terça-feira, 24 de maio de 2022

"Rússia já estava em guerra com Ocidente há muito tempo"

 Historiador romeno analisa guerra na Ucrânia no contexto do passado e futuro do continente. Ele não descarta que a solução possa ser a derrubada de Putin num golpe. Mas tampouco exonera uma Europa "cínica e mercantil". Entrevista a Peter Janku, da Deutsche Welle.

Armand Goșu é especialista em história da Rússia e da União Soviática (Foto: privat)

Em 24 de fevereiro, o Kremlin iniciou a assim chamada "operação militar especial" na Ucrânia, com o suposto fim não só de defender "repúblicas populares" separatistas pró-russas, como de "desnazificar" todo o país. A expectativa era de uma invasão rápida e sumária, saudada pelo povo ucraniano.

Com o prolongamento dos combates, não só a força invasora tem que a reajustar a narrativa oficial: também o Ocidente se vê forçado a admitir que não se trata de uma guerra isolada, e se envolve crescentemente. Há quem ainda acredite numa solução diplomática, para outros não há alternativa senão uma derrota formalizada da Rússia, também em nome da paz mundial futura.

O historiador romeno Armand Goșu leciona história política da Rússia e da União Soviética na Universidade de Bucareste. Seguro de que a guerra na Ucrânia não será resolvida à mesa de negociações, em entrevista à DW, ele analisa o atual conflito armado não só da perspectiva da mentalidade russa, mas da evolução do papel estratégico do Centro e Leste da Europa, e o que ele representará para a paz mundial.

"O Ocidente deve se assegurar de que a Rússia não vai deflagrar uma nova guerra de agressão. Senão, também as gerações depois de nós vão travar guerras com a Rússia, e ninguém sabe se vencerão. A qualquer momento um novo Putin pode aparecer no Kremlin e voltar a ameaçar a Europa Central e Oriental."

DW: O presidente russo, Vladimir Putin, aproveitou a tradicional parada militar em Moscou, em 9 de maio, Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial, para acusar o Ocidente de planejar uma invasão "na Rússia", ou seja, na Crimeia, entre outros. Assim, a "operação militar especial" russa seria inevitável, para matar na raiz uma suposta agressão. O que isso representa para a guerra na Ucrânia?

Armand Goșu: Acho que testemunhamos uma recalibragem do discurso de Putin. Ao que parece, desaparecem termos empregados com frequência, como "desnazificação" ou "bandos de drogados". Agora a ênfase é na inevitabilidade da guerra. Ou seja: não havia alternativa, e Putin só fez o que era seu dever, portanto estaria fundamentalmente correto.

Essa atitude não deve nos espantar: ela é específica das burocracias de cunho soviético e dos meios militares de que vem Putin, é uma forma muito difundida de cultura burocrática. Eu não faria questão de explicar esse fenômeno mais detalhadamente, pois em outros países – na Romênia, por exemplo – ela é a cultura predominante no governo, nos ministérios e nos serviços secretos.

Se não for a mesma coisa, é pelo menos bem parecida: o chefe sempre tem razão; não há alternativa ao que um presidente ou ministro diz; as instituições estatais nunca cometem erro. Em tais culturas, não existe expertise independente, real, autêntica.

Como a burocracia militar é culturalmente pobre e intelectualmente modesta, mas muitas vezes ostenta títulos de doutor, ela não aceita nenhum setor da política externa, defesa e segurança que não seja controlado pelos serviços secretos.

As raízes dessa cultura são um pouco mais antigas do que o regime bolchevista: elas remontam ao Império Russo, um Estado montado por uma burocracia militarizada e organizado segundo hierarquias. A instituição mais importante era a do chefe, o nachal'nik. É uma cultura especifica de sociedades rurais, que não conseguiram se modernizar ou simplesmente repudiavam a cultura ocidental.

Numa outra entrevista, o senhor disse que esse conflito será resolvido no campo de batalha, não à mesa de negociações. Por que não haveria uma solução diplomática?

Porque a Rússia continua convencida de que pode ganhar esta guerra, e investe tudo para vencer. Ou seja, o exército russo cria "pinças" maiores e menores com que tenta capturar o exército ucraniano. Isso se ensina nas academias militares de Moscou, seguindo o exemplo da tática militar soviética na Segunda Guerra.

A Rússia fez isso em agosto de 2014 na batalha de Ilovaisk [cidade da região de Donetsk, Ucrânia]. Veio o primeiro acordo de Minsk [por um cessar-fogo e solução pacífica do conflito]. Aí ela repetiu esse procedimento em fevereiro de 2015, em Debaltsevo. E então veio Minsk 2 [um pacote complementar de medidas para implementação do primeiro pacto].

Após o fracasso do grande plano de forçar toda a Ucrânia a se render através de uma guerra-relâmpago – mas também do plano de sitiar as duas principais cidades, Kiev e Kharkiv –, as forças armadas russas se concentram na região do Donbass. Lá tentam cercar grandes regimentos ucranianos com essas "pinças", e assim forçar o presidente Volodimir Zelenski a um cessar-fogo e a concessões políticas.

Tudo o que Putin agora quer alcançar é um cessar-fogo, não um Minsk 3, mas um simples cessar-fogo. Isso lhe permitiria manter os territórios ocupados e lhe daria a pausa necessária para renovar suas capacidades militares e retomar a ofensiva contra a Ucrânia.

Tanque de guerra russo destruído, na região de KievFoto: Genya Savilov/AFP/Getty Images

Por que a guerra-relâmpago russa fracassou?

O problema de Putin é que, depois de oito anos de luta no Donbass, os ucranianos formaram um exército bem preparado e moderno, e uma infraestrutura de defesa difícil de capturar, em Donetsk e Lugansk.

Para complementar suas forças de combate, a Rússia iniciou uma campanha de mobilização secreta – ou melhor, discreta, a fim de não assustar a população. No entanto, em breve os soldados vão constatar que não têm armas nem munição suficientes. E, devido às sanções, a indústria armamentista não tem nenhuma possibilidade de obter componentes eletrônicos.

Já meio desesperado, Putin queria uma pequena "pinça" para prender algumas centenas, talvez milhares de soldados ucranianos, na esperança de forçar as negociações por um cessar-fogo. Os ucranianos, por sua vez, estão numa corrida contra o tempo e torcem para receber mais rápido armas americanas para empregá-las em operações no Donbass, onde a guerra é travada com intensidade sem precedentes, e onde é enorme a perda de vidas humanas e de tecnologia de combate.

Se, como o senhor diz, a guerra será decidida no campo de batalha, como a Ucrânia deve definir uma vitória militar? Basta retomar os territórios ocupados e anexados pela Rússia?

Tanto o presidente Zelenski quanto seu ministro do Exterior têm explicado repetidamente que a meta é a libertação do território ocupado pelos russos, ou seja, o retorno às fronteiras nacionais legais de antes da anexação da Crimeia e da proclamação das "repúblicas populares" separatistas.

A Rússia, por sua vez, quer anexar Kherson, Melitopol, Mariupol e o máximo possível do Donbass, ou seja, os territórios ainda controlados por seu exército. Assim que ocorrer essa anexação e a Ucrânia intensificar a contraofensiva pela libertação, há o perigo de Putin interpretar isso como um ataque a seu país, decretar mobilização geral e evocar o artigo da estratégia de defesa russa prevendo o uso de armas nucleares em caso de ameaça à integridade do país.

O que as acusações de Putin dizem sobre as relações da Rússia com o Ocidente? Como o Ocidente deve reagir à hostilidade de Moscou?

As acusações só reforçam a narrativa básica do Kremlin de que o Ocidente seria culpado pela eclosão da guerra, que Putin não tinha alternativa, que a Rússia é vítima de uma grande conspiração americana. Ou, para ser mais exato, uma "conspiração dos anglo-saxônicos", que é o termo da moda em Moscou.

O senhor pergunta o que o Ocidente pode fazer: ele deve ajudar a Ucrânia a se defender, ou seja, assistência financeira, armas ofensivas, apoio moral da opinião pública, respaldo político. O Ocidente não está ciente do perigo russo: o ano de 1814, quando soldados russos ocuparam Paris, vai longe. A Europa tem memória curta, é cínica e mercantilista.

Presidente Volodimir Zelenski se dirige diariamente ao povo ucraniano em vídeoFoto: Ukraine Presidency/ZUMAPRESS/picture alliance

O Centro e Leste europeus tiveram uma grande sorte histórica com o mundo anglo-saxônico, com os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Um papel-chave cabe à Polônia, o repositório da memória histórica da Europa Central e Oriental, durante séculos a mais importante potência político-militar da região. A Polônia será a líder das nações eslávicas que, dentro de algumas décadas, estarão integradas ao mundo euro-atlântico.

Vai haver um bloco eslávico, composto pela Ucrânia, Belarus – Putin vai arrastar Viktor Lukashenko consigo para o abismo –, República Tcheca, Eslováquia e o Báltico. Com a filiação da Finlândia e da Suécia, o flanco oriental da Otan será decisivamente fortalecido em direção ao norte, dando assim continuidade ao processo de ampliação iniciado na cúpula da aliança de junho de 2016, em Varsóvia.

Esse bloco eslávico, com seus 100 milhões de habitantes, mudará a relação de forças na ala ocidental: a influência da França e da Alemanha definhará, elas se tornarão cada vez mais insignificantes, do ponto de vista da técnica de segurança.

Desde já, a Polônia e a Ucrânia são as mais importantes aliadas e parceiras dos EUA na Europa, e assim permanecerão ainda por muitos anos. Isso vale mesmo que Kiev não se torne membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Seja como for, a confiança na capacidade da Otan de reagir a ameaças russas vai continuar caindo, com membros como o húngaro Viktor Orbán.

O que isso significa para países como a Moldávia ou a Romênia, um Estado-membro da Otan no flanco sudeste da aliança?

O Leste Europeu toda será reconfigurado através dessa guerra. Também o destino da Moldávia vai mudar: no rastro da Ucrânia, ela vai continuar indo em direção à União Europeia, mas sem chance real enquanto a questão da Transnítria não estiver resolvida. Com alguma sorte, pode-se criar um contexto favorável a essa solução. É importante a presidente pró-ocidental da Moldávia, Maia Sandu, não deixar passar esse momento.

A Romênia vai tentar uma associação com a Bulgária, o que está longe se assegurado, já que Sófia evita toda associação com Bucareste, tanto no tocante ao Espaço de Schengen como à filiação à zona do euro. A Romênia estará cada vez mais longe das jogadas importantes da região, embora tivesse as melhores pré-condições para participar.

A frustração das elites políticas e de segurança de Bucareste aumentará com o medo de serem varridas pelas próximas eleições – um contexto semelhante ao de 2004, quando, sob a pressão da Revolução Laranja da Ucrânia, Traian Basescu inesperadamente venceu as eleições presidenciais romenas.

Se o Kremlin – cujo verdadeiro casus belli foi a aderência dos ucranianos aos valores ocidentais – se encontra praticamente em guerra com o Ocidente, que outros poderes existem na Rússia para impedir uma escalada e neutralizar Vladimir Putin?

Eu acho que há muito a Rússia está em pé de guerra com o Ocidente, só que em 24 de fevereiro de 2022 isso tomou a forma de uma guerra convencional. Quanto à capacidade da elite russa de evitar uma escalada, não me iludo.

Mas também não descarto um cenário em que Putin seja deposto por um golpe de Estado, e um novo líder tente dar fim à guerra, para evitar uma derrota e condições de paz humilhantes, incluindo o desarmamento e a "desfascistização" da Rússia. Assim se criaria uma nova ordem mundial, em que a Rússia não tem mais nenhum motivo para atuar como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Contudo o Ocidente deve se assegurar que a Rússia não vai deflagrar uma nova guerra de agressão, uma campanha de retaliação. Senão, também as gerações depois de nós vão travar guerras com a Rússia, e ninguém sabe se vencerão. A qualquer momento um novo Putin pode aparecer no Kremlin e voltar a ameaçar a Europa Central e Oriental.

Publicada por Deutsche Welle, em 21/05/2022

sexta-feira, 20 de maio de 2022

O presidente está nervoso

Estagnação nas pesquisas tirou Bolsonaro do prumo. Seu discurso será cada vez mais ameaçador

A proximidade das eleições está mexendo com os nervos do presidente Jair Bolsonaro. A bem da verdade, sereno ele nunca foi. Mas, a julgar por sua postura ainda mais irascível nas últimas semanas, parece que a estagnação nas pesquisas de intenção de voto tirou Bolsonaro do prumo. Talvez não contasse com esse quadro a cinco meses da eleição.

No dia 16 passado, durante um evento organizado pela Associação Paulista de Supermercados (Apas), em São Paulo, o presidente voltou a ameaçar com uma sublevação caso seja derrotado nas urnas em outubro. Aos berros, comparou o atual momento do País com aquele que antecedeu o golpe militar de 1964. “Os que tentaram nos roubar em 64 tentam nos roubar agora. Lá atrás, pelas armas. Hoje, pelas canetas”, afirmou o presidente à plateia de empresários.

À luz da razão, essa fala de Bolsonaro não tem pé nem cabeça. O Brasil de 2022 em absolutamente nada se aproxima do Brasil de 1964. Nem o mundo é o mesmo. Das duas uma: ou a comparação provém de uma mente perturbada, alheia à realidade, ou é pura tática eleitoral. Ainda que o presidente de vez em quando pareça perturbado, é mais seguro apostar na segunda opção.

Bolsonaro não está nervoso pelas razões que afligiriam qualquer presidente digno do cargo: a fome de milhões de seus concidadãos, o desemprego, a alta da inflação, a falta de perspectiva de futuro em áreas fundamentais, como economia, educação e meio ambiente. Bolsonaro tem medo de perder a eleição, é isso que tira o seu sono. O próprio presidente já projeta um futuro nada bom caso seja derrotado nas urnas: “Por Deus que está no céu, eu nunca serei preso”. Ora, e quem disse que será? Acaso o presidente vê algum motivo para ser preso?

Decerto sentindo-se protegido por uma espécie de imunidade tácita, haja vista que nem o Congresso nem a Procuradoria-Geral da República (PGR) agiram como mandam as leis e a Constituição para impor limites aos ataques de Bolsonaro contra o Estado Democrático de Direito, o presidente tornou a mentir sobre as urnas eletrônicas e afirmou que as eleições de 2022 serão “conturbadas” caso não sejam “limpas”. Com essa retórica antidemocrática, Bolsonaro exerce uma espécie de “direito de espernear” preventivo. Ao fim e ao cabo, valerá a palavra final do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre o resultado das eleições.

Os rompantes de fúria, as ameaças de baderna (material e institucional) e as mentiras sobre o sistema eleitoral são previsíveis à luz da tática eleitoral de Bolsonaro, que pretende, assim, inflamar sua base mais radical de apoiadores para manter, no mínimo, a chance de chegar ao segundo turno. Mas não são menos graves por isso.

O que se tem é o presidente da República, ninguém menos, anunciando diariamente – e há algum tempo – que não vai reconhecer o resultado das eleições caso seja derrotado. A democracia, afinal, prevalecerá, mas se até a eleição Bolsonaro não for contido por quem tem a prerrogativa de fazê-lo, o País estará prestes a viver seus dias de maior tensão institucional e social em muitas décadas. É tudo o que Bolsonaro quer.  

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de maio de 2022

A democracia tem como se defender

Disposição bolsonarista de perturbar a eleição não encontra apoio nas Forças Armadas, no Judiciário e no Legislativo, mostrando maturidade institucional do País

 Jair Bolsonaro foi um mau militar, foi um mau deputado federal e é um mau presidente da República. Se as pesquisas de intenção de voto se confirmarem, em breve será também um mau perdedor. A baderna que ele corriqueiramente ameaça incitar se não sair vitorioso do pleito seria uma espécie de ônus com o qual o País haveria de arcar por ter ousado não reeleger o “mito”.

Só isso deveria bastar para que qualquer cidadão minimamente cioso do valor das liberdades democráticas, seja qual for a orientação político-ideológica, não confiasse ao atual presidente da República nem mais um voto sequer. Mas sabemos que a realidade não é assim. Malgrado a tragédia de sua administração em múltiplas áreas, Bolsonaro ainda conta com o apoio de mais brasileiros do que seria merecedor.

Por isso, é extremamente reconfortante observar que as instituições republicanas, a imprensa profissional e independente e muitas organizações da sociedade civil, cada uma a seu jeito e dentro dos limites de sua responsabilidade, têm se erguido contra a sordidez de um presidente que se presta dia e noite a sobressaltar o País com seus fantasmas, em vez de cuidar dos problemas verdadeiros que afligem milhões de brasileiros: a fome, o desemprego, a inflação alta, a crise na educação e na saúde, a destruição do meio ambiente.

Em primeiro lugar, destacam-se as Forças Armadas entre as instituições que não têm dado sinais de que embarcariam na aventura golpista que Bolsonaro urde há algum tempo. É claro que há militares de diversas patentes, da ativa e da reserva, que apoiam Bolsonaro e, lamentavelmente, dão respaldo às suas imposturas. Mas não houve até o momento a mínima sugestão de oficiais generais com tropas sob seu comando de que estariam dispostos a fazer letra morta da Constituição para defender os interesses particulares do presidente, arruinando os do Brasil.

Os presidentes das duas Casas Legislativas, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o deputado Arthur Lira (PP-AL), também já se manifestaram publicamente em algumas ocasiões afastando qualquer sinal de anuência do Congresso às más intenções de Bolsonaro, em defesa da Constituição e do sistema eleitoral do País. Em tempos normais, seria ocioso fazê-lo, mas o sinal foi importante. E não apenas por meio de palavras, mas de ações. Convém lembrar que os parlamentares em boa hora derrubaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do voto impresso, frustrando a montagem de mais essa armadilha de Bolsonaro.

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) são outras instituições que funcionam regularmente e têm cumprido suas obrigações constitucionais. Tanto é assim que o STF e o TSE são os alvos preferenciais de Bolsonaro e sua horda de camisas pardas. Uma a uma, todas as tentativas do presidente de desqualificar o sistema eleitoral brasileiro têm sido combatidas com vigor pelo Poder Judiciário. O TSE, particularmente, tem sido incansável no trabalho de esclarecimento da população sobre a segurança das urnas eletrônicas.

Em número recorde, milhões de jovens de 16 e 17 anos responderam ao chamamento de artistas e do TSE para participar das eleições, um sinal inequívoco de fé da nova geração no futuro do País.

Tome-se até mesmo a Petrobras, tão aviltada por Bolsonaro recentemente. A empresa tem sido exemplo de resistência profissional aos ataques do presidente. Em discursos pelo País ou em suas lives semanais, Bolsonaro pode berrar o quanto quiser contra a política de preços da Petrobras, mas, ao fim e ao cabo, tem prevalecido o arcabouço jurídico que mantém a sua autonomia administrativa.

Em suma, o clima no País está péssimo, mas poderia estar muito pior caso Bolsonaro tivesse logrado cooptar todas essas forças republicanas em prol de seu desiderato golpista. Mais cedo do que tarde, o presidente verá que derrubar a democracia consagrada pela Carta de 1988 estava muito além de suas forças.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 19 de maio de 2022 

Desrespeito ao STF e ao País

Plenário do Supremo determinou transparência em relação ao orçamento secreto, mas 190 parlamentaresnem sequer responderam à solicitação de informações

Se há um princípio elementar no Estado de Direito é que as decisões judiciais devem ser cumpridas. Afinal, o que caracteriza o Estado de Direito é a submissão de todo e qualquer cidadão ao império da lei, isto é, ao que determina a legislação em vigor no País. O papel do Legislativo é formular e aprovar as leis. Ao Judiciário, por sua vez, cabe interpretá-las, sempre que provocado, a fim de dirimir conflitos. Proferida a decisão judicial, resta cumpri-la, sem prejuízo, claro, da possibilidade de recurso à própria Justiça para tentar mudar o veredicto. Que, de resto, deverá ser igualmente acatado.

Eis que princípio tão elementar vem sendo afrontado por ninguém mais, ninguém menos que o presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que até aqui não fez cumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de dar transparência total ao chamado orçamento secreto. Instado pelo plenário do STF a revelar os nomes dos parlamentares que fizeram uso desse mecanismo bilionário de liberação de verbas, Pacheco resistiu o quanto pôde. Por fim, no último dia 9 de maio, após tentativa frustrada de prorrogar o prazo, atendeu parcialmente à decisão, enviando ao Supremo ofícios com informações fornecidas por 340 deputados e 64 senadores.

O descompromisso do presidente do Congresso com uma de suas obrigações precípuas − a de seguir à risca ordens judiciais − ficou evidente na maneira como ele conduziu o assunto entre seus pares. Sob a alegação de que não haveria registros sistematizados dos parlamentares que fizeram uso das emendas de relator nem obrigação legal prévia nesse sentido, Pacheco solicitou a deputados e senadores que “colaborassem” com o levantamento, listando as emendas de relator que apadrinharam em 2020 e 2021. Para isso, foi dado prazo de dez dias e, ao final desse período, o Congresso remeteu ao STF o conjunto de respostas individuais, aparentemente sem nem mesmo tabular os dados.

A postura do presidente do Congresso, devidamente alinhada com o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), parece ter deixado os colegas tão à vontade que 190 parlamentares simplesmente nem sequer responderam ao pedido. Isso mesmo: 173 deputados (do total de 513) e 17 senadores (do total de 81), conforme noticiou o Estadão, ignoraram a solicitação para prestar informações demandadas pelo plenário do Supremo. É praticamente um terço (32%) do Congresso Nacional. Sem falar nos parlamentares que responderam à solicitação de Pacheco de forma genérica, sem detalhes sobre emendas e valores.

O orçamento secreto foi revelado pelo Estadão no ano passado. Trata-se de mecanismo turbinado no governo Bolsonaro para liberar verbas públicas sem revelar o deputado ou senador responsável pela indicação. Como tudo que é feito às sombras, o orçamento secreto se presta a todo tipo de barganha. Em geral, envolve projetos e redutos eleitorais de aliados fiéis ao governo − embora até mesmo parlamentares do PT e da oposição, em menor monta, tenham sido contemplados. 

O dinheiro é liberado sem transparência: o que consta nas respectivas emendas é o nome do relator-geral do Orçamento, função desempenhada por um deputado ou senador diferente a cada ano. Não será surpresa se a mera divulgação de nomes e valores enseje cobranças dentro da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro. O orçamento secreto, como se sabe, é peça-chave no acordo do presidente com os partidos do Centrão. E alguns parlamentares talvez queiram saber por que seus pedidos receberam menos verbas do que os de outros colegas. Em 2022, as emendas de relator contarão com R$ 16,5 bilhões. 

A simples ideia de um “orçamento secreto” atropela o princípio republicano da transparência, além de não figurar no arcabouço legal do País. A decisão do Supremo busca abrir essa caixa-preta e não pode ser desrespeitada por quem, acima de tudo, tem o dever de cumprir a lei − e as decisões judiciais dela derivadas. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de maio de 2022 

A retroatividade da lei penal mais benigna e os casos de improbidade

O cerne da discussão está na dimensão que a expressão "lei penal", contida no artigo 5º, XL, da CR ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"), pode alcançar. 

Mais especificamente: se ela abarcaria as disposições da LIA.  Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Alice Silveira de Medeiros

Desde que o texto do PL nº 10.887/2018 [1] — que deu impulso ao processo de alteração da chamada Lei de Improbidade Administrativa (LIA) — começou a sofrer modificações e a incorporar um viés mais protetivo, já era possível antever que, se aprovado, traria à tona a discussão acerca da incidência do princípio da retroatividade da lei mais benéfica fora do clássico âmbito penal. A despeito de se tratar de um estatuto de teor cominatório, antes mesmo da promulgação da Lei nº 14.230/2021, o debate em torno do assunto já tinha começado, vindo a se intensificar depois que o Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo do ARE 843.989, reconheceu a repercussão geral da matéria, consolidando o Tema de nº 1.199.

O cerne da discussão está na dimensão que a expressão "lei penal", contida no artigo 5º, XL, da CR ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"), pode alcançar. Mais especificamente: se ela abarcaria as disposições da LIA.

É da índole democrática a inexistência de unanimidade na interpretação, notadamente, se se tem farta produção normativa [2]. Todavia, como o ordenamento jurídico bloqueia certos caminhos à exegese, nem todas as direções são viáveis. Com um mínimo acordo de linguagem — em face da CR — a solução para esse impasse poderia ser definida sem tumulto nem delongas, solvendo-se dissidências pontuais. O problema é que o básico teria de vir descontado, aparecendo sempre como pressuposto; e a frequência com que se tem visto isso acontecer é menor do que o desejável [3]. Em suma, tem coisas que se não deveria e nem precisaria explicar, embora, na prática, nem sempre seja assim.

A questão, portanto, é singela, mas parece escapar a alguns: no contexto de um Estado de Direito social e democrático, nenhuma norma se encerra na literalidade da lei e nenhum dispositivo tem vida própria. Por trás dos textos há um quadro axiológico que conforma uma racionalidade e constitui um específico vetor de significação. Todas as normas que emanam da Constituição de 1988 compõem um sistema, situado no paradigma do Estado Constitucional, cujo princípio reitor — elemento unificador de sentido — é a centralidade da pessoa [4]. Não por outra razão — estando superado o velho estágio do Estado Legislativo em que a Constituição não ultrapassava os limites do papel [5] —, aos direitos fundamentais incumbe funcionar como "parâmetro de (des)legitimação dos Estados" [6]; e ao princípio da proporcionalidade, como critério limitador da ingerência estatal sobre as esferas individuais, especialmente no que repercute como proibição de excesso.

Nada disso adquiriria consistência, fora dos limites da retórica, se se mantivesse o enfoque mais nos invólucros do que no conteúdo dos atos estatais interventivos.

Que a ação de improbidade tem caráter repressivo e não é — nem nunca foi — uma simples ação civil, nem seria preciso dizer. Mas até isso a Lei nº 14.230/2021 fez questão de explicitar, na forma do artigo 17-D[7], para não ficar dúvida. A prática de um ato de improbidade — como de qualquer outro ato ilícito — também pode gerar consequências civis-patrimoniais, mas no quadro de conflitos que reclamam a atuação Estado, eles, os atos de improbidade, não se situam na mesma órbita das infrações repudiadas nas relações jurídicas tipicamente privadas [8]. As sanções pessoais que se lhes aplicam são graves e visam coibir violações a interesses — de dimensão supraindividual —, que autorizam, tal como se passa com as penas criminais, uma ingerência estatal restritiva de direitos mais incisiva. Um tipo de ingerência que se desenvolve num cenário processual pouco paritário — qual seja, aquele em que se expressa a potestade repressiva, prerrogativa mais invasiva detida pelo Estado —, onde o suposto infrator ocupa a posição mais vulnerável.

Essa potestade pode ser exercitada, basicamente, por duas vias: uma, penal judicial; e, outra, sancionadora administrativa ou judicial. Trata-se, no entanto, de um fracionamento de caráter político-normativo, cuja utilidade reside na pretensa capacidade de viabilizar o funcionamento coerente dos órgãos aos quais se delega a proteção dos diversificados interesses que lhe autorizam o manejo. Dentro de um sistema normativo escalonado, nada obstante, essas duas vias acabam reconduzidas a um núcleo comum — público-constitucional — que afeta, antes, o ius puniendi; e, assim, quaisquer atos que se submetam a ele.

O Direito Administrativo Sancionador — que tem raízes na doutrina do Direito Penal Administrativo[9] —, algumas vezes, dirige a força coercitiva do Estado ao atendimento de objetivos que escapam aos limites dos Direito Penal. Outras vezes, porém, ocupa o mesmo espaço que lhe é próprio [10]. A maior parte dos ilícitos administrativos diz com condutas de mera desobediência a normas de organização e controle, não sendo aplicável, por isso, em regra, a ideia de ofensividade, nesse âmbito. Quando se aprofunda, porém, a análise acerca das fronteiras que separariam o ilícito administrativo do ilícito penal, "em alguns casos, pode-se verificar a efetiva existência de bens jurídicos coletivos cuja tutela transita em ambos os subsistemas jurídicos", tal como aponta Ana Elisa Bechara [11].

Disso decorre uma série de consequências, a começar pela necessidade de submissão a um regime próprio e rigoroso [12], o que é por demais relevante. Tanto que a nova LIA veio assegurar, também, textualmente: "aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador" (artigo 1º, § 4º).

Na prática, os princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador conformam o regime jurídico a que se submete, em sentido amplo, a intervenção repressiva; e, basicamente, decorrem dos dispositivos constitucionais e legais que resguardam direitos e garantias aos acusados em geral frente a qualquer investida punitiva, incluídos aqueles decorrentes de tratados e convenções internacionais incorporados ao ordenamento jurídico, com respeito ao disposto no artigo 5º, § 2º, da CR. Da mesma forma, não se trata de um regime forjado a partir de uma simples transposição de princípios e garantias do Direito Penal, mas de um regime — legatário, antes, do Estado de Direito [13] — que lhes cobra regência material e, por consentâneo lógico, desautoriza que técnicas de divisão metodológica das matérias por ramos de especialidade sejam aproveitadas para enclausurar a sua vigência, o que não significa que sejam incabíveis distinções e/ou gradações [14].

O ponto é que nem a fragmentação subjetiva da titularidade ativa, nem a outorga de diferentes graus de efeito aflitivo às medidas punitivas — com possível matização das garantias, a depender das circunstâncias — comprometem a unidade do regime jurídico a que se subordina a intervenção punitiva. Sobretudo, porque o próprio poder investido no Estado é uno e indivisível [15] e ele — que não é um fim em si mesmo — nunca fica desincumbido do ônus de priorizar a satisfação dos direitos individuais. Por isto é que os limites da legitimidade de sua atuação se definem pela substância dos seus atos; e não pelos nomes que lhes são dados.

Diante da impossibilidade de estabelecer diferenças ontológicas entre os ilícitos — visto que, em termos reais ou não normativos, não dá para dizer nem que os ilícitos são iguais, nem que são diferentes [16] — e da ampla margem de discricionariedade de configuração normativa detida pelo legislador, a importância disso é de primeira ordem. Ainda mais em se tratando de atos de improbidade, pela correlação que possuem com tipos penais e pela equivalência material que se verifica entre as sanções aplicáveis — tirando a pena privativa de liberdade —, as quais, não raras vezes, acabam dotadas até de maior severidade na esfera administrativo-sancionadora.

Portanto, a previsão do artigo 5º, XL, da Constituição, reclama observância, na esfera sancionadora administrativa, por conta disso, resumidamente. Do mesmo modo, o artigo 9º, da Convenção Americana de Direitos Humanos [17], à qual o Brasil aderiu através do Decreto nº 678/1992. E isso, tanto no que diz respeito aos processos em curso, quanto no que se refere aos casos decididos com base na LIA, com a redação que lhe foi dada em 1992. Por quê?

Primeiro, porque a própria racionalidade embutida no regime que se lhes aplica impõe que nenhum caso seja relegado, prima facie; e, depois, porque — o que, aliás, não deixa de ser condizente com esse regime — há um outro dispositivo em vigor, dirigido às leis produtoras de efeitos penais, que verticaliza e completa o preceito constitucional, afirmando que "a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado" (o artigo 2º, parágrafo único, do CP).

Não há dúvida de que, como regra, o princípio da retroatividade da lei mais benéfica vigora, em sua plenitude, na órbita penal. A (criticável) posição dominante ainda excetua disposições de conteúdo eminentemente processual, por conta da previsão do artigo 2º, do CPP. Nada obstante, no caso das denominadas leis mistas, híbridas ou bifuncionais (que possuem, ao mesmo tempo, conteúdo material e instrumental), deve-se ter como certo que, na falta de um critério de eficácia temporal específico, ela deve prevalecer, por seu status constitucional (vide coluna).

A exemplo da Lei nº 13.964/2019, no que regula o acordo de não persecução penal (ANPP), a Lei nº 14.230/2021 contém preceitos de direito instrumental (por alterar, em parte, o rito procedimental do respectivo processo e dispor acerca de medidas acautelatórias, por exemplo) e de direito material (operando, inclusive, com abolitio criminis), nada prevendo acerca de sua eficácia intertemporal. Logo, cumpre atribuir efeitos retroativos às disposições novas que confiram maiores benefícios aos réus. Sempre, com aferição no plano concreto, já que essa benignidade pode decorrer de inúmeros fatores e variar de um caso para outro [18].

E isto vale tanto nos processos em fase de conhecimento, quanto em cumprimento da sentença porque, além do mais, os preceitos definidorrs de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, LXXIX, § 1º, da CR). Sem falar que a hipótese comporta interpretação ampliativa tão só pelo fato de estar em causa um dispositivo legal que concede direitos. Trata-se de um postulado (esse, de que as leis que conferem direitos comportam interpretação ampliativa) tão primário, que remonta ao Codex Iuris Canonici [19].

[1] Depois renumerado como PL nº 2.505/2021.

[2] Sobre o assunto: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019. v. 2.

[3] Em meio a outros, nada obstante, há dois exemplos notáveis: MAIA FILHO, Napoleão. O princípio da retroatividade da lei sancionadora mais benigna. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-04/napoleao-maia-filho-principio-retroatividade. Acesso em 18 mai.2022; e GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; LIMA, Diogo de Araujo; FAVRETO, Rogerio. O Direito Intertemporal e a nova Lei de Improbidade Administrativa. Conjur, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-18/opiniao-direito-intertemporal-lei-improbidade. Acesso em 18 mai.2022.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 95).

[5] Sobre o tema: HACHEM, Daniel Wunder. Mandado de Injunção e Direitos Fundamentais: uma construção à luz da transição do Estado Legislativo ao Estado Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 99-103.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 87.

[7] "Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos."

[8] JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: Lei 14.230, de 25 de outubro de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 19.

[9] NIETO GARCÍA, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 5ª ed. Madri: Tecnos, 2012, p. 139-143.

[10] Esta constatação é tão verdadeira e antiga que o próprio precursor da teoria do direito penal administrativo, o autor alemão James Goldshmidt, dizia que ele (o direito penal administrativo) era um direito pseudopenal — apesar de lhe conceber como um instituto da administração —, designando como parte penal do direito administrativo (strafrechtlicher Theil des Verwaltungsrechts) o ramo do direito administrativo ao qual vinculava as prerrogativas estatais dignas de proteção penal. (GOLDSCHMIDT, James Paul. Das Verwaltungsstrafrecht. Berlin: Carl Heymanns Verlag, 1902, p. 556-558).

[11] BECHARA, Ana Elisa. Bem Jurídico-Penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 246.

[12] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: volume 1: parte geral. São Paulo: RT, 2011, p. 137); COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. 261 f. Tese (livre docência) — Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 178.

[13] Neste sentido, dentre outros: QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. La autotutela, los limites al poder sancionador de la administracion publica y los principios inspiradores del derecho penal. RAP, nº 126, p. 253-293, 1991; VITTA, Heraldo Garcia. A atividade administrativa sancionadora e o princípio da segurança jurídica. In: VALIM, Rafael; OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; DAL POZZO, Augusto Neves (Coord.). Tratado sobre o princípio da segurança jurídica no direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 667-680, p. 677-678.

[14] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 6ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 99-101.

[15] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 216-217; CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 31.

[16] BECHARA, Ana Elisa. Bem Jurídico-Penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014, p. 245; AFTALIÓN, Enrique R. Derecho Penal Administrativo. Buenos Aires: Arayú, 1955, p. 11-18; NIETO GARCÍA, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. 4. ed. Madri: Tecnos, 2005, p. 154; BRANDÃO, Nuno Fernando da Rocha Almeida. Crimes e Contra-Ordenações: da cisão à convergência material. 902 f. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013, p. 519.

[17] "Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o deliquente deverá dela beneficiar-se."

[18] BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 255; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: volume 1: parte geral. São Paulo: RT, 2011, p. 205.

[19] "Leges quae poenam statuunt, aut liberum iurium exercitium coarctant, aut exceptionem a lege continent, strictae subsunt interpretationi", nos termos do Can. 18.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado), professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Damas (Recife), professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel), especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"), presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória, advogado e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

Alice Silveira de Medeiros é advogada, mestre em Direito do Estado pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, pós-graduada em Contratações Públicas pela Universidade de Coimbra, especialista em Licitações e Contratos Públicos com Tópicos Especiais em Direito das Concessões pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da OAB-PR.

Publicado na Revista Consultor Jurídico, em 20 de maio de 2022,

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Cantanhede: Bolsonaro troca o canal

O presidente Jair Bolsonaro parou de crescer nas pesquisas e enfrenta rejeição alta, preço do diesel e da gasolina aumentando e inflação disparando. 

Como ele reage, entre uma motociata e outra? Atacando Supremo, TSE e urnas eletrônicas, dizendo que o lucro da Petrobras é um “estupro”, fritando ministros e presidentes da estatal em lives e lançando a ideia de privatização da mais importante e simbólica empresa brasileira.

O presidente Jair Bolsonaro em evento em Pariquera-Açu, no interior de São Paulo, nesta quinta-feira, 12. Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Já demitiu o economista Roberto Castello Branco e o general Joaquim Silva e Luna e está indócil com o terceiro presidente da Petrobras, o químico industrial e ex-militar José Mauro Coelho. Mudam os nomes, não muda nada. Com perfis diferentes, os três concordam no principal: reprimir o preço dos combustíveis na marra é burrice, porque o efeito, bumerangue, seria contra o próprio interesse público.

Como derrubar os presidentes da Petrobras não funcionou, Bolsonaro subiu o tom e o status, demitindo o próprio ministro de Minas e Energia, almirante de esquadra Bento Albuquerque. E aí, vai mudar alguma coisa? Na prática, nada, mas o discurso já começou a entortar.

No primeiro pronunciamento, sem direito a perguntas, o novo ministro, Adolfo Sachsida, advogado com doutorado em Economia, só fez enrolar, distrair a plateia. Citou Deus, família e Bolsonaro, enalteceu a iniciativa privada e falou que o Brasil é um “porto seguro” para investimentos das “democracias ocidentais” – essas que, convenhamos, andam assustadas com o que ocorre por aqui.

Eliane Cantanhede é comentarista de política na Rádio Eldorado (SP), Rádio Jornal (PE) e no telejornal "Em Pauta", da Globo News. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 13.05.22


Gabeira: Como se houvesse futuro

Um projeto brasileiro que estabeleça uma nova relação entre natureza e tecnologia pode ser a mensagem mais importante na nossa política externa.

A campanha eleitoral apenas começou, há um longo caminho pela frente e, possivelmente, será preciso uma batalha para defender sua legitimidade.

Num quadro ainda tão embrionário, parece lirismo pensar num caminho para o Brasil pós-2022. Não se trata de um programa, muito menos de um projeto de país, como muitos não cessam de cobrar. É pretensão tratar de ambos, sobretudo porque a ideia de projeto de país pode lembrar de algo que se formule numa prancheta, quando na verdade há diante de nós uma sociedade viva e complexa. Mas também não é proibido pensar um pouco adiante. Lembro-me do passado, quando as convenções partidárias analisavam teses. Hoje, isso parece um escândalo.

Um dos grandes problemas do Iluminismo foi o projeto radical moderno de subjugar a natureza, por meio da tecnologia, para os propósitos humanos. Esse projeto desembocou numa crise profunda, com a necessidade urgente de atenuar suas trágicas consequências, como o aquecimento global.

Da mesma forma que isso está em crise, também entrou em crise a concepção cristã sobre a superioridade ou privilégio dos humanos sobre todas as outras formas de vida.

O avanço tecnológico cego pressupunha, também, que todas as culturas convergissem para uma só visão. Um projeto para o futuro precisa alterar esses termos e, sobretudo, fundar a relação com a natureza em outra base, inclusive fortalecendo as culturas que já a veem de uma forma não destrutiva.

Depreende-se daí que as fontes de inspiração para o futuro são a sustentabilidade, no campo econômico, e a diversidade, no campo cultural.

Isso não significa desprezar a tecnologia. Ao contrário, a tecnologia de informação é outra dimensão do presente e do futuro que tem de estar no centro de um projeto, ou algo parecido, para o País.

Em primeiro lugar, é por meio da tecnologia da informação que se vai avançar na produção das riquezas. Também por meio dela o Estado brasileiro pode se tornar mais barato e, simultaneamente, mais eficaz. Por meio dela a própria democracia pode se ampliar, com um governo inteligente que saiba reunir a cooperação coletiva.

A pandemia de covid-19 impulsionou essa tecnologia e mudou o panorama das grandes cidades. Ela possibilita a recuperação dos grandes centros urbanos para a moradia, uma vez que tornou obsoletos os grandes prédios de escritórios.

Da mesma forma que a pandemia impulsionou tendências já existentes, a guerra na Ucrânia torna urgente a superação da era dos combustíveis fósseis, abrindo caminho para as energias solar, eólica e o hidrogênio verde.

A covid-19 representou um trauma no processo de educação brasileiro. Ele é fundamental em qualquer projeto de país. A extrema-direita descartou o avanço digital. Por meio dele, é mais fácil transformar a educação num processo em que as pessoas consigam constantemente definir as habilidades para a realização de uma tarefa, encontrar os meios de acesso a essas habilidades. É o oposto da concepção militarizada de educação da extrema-direita.

Esses tópicos são interessantes porque mostram algo que relativiza a ideia de um projeto subjetivo. Basta apenas analisar o curso dos acontecimentos e avançar com eles. O fracasso do projeto iluminista de domar a natureza e transformá-la de acordo com a vontade humana transcende à polarização esquerda-direita. É um fenômeno praticamente universal. Um projeto brasileiro que estabeleça uma nova relação entre natureza e tecnologia pode ser a mensagem mais importante na nossa política externa.

Em primeiro lugar, é uma forma de se associar aos esforços planetários para atenuar a crise, estabelecer vínculos com os projetos de algumas grandes democracias ocidentais, como Estados Unidos e França, onde Biden e Macron parecem ver essa tarefa como central.

Pelas características brasileiras, pela riqueza de sua biodiversidade, o País teria condições de canalizar um grande investimento global. Isso é decisivo num momento em que se coloca em debate, também, a ideia de que o valor se resume à atividade humana.

De posse de seu grande tesouro, o País, com a maior biodiversidade do planeta, teria condições de iniciar um ciclo sustentável e direcionado para o futuro.

Isso não é um programa nem projeto de país. Mas tem uma ponta de ambição na medida em que trabalha com uma crítica civilizatória.

A ideia de Darcy Ribeiro de uma civilização dos trópicos sempre me pareceu um pouco romântica. No entanto, a preservação de culturas que rejeitam a destruição tecnológica ocidental e as mudanças na relação com a natureza, que, ao invés de ser violentada, é respeitada no seu curso, podem ser elementos de um pós-iluminismo, do início de uma nova era.

No entanto, mesmo sem formular um ambicioso projeto de país, é possível conversar um pouco sobre as possibilidades que se abrem.

São conversas preliminares. De nada adianta, também, formular um programa com a perspectiva apenas de tapar buracos, corrigir erros mais gritantes. É uma iniciativa respeitável, mas limitada.

São conversas vistas com ironia na política brasileira. Mas podem ser uma espécie de mensagem na garrafa quando o pragmatismo esbarrar em seus limites.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 13.05.22

Bruxelas alerta para as graves deficiências dos exércitos europeus face à capacidade de agressão da Rússia

A Comissão Europeia quer assumir a coordenação do rearmamento da UE para garantir que o maior investimento em defesa desde a Segunda Guerra Mundial seja eficiente

Exercícios da OTAN durante a Operação Lança de Ferro 2022, em 11 de maio no acampamento militar de Adazi (Letônia). (INTS KALNINS /REUTERS)

A Comissão Europeia fez um inventário das deficiências do investimento europeu na defesa e o resultado do exercício, ao qual o EL PAÍS teve acesso, revela uma situação de vulnerabilidade assustadora, sobretudo num cenário de guerra aberta como a provocada pela Rússia em 24 de fevereiro passado. O órgão presidido por Ursula von der Leyen insta os governos dos 27 Estados membros a fortalecer suas capacidades porque a agressão russa contra a Ucrânia "deteriorou substancialmente o cenário de segurança na União Europeia". Mas ele pede que seja feito de forma coordenada e exige a Bruxelas a tarefa de organizar e incentivar o rearmamento para garantir que as deficiências mais graves dos exércitos europeus sejam cobertas.

A defesa dos países europeus tem quase tantos calcanhares de Aquiles quanto soldados. A lista de deficiências, elaborada pelo braço executivo da UE a pedido do Conselho Europeu, inclui defesas aéreas para proteger cidades ou infraestruturas-chave de ataques de mísseis, drones de vigilância e aviões de combate, tanques ou forças navais. Somam-se a esta falta de armas de grande porte os obstáculos de mobilidade e logística, a ausência de uma rede de conectividade via satélite com cobertura europeia e criptografada, falhas na segurança cibernética ou falta de munição após envios de material para ajudar o exército ucraniano.

A minuta do documento da Comissão repete várias vezes que esta situação é insustentável em vista do "aumento das ameaças à segurança". E ele ressalta que a guerra do presidente russo Vladimir Putin contra a Ucrânia revelou "os efeitos negativos, não apenas de anos, mas décadas, de baixos gastos com defesa em tempos de paz".

Bruxelas calcula que as despesas europeias com a defesa, que rondavam os 200.000 milhões de euros por ano antes da guerra na Ucrânia, aumentarão cerca de 60.000 milhões por ano se os 21 países da União que pertencem à OTAN atingirem o objectivo de investir na defesa o equivalente a 2% do PIB. Em todo o caso, a Comissão dá como certo que “a Europa enfrenta o maior aumento das despesas militares nos Estados-Membros desde o final da Segunda Guerra Mundial”.

Mas a Comissão receia que esta volumosa injecção não atinja a sua plena eficácia se for feita à escala puramente nacional , com o risco acrescido de beneficiar indústrias não comunitárias se for feita sem dar prioridade ao desenvolvimento de projectos continentais. “Infelizmente, outros aumentos de gastos anteriores tiveram desempenho inferior a nossos aliados e, o que é muito pior, nossos rivais”, afirma o documento da comunidade, referindo-se a compras materiais do aliado dos EUA. O texto aponta como exemplo que em 2020, ano que já registrou expansão dos gastos militares, o investimento conjunto foi de apenas 11% , longe dos 35% que a UE estabeleceu como meta.

Von der Leyen apresentará ao Conselho Europeu, que realizará uma cimeira extraordinária no final deste mês e outra ordinária em junho, várias propostas para incentivar o desenvolvimento de uma política de defesa europeia e pôr fim à atual fragmentação e incentivar cooperação. Todos aspiram a dar a Bruxelas um papel central num campo como o militar, praticamente vetado até agora às instituições comunitárias e reservado exclusivamente aos governos nacionais ou a um organismo intergovernamental como a Agência Europeia de Defesa.

A Comissão, de acordo com a minuta do documento que será levado à cimeira, propõe estabelecer "uma série de instrumentos para rastrear, coordenar e incentivar uma abordagem conjunta no desenvolvimento, aquisição e propriedade ao longo de todo o ciclo de vida do equipamento de defender".

Para as necessidades mais urgentes, como reabastecer os estoques de munições esvaziados em parte para ajudar a Ucrânia, a Comissão está correndo para organizar compras conjuntas, como fez com as vacinas para a covid-19 e como quer fazer com o fornecimento de gás para o confronto com Moscou. Bruxelas acredita que isso evitaria "uma corrida de encomendas, que provocaria uma espiral [de subida] de preços e a impossibilidade de os Estados mais expostos obterem o material necessário", refere o referido documento.

Mas as propostas de Bruxelas também incluem mudanças de longo alcance e longo prazo, destinadas a transformar radicalmente a política de defesa nacional e, incidentalmente, acelerar a integração das indústrias de armas da UE. "A compra conjunta [de armas] deve se tornar a norma em vez de ser a exceção", afirma a Comissão. E destaca que uma integração tanto da demanda quanto da oferta traria retornos econômicos importantes para os Estados.

A integração, segundo Bruxelas, seria incentivada por incentivos econômicos comunitários. A Comissão propõe abolir a regra que impede o Banco Europeu de Investimento (BEI) de financiar o setor da defesa. O recém-criado fundo europeu de defesa, dotado de 8.000 milhões de euros até 2027, também deve ser ampliado e reformado para poder financiar todas as fases do ciclo de produção de armas e não apenas, como é o caso agora, até a fase de protótipo.

O órgão comunitário sugere ainda uma renegociação dos orçamentos comunitários para o período 2021-2027, acordado na cimeira de julho de 2020 que criou o fundo de recuperação contra as consequências económicas da pandemia. O objetivo dessa revisão do orçamento é aumentar significativamente o fundo de defesa. Bruxelas acredita, segundo o texto, que esse debate “pode surgir como resultado de uma discussão mais ampla sobre as consequências do ataque da Rússia à Ucrânia”.

BERNARDO DE MIGUEL, de Bruxelas, em 13.05.22 para o EL PAÍS. 

Urina pode ser alternativa a fertilizantes convencionais?

Em meio a preocupações com escassez e alta de preços devido à guerra na Ucrânia, cientistas apontam que xixi tem potencial para substituir adubos sintéticos. E já existem tecnologias para a reciclagem do "ouro líquido".

Granulados de urina desenvolvidos na Suécia são semelhantes a adubos tradicionais (Foto: Sanitation 360)

A cidade de Brattleboro, no estado americano de Vermont, ficou conhecida por um curioso concurso: de quem doa a maior quantidade de xixi. A cada ano, cerca de 200 participantes entram na competição. O evento é organizado pelo Rich Earth Institute, uma ONG local que pasteuriza as doações e as distribui entre fazendas da região para substituir fertilizantes sintéticos.

A urina contém nitrogênio, fósforo, potássio e micronutrientes que ajudam as plantas a crescer. Geralmente, porém, o xixi costuma ser descartado. Devido a essas propriedades, o instituto instalou na casa dos voluntários vasos sanitários que separam a urina para que ela possa ser bombeada e transportada para onde for necessária.

"Os voluntários têm muito orgulho do que estão fazendo. Eles veem isso como uma forma de reciclagem", conta Abraham Noe-Hays, diretor de pesquisa do instituto.

Aumento da resiliência de sistemas alimentares

Não é apenas a cidade de Brattleboro que transforma xixi em adubo. Uma subsidiária do Rich Earth Institute está desenvolvendo um sistema de coleta de urina voltado para expandir o programa para outras regiões.

Em países como Suécia, França, Alemanha, África do Sul e Austrália, outras organizações trabalham para reaproveitar os dejetos humanos a fim de reduzir a dependência de fertilizantes tradicionais, que representam um conjunto de desafios ambientais e econômicos.

Fertilizantes sintéticos de nitrogênio, por exemplo, poluem lençóis freáticos, além de impulsionar as mudanças climáticas. A produção e o uso desse tipo de adubo são responsáveis por 2,4% das emissões globais, segundo um estudo de 2021.

As reservas globais de fósforo também estão diminuindo. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia – um grande exportador de fertilizantes –, agricultores de todo o mundo enfrentam escassez desses produtos e uma explosão dos preços.

Segundo Prithvi Simha, químico da Universidade Sueca de Ciências Agrícolas (SLU), há muito cientistas já apontam para os recursos encontrados em dejetos humanos para reduzir a dependência.

"Quando há um choque na cadeia de abastecimento, como cultivamos alimentos? Ao reciclar urina, aumentamos a resiliência do nosso sistema alimentar", destaca.

Cerca de um terço de todo o nitrogênio e fósforo usados na agricultura global pode ser substituído pelos nutrientes obtidos na urina, diz Simha. Essa parcela aumenta bastante em países como Uganda e Etiópia, onde a população é grande e poderia fornecer urina e não são usados adubos sintéticos devido ao alto custo.

"Ouro líquido"

Simha faz parte de uma equipe de pesquisadores que desenvolveu um método para transformar urina em um fertilizante sólido, que se parece com granulados sintéticos usados na agricultura.

A empresa Sanitation 360, ligada à SLU, equipa vasos sanitários com um coletor que alcalina a urina. O processo permite que os nutrientes que ela contém permaneçam estáveis enquanto um ventilador faz a água evaporar, restando no fim apenas um pó seco.

"Há muita química complexa por trás de como chegamos lá, mas na realidade é muito simples de implementar. É por isso que funciona no mundo todo", diz Simha.

A Sanitation 360 possui uma cooperação com empresas que alugam banheiros químicos. Com isso, ampliou de 1,5 mil litros para 25 mil litros a coleta de urina, e estima coletar 250 mil litros no próximo ano. O fertilizante obtido é usado em plantações de cevada na Suécia. Simha ressalta que a cerveja feita com essa cevada tem exatamente o mesmo sabor do que qualquer outra cerveja.

Para se tornar popular, o adubo de urina precisa ser capaz de competir com os fertilizantes sintéticos produzidos em massa. Isso envolve a certificação por reguladores nacionais, pois, em alguns países, o xixi separado na fonte ainda é considerado esgoto. Também é necessário ampliar o acesso a tecnologias e equipamentos. O vaso separador de urina é uma peça fundamental desse processo.

Separar antes da reciclagem

Para ser utilizada como adubo, a urina precisa ser separada das fezes e da água do vaso sanitário. Vasos sanitários destinados a essa finalidade coletam o resíduo líquido em um reservatório na parte da frente. Esses modelos foram inicialmente desenvolvidos para reduzir a poluição da água. A urina representa apenas 1% das águas residuais nas estações de tratamento da Europa, mas é a principal fonte de nutrientes, como o nitrogênio, que poluem rios e lagos.

Vaso sanitário da Sanitation 360 possui sistema para secar a urinaFoto: Sanitation 360

Um dos maiores desafios dos vasos separadores de urina é o fato de eles serem considerados inviáveis no uso e produção, segundo a química Tove Larsen, do Instituto Federal Suíço de Ciência e Tecnologia Aquática. Mas um novo modelo, desenvolvido onde a pesquisadora trabalha em parceira com a empresa Laufen, pode mudar isso.

Esse modelo é baseado no "efeito bule". O patamar frontal é fabricado numa forma que permite que a urina escoe por um orifício separado – parecido com o chá que sai pela parte externa do bule quando este está num ângulo determinado.

A descarga também é projetada para limpar o patamar frontal com o mínimo de água, o suficiente apenas para remover odores. Segundo Larsen, a grande vantagem dessse modelo é que pode ser fabricado e usado como qualquer vaso sanitário de cerâmica.

Por enquanto, apenas alguns edifícios ao redor do mundo possuem esse sistema. Cientistas, no entanto, esperam que, à medida que essas tecnologias se espalhem lentamente, a reciclagem do "ouro líquido" seja tão fácil para todos quanto se sentar e fazer xixi.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.05.22

Streck: O mundo é um lugar muito mais feliz quando você é estúpido

O neurologista e pesquisador químico na Companhia Sleepthinker, Cornelius Grouppe, já em 2013 fazia um interessante anúncio, que se antecipa à crescente simplificação TikTok e quejandices (aqui a lista é longa). Cornelius é, assim, um visionário de tiro curto. Mas certeiro. 

E assista ao vídeo original (em inglês):

Dizia, já então[1] (leiam a NR):

— Você já percebeu o quanto é cercado de idiotas?

— Se não percebeu, você pode ser uma delas. Neste caso você pode parar por aqui e seguir com a sua vida. E não se fala mais nisso.

— Ah, percebeu? Muito bem. Então sigamos.

— Não é segredo que burros e néscios são a maioria na população mundial. Eles certamente não vão ficar mais inteligentes, ou começar a agir racionalmente. Não há chance de melhora.

— Por isso, se você quiser entrar para a maioria, é você quem tem de mudar. Para isso, desenvolvemos uma pílula que, dependendo da concentração do princípio ativo, pode reduzir o QI de uma pessoa permanentemente. Nós temos pílulas de -10, -30 e a mais forte -50. Mas porque você pensaria em diminuir o seu QI?

— Simples. Porque a vida é mais fácil e o mundo é um lugar muito mais feliz quando você é burro. Se você for da área jurídica, então...

— Se você quer ser maioria, recomendamos diminuir o seu QI para aproximadamente 70. Mas não se preocupe. Tudo vai ficar bem. Com um QI de 70, você ainda consegue amarrar os sapatos e escrever uma letra de rap comum ou ser compositor de música de sofrência sertanejo-universitária. E se dar bem fazendo comentários em sites, esculhambando com quem lê livros. E postar piadas sobre políticas de distribuição de absorventes. Além de fazer discurso nas redes dizendo que urnas eletrônicas são uma fraude. Pode escrever "testos" (com "s") em favor da intervenção militar. E poderá facilmente, é claro, ser influencer. Afinal, você conhece algum influencer com QI acima de 70? Sim? Que bom. Para você. Falando claramente: a pílula alivia a sua mente. Mas é preciso reprogramar.

— Então depois de tomar a pílula, você passa o resto do dia ouvindo músicas do Amado Batista, do Gustavo Lima e do DJ Pitbull, enquanto lê e repassa fake news nos seus grupos de WhatsApp e, de quebra, dá uma boa expiada no mais recente reality show tipo "surviver". E passa achar o "veio da Van" o maior patriota. E zapeia em alguns programas que falam sobre "fofocas de ex-integrantes-de-reality". Será o máximo! Depois você toma um banho quente, lê o J.R. Guzzo, posta suas xingações ao STF, vai dormir e no dia seguinte acorda mais burro do que era antes. É o nirvana.

— Autoconsciência, decência, falta de confidência e até medo deixarão de existir. Vida nova! Pule do teto, dirija bêbado (afinal, você é livre!), pregue o AI-5, elogie Ustra e diga, com orgulho "sou negacionista". E diga que o camarão mais barato e mais gostoso (embora atulhado de molhos e custando uma fortuna) é do Coco Bambu. Claro, se você for rico. Se for pobre, bom, aí a coisa aperta... Nem saberá do que se está falando. De todo modo, todas essas atividades sem sentido e perigosas — que você nunca tentou até agora — vão se tornar muito agradáveis e divertidas.

— Infelizmente, há um efeito colateral que eu devo mencionar. Todas as pessoas que você desconhece vão começar a provocar-lhe irritação. Pessoa de outras raças, outras orientações sexuais, pessoas que escrevem frases longas. Pessoas que leem livros... serão odiadas por você. Basicamente qualquer um diferente de você.

— Mas o lado bom é que você não terá que odiá-las sozinho. Você fará muitos amigos que pensam igual. Muitos. E dirá: "você me representa"! E pode correr para a academia ficar bombadão. E poderá se eleger a um cargo. E aumentará os seus grupos de redes sociais. Poderá competir com Zambeli. Porque você estará na maioria. Pense nisso. O mundo é muito melhor quando você não é muito esperto para ele.

Pronto. Fim do tutorial.[2] Deixe seu laique!

[1] Faço pequenas adaptações. Em homenagem a imensa legião das gentes do direito macdonaldizado.

[2] Por via das dúvidas, aviso que o anúncio do cientista é uma broma. Vai que as pessoas pensem que as pílulas existem, mesmo... De todo modo, dado o nível da jusmacdonaldização, as pílulas são despiciendas. Existe a nesciedade adquirida sem exigir esforços.

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados. Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, em 12.05.22

quinta-feira, 12 de maio de 2022

É do TSE a palavra final sobre eleição

A sociedade precisa superar a falácia da ‘insegurança’ das urnas eletrônicas. O TSE já demonstrou que o processo eleitoral é limpo. O resto é desinformação ou má-fé

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez uma deferência às Forças Armadas ao convidá-las a indicar representante para compor a Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) da Corte e ao responder às dúvidas levantadas por alguns militares acerca da segurança das urnas eletrônicas. A rigor, não precisava nem deveria, pois as Forças Armadas não existem para validar o processo eleitoral e, ademais, não há qualquer dado objetivo que justifique a desconfiança no sistema por meio do qual o País escolhe seus representantes há 26 anos, sem a ocorrência de fraudes. Referência internacional em segurança, eficiência e rapidez na realização de eleições, o sistema eleitoral brasileiro é motivo de orgulho, não de suspeição.

Como o Estadão revelou há poucos dias, as Forças Armadas fizeram 88 questionamentos ao TSE sobre o processo eleitoral nos últimos oito meses, e 81 já tinham sido respondidos e divulgados. No dia 9 passado, a equipe técnica da Corte respondeu às sete dúvidas remanescentes. Em detalhado ofício às Forças Armadas, os técnicos do TSE esclareceram, uma por uma, as suspeitas de “fragilidade” das urnas eletrônicas e outras “vulnerabilidades do processo eleitoral” apontadas pelos militares. É assim que se combate a desinformação.

Muitas das suspeitas enumeradas pelos militares, de acordo com os especialistas do TSE, são apenas “opiniões” e provêm de “equívocos” e “erros de premissa”, como, por exemplo, acreditar que a totalização dos votos de todo o País é feita em uma “sala escura” em Brasília, também chamada de “sala secreta” pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Trata-se de uma mentira difundida por Bolsonaro com o evidente propósito de provocar falsas dúvidas nos eleitores quanto à lisura do processo eleitoral. Do presidente, seria ocioso esperar comportamento diferente. É lamentável, no entanto, que alguns militares se prestem ao papel de fiadores desse ardil.

“Não há, com o devido respeito, uma ‘sala escura’ de apuração”, responderam os técnicos do TSE. “Os votos digitados na urna eletrônica são imediatamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar, em todos os pontos do País”, diz trecho do documento enviado pela Corte às Forças Armadas. “É impreciso afirmar que os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) não participam da totalização. Muito pelo contrário, os TREs continuam comandando as totalizações em suas respectivas unidades da Federação.”

Isso é tão verdadeiro que nem é preciso ir tão longe na história das urnas eletrônicas. Nas eleições municipais de 2020, quando o TSE enfrentou problemas técnicos que causaram atraso na divulgação da totalização dos votos, muitos candidatos a prefeito Brasil afora já comemoravam sua eleição porque contabilizaram os votos recebidos com base nos boletins de urna em seus respectivos municípios. Superado o problema que causou a lentidão, o TSE confirmou os mesmíssimos resultados, como era esperado.

Lá se vão quase quatro décadas desde que o processo eleitoral – do início ao fim – passou a ser uma responsabilidade intransferível de autoridades civis do País. E, em todo esse tempo, nunca houve problemas graves o bastante para justificar a mais tênue desconfiança sobre a lisura dos resultados das urnas.

A participação institucional dos militares na realização das eleições limita-se ao transporte das urnas até localidades remotas do País. Por si só, isso já é uma contribuição inestimável das Forças Armadas à democracia, pois garante que todos os brasileiros, sem exceção, exerçam seu direito ao voto.

Respondidas as dúvidas levantadas pelas Forças Armadas, a sociedade deve superar esse falso debate em torno da segurança das urnas eletrônicas. Convém lembrar que a Polícia Federal, analisando inquéritos abertos desde 1996, jamais encontrou indícios de fraudes na votação eletrônica. Ademais, e sobretudo, é do TSE a palavra final sobre eleições no País. E a Corte já se pronunciou. Basta de dar trela aos arautos do caos. Só eles ganham com a confusão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12.05.22

EUA superam marca de um milhão de mortes por Covid-19

País detém o recorde mundial de vítimas fatais na pandemia. Presidente Joe Biden pede que norte-americanos sigam 'vigilantes'.

Os Estados Unidos superaram nesta quinta-feira (12) a sombria marca de mais de um milhão de pessoas mortas por causa da Covid-19, segundo informou a Casa Branca.

Em comunicado, o presidente do país, Joe Biden, pediu aos norte-americanos que continuem "vigilantes" e lamentou as mortes.

"Nós devemos permanecer vigilantes contra esta pandemia e fazer tudo para salvar o maior número possível de vidas, como fizemos com mais testes, vacinas e tratamentos do que nunca antes", afirmou o presidente.

"Hoje, chegamos a um trágico marco: um milhão de vidas americanas perdidas para a Covid-19. Um milhão de cadeiras vazias ao redor da mesa de jantar. Cada uma delas uma perda irreparável. Cada uma delas deixando para trás uma família, uma comunidade, e uma nação que mudou para sempre por causa dessa pandemia. Jill (Biden, sua mulher) e eu rezaremos por cada uma delas", continua o comunicado.

Os EUA detêm o recorde mundial de mortes por Covid-19. No mundo inteiro, mais de 6,2 milhões de pessoas perderam a vida por conta da doença, segundo a universidade Johns Hopkins, que monitora os casos em tempo real desde o início da pandemia. No entanto, na semana passada, a Organização Mundial da Saúde disse que a contagem oficial está defasada, e o balanço total pode beirar as 15 milhões de vítimas fatais.

Coreia do Norte

Também nesta quinta-feira (12), a Coreia do Norte confirmou o primeiro caso Covid-19, que até hoje afirmava não haver infectados dentro do país.

Agora, o governo declarou o primeiro surto do país e uma "grave emergência nacional", o que levou o líder norte-coreano, Kim Jong Un, a ordenar confinamento no país inteiro.

Publicado originalmente por g1, em 12.05.22

Metade dos primeiros hospitalizados por coronavírus ainda apresentam sintomas dois anos depois

O acompanhamento de mil pacientes em um hospital de Wuhan mostra a persistência das sequelas da covid

Admissão de um dos primeiros infectados com coronavírus no hospital Jin Yintan em Wuhan, China, em 17 de janeiro de 2020. Até então, apenas duas pessoas haviam morrido.WANG HE (GETTY IMAGES)

55% dos primeiros infetados com o coronavírus que tiveram de ser hospitalizados continuam, dois anos depois, com um ou mais sintomas de covid. O acompanhamento dos infectados no início da pandemia em Wuhan (China) mostra, no entanto, que o número e a intensidade dos problemas melhoraram. No topo da lista está a fadiga ou fraqueza muscular, problemas de sono e perda de cabelo. Entre 12 e 24 meses, o estudo detectou reativação da maioria das sequelas.

Com o passar do tempo e muitas pessoas se recuperando da covid, cresceram as evidências de que muitas delas foram curadas, mas não se recuperaram . Sem nenhum vestígio do coronavírus em seu corpo, eles relataram dezenas de sintomas diferentes de que ele estava lá. Da perda do olfato ao nevoeiro mental, passando por palpitações ou dores nas articulações, muitos dos afetados estavam moldando o que hoje é chamado de síndrome covid persistente. Embora muito se saiba sobre esta pintura, a questão do tempo ainda precisa ser esclarecida: quanto tempo dura? Quando os problemas desaparecem? Por que alguns ficam e outros não?

Pesquisadores de várias instituições científicas chinesas acompanham a evolução de várias centenas de pessoas que foram infectadas nos primeiros meses de 2020 desde o início da pandemia. foram entrevistados, submetidos a vários testes físicos e até tiveram seus pulmões ou cérebros escaneados. Os acompanhamentos foram feitos seis meses após a alta e aos 12 meses . Agora, a revista médica The Lancet Respiratory Medicine publica os resultados das visitas feitas aos 24 meses. É, portanto, o trabalho que tem ido mais longe e que permite uma boa caracterização do que é o covid persistente.

“Embora possam ter eliminado a infecção inicial, um certo número de sobreviventes de Covid que foram hospitalizados precisa de mais de dois anos para se recuperar totalmente” Bin Cao, professor do Hospital da Amizade China-Japão e chefe do estudo de Wuhan

O professor Bin Cao, do Hospital de Amizade China-Japão, com sede em Pequim, é o principal autor deste acompanhamento. Em nota, diz: “Nossas descobertas indicam que, embora possam ter eliminado a infecção inicial, um certo número de sobreviventes de Covid que foram hospitalizados precisa de mais de dois anos para se recuperar totalmente”. Especificamente, dos quase 1.200 que participaram do estudo todo esse tempo, 68% tiveram pelo menos um sintoma 18 meses após a alta. O percentual caiu para 49% no final do ano, mas voltou a subir para 55% na última revisão, em 24 meses.

Para covid persistente, já foram descritos mais de 200 sintomas ou sequelas. No caso desta amostra de Wuhan, todas afetadas pela variante Alpha do coronavírus, um terço dos entrevistados sofria de fraqueza ou fadiga muscular, 25% tinham algum distúrbio do sono e 12% sofriam de perda total ou parcial do sono. cabelo. Entre os 10 sintomas mais comuns, e todos abaixo de 10% dos casos, estão também distúrbios do olfato ou paladar, dores nas articulações, palpitações, tonturas ou mialgias. Embora a covid seja uma doença causada por um vírus respiratório, o único sintoma relacionado notável na lista é a dor no peito. Na maioria dos casos, dois ou mais problemas ocorrem simultaneamente.

O acompanhamento mostra que, com poucas exceções, a maioria dos sintomas desaparece com o passar do tempo. Por exemplo, mais da metade dos estudados teve fraqueza muscular aos seis meses, uma porcentagem que cai para metade aos 24 meses. Reduções semelhantes ocorrem com problemas de cabelo e cheiro. Mas há outras sequelas que aumentam entre a primeira revisão e a segunda. Assim, o percentual de pessoas com distúrbios do sono permanece o mesmo, em torno de 25% dos entrevistados. E há outros sintomas, como mialgia ou tontura que, embora com números iniciais baixos, são duplicados.

Esses aumentos não preocupam Joan Soriano, epidemiologista do Serviço de Pneumologia do Hospital Universitário de La Princesa, em Madri, que liderou o grupo de especialistas internacionais que concordou com a Organização Mundial da Saúde na primeira definição de covid persistente.. "Essas inconsistências nas tendências são comuns em estudos de acompanhamento, porque alguns pacientes mudam para melhor ou pior entre as entrevistas, e os questionários são administrados por pessoas e métodos diferentes", diz ele. Sobre os resultados em si, comenta que “em Espanha estamos a ver praticamente a mesma coisa”. Aqui, “fadiga, falta de ar e problemas cognitivos (nevoeiro cerebral) são os três mais frequentes”, acrescenta. Para Soriano, é importante notar que toda essa lista de sintomas se repete com outras variantes do SARS-CoV-2, já que “este estudo chinês se refere apenas à variante Alpha”.

“Existem outros vírus respiratórios que apresentam sintomas subsequentes que duram três, quatro ou cinco meses. Havia esperança de que o coronavírus se comportasse assim e não está fazendo isso. "Pilar Rodríguez Ledo, vice-presidente e chefe de pesquisa da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família

A Dra. Pilar Rodríguez Ledo, vice-presidente e chefe de pesquisa da Sociedade Espanhola de Médicos Gerais e de Família (SEMG), é cautelosa ao extrapolar os resultados deste estudo para a situação em outros países, como a Espanha. "Primeiro, porque são pacientes da primeira onda com alta carga viral e poucas defesas", diz. Além disso, há o fator cultural. Muitos dos sintomas são auto-relatados e podem variar entre pessoas de diferentes culturas de trabalho. Por exemplo, apesar de seus problemas de saúde, 98% dos investigados no hospital Wuhan retornaram ao trabalho pré-pandemia. "Mas esse trabalho é muito valioso: além das sequelas de uma doença aguda grave, aparecem sintomas que se mantêm ao longo do tempo", comenta.

Ao longo deste artigo, os termos sequelas e sintomas foram usados ​​como sinônimos, quando na verdade não são. O dicionário da Royal Academy of Language considera as primeiras consequências de uma doença e as segundas como manifestações de uma patologia. Rodríguez Ledo fala das primeiras como “cicatrizes, sintomas posteriores de uma lesão orgânica”. Mas aqui o que há é “uma persistência dos sintomas na ausência daquela lesão, mas são uma condição limitante. Com o coronavírus eles se misturam.”

Quando esses sintomas ou sequelas desaparecerão? É a pergunta feita por muitos dos afetados. Os autores do estudo não têm a resposta. Mas eles trazem à mente o caso da epidemia de SARS de 2002. Então, um acompanhamento semelhante mostrou que a fadiga crônica continuou quatro anos após a cura. “Existem outros vírus respiratórios que apresentam sintomas subsequentes que duram três, quatro ou cinco meses. A diferença é que eles são autolimitados no tempo, desaparecem depois de alguns meses”, lembra o gerente de pesquisa da SEMG. “Havia esperança de que o coronavírus se comportasse assim e não é. Sim, há remissão, mas também pode ser uma mera adaptação à nova situação e é muito difícil chamar-lhe cura”, conclui.

Miguel Angel Ressuscitado, o autor desta reportagem, é Jornalista. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 12.05.22.

Quando foi que se perdeu o respeito pela Justiça no Brasil?

Para muitos, a Justiça brasileira morreu quando o STF se recusou a julgar o mérito do impeachment de Dilma e nada foi feito contra as bravatas do então deputado Bolsonaro, plantando a semente de ameaças às instituições

"As instituições não reagiram às injúrias e bravatas de Bolsonaro e agora serão desafiadas repetidamente por pessoas como o deputado Daniel Silveira, que provoca as autoridades sem medo de consequências"Foto: Lucas Landau/REUTERS

O deputado Daniel Silveira e apoiadores de Bolsonaro em manifestação em Copacabana, em 1 de maior de 2022O deputado Daniel Silveira e apoiadores de Bolsonaro em manifestação em Copacabana, em 1 de maior de 2022

"Na Justiça, no Senado, bravata pra todo lado, ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação..."

Duvidar do processo eleitoral sem apresentar ou ter provas de falhas é brincar com fogo. E parece que há muita gente querendo botar fogo nas instituições. Estão buscando o caos para quê? São anarquistas raiz vestidos de direitistas "Nutella"?

Apesar de até agora não haver evidências, Jair Messias Bolsonaro fala há anos sobre supostas falhas nas urnas eletrônicas brasileiras, sem nunca apresentar provas. Ao questionar o processo eleitoral, o presidente brinca com a ameaça de um golpe, seguindo os roteiros escritos por seu ídolo Donald Trump.

Nos últimos dias, viu-se uma troca de notas entre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as Forças Armadas, com os militares usando argumentos e premissas que não correspondem aos fatos. Eles falaram numa suposta "sala escura" onde os votos seriam apurados e pediram uma contagem paralela dos votos controlada pelas Forças Armadas, algo que foi defendido por Bolsonaro.

Tudo isso foi muito longe, longe demais, até o TSE decidir dar um basta no começo desta semana. Um basta que veio tarde, pois, quando pessoas respeitadas como os militares começam a levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, corroem a democracia brasileira e suas instituições – que são difíceis de construir, mas fáceis de danificar.

Nos Estados Unidos, as Forças Armadas deixaram claro que não fariam parte de um eventual golpe de Trump depois das eleições. Os militares americanos conhecem o próprio papel, as próprias limitações e atribuições, o seu lugar. Não sonham com aventuras autocratas. Tudo isso são fatores que, com certeza, contribuíram para que a transição do poder para Joe Biden se concretizasse. É importante ter adultos em casa quando as crianças brincam com palitos de fósforo.

Semente das ameaças

Mas, afinal, quando foi que a Justiça brasileira começou a ser colocada contra a parede?

Lembro-me dos processos do Mensalão, com brigas e bate-bocas homéricos entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), tudo transmitido ao vivo pela televisão. E com ministros trocando acusações até em entrevistas e nas redes sociais. O mesmo se repetiu nos processos do Petrolão. Na época, muita gente achou ótimo transmitir tudo isso ao vivo, como uma lição educativa para o público.

Aí veio o impeachment de Dilma Rousseff. Que pode até ter seguido as regras do jogo ao pé da letra constitucional. Mas que foi marcado pela rejeição do STF em julgar o mérito do impeachment. Para muitos, a Justiça brasileira morreu aí.

Somam-se a isso as palavras de Bolsonaro na votação do impeachment na Câmara, no dia 17 de abril de 2016: "Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff!"

Não houve quebra de decoro parlamentar? Nada aconteceu. Bolsonaro recebeu carta branca para suas injúrias e bravatas. E aí foi plantada a semente das ameaças ao Judiciário e às instituições.

As instituições não reagiram e agora serão desafiadas repetidamente por pessoas como o deputado Daniel Silveira, que provoca as autoridades sem medo de consequências. Perdeu-se o respeito e o medo da Justiça. E, com isso, há cada vez mais sapos a serem engolidos.

E agora? Como consertar?

Thomas Milz, o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 11.05.22. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Prescrição intercorrente, ressarcimento ao erário e dolo nas ações de improbidade

 A Lei Federal nº 14.230, publicada no dia 25 de outubro de 2021, trouxe profundas alterações ao regime sancionador de improbidade. 

Dentre as inovações, impende destacar o incremento do instituto jurídico da prescrição intercorrente, que passou a ser previsto no artigo 23, § 5º, da Lei n. 8.429/92. 

Leia aqui o artigo de Rafael Araripe Carneiro e Leonardo Dantas da Nóbrega Ruffo.

Até então, por ausência de previsão legal a jurisprudência entendia não ser possível a decretação da prescrição intercorrente em ações de improbidade (STJ, REsp nº 1.289.993/RO, relatora ministra Eliana Calmon, DJe 26/9/2013; REsp nº 1.142.292, relator ministro Herman Benjamin, DJe 16/3/2010; dentre outros). Agora, por força da novel previsão legal a inércia do titular do direito pode resultar na perda da pretensão punitiva, reconhecível inclusive de ofício. De acordo com o novo regramento, o prazo de consumação da prescrição intercorrente é de quatro anos, a ser contado a partir da data em que for interrompido o prazo prescricional, sempre em observância aos marcos interruptivos incorporados ao rol do § 4º do artigo 23.

Por outro lado, cabe lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF), em agosto de 2018, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 852.475/SP – Tema 897, assentou que são consideradas "imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa". Em apertada maioria (6 a 5), a corte entendeu que o artigo 37, § 5°, da Constituição impõe a imprescritibilidade das ações cíveis de recomposição do erário por improbidade dolosa.

Parece não haver dificuldades em se afirmar que a interpretação dada pela Suprema Corte ao artigo 37, § 5°, da Constituição igualmente deve se aplicar às hipóteses de prescrição intercorrente. Com efeito, não há motivo para ressalvar essa modalidade prescricional da exegese do texto constitucional adotada pelo STF. Logo, a pretensão de ressarcimento ao erário não será atingida pela prescrição, inclusive intercorrente, quando decorrente de ato doloso de improbidade.

Interessante notar, nesse contexto, que após o julgamento do Tema 897, o elemento subjetivo (dolo) passara a ser elemento central no exame da imprescritibilidade das ações de ressarcimento. É que, naquela oportunidade, o STF consignou que só poderiam ser consideradas imprescritíveis as ações fundadas em ato de improbidade na forma dolosa. Nesse sentido, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou, durante o julgamento, ser necessário "cingir a imprescritibilidade do ressarcimento às hipóteses de dolo e excluir as hipóteses de culpa, em que, por uma falha humana, não intencional, se tenha eventualmente causado um prejuízo ao Erário".

Por sua vez, a recente Lei nº 14.230/2021 pôs fim à modalidade culposa por improbidade, outrora permitida para a hipótese de lesão ao erário. O atual diploma legal exige o dolo para a configuração da improbidade em qualquer de suas modalidades, sem exceção. Com isso, o exame do elemento subjetivo deixa de ser relevante para a aplicação do Tema 897 do STF no âmbito de vigência da nova lei, dado que somente haverá improbidade se houver dolo.

Não se pode olvidar, contudo, que permanece a controvérsia a respeito da retroatividade da nova lei. Para essa perspectiva pretérita, cabe destacar que os contornos para a aferição do dolo foram significativamente modificados e podem repercutir na análise da imprescritibilidade das ações de ressarcimento. No ponto, mister rememorar que o entendimento jurisprudencial estabelecido sob a égide da Lei nº 8.429/92 era de que o dolo genérico seria suficiente para a configuração da improbidade (STJ, AgInt no REsp nº 1.590.530/PB, relatora ministra Herman Benjamin, DJe 6/3/2017).

Já a Lei n. 14.230/2021 estabeleceu, no artigo 1º, § 1º, que "considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". Passou-se a exigir, portanto, o dolo específico, isto é, a comprovação da livre e consciente do réu em alcançar determinados resultados ilícitos. Em sentido similar, Teori Zavascki há muito defendia que no sistema de improbidade devem ser observados, mutatis mutandis, os mesmos padrões conceituais que orientam o sistema penal, fundados na teoria finalista, segundo a qual a vontade constitui elemento indispensável à ação típica de qualquer crime. No crime doloso, afirmava o ministro, a finalidade da conduta é a vontade do concretizar um ilícito (vontade de resultado).[1]

À luz de tais ponderações, para que seja configurado o dolo na nova sistemática da improbidade revela-se necessário a comprovação inequívoca, mediante elementos de prova robustos e idôneos, de condutas praticadas pelo réu, imbuídas de má-fé e desonestidade, que objetivem, ardilosa e de forma livre e consciente, o alcance de resultados ilícitos, visando deliberadamente obter vantagens e benefícios de cunho pessoal, seja para si ou para terceiras pessoas de seu ciclo pessoal ou profissional.[2]

Nesse contexto, em boa hora o STF afetou o ARE nº 843.989/PR como Tema nº 1.199 para julgar, em sede de repercussão geral, sobre a aplicação ou não, em caráter retroativo, i) dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente em ações de ressarcimento fundadas na prática de ato de improbidade; e ii) dos inovadores parâmetros do elemento subjetivo (dolo) para a caracterização de ato ímprobo. A escolha da Corte em examinar conjuntamente a retroatividade das novas regras prescricionais com a retroatividade dos recentes critérios para a aferição do dolo foi acertada, porquanto ambos os temas repercutem com relevância nas ações de ressarcimento por improbidade.

[1] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 109.

[2] Nessa linha, em recente decisão datada em 25 de março de 2022, o e. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no âmbito do processo n. 0004573-61.2011.4.01.4000, consignou que “a improbidade administrativa não pode ser confundida com mera ilegalidade ou inabilidade do agente público. É dizer, nem toda ilegalidade ou deficiência formal traduz um ato ímprobo, assim entendido aquele que carrega a marca imprescindível do propósito malsão, da desonestidade e deslealdade funcional no trato da coisa pública. Em outras palavras, não há improbidade sem desonestidade. Muito embora todo ato ímprobo seja um ato ilícito, “nem todo ilícito ou irregularidade constituem atos de improbidade”.

Rafael Araripe Carneiro é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim, professor e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Improbidade Administrativa do IDP. Sócio-fundador do Carneiros & Dipp Advogados.

Leonardo Dantas da Nóbrega Ruffo é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela PUC-MG, sócio-fundador do escritório Leonardo Ruffo Advocacia.

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2022