a única resposta correta aos ataques do presidente à democracia brasileira.

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 19.07.22. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

domingo, 17 de julho de 2022

Constituição avacalhada

Os danos da PEC Kamikaze não se limitam aos estragos fiscais. Congresso conspirou para minar a confiança no País.

A PEC Kamikaze burlou normas relativas à responsabilidade fiscal e à legislação eleitoral, sob a justificativa social de amparar segmentos em dificuldades. Pilares institucionais foram derrubados para turbinar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. Para driblar a proibição de criar gastos em período pré-eleitoral, recorreu-se a um estado de emergência de justificativa questionável.

De olho no cálculo político, a oposição apoiou as medidas. Derramou-se dinheiro público para todos os lados: aumento do Auxílio Brasil para R$ 600,00, duplicação do vale-gás, subsídio ao transporte público de idosos, compensação aos Estados por crédito do ICMS no etanol e vales para caminhoneiros e taxistas. A festa vai custar R$ 41,2 bilhões.

O teto de gastos foi novamente desmoralizado. Os benefícios vigorarão até dezembro, mas dificilmente haverá condições políticas para cumprir essa regra. Muito pode tornar-se permanente, piorando a já grave situação fiscal. Foram desrespeitados princípios para a realização de emendas constitucionais. Contribuiu-se para solapar a segurança jurídica essencial à economia de mercado, ao desenvolvimento e à geração de emprego, renda e bem-estar. Um desastre.

Constituições representam a lei máxima de um país. Fixam limites à ação dos governantes para evitar o despotismo e a arbitrariedade, disciplinando o poder político. Garantem que direitos fundamentais não sofrerão mudanças frequentes ou autoritárias. Asseguram que as regras básicas serão estáveis, não se sujeitando à vontade dos governantes.

Por tudo isso, mudanças constitucionais devem observar ritos que permitam ampla discussão das propostas, cuidadosa formulação de seus termos e tempo para uma sadia reflexão sobre as respectivas alterações. Nos Estados Unidos, por exemplo, emendas constitucionais devem ser aprovadas não apenas pelo Congresso, mas também por três quartos dos Estados. Sua tramitação dura dois ou mais anos.

No Brasil, pelo regimento da Câmara dos Deputados, Propostas de Emenda Constitucional (PECs) são encaminhadas à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, para exame de sua admissibilidade ao longo de cinco sessões. Admitida a proposta, o mérito será examinado por uma Comissão Especial, que terá o prazo de 40 sessões para emitir seu parecer. Em seguida, a PEC será submetida a dois turnos de discussão e votação, com interstício de cinco sessões. No Senado, a proposta é apreciada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que terá o prazo de até 30 dias para dar seu parecer. O interstício entre o primeiro e o segundo turnos será de, no mínimo, cinco dias úteis. Na segunda votação, será aberto o prazo de cinco sessões, quando poderão ser oferecidas emendas que não envolvam o mérito.

Desse modo, emendas constitucionais costumam tramitar por seis meses ou mais, o que assegura o debate e a reflexão pelos parlamentares, ao lado de crítica exercida pela imprensa e pela sociedade. Ocorre que o plenário das duas Casas do Congresso pode derrubar as normas que regem a tramitação dos respectivos projetos. Neste caso, as regras básicas não valem. Foi o que aconteceu na PEC Kamikaze. O Senado a aprovou em dois turnos em apenas uma tarde, com interstício de apenas uma hora entre uma votação e outra. A PEC não passou por qualquer comissão. O plenário simplesmente acolheu o texto do relator. A Câmara, que também aprovou a proposta, foi além na sofreguidão e irresponsabilidade. Arquitetou-se uma sessão fantasma de apenas um minuto, às 6h30, para cumprir exigência de norma regimental. Um acinte.

Ao atropelar as regras, o Congresso conspirou para minar a confiança no País. As empresas perceberão que regras fundamentais do jogo podem ser alteradas à matroca. A Constituição pode ser modificada a toque de caixa, sem obstáculos. Por aí, normas tributárias poderiam ser alteradas com violação do princípio da anterioridade, pelo qual elas somente valerão no exercício seguinte. Essa regra é rigorosamente adotada na Inglaterra desde a Carta Magna de 1215.

Os danos da PEC Kamikaze não se limitam, pois, aos estragos fiscais. Ela nos ensinou que governos populistas podem alterar regras constitucionais básicas sem submeter-se tempestivamente ao debate, à investigação da imprensa e ao crivo da sociedade. Nem mesmo o regime militar foi tão longe. O risco de violação de instituições fundamentais aumentará à medida que esse processo voltar a se repetir, o que é muito provável.

É preciso discutir a criação de mecanismos institucionais que evitem a repetição da irresponsabilidade que caracterizou a aprovação da PEC Kamikaze. Sem isso, governos do turno, associados a parlamentares descompromissados com o futuro, podem mudar do dia para a noite as normas de caráter estrutural – que deveriam ser permanentes –, sem uma reflexão apropriada de seus efeitos, movidos por objetivos populistas e/ou eleitoreiros. Sem essa defesa institucional, o Brasil pode tornar-se uma república de bananas, legando-nos um futuro sombrio.

Maílson da Nóbrega, o autor deste artigo, é sócio da Tendências Consultoria. Foi Ministro da Fazenda. Publico originalmente. n' O Estado de S.Paulo, em 12.07.22

Pastores na tormenta

A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes.

A chave do cidadão não está virando bem na fechadura das instituições. A escalada da ambição mundana manipula a fé de forma profana, o Parlamento ludibria a Constituição e a violência começa a visitar as eleições.

Há, no Brasil, uma ordem constitucional que identifica um regime democrático, mas não há uma ordem cultural, um costume provido de um sentimento que caracteriza plenamente a democracia. As elites do poder não se sentem constitucionalmente iguais aos brasileiros, que acabam resignados a Deus-dará.

Políticos, ministros, juízes, procuradores, militares e policiais deveriam cumprir com seu dever atuando nos seus lugares de forma exemplar. Por mais preparados, motivados e articulados que se sintam, não podem seguir impondo doutrina própria, conceitos corporativos, sem conectividade social. O rapapé entre o Executivo e o Legislativo está desconectando a política das regras legais como moinhos viciados que se movimentam pelo vento de si mesmos.

Caneta, arma, querer é poder são falácias de força. Cegueira do topo querer se sustentar tirando a grandeza da posição hierárquica que é respeitada se aceita a contraparte de controle que a limita. Barganha, arbítrio, isso diminui a capacidade de ação democrática ao criar conexões e camuflagem entre governo e oposição.

As leis não são madeira para queimar. A maioria dos empresários e dos trabalhadores clama por um governo estável, amigo de regras, contratos, tratados, acordos à luz do dia. A minoria, amiga do usufruto de governantes, tem sido mais influente e tolera solavancos, as improvisações, pois sua forma de proteção não é a Constituição.

A desinstitucionalização geral é uma das armas combinadas da má-fé, patologia da ambivalência. Faz chantagem com a necessidade social, não apura delitos e projeta um Jesus partidário, sem ênfase poética e espiritual. Carestia, inflação, violência política, improbidade, guerras de religião – o Brasil precisa estar em mãos capazes de tornar as coisas mais bonitas para nosso povo. O mundo do progresso exige um projeto de nação em que o cidadão possa viver segundo suas próprias convicções, sem a defesa violenta de ideias ou a pressão transgressora de ninguém.

Se a Califórnia decide que contra roubo de até US$ 100 a polícia não está autorizada a agir, reconhece o fracasso das políticas de proteção social no país mais rico do mundo. Enquanto isso, aqui, a mistura de religião e política consolida a decadência do Estado Social de que nem mais Deus duvida.

Os erros se agravam quando evangélicos aceitam que o escotismo e o emotivismo interesseiro da política interfiram nas controvérsias morais das igrejas. A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes. Nem tem titularidade para se meter no direito de livre prática da fé para se beneficiar do seu uso como autocracia teológica.

Administrar seus próprios assuntos é o princípio de um sistema justo em que cidadãos livres toleram a objeção de consciência, não aceitam o preconceito nem se acham pessoas especiais, únicas e isoladas. Estados confessionais e governantes que usufruem de igrejas como bureau eleitoral não governam para iguais. A mesma limitação de competência se exige do Estado laico, se quer assegurar a liberdade de crença.

A defesa da equidade dirige-se aos princípios da justiça coletivamente partilhada, e não a discussões sobre verdade e transcendência. Se as premissas da consciência são fundamentadas na fé, as da justiça social o são na evidência, na liberdade e na igualdade. Se um religioso se corrompe e não é atormentado na sua fé, deve estar certo de que só há salvação na sua igreja. Quando enfrenta a doutrina do Estado de Direito, invoca o princípio da tolerância religiosa com um ardil. Advoga que seus fiéis é que devem separar o joio do trigo, pois não pode ser réu quem serviu a um Estado enganadoramente laico.

Melhor confessar, se arrepender. Evite o anátema, pois, neste caso, amar a justiça não significa odiar a Deus. Confie na salvação também fora da igreja.

A igreja reformada deveria estudar melhor a história do protestantismo, as revoltas e os dogmas que o formaram. E reler Martinho Lutero, que dizia que todo homem odeia a verdade, especialmente se diz respeito a ele.

Em todas as religiões ou entre ateus e agnósticos existem cidadãos exemplares. A espiritualidade ajuda muito a maioria das pessoas, a constitucionalidade ajuda todos. A intolerância a artigos de lei enfraquece os argumentos na defesa da tolerância aos artigos de fé.

Quem se acha perfeito costuma exigir pouco de si mesmo. O poder oferece sucessivas distrações, e uma das mais graves diz respeito à confusão entre a ética das relações privadas e a das relações públicas. A ética diz respeito ao ato de fazer em si mesmo. Se o ato original é imoral, suas consequências se completam.

Na vida pública, quem tergiversa pode se encontrar com a fatalidade do julgamento de seus atos. Se escapar, que se acerte com seus deuses para não ter uma velhice cheia de litígios com a consciência.

Paulo Delgado, o autor deste artigo. é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 13.07.22

Pregações destrutivas

Às ladainhas armamentista e da discórdia se soma uma que visa ao desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado.

“Se eu não estivesse armado, a minha reação teria sido um tapa nas costas, um pontapé no traseiro, no máximo um empurrão.” No entanto, após ter sido magoado pela vítima, o agressor sacou da arma que portava e atirou. Assim, com intenso sofrimento e claros sinais de arrependimento, ele forneceu uma patética lição a todos os apologistas das armas. Eu indago: quantos e quantos assassinatos teriam sido evitados, se o agressor não estivesse armado? A sua raiva, o seu ciúme, a sua frustração, seja lá o sentimento que o moveu, seriam extravasados de outra forma, de uma forma não cruenta.

As estúpidas brigas de trânsito têm levado ao crime. Uma fechada, uma brecada abrupta, uma falta de sinal, quaisquer motivos, por mais insignificantes que sejam, levam motoristas a sair do carro, discutir e, não raras vezes, tirar a vida de alguém. Motivos insignificantes provocam uma consequência extrema: interrompem a vida alheia.

Nestes e em outros casos, quem enfrenta qualquer dissabor com uma arma de fogo demonstra, primeiro, uma grande insegurança, pois necessita da arma para se sentir fortalecido. Por outro lado, ao empunhar o revólver, passa a agir com arrogância, prepotência, sentindo-se senhor absoluto da situação de beligerância. Essas condições psicológicas e a arma nas mãos constituem campo fértil para um homicídio. O puxar o gatilho é mero ato mecânico desencadeado em fração de segundos. O cérebro não consegue conter a ação que está apoiada no desejo de superação do outro.

Andar armado por que e para quê? A razão seria sentir-se poderoso, guarnecido, protegido, imune a qualquer agressão? Doce ilusão. Ledo engano. Aliás, amarga ilusão. É desnecessário ter conhecimento especializado em segurança pública para saber que, no caso de um assalto, o assaltante não dá aviso prévio. Ele investe contra a vítima de inopino, surpreendendo-a. Claro que, se esta esboçar qualquer reação, se tentar pegar a sua arma, o assaltante atirará primeiro. Na melhor das hipóteses, desarmará o assaltado, que, reagindo ou não, possibilitará ao criminoso se apossar do revólver.

Além da apologia que se faz ao porte de armas, estamos assistindo a um discurso oficial que estimula a discórdia, o antagonismo, a desarmonia entre pessoas, especialmente entre aquelas que pensam de forma diversa. A compreensão, a concórdia, o respeito pelo outro só se fazem presentes quando “você pensa como eu penso”.

As ladainhas armamentista e da discórdia estão acompanhadas por uma terceira pregação. Esta objetiva suscitar o desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado. Esse discurso autoritário investe contra a própria democracia e contra a liberdade de pensamento.

Corroer os tecidos social e institucional parece ser o escopo prioritário de uma conduta política propositalmente voltada para a desarmonia entre a sociedade e as estruturas do Estado e entre os integrantes dos vários núcleos da sociedade, incluindo a própria família.

É claro que isso cria um caldo de cultura propício para a desarmonia generalizada. Desapreço pelo próximo, de um lado, e desconsideração pelas instituições e pela própria lei, de outro, estão conduzindo a um descaso, até desdém, pelos direitos humanos, pela liberdade alheia e pela democracia.

Ao lado dessas mazelas, assiste-se à insensibilidade de parcelas da sociedade em relação às trágicas situações que se nos têm apresentado ultimamente. Quase 700 milhões de mortes pela pandemia; enchentes; moradores de rua; fome; criminalidade crescente; e violência policial parecem que não mais incomodam. Estamos nos acostumando e convivendo sem abalos com esses dramas humanos. Desde que eles não nos atinjam, pouco importam.

O que fazer?, alguém perguntará. O que for possível, o mínimo que se fizer é o bastante. A solidariedade não evita a tragédia, mas pode minimizar as suas consequências. Um ato qualquer que nos aproxime daquele que sofre mostrará que ele não está só no mundo. Ao contrário, a insensibilidade e a indiferença conduzem à terrível sensação de abandono absoluto.

O homem não pode perder a crença no próprio homem, pois, se isso ocorrer, perderá a esperança de um porvir melhor.

Infelizmente, estamos assistindo à implantação de uma ideologia, de uma filosofia que está dificultando o viver coletivo, ao contrário do movimento que seria esperado de quem governa. Aliás, perdoem-me, nem ideologia nem filosofia, falta a este governo estrutura intelectual para criá-las. É um nada no campo da criação, mas são condutas nocivas às estruturas sociais e institucionais e podem conduzir a uma ruptura do sistema democrático.

O grande malefício desta situação que se está implantando, por meio de falas predatórias, odientas, irresponsáveis e instigantes à violência, é o risco de sua perpetuação. Mesmo com os seus autores fora de cena, ela poderá criar raízes difíceis de serem removidas. Nosso dever é, ao lado de contestá-los com veemência, produzir o humanismo, a solidariedade e o amor ao próximo que se possam contrapor à caótica e destruidora estratégia que está sendo executada.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17.07.22

O Brasil como construção coletiva

As nações mais prósperas são aquelas entendidas por seus cidadãos como um projeto de todos, para o qual cada grupo ou indivíduo contribui na medida de sua responsabilidade

O Brasil jamais se libertará das amarras que o aprisionam em um patamar de desenvolvimento humano, político e econômico abaixo de todo o seu potencial enquanto a sociedade não se assumir como a verdadeira responsável por seu próprio destino. Entre nós viceja o sebastianismo, essa eterna espera por um salvador que nunca chega. Cada ciclo eleitoral, com suas paixões de momento, reflete essa ânsia por encontrar o “painho” ou o “mito” de ocasião, aquele que, por seus atributos estritamente pessoais, haverá de nos tirar do atraso. Ao fim e ao cabo, o debate público fica reduzido a nomes, o que há muitos anos tem inspirado votos sob o signo da rejeição, não da esperança. Pouco se dialoga sobre uma ideia de país.

Esse ciclo pernicioso parece se repetir em 2022, ao menos até agora, às vésperas da campanha eleitoral oficial. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL) lideram as pesquisas de intenção de voto não porque são vistos pela maioria dos eleitores como líderes de uma concertação política com vistas à construção de um Brasil melhor para todos, mas simplesmente por serem quem são, um o antípoda do outro. Tanto Lula como Bolsonaro têm a enorme capacidade, há que reconhecer, de explorar as emoções do eleitorado da forma mais nefasta possível. São hábeis em pautar o debate público nos termos em que ambos se sentem confortáveis – não raro ao rés do chão. As questões de fundo sobre as quais os cidadãos deveriam estar debatendo, sobretudo neste ano de eleições gerais, são deliberadamente negligenciadas.

Ao longo de quase 150 anos de história, o Estadão jamais se conformou com esse reducionismo. Este jornal acredita que é papel inalienável de um veículo jornalístico profissional e independente oferecer à sociedade informações confiáveis como substrato para o engrandecimento do debate público. Por meio de seus editoriais e reportagens, o Estadão tem procurado mostrar que os temas que interessam ao País podem ir muito além do que querem fazer crer os autoritários, populistas e irresponsáveis de plantão.

Justamente neste ano em que se prenuncia uma das campanhas eleitorais à Presidência da República mais violentas e mentirosas de nossa história, o Estadão não haveria de se omitir. O jornal elaborou 15 questões, publicadas no domingo passado, que podem servir como ponto de partida para um diálogo entre eleitores e candidatos sobre uma agenda mínima que o futuro governo precisará liderar se acaso quiser que o Brasil supere os obstáculos que impedem o País de atingir seu máximo potencial de desenvolvimento. São questões que se coadunam com as ideias constitutivas deste jornal, mas apenas por uma benfazeja coincidência: as indagações do Estadão sobre questões ligadas à educação, saúde, economia e política, entre outros temas, coincidem com diagnósticos de especialistas que enxergam o País muito acima das miudezas das disputas político-ideológicas momentâneas.

As nações mais prósperas, sob todos os aspectos, são aquelas entendidas por seus nacionais como um projeto de construção coletiva, para o qual cada indivíduo ou grupo contribui na medida de sua responsabilidade. É a essência da cidadania. Isso não implica, obviamente, a supremacia do pensamento único, nem tampouco majoritário, isto é, não significa impor às minorias a mera condição de espectadoras ou coadjuvantes. Trata-se, muito ao contrário, de uma exortação à consciência de cada um dos cidadãos. A sociedade é composta por indivíduos e interesses muito distintos, mas não necessariamente irreconciliáveis. Significa estabelecer consensos mínimos, a começar pela defesa da dignidade humana, e, a partir deles, avançar no que é possível por meio do diálogo, da boa política.

É lastimável que, até aqui, o debate público tenha sido pautado por questões inventadas pelos dois principais candidatos à Presidência, e não pelos problemas que tiram o sono da maioria dos brasileiros. Mas quando a sociedade souber que país deseja construir, tanto mais fácil será escolher quem está apto, ou não, a guiá-la nesse projeto.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.07.22

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O mau exemplo vem de cima

Se o próprio presidente desrespeita a Constituição, militares que recebem acima do teto não têm com o que se preocupar

No governo do presidente Jair Bolsonaro, os militares ganharam projeção inaudita desde a redemocratização do País. Nas mais diferentes áreas da administração pública federal, da Saúde ao Meio Ambiente, da Educação à Ciência e Tecnologia, da Cultura à Justiça e Segurança Pública, constata-se a presença de mais militares ocupando cargos e exercendo funções civis do que já houve em todos os governos eleitos a partir de 1989. De acordo com um levantamento recente do Tribunal de Contas da União (TCU), hoje há 6.157 militares, da ativa e da reserva, atuando no governo federal.

Há muitos reparos que devem ser feitos à entrega de cargos e funções essencialmente civis a membros das Forças Armadas, cuja proximidade institucional com a Presidência da República Bolsonaro instrumentaliza por interesses particulares. Mas há previsão legal para essas designações. O problema é que todo esse prestígio que as Três Armas, sobretudo o Exército, obtiveram no atual governo tem servido de subterfúgio para que alguns militares engordem seus holerites em desabrida afronta às leis, à Constituição e ao próprio “espírito militar”. Militares de corpo e alma são bastante ciosos da obediência aos comandos da Constituição.

O Estadão teve acesso ao relatório de uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) que identificou uma série de casos de acúmulo de funções militares e civis sem qualquer tipo de amparo legal. Em muitos casos (729), a soma das remunerações desses militares ultrapassa o teto constitucional de R$ 39.293,22 por mês, equivalente ao salário pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Se todos esses pagamentos ilegais fossem restituídos, R$ 5,14 milhões teriam de voltar aos cofres públicos.

A CGU constatou que, daquele total de militares que atuam no governo federal, 2.327 (incluindo seus pensionistas) estão em “situação irregular”. Destes, 558 ocupam ilegalmente cargos militares da ativa e cargos civis, ou seja, estão exercendo funções estritamente vedadas aos fardados. A CGU apurou ainda que 930 militares se enquadram nos casos legais de acúmulo de funções, mas extrapolaram o prazo-limite. Por lei, militares da ativa podem ser designados para cargos de natureza civil, mas pelo prazo máximo de dois anos. 

De acordo com a CGU, o problema pode ter como causa “a eventual má-fé dos militares ao permanecerem como requisitados para atividades civis federais por tempo prolongado, nos casos em que estejam cientes da irregularidade”. A Constituição é claríssima: o vínculo civil de militares é autorizado por período máximo de dois anos, devendo o militar ser transferido para a reserva caso a situação do vínculo temporário persista.

Alguns militares, no entanto, podem se sentir autorizados a descumprir as leis e a Constituição porque, no topo da hierarquia, há um comandante em chefe das Forças Armadas que é useiro e vezeiro em afrontar o ordenamento jurídico do País. Até um dos mais notáveis traços da natureza militar – a força do exemplo – Bolsonaro parece empenhado em dilapidar.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.07.22

Ministros do STF acham que Bolsonaro quer golpe e Mourão vê magistrados ‘com medo da própria sombra’

Presidente atiça as Forças Armadas, em uma estratégia ‘kamikaze’, que pode resultar em perda de apoio no próprio Centrão

Sob o argumento de que é preciso promover uma contagem de votos paralela à do TSE, Bolsonaro atiça as Forças Armadas, em uma estratégia 'kamikaze'. 

Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral estão convencidos de que o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem um plano para tumultuar e até impedir as eleições de outubro. Sob o argumento de que é preciso promover uma contagem de votos paralela à do TSE, Bolsonaro atiça as Forças Armadas, em uma estratégia “kamikaze”, palavra da moda, que pode resultar em perda de apoio no próprio Centrão.

Mas enquanto dirigentes do PL divergem de Bolsonaro e admitem, nos bastidores, que ele tem feito tudo para perder a disputa, o vice-presidente Hamilton Mourão – preterido na chapa pela entrada de Braga Netto – assume o discurso de defesa. A cinco meses e meio de deixar o cargo, Mourão diz não ver escalada de violência na arena política e chegou a atribuir o assassinato de um militante do PT por um apoiador de Bolsonaro a um “incidente policial”.

Em agosto do ano passado, quando blindados desfilaram diante do Planalto, Mourão foi convidado pelo então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, para uma conversa reservada. Horas antes de a Câmara derrubar o voto impresso, Barroso queria saber se as Forças Armadas embarcariam em um golpe. O general o tranquilizou. De lá para cá, porém, o tom das ameaças só cresceu. Agora, a maioria dos magistrados tem certeza de que o presidente tentará uma ruptura institucional.

“Tem magistrado com medo da própria sombra”, disse-me Mourão, sentado numa poltrona de couro off-white, em seu gabinete. “O processo eleitoral vai ter paixões exacerbadas, mas será realizado normalmente. E o vencedor que leve as batatas”, emendou ele, rindo, numa referência à famosa frase do clássico Quincas Borba, de Machado de Assis.

'O 7 de Setembro terá um discurso aqui e ali, recheado com desfile militar, mas no dia seguinte a quitanda vai abrir com berinjelas para vender e troco no caixa para atender o freguês', disse Mourão. 

O comando da campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acusa o governo de incentivar tragédias como o assassinato do guarda municipal Marcelo de Arruda, baleado pelo policial penal Jorge Guaranho, em Foz do Iguaçu. Para Mourão, no entanto, o clima de acirramento começou com o “nós contra eles” dos tempos de Lula. “Quem semeia vento colhe tempestade”, resumiu.

Candidato a uma vaga ao Senado pelo Rio Grande do Sul, Mourão precisa do apoio do presidente em um Estado onde o bolsonarismo é forte. A reaproximação, porém, não o faz tentar convencer o homem com quem viveu às turras a ficar longe dos atos de rua do 7 de Setembro, às vésperas das eleições.

“O 7 de Setembro terá um discurso aqui e ali, recheado com desfile militar, mas no dia seguinte a quitanda vai abrir com berinjelas para vender e troco no caixa para atender o freguês”, afirmou Mourão, parafraseando Delfim Netto. Diante de tantos ataques à democracia, é preciso ver se a quitanda ficará de pé.

Vera Rosa, Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo em Brasília-DF. Publicado originalmente em 14.07.22

Governo ganha poder para doar de cesta básica a trator na campanha eleitoral

Congresso afrouxa lei eleitoral e também torna orçamento secreto ainda mais sigiloso

Votação conjunta do Congresso Nacional, para votar projetos de lei que contrariam pareceres técnicos, lei eleitoral e até a Constituição. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Sem alarde, o Congresso aprovou um pacote que abre caminho para mais uma farra de distribuição de recursos públicos neste ano eleitoral. Em menos de vinte minutos, os parlamentares votaram dois projetos que tornam ainda mais oculto o orçamento secreto, autorizam o governo a distribuir de cesta básica a tratores no meio da campanha e permitem ao Executivo tirar verba já reservada a um município para colocar em outro, de acordo com conveniências políticas. As medidas contrariam pareceres técnicos, lei eleitoral e até a Constituição.

As propostas foram aprovadas anteontem, enquanto o Congresso estava mobilizado em torno de temas como a PEC Kamikaze, que permite ao governo conceder benefícios sociais no período eleitoral, e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as regras para o orçamento do próximo ano. Uma delas chegou a ser votada sem que as alterações fossem nem sequer lidas em plenário. Como a análise foi simbólica, é impossível saber como cada um votou.

Os congressistas ignoraram um relatório das consultorias da Câmara e do Senado, que considerou inconstitucional a mudança no destino final de recursos já empenhados. Segundo o texto aprovado, o governo pode retirar o dinheiro já reservado para uma obra e mudar o fornecedor que receberá o recurso, a localidade ou trocar o objeto da contratação sem nenhuma discussão ou planejamento.

Essas mudanças foram incluídas de última hora no relatório do projeto, apresentado pelo deputado Carlos Henrique Gaguim (União Brasil-TO), e os parlamentares votaram sem ler. O presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda precisa sancionar os projetos, mas, antes da votação, o Centrão já havia combinado o apoio do Planalto às propostas.

Na prática, políticos que romperem com prefeitos de determinada cidade poderão agora punir a traição, realocando os recursos em outro município. No período eleitoral, a manobra tende a virar moeda de troca. Um prefeito pode, por exemplo, perder o dinheiro já reservado para sua cidade se um candidato a deputado ou a senador considerar que ele não entregou os votos prometidos. O artifício aumenta o poder do congressista sobre o prefeito.

Técnicos do Congresso observam que a manobra fere princípios da Constituição, entre eles o que proíbe uma despesa de ser alterada de um ano para outro sem a aprovação de novo Orçamento. Além disso, pagar um recurso para um credor diferente, ou para uma obra distinta da inicialmente autorizada, desconfigura o princípio do empenho na administração pública, que consiste em definir para onde vai o dinheiro, quem vai executar e o que de fato será entregue.

A artimanha foi chamada nos bastidores de “pedalada orçamentária” e preocupa especialistas, que veem a possibilidade de bilhões do Orçamento serem manipulados para atender a interesses políticos. O relator Carlos Gaguim justificou a manobra sob o argumento de que vai possibilitar a retomada de 20 mil obras paradas no Brasil, que estariam suspensas por problemas contratuais, ao permitir alternar o fornecedor ou a localidade. A solução para esse impasse, porém, seria cancelar o recurso e emitir uma nova nota de empenho, segundo especialistas.

“Não havendo amparo na Constituição e na Lei n.º 4.320/1964 para possibilitar que um credor possa ser pago à conta do orçamento anterior, quando esse não tiver sido originalmente indicado na nota de empenho e na correspondente inscrição dos restos a pagar, não se encontra justificativa para a alteração proposta”, diz a nota da consultoria, elaborada antes da aprovação e ignorada pelos parlamentares.

Políticos mais experientes se disseram chocados com o artifício. “Trocar o credor no exercício (ano) seguinte... Gente, eu acho que eu não estou no Brasil, não”, disse o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que é economista e especialista em contas públicas.

Outra mudança aprovada no pacote do Congresso autoriza o governo a realizar doações, incluindo cestas básicas, redes de pesca, ambulâncias, tratores e outros maquinários agrícolas em plena campanha. A medida confronta a legislação eleitoral, que proíbe essa prática. Em abril, o Congresso já havia estendido o prazo até julho. Agora, prorrogou até o final do ano. “Nós temos de mudar o que está lá na lei eleitoral. A lei eleitoral é que está errada”, disse o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) durante a votação. “Ah, bom, agora o argumento é maravilhoso”, ironizou o líder da Minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN).

No mesmo bolo de projetos, os parlamentares puseram mais uma camada de sigilo sobre os recursos do orçamento secreto. Até agora, não é possível identificar os beneficiados com o esquema do toma lá, dá cá. Apenas o nome do relator-geral do Orçamento aparece associado a esse tipo de emenda. Com o projeto aprovado na terça-feira, 11, nem isso.

A ocultação do nome do relator-geral ocorrerá quando as emendas forem remanejadas para outra rubrica, chamada RP-2, sob o controle direto dos ministérios. Com isso, o Congresso dribla a determinação judicial que obriga a dar transparência para o manejo do dinheiro público.

Revelado pelo Estadão, o orçamento secreto vai garantir a um grupo seleto de deputados e senadores definir onde devem ser aplicados R$ 19 bilhões, no próximo ano, além das emendas a que todos têm direito. O dinheiro é distribuído pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

O senador Marcos Do Val (Podemos-ES) disse ao Estadão que recebeu R$ 50 milhões em emendas por ter votado em Pacheco para a presidência do Senado. Foi a primeira vez que um parlamentar admitiu publicamente o critério de divisão do dinheiro.

Alterações após empenhos de recursos: O projeto aprovado pelo Congresso permite ao governo mudar, de um ano para o outro, o município e até mesmo o fornecedor de uma obra que já teve o recurso empenhado, ou seja, garantido no Orçamento. A prática contraria a Constituição.

Doações durante a campanha: O pacote aprovado autoriza, ainda, o governo federal a fazer doações de cestas básicas e de veículos como tratores e até a transferir emendas para entidades privadas no meio da campanha eleitoral. A prática contraria a legislação, que proíbe repasse no período da campanha.

Sem identificação: O Congresso também aumentou o grau de segredo do orçamento secreto, ao permitir que recursos das chamas emendas RP-9 sejam alocados nos ministérios sem a identificação dos parlamentares beneficiados e até do relator-geral do Orçamento.

Parecer: Os textos foram aprovados anteontem, enquanto o Congresso discutia a PEC Kamikaze. Os congressistas ignoraram relatório das consultorias da Câmara e do Senado.

Daniel Weterman, de Brasília para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 14.07.22.

Lula fica em suíte mais cara de hotel de luxo em Brasília; diária é de R$ 6 mil

Espaço de luxo tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls; PT diz que as despesas são pagas pelo partido


Hotel onde o ex-presidente Lula se hospedou em Brasília; petista passou dois dias na capital federal Foto: Wilton Junior/Estadão

Nos dois dias em que passou em Brasília para contatos políticos, nesta semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato do PT ao Palácio do Planalto, se hospedou na melhor suíte presidencial do hotel de luxo Meliá. Com 183 metros quadrados, o espaço é reservado na internet por uma diária de R$ 6 mil.

A suíte ocupada pelo petista, segundo anúncio do hotel, é destinada para hóspedes que vão se “sentir especiais”. Tem dois quartos, duas salas, uma cozinha completa, dois banheiros, um lavabo e dois halls. Há, ainda, uma sala de jantar para oito pessoas. A conta da hospedagem deve sair do Fundo Partidário. A socióloga Rosângela Silva, mulher de Lula, conhecida como Janja, se hospedou com o ex-presidente.

Líder nas pesquisas de intenção de voto, Lula está na suíte que é oferecida a preço cheio por R$ 9,2 mil, sem o desconto da internet. A decoração é composta por móveis franceses e abajures de cristal. O hotel tem outras duas opções de suítes presidenciais – um apartamento de 86 m² e outro de 102 m² –, cada uma delas com diária de aproximadamente R$ 4 mil.

O Estadão perguntou à assessoria do PT o motivo de Lula ter escolhido a suíte presidencial. Em nota, o partido informou que, durante os deslocamentos do ex-presidente, providencia “locais de hospedagem capazes de atender também a sua equipe de apoio e os dirigentes políticos que o acompanham em suas agendas, com instalações adequadas para receber convidados e realizar reuniões (salas e auditórios)”. Destacou, ainda, que “todas as despesas relacionadas aos deslocamentos de seu presidente de honra são realizadas pelo PT, conforme a lei e rigorosamente informadas à Justiça Eleitoral, que as divulga”.

Presidenciáveis

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fica em residências oficiais quando em deslocamento. No exterior, desde que assumiu, tem feito vídeos para se contrapor aos governos do PT, dizendo que não se hospeda com dinheiro do contribuinte.

Em novembro, porém, ele próprio fez uma gravação para mostrar a suíte de luxo em que ficou no Bahrein, no Oriente Médio. “Aqui a gente tem uma sala, uma sala aqui que (é) quase o tamanho do apartamento que eu morava no Rio de Janeiro. A cama bastante confortável, uma televisão (de) primeira linha.” A diária de R$ 46 mil, segundo Bolsonaro, foi paga pelo “rei do Bahrein”.

Bolsonaro colocou sob sigilo gastos do cartão corporativo, o que inviabiliza identificar despesas nas viagens internacionais. Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), publicada pela Veja, apontou que os deslocamentos do presidente e do vice Hamilton Mourão, assim como de suas equipes de apoio, custaram mais de R$ 16 milhões de 2019 até março do ano passado. Não foram encontradas irregularidades, mas a Corte apontou aumento nos gastos de viagens.

Adversária do petista, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse, por meio de assessoria, que não usa suíte presidencial “em nenhum momento”. Simone afirmou que a escolha de hospedagens é feita “levando em consideração a eficiência dos deslocamentos e dentro de um padrão do bom senso dos investimentos dessa rubrica, sem buscar luxo”. Ciro Gomes (PDT) não respondeu aos contatos da reportagem.

Por Julia Affonso, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 13.07.22

Os focos de preocupação dos EUA com eleições no Brasil

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Segundo reportagem da agência de notícias financeiras Bloomberg, Bolsonaro teria pedido a Biden ajuda para se reeleger nas eleições presidenciais de outubro (Itamaraty)

Na semana passada, parlamentares americanos adicionaram mais um elemento à lista recente de advertências que tanto o Congresso dos Estados Unidos quanto o governo do presidente Joe Biden têm enviado ao Brasil sobre a eleição no país.

Trata-se de uma emenda, entre mais de mil, incluída no projeto de Orçamento americano, que, se aprovada, prevê a suspensão de parcerias e corte de recursos americanos destinados às Forças Armadas brasileiras, caso elas abandonem a neutralidade política nos próximos meses.

A motivação, segundo apurou a BBC News Brasil, teria sido "sinais preocupantes" observados pelos parlamentares americanos de que os militares brasileiros estariam dispostos a participar do processo político-eleitoral, o que, argumentam os deputados americanos, seria um fator de instabilidade para a América Latina e para os interesses de segurança nacional dos EUA.

Bancada por seis deputados da ala mais à esquerda do partido Democrata, é possível que a emenda nem chegue a ser apreciada no plenário. Se for votada, não o será antes de dezembro, dois meses depois da eleição brasileira. E sua chance de aprovação é hoje minoritária.

Ainda assim, a manobra foi vista como uma mensagem importante. Ela seria menos uma peça legislativa e mais um recado de que os desdobramentos eleitorais no Brasil seguem sendo analisados de perto pelos americanos.

A administração Biden e boa parte do partido democrata, no entanto, tenta se equilibrar na linha tênue entre demonstrar atenção a um pleito que tem sido descrito por eles como "contencioso" e deixar claro que não estão dispostos a intervir de nenhuma maneira no processo eleitoral, que deve "ser feito por brasileiros, para os brasileiros" e seguir seu curso programado.

Recado da CIA

A proposta de emenda se junta a uma lista de ao menos outras quatro manifestações públicas feitas nos últimos dois meses que indicam uma atenção próxima de autoridades americanas ao processo eleitoral brasileiro.

Primeiro, houve a revelação, pela Reuters, de uma conversa entre o chefe da CIA (agência de inteligência dos EUA), William Burns, e auxiliares de Jair Bolsonaro (PL) em que Burns recomendava que o mandatário brasileiro deixasse de questionar as eleições brasileiras. A conversa, a portas fechadas, teria acontecido em outubro de 2021.

Bolsonaro e seus ministros negaram que ela tenha acontecido e disseram que seria "extremamente deselegante" que o chefe da CIA viesse dar "recado" no Brasil. A própria CIA não comentou o assunto.

EUA querem eleições livres e justas no Brasil

Uma semana depois, em entrevista à BBC News Brasil a subsecretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, afirmou que "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Com isso, ela explicitava a posição dos americanos contrária a qualquer tipo de intervenção das Forças Armadas no processo eleitoral, como defende o presidente Bolsonaro.

"Foi a declaração mais forte do governo americano sobre como se preocupa e avalia a situação", afirma o brasilianista Brian Winter, editor-chefe da revista Americas Quarterly.

"Líder que minar a democracia"

Ainda em maio, senadores americanos descreveram Bolsonaro como um "líder que tenta minar a democracia" apontaram "retrocessos democráticos no país", durante a sabatina da apontada por Biden para assumir a embaixada americana no Brasil, Elizabeth Bagley.

"Você está indo para um país onde o retrocesso democrático é uma preocupação real. Estamos preocupados com o atual líder do Brasil, que tem tentado minar a essência do processo eleitoral", afirmou o senador democrata Bob Menendez, de New Jersey, e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

Em outra intervenção, Menendez citou o presidente pelo nome: "Bolsonaro tem tentado enfraquecer o processo eleitoral. Que medidas podemos tomar para apoiar a integridade e o resultado democrático das eleições?".

Bagley, escolha política de Biden que falhou em ser chancelada pela Comissão e pode ter sua indicação retirada pelo governo, criticou diretamente o presidente brasileiro, embora tenha feito ressalvas sobre a qualidade das instituições do país.

"Bolsonaro tem dito muitas coisas, mas o Brasil tem sido uma democracia, tem instituições democráticas, Judiciário e Legislativo independentes, liberdade de expressão. Eles têm todas as instituições democráticas para realizar eleições livres e justas. Eu sei que não será um processo fácil, por todos os comentários dele (Bolsonaro), mas, a despeito disso, temos todas essas instituições e continuaremos expressando confiança e expectativa de uma eleição justa", disse Bagley.

Encontro entre Bolsonaro e Biden ocorreu durante a Cúpula das Américas (Getty Images)

Maravilhado x Satisfeito

Em junho, Biden e Bolsonaro se encontraram pela primeira vez e, nas poucas palavras que disse diante do colega na presença da imprensa, Biden reafirmou confiança nas instituições eleitorais brasileiras.

Após o encontro, Bolsonaro se disse "maravilhado" com o líder americano. Já Biden teria se sentido, segundo o Departamento de Estado, "satisfeito" — e teria levado a sério supostas garantias dadas por Bolsonaro de respeito ao processo eleitoral.

Dias mais tarde, a agência de notícias financeiras Bloomberg noticiou que durante o encontro Bolsonaro teria pedido a Biden que o ajudasse a vencer Lula nas urnas em outubro.

A BBC News Brasil questionou a Casa Branca sobre o assunto. Sem negar, nem confirmar o teor da reportagem, a administração Biden respondeu que "falando amplamente, temos total confiança no sistema eleitoral do Brasil. Em uma democracia consolidada como a brasileira, esperamos que os candidatos respeitem o resultado constitucional do processo eleitoral".

Manifestantes a favor de Trump invadiram Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (Getty Images)

A palavra em Washington é "preocupação"

"A palavra em voga sobre Brasil em Washington é preocupação. Não é à toa que temos visto esses vazamentos e declarações. A administração Biden tem deixado clara as suas preocupações publicamente", diz à BBC News Brasil Nick Zimmerman, consultor sênior do Brazil Institute, do Wilson Center, e ex-auxiliar da Casa Branca para política externa na gestão de Barack Obama (2009-2017).

Zimmerman foi anfitrião do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin que, na semana passada, deu uma palestra em Washington na qual disse que "nós poderemos ter um episódio ainda mais agravado do 6 de janeiro daqui do Capitólio".

Em transmissão ao vivo nas suas redes sociais, em 8 de julho, Bolsonaro atacou o sistema eleitoral de urnas eletrônicas e declarou que os eleitores "sabem como se preparar" antes das eleições.

"Não preciso dizer o que estou pensando, mas você sabe o que está em jogo. Você sabe como você deve se preparar, não para o novo Capitólio, ninguém quer invadir nada, mas sabemos o que temos que fazer antes das eleições", disse o presidente aos apoiadores durante a live.

A declaração gerou preocupação entre os que temem atos antidemocráticos antes ou depois da eleição, embora o presidente não tenha especificado a que ele se refere quando diz que os eleitores "sabem o que têm que fazer" antes do pleito.

"O governo Biden está preocupado com a possibilidade de uma ruptura institucional e vê com clareza a possibilidade de um 6 de janeiro no Brasil, que poderia acontecer até mesmo antes das eleições de outubro", afirma Winter. Segundo ele, a possibilidade de que Bolsonaro tente adiar o pleito de outubro está no radar das autoridades em Washington.

"Se Bolsonaro se convencer de que não tem como ganhar nas urnas, vai tentar paralisar o processo", diz Winter. As atuais pesquisas eleitorais mostram o presidente em segundo lugar, cerca de dez pontos percentuais atrás do primeiro colocado, o petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Tanto as acusações de falta de transparência das urnas eletrônicas quanto o cenário de tensão e violência — maximizados pelo caso do assassinato de um dirigente local do PT em Foz do Iguaçu (PR) por um apoiador de Bolsonaro no último fim de semana — poderiam ser levantados como justificativas pelo governo para tentar impedir a realização do pleito, em menos de três meses. A possibilidade tem sido ventilada também em Brasília, como afirmou Elio Gaspari, colunista dos jornais Folha de S. Paulo e de O Globo.

Para o ex-embaixador americano no Brasil Thomas Shannon, o adiamento das eleições parece um risco bastante palpável.

"Se isso fosse feito, os EUA e outros países da região teriam reações bastante dramáticas. Bolsonaro estaria arriscando a própria relação Brasil-EUA, não só em termos políticos, mas econômicos também. O Brasil ficaria isolado", antevê Shannon.

Para o diplomata americano, o caso de 6 de janeiro nos EUA foi instrutivo para os brasileiros.

"Brasil e EUA são como dois espelhos que refletem um ao outro nesse momento, em sua polarização política, sua sociedade dividida", afirma Shannon.

Ele argumenta que tanto Bolsonaro quanto seu entorno, especialmente seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), estudaram detidamente os eventos de 6 de janeiro, quando uma massa de apoiadores do então presidente Donald Trump, derrotado nas eleições, invadiu o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden. Eduardo estava nos EUA na ocasião e havia se encontrado com o núcleo trumpista um dia antes do episódio.

"Acredito que ele (Eduardo) chegou à conclusão de que o erro de Trump foi confiar na multidão de apoiadores, sem conseguir se apoiar nas forças de segurança, sem trazer consigo esse suporte institucional. Esse é um erro que eles tentam não repetir", diz o diplomata, que morou por sete anos no Brasil.

Embora admita que militares tenham se envolvido de modo "inusual" na gestão de Bolsonaro, Shannon duvida que as Forças Armadas brasileiras, como instituição, estariam dispostas a patrocinar qualquer possível tentativa de ruptura institucional proposta por ele. Mas vê nas ações do presidente, de dragar os militares para dentro do processo de apuração de votos, uma tentativa de provocar esse efeito.

Comportamento das Forças Armadas brasileiras têm chamado atenção nos EUA (Getty Images)

Apoio ou intervenção?

"Quando os deputados propõem a emenda ao orçamento sobre Forças Armadas do Brasil, estão mandando um claro recado de que estão atentos a esses movimentos. Esse tipo de mensagem, no entanto, é uma faca de dois gumes: se por um lado, mostra apoio à democracia brasileira, por outro, irrita o sentimento nacionalista do Brasil, pode soar como intromissão", diz Shannon.

A diplomacia americana estuda com cuidado seus movimentos justamente porque, há pouco mais de dois anos, se viu no lado oposto do cenário. Em 2020, era Bolsonaro quem fazia comentários sobre o processo eleitoral americano — indicando possibilidade de fraude, como defendia Trump, sem provas. À época, tais declarações geraram insatisfação em Washington, especialmente entre os democratas.

"Os EUA hoje se debatem entre expressar essa preocupação e ser cautelosos para não forçar demais a mão no assunto, o que poderia gerar efeitos negativos e levantar questionamentos dado o histórico de envolvimento dos americanos em episódios trágicos da América Latina no século 20", diz Zimmerman, em referência às ditaduras militares na região, que contaram com o apoio dos americanos.

Segundo Zimmerman, a Casa Branca não quer gerar qualquer espaço para que se diga que os EUA favorecem um dos lados. Até porque, qualquer um deles pode compor o próximo governo com quem Biden terá que negociar em pautas que lhes são caras, como o meio ambiente.

Esse seria inclusive, segundo fontes ouvidas reservadamente pela BBC News Brasil, um dos motivos pelos quais o ex-presidente Lula acabou não visitando os EUA no primeiro semestre de 2022. A campanha petista queria tentar repetir em território americano o tour que ele deu na Europa, com bons resultados políticos. A administração Biden, no entanto, sinalizou aos emissários do ex-presidente que esse não seria um momento conveniente para isso.

Para Winter, além de pouca vontade, o governo Biden tem poucas condições de mensagens mais fortes nesse momento, porque "têm muitos problemas a administrar e tem perdido poder".

Impopular, o presidente americano deve sofrer derrota nas eleições de meio de mandato no Congresso. Por mais que possa se preocupar com o Brasil, por falta de apoio parlamentar, ele sequer conseguiu, até o momento, enviar ao país um embaixador de sua confiança. O mais provável é que Washington não tenha nenhum observador diplomático do mais alto nível em Brasília durante as eleições brasileiras de 2022.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, em 13.07.22 / publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62142759