terça-feira, 10 de maio de 2022

O que há de verdade no discurso de Putin no Dia da Vitória

Ameaça nuclear pela Ucrânia? Invasão da Crimeia? Neonazistas no poder em Kiev? Otan surda? Fala do presidente russo no 9 de Maio conteve velhas e novas acusações. DW checou os fatos: a maioria é falsa. 

O presidente russo, Vladimir Putin, após parada militar pelo Dia da Vitória em Moscou, em 9 de maio de 2022O presidente russo, Vladimir Putin, após parada militar pelo Dia da Vitória em Moscou, em 9 de maio de 2022

Durante a parada militar por ocasião do 77º aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista, falando da Praça Vermelha de Moscou, o presidente russo, Vladimir Putin, levantou acusações sérias contra a Ucrânia e o Ocidente. A equipe de checagem de fatos da DW examinou algumas assertivas centrais desse discurso.

Ucrânia não busca armamento nuclear

Alegação: "Em Kiev foi anunciada a possível aquisição de armas atômicas. O bloco da Otan começou a ampliar ativamente o potencial militar dos territórios fronteiriços com o nosso", declarou Putin.

Verificação da DW: Falso

Putin aparentemente se refere ao discurso do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, durante a Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2022.

Lá ele mencionou o Memorando de Budapeste de 1994, que garante a inviolabilidade das fronteiras da Ucrânia, Belarus e Cazaquistão perante os países signatários. Além dos Estados Unidos e do Reino Unido, a Rússia reconheceu aí as fronteiras ucranianas. Em troca, Kiev entregou as armas nucleares herdadas da União Soviética ou, em parte, as destruiu.

Na Conferência de Munique, Zelenski sugeriu que poderia se retirar do Memorando, uma vez que a soberania ucraniana foi violada com a anexação da península da Crimeia por Moscou, em 2014.

Do ponto de vista jurídico, tal passo seria relativamente sem consequências, pois o acordo de Budapeste não se refere ao armamento atômico – que é tema do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado no mesmo ano pela Ucrânia. Além disso, não há provas de qualquer tentativa ilícita, ou sequer de planos do país de obter esse tipo de armamento. Portanto a alegação de Putin é falsa.

Seu comentário sobre novas infraestruturas militares da Otan perto das fronteiras russas é enganosa. A aliança militar internacional, de fato, reforçou sua presença no Leste Europeu, porém respeitando as condições acordadas no Ato Fundador entre a Rússia e a Otan, de 1997, em Paris.

Ucrânia não se prepara para retomar territórios e não está super-armada

Alegação: Putin insistiu que a guerra seria "preventiva": antes, a Ucrânia teria se preparado abertamente para uma nova "mobilização no Donbass" e "invasão de territórios históricos russos, inclusive na Crimeia". Países da Otan também teriam fornecido armas ultramodernas aos ucranianos.

Verificação da DW: Fals

O governo ucraniano tem repetidamente afirmado que procura uma solução diplomática, não militar, do conflito na região do Donbass, no leste do país – onde se localizam as províncias pró-russas de Lugansk e Donetsk, reconhecidas por Putin como "repúblicas populares" pouco antes de marchar sobre a Ucrânia. Quando, no terceiro trimestre de 2021, a Rússia postou suas tropas ao longo da fronteira ucraniana, não houve qualquer sinal de uma reação militar ucraniana iminente.

O mesmo se aplica à Península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 e transformada por ela numa fortaleza militar de fato, equipada com os armamentos mais modernos. Mesmo perante esses quadros, Kiev tem se engajado por soluções diplomáticas como a "Plataforma da Crimeia", com o fim de chamar a atenção para as violações dos direitos humanos na região.

Alguns países-membros da Otan, de fato, forneceram ao país sob invasão armas modernas, como mísseis antitanques, porém de modo hesitante e, de início, restrito. Só pouco antes da invasão, no fim de fevereiro, as entregas se intensificaram. Armas pesadas, como tanques blindados, só passaram a ser enviados depois da eclosão da guerra.

As alusões de Putin a "territórios históricos" russos são injustificadas. Com a dissolução da União Soviética, a Rússia reconheceu as fronteiras da Ucrânia. Assim, do ponto de vista do direito internacional, tanto a Crimeia como as províncias no Donbass são territórios ucranianos. Uma resolução das Nações Unidas de 2020 confirmou a condenação e o não reconhecimento da anexação da Crimeia por Moscou.

Ucrânia não está dominada por neonazistas

Alegação: Putin acusou a Ucrânia de estar sendo liderada por "neonazistas", com quem seria "inevitável" chocar-se. No Donbass, civis teriam "morrido pelos disparos arbitrários e ataques bárbaros de neonazistas".

Verificação da DW: Falso

A identificação da Ucrânia com "neonazistas" é uma assertiva falsa, apesar de insistentemente repetida por Vladimir Putin, seu governo e a mídia estatal russa. Como pretexto inicial para a invasão do país vizinho, Putin alegou a necessidade de "desnazificação" – conceito com que se descreve a política das Forças Aliadas vencedoras para com a Alemanha, ao fim da Segunda Guerra Mundial.

É falaciosa a comparação entre o regime nacional-socialista da Alemanha, de 1933 a 1945, e a atual Ucrânia, sob democracia constitucional: nem Kiev almeja a um sistema totalitário, nem há extremistas de direita no poder. É fato que membros radical-nacionalistas também integram o mal afamado Batalhão Azov, que combate os invasores russos no leste do país. Porém, nas eleições parlamentares de 2019, a frente unida dos partidos ultradireitistas não conseguiu mais de 2,15% dos votos.

Para o especialista em nacionalismo no Leste Europeu Ulrich Schmid, da Universidade de Sankt Gallen, a narrativa do Kremlin e seus seguidores é uma "insinuação pérfida": existem, sim, neonazistas no país, "mas na Rússia há pelos menos tantos grupos de extrema direita quanto na Ucrânia".

Essa posição conta com amplo respaldo científico: numa declaração publicada no periódico Jewish Journal, mais de 300 historiadores e pesquisadores classificaram como "propaganda" a suposta "desnazificação" da Ucrânia, concluindo: "Essa retórica é factualmente falsa, moralmente repulsiva e profundamente ofensiva para os milhões de vítimas do nacional-socialismo."

Em vez de diálogo, Rússia impôs exigências inaceitáveis à Otan

Alegação: "Em dezembro passado, propusemos firmar um acordo sobre garantias de segurança. A Rússia chamou o Ocidente para um diálogo honesto, busca de soluções de consenso sensatas, consideração pelos interesses recíprocos. Os Estados da Otan não quiseram nos escutar, o que significa que, na verdade, tinham bem outros planos", disse Putin.

Verificação da DW: Enganoso

O presidente russo se refere a um catálogo de exigências apresentado à Otan em 17 de dezembro de 2021. Entre as oito condições sobre as quais ambos os lados deveriam acordar, a fim de evitar um conflito, as principais eram o fim da ampliação da aliança militar para o leste e o recuo de suas tropas às posições adotadas em 1997.

Isso implicaria a retirada dos contingentes da Otan da Polônia, Hungria, República Tcheca, Bulgária, Romênia, países bálticos (Estônia, Letônia, Lituânia) e diversos Estados dos Bálcãs. Além disso, a aliança ocidental deveria abrir mão de atividades militares nas vizinhanças da Rússia – sendo a Ucrânia mencionada especificamente. Ficariam também banidos mísseis de curto e médio alcance baseados em terra capazes de alcançar o território dos signatários.

Observadores ocidentais consideraram parte das exigências incompatíveis com as diretrizes da Otan. Segundo seu Artigo 10º, a liberdade de se associar a ela é direito de todo Estado soberano, mesmo se tratando de um vizinho da Rússia. O país e sua antecessora, a União Soviética, ratificaram esse princípio fundamental em 1975, 1994 e 1997.

Em sua resposta, no fim de janeiro de 2022, a Otan rechaçou a exigência de que suspendesse a admissão de novos países-membros. Por outro lado, acedeu à reivindicação de uma melhora dos canais de comunicação entre Moscou e as capitais ocidentais, com vista à reabertura de representações na Rússia e em Bruxelas.

Além disso, o Conselho Otan-Rússia deveria passar a servir ao intercâmbio sobre manobras militares e política nuclear. O secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, dispôs-se, ainda, ao diálogo com Putin sobre controles armamentistas, desarmamento e transparência nos exercícios militares – exigindo, em contrapartida, a retirada das tropas russas dos territórios da Geórgia, Ucrânia e Moldávia.

Roman Goncharenko | Michel Penke | Joscha Weber para a Deutsche Welle, em 09.05.22

Portanto os fatos não corroboram a versão do chefe do Kremlin, de ter proposto um "diálogo honesto" e não ser "escutado" pelo Ocidente.

Jovens 'sem religião' superam católicos e evangélicos em SP e Rio

"Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar... Acredito em energias, no universo..."

Mariana Oliveira Viana, de 21 anos, se diz sem religião, mas acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias (Arquivo Pessoal)

Assim Mariana Oliveira Viana, de 21 anos e moradora do Rio de Janeiro, definiu em uma rede social suas crenças."Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar... Acredito em energias, no universo..."

Manicure autônoma e moradora do bairro de Irajá, na Zona Norte do Rio, Mariana tem parte da família evangélica, uma mãe que frequenta a umbanda e um irmão de 24 anos que, como ela, não segue uma religião, mas acredita em Deus.

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"Minha família sempre deixou que o outro tenha total liberdade, ninguém fica questionando nada a ninguém", conta Mariana à BBC News Brasil.

Não batizada em nenhuma religião, a jovem frequentou terreiros e igrejas, e diz ter se sentido bem em todos esses lugares. Assim, decidiu não escolher uma religião e acreditar em tudo.

"Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religiões e ter a mente aberta com isso."

Os 'sem religão' no Censo e no Datafolha

Mariana é uma de milhares de jovens brasileiros que se auto definem como "sem religião", grupo que já supera católicos e evangélicos entre a população de 16 a 24 anos no Rio e em São Paulo, segundo as primeiras pesquisas Datafolha do ciclo eleitoral de 2022.

No Censo de 2010, os sem religião eram 8% da população brasileira, ou mais de 15 milhões de pessoas. Esse percentual vem crescendo década após década: os sem religião eram 0,5% da população brasileira em 1960, 1,6% em 1980, 4,8% em 1991 e 7,3% em 2000.

Os sem religião no Censo. Em % da população brasileira.  .

Com o adiamento do Censo populacional de 2020 para este ano, devido à pandemia, ainda não é possível saber de forma definitiva o que aconteceu com a religiosidade brasileira na última década.

Mas as pesquisas eleitorais, cujas amostras são construídas com objetivo de refletir a realidade da população brasileira, dão pistas importantes neste sentido.

As primeiras pesquisas Datafolha de 2022, por exemplo, mostram que, em nível nacional, 49% dos entrevistados se dizem católicos, 26% evangélicos e 14% sem religião — já acima dos 8% sem religião identificados no último Censo.

Entre os jovens de 16 a 24, o percentual dos sem religião chega a 25% em âmbito nacional.

Nas pesquisas Datafolha para Rio de Janeiro e São Paulo, o crescimento dos brasileiros que se dizem "sem religião" é ainda mais marcante, particularmente entre os jovens.

Em São Paulo, os jovens de 16 a 24 anos que se dizem sem religião chegam a 30% dos entrevistados, superando evangélicos (27%), católicos (24%) e outras religiões (19%).

No Rio, os sem religião nessa faixa etária chegam a 34%, também acima de evangélicos (32%), católicos (17%) e demais religiões (17%).

Religião dos jovens de 16 a 24 anos no RJ. Em % dos entrevistados pelo Datafolha.  

Os 'sem religião' já são mais de 30% dos jovens de 16 a 24 anos no Rio e em São Paulo, indica Datafolha (Getty Images)

Mas o que significa ser "sem religião" no Brasil? Por que esse grupo cresce, e como isso se relaciona com a diminuição da população católica e ascensão das religiões evangélicas no país?

Por que esse fenômeno é maior entre os jovens e nas grandes cidades? E que relação tudo isso tem com o comportamento eleitoral da juventude brasileira?

A BBC News Brasil ouviu três cientistas sociais especialistas em religião para explicar o fenômeno.

Quem são os brasileiros 'sem religião'

Em primeiro lugar, é preciso ter clareza que apenas uma minoria dos "sem religião" no Brasil são ateus ou agnósticos. Os ateus são pessoas que não acreditam na existência de Deus, já os agnósticos avaliam que não é possível afirmar com certeza se Deus existe ou não.

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No Censo de 2010, por exemplo, dos 15,3 milhões de brasileiros que se diziam sem religião, apenas 615 mil (4% dos sem religião) se consideravam ateus e 124 mil se afirmavam agnósticos (0,8%).

"A maior parcela dos sem religião tem a ver com uma desinstitucionalização, o que quer dizer que o sujeito está afastado das instituições religiosas, mas ele pode ter uma visão de mundo e até mesmo práticas pessoais informadas por crenças religiosas", explica Silvia Fernandes, cientista social e professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

Entre outros livros, ela é autora de Jovens religiosos e o catolicismo — escolhas, desafios e subjetividades (Quartet/FAPERJ, 2010), Novas Formas de Crer — católicos, evangélicos e sem-religião nas cidades (Promocat, 2009) e organizadora de Mudança de religião no Brasil — desvendando sentidos e motivações (Palavra e Prece, 2006).

"Então esse sujeito é sem religião porque não está vinculado a uma igreja, porque não frequenta, mas pode ter crenças relacionadas a alguma religião que já teve ou ter uma dimensão mais pluralista da religiosidade", diz a especialista.

"Ele incorpora elementos de uma espiritualidade mais fluida, pode fazer um sincretismo [misturar elementos de diferentes religiões], pode ter crenças muito associadas ao universo do cristianismo — acreditar em Deus, em Jesus, em Maria — mas seguir se declarando sem religião."

Mariana, a carioca de Irajá que acredita em Deus, em Jesus, nas entidades da umbanda e em energias é um exemplo típico desses brasileiros sem religião, mas de forma alguma sem fé.

Por que cada vez mais brasileiros se dizem 'sem religião'

Regina Novaes, pesquisadora do ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), observa que a fase dos 16 aos 24 anos, onde os "sem religião" são mais presentes, é uma fase de experimentação.

"Há uma trajetória de busca e experimentação que foi colocada para as novas gerações que não era colocada para as antigas", diz a pesquisadora.

Ela observa que, atualmente, muitos jovens crescem em famílias plurirreligiosas, por exemplo, com avó mãe de santo, pai católico não praticante e mãe evangélica. Esses jovens não sentem a obrigação de seguir uma religião de família e tendem a buscar uma religiosidade própria.

Essa fase de experimentação pode seguir dois caminhos: uma busca que resulta mais tarde na escolha de uma religião; ou a construção de uma síntese pessoal, em que a pessoa se diz "sem religião" por não pertencer a nenhuma igreja, mas combina diversos elementos de fé.

"Isso é interessante, porque havia uma ideia de que, com o passar do tempo e o avanço da secularização [processo através do qual a religião perde influência sobre as variadas esferas da vida], haveria um aumento das pessoas que se desvinculariam da fé, do sobrenatural. Mas isso não está acontecendo. O que está acontecendo são outros modos de ter fé", diz Novaes.

A pesquisadora observa que esse é um fenômeno que vem desde a década de 1990, mas há outros dois processos mais recentes que têm contribuído para o avanço dos "sem religião".

Luta antirracista e 'desigrejados'

O primeiro deles é a emergência das religiões afro-brasileiras como uma opção cultural, diante do fortalecimento da luta antirracista no país.

"Junto à questão racial, vem a questão da ancestralidade. Então há muitos jovens que deixam de ser católicos, protestantes, evangélicos e se ligam a um terreiro, a uma mãe de santo ou pai de santo", diz Novaes

"Mas há também uma parcela que não vai se ligar institucionalmente, mas vai se sentir parte de uma cultura. Então eles podem se dizer sem religião, mas participar de festas, cultuar orixás, usar signos como turbantes e colares, como parte de um processo identitário."

Luta antirracista leva jovens a deixar igrejas cristãs e adotar elementos das crenças afro-brasileiras, como uma forma de afirmação da identidade negra (Getty Images)

Um segundo fenômeno são as novas gerações de evangélicos, criados na igreja, mas que passam a ter problemas com seus pastores, por questões morais, comportamentais, por críticas políticas ou com relação à maneira de conduzir a igreja.

Muitos desses jovens vão para outras igrejas, como as alternativas ou inclusivas. Mas há um outro grupo que passa a se definir através de uma palavra nova: são os "desigrejados", jovens que seguem partilhando do mundo evangélico, mas que ficam sem igreja.

"Ao ficar sem igreja, muitos desses jovens podem passar a se definir como sem religião. Porque, diferentemente do catolicismo, em que o batizado católico é, no mundo evangélico, a frequência à igreja é fundamental para a pessoa se definir", observa a especialista.

Um fenômeno jovem e urbano

Para Ricardo Mariano, professor da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999), a perda de força da igreja católica é um dos motivos que explicam o avanço dos "sem religião".

Em 1950, quase 94% da população brasileira se dizia católica, percentual que caiu a 65% no Censo demográfico de 2010 e está em 49% entre os entrevistados do Datafolha de 2022.

Parcela da população brasileira que se diz católica diminuiu de 94% para 65% entre os Censos de 1950 e 2010 e já está em 49% nas pesquisas Datafolha de 2022 (Getty Images)

"O forte declínio dos católicos em idade de reprodução contribui para a redução no número de crianças educadas em famílias católicas e consequentemente, dos jovens com formação católica", observa o sociólogo.

"Além disso, a igreja católica tradicionalmente tem um enorme contingente de católicos ditos 'nominais', ou seja, que não frequentam os cultos, não estão expostos às autoridades eclesiásticas e nem às suas orientações doutrinais, morais e comportamentais", acrescenta.

"Isso também reduz a socialização religiosa intrafamiliar, aquela que ocorre dentro da família, o que torna menos provável que os filhos de pais católicos permaneçam na religião ou sejam por ela influenciados."

Para o pesquisador, outro fator que explica a maior parcela de jovens sem religião é o fato de que esse grupo tem redes de sociabilidade mais diversas — diferentemente, por exemplo, dos idosos, cuja sociabilidade muitas vezes é restrita à família e à igreja — e está exposto a múltiplas fontes de informação, como colégios, universidades, redes sociais e veículos midiáticos.

"Os jovens ocupam seu tempo engajados em atividades de lazer e entretenimento — o funk, o hip hop, blocos e escolas de carnaval, e por aí vai — que muitas vezes entram em conflito com orientações comportamentais e morais das igrejas cristãs mais conservadoras", observa.

Para Silvia Fernandes, da UFRRJ, isso ajuda a explicar também por que os "sem religião" são em maior número nos grandes centros urbanos, como Rio e São Paulo.

"É preciso considerar que mais de 80% da população brasileira hoje é urbana. E, nas grandes cidades, há uma celeridade da vida e acesso a uma multiplicidade de informações que colocam a religião como uma das esferas possíveis da existência, mas ela não é mais tão determinante para a sociabilidade e o encontro como no mundo rural", diz Fernandes.

Escolhas eleitorais

Há relação entre o aumento do número de jovens "sem religião" e o fato dessa parcela do eleitorado ser uma das que mais indica intenção de voto em Lula (PT) nas eleições de outubro, já que Jair Bolsonaro (PL) construiu sua imagem como um candidato da comunidade evangélica?

Aqui, os especialistas têm visões diversas.

Bolsonaro no evento evangélico 'Marcha Para Jesus' em 2019 (ALESP)

Para Ricardo Mariano, da USP, isso é sim um fator que contribui para a melhor performance da candidatura petista junto a esse segmento da população.

"O governo Bolsonaro abraçou pautas morais ultraconservadoras, as armas, homofobia, autoritarismo, políticas antiecológicas e anticientíficas, sobretudo na pandemia. Tudo isso afastou muito os jovens", observa o professor.

"Eles [os jovens] têm acesso a muita informação e tendem a ser menos conservadores em uma série de pautas. Por isso a rejeição maior ao governo Bolsonaro", avalia.

Já Regina Novaes, do ISER, destaca que é preciso ter clareza que, assim como os sem religião são uma categoria fluida, os evangélicos não são um grupo estático.

"Sim, é possível pensar que mais jovens longe das igrejas, fazendo suas escolhas, também possam fazer escolhas mais questionadoras e por isso se aproximar do Lula. Mas qual é o perigo dessa pergunta?", questiona a pesquisadora.

"É achar que os jovens evangélicos são estáticos, e que eles são [eleitores de] Bolsonaro, enquanto os sem religião são [eleitores de] Lula. Isso não é verdade. Os evangélicos não são essa massa de manobra que o Bolsonaro pensa que são, eles têm cor, têm classe social, têm local de moradia. Esse é um ponto bem importante e acredito que vamos conhecer melhor o mundo evangélico nessas eleições", avalia.

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Brasil pode nunca vir a ser país de maioria evangélica?

O crescimento dos sem religião coloca uma dúvida para o futuro do Brasil: pode ser que o país nunca venha a ter uma maioria evangélica, como chegaram a prever alguns analistas?

Olhando para os dados, vemos que, do Censo de 2000 para o de 2010, o percentual de evangélicos no Brasil saltou de 15% para 22%, e os católicos diminuíram de 74% para 65%.

Já na pesquisa Datafolha desse início de ano para o Brasil como um todo, os católicos são 49% dos entrevistados, evangélicos 26% e os sem religião, 14%.

Embora as pesquisas não sejam diretamente comparáveis, pela diferença de abrangência, os números do Datafolha trazem algumas pistas do que esperar para o próximo Censo.

"O declínio histórico do catolicismo continua, com a igreja católica perdendo fiéis a cada década. Mas, ao mesmo tempo, você não tem os evangélicos crescendo na mesma proporção e parte disso é explicado por esse fenômeno dos sem religião", diz Fernandes, da UFRRJ.

Para a professora, alguns fatores explicam a perda de ímpeto da expansão evangélica: em primeiro lugar, as igrejas pentecostais e neopentecostais deixaram de ser uma novidade.

Um segundo fator é a diversificação na oferta dessas igrejas, que faz com que elas disputem entre si pelos fiéis, contribuindo para esse processo de experimentação característico da experiência religiosa mais fluida da contemporaneidade.

Por fim, com as igrejas evangélicas já em atividade há décadas no país, há uma parcela dos fiéis que se decepcionaram com promessas não cumpridas de cura, milagres e prosperidade, ou que não conseguem se integrar às rígidas normas morais e comportamentais, engrossando as fileiras dos "sem religião".

Para Mariano, da USP, ainda assim é de se esperar que os evangélicos sejam um dia maioria.

"É inevitável até por razões demográficas, o perfil dos católicos no Brasil é mais rural, mais velho do que os evangélicos. Os pentecostais têm um contingente enorme de pessoas em idade reprodutiva, mais do que os católicos, além disso, essas igrejas têm uma grande capacidade de recrutamento e manutenção de adeptos. Então é uma questão de tempo", afirma.

Regina Novaes, do ISER, tem outra visão.

"É difícil fazer 'profecia' sociológica, mas acredito que o Brasil não será um país evangélico. Por dois motivos: o catolicismo não é mais 'a religião dos brasileiros', mas ainda é da maioria dos brasileiros. Ateus e agnósticos vão continuar sendo minoria, mas a categoria dos sem religião passa a fazer parte das alternativas presentes do campo religioso", observa.

"Agora, a ideia é não olhar para os sem religião como uma coisa estática, porque as ofertas [religiosas] continuam existindo. E o lugar que a religião tem na vida — de dar sentido a ela, de tornar o sofrimento 'sofrível' — continua existindo. Então as religiões continuam a ser recursos culturais para os sem religião", acrescenta.

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo, 09.05.22

"O Brasil continuará um país de maioria católica, os evangélicos crescerão ainda, mas os sem religião passam a ser uma possibilidade que tem de ser observada."

segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sobre as urnas, veja aqui os 7 questionamentos das Forças Armadas e as respostas do TSE

Dúvidas levantadas por militares foram classificadas no tribunal como manifestação de ‘opinião’ e foram contestadas ponto por ponto

Foto: Wilton Junior

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou públicos nesta segunda-feira, 9, sete questionamentos em que as Forças Armadas levantam suspeitas sobre o processo eleitoral. Do número de urnas eletrônicas auditadas à maneira como o TSE totaliza os votos, representante das Forças Armadas apresentou quesitos que acabaram sendo classificados pela equipe técnica da Corte como “opinião”.

Apesar das dúvidas levantadas pelos militares, não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas. A seguir, o que as Forças Armadas questionaram e as respostas do TSE:

1) Nível de confiança dos testes das urnas

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Os militares pediram que fosse ampliado o número de urnas submetidas a testes durante a eleição. Alegaram que o nível de confiança médio seria baixo e a possibilidade de realizar mais testes de confiança em seções eleitorais sorteadas deveria ser estudada.

O QUE DIZ O TSE: A Corte apontou “erro de premissa” conceitual das Forças Armadas. A equipe técnica explicou que, historicamente, falhas nos equipamentos são irrisórias e que o risco está na casa de 0,01%. Apontou ainda que os militares incluíram na conta até mesmo as urnas que estão no estoque e que apenas ficam de prontidão para uso em caso de falha em algum equipamento. Serão usadas este ano urnas em 465.504 seções eleitorais e passarão por teste 648 urnas.

Não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas.

Não há registro de investigação que tenha encontrado prova de fraude nas urnas eletrônicas. Foto: Antonio Augusto/TSE

2) Critério de seleção das urnas que serão submetidas a testagem

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Esse processo deveria ser aleatório, e não ser atribuído às entidades fiscalizadoras, como acontece hoje.

O QUE DIZ O TSE: Tornar o processo aleatório não é uma medida impossível, mas só poderia ser adotada em eleições futuras. O TSE explicou que o modelo hoje prevê que as entidades fiscalizadoras, incluindo os partidos políticos, já podem indicar de maneira aleatória as urnas que deverão ser testadas. A Corte entende ainda que é preciso debate com as entidades fiscalizadoras, que hoje têm o direito de escolher as urnas testadas, para uma mudança nessa linha.

3) A “sala escura” e quem deve totalizar os votos da eleição

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: A totalização dos votos nas eleições deve se manter no TSE, mas também ser feita nos tribunais estaduais, os TREs. A redundância do processo, defendem as Forças Armadas, aumentaria a auditabilidade das eleições, alegando que isso iria “diminuir a percepção da sociedade de que somente o TSE controla todo o processo eleitoral”.

O QUE DIZ O TSE: Os TREs hoje já comandam as totalizações em suas respectivas unidades da federação. A centralização no TSE é apenas de equipamentos - uma orientação, inclusive, da Polícia Federal para minimizar risco de ataques hackers. A equipe técnica da Corte destacou ainda que não há “sala escura” para apurar votos. E informou que, este ano, adota uma inovação com equipamentos em Brasília que estão prontos a atuar em caso de falhas dos que estiverem operando na apuração.

4) Fiscalização e auditoria das urnas

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: O TSE deve incentivar a fiscalização do processo eleitoral pelas entidades, incluindo uma auditoria própria do Poder Legislativo.

O QUE DIZ O TSE: O incentivo à fiscalização já integra a legislação brasileira. A Corte explicou que o Tribunal de Contas da União (TCU) já atua na fiscalização do processo como órgão assessor do Congresso. E que os partidos também podem atuar. “Por tais razões e tendo em conta, sobretudo, a rigorosa auditoria realizada pelo TCU sobre o processo eleitoral, considera-se que a sugestão já se encontra hoje incorporada aos procedimentos do TSE”, diz a Corte, que vê a questão como caso já resolvido.

5) Inclusão das urnas eletrônicas do modelo do ano de 2020 nos testes de segurança

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: É preciso realizar um teste público de segurança nesses modelos antes da utilização deles nas eleições.

O QUE DIZ O TSE: O modelo 2020 já teve o núcleo de segurança avaliado por instituição certificada pelo INMETRO, conforme rígidas regras impostas pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI, e tem arquitetura de segurança compatível com o modelo de 2015.

6) Procedimentos em caso de verificação de irregularidade em um teste de segurança

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Os procedimentos que seriam adotados em caso de irregularidades em testes de segurança precisam ser melhor divulgados.

O QUE DIZ O TSE: Hoje, cabe ao juiz eleitoral adotar as providências e investigações necessárias para esclarecer eventual irregularidade verificada.

7) Sobre a divulgação de abstenção e voto

O QUE DIZEM AS FORÇAS ARMADAS: Seria preciso divulgar o comparecimento e a abstenção em cada seção eleitoral.

O QUE DIZ O TSE: Esses relatórios contêm dados pessoais que são de acesso restrito.

Por Eduardo Gayer / O Estado de S. Paulo, em 09;05.22.

TSE diz que não há ‘sala escura de apuração de votos’ ao rebater teses das Forças Armadas

Tribunal diz que parte dos questionamentos de militares é baseada em equívocos e 'erros de premissa'

Tribunal Superior Eleitoral: “Os votos digitados na urna eletrônica são votos automaticamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar”. Foto: Dida Sampaio/Estadão

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rebateu novos questionamentos formulados pelas Forças Armadas que, sem provas, colocam sob suspeição o processo eleitoral no País. Na resposta, cuja minuta o Estadão teve acesso, a equipe técnica da Corte reitera a segurança das urnas eletrônicas e diz que não há “sala escura” de apuração dos votos. A expressão citada na resposta do TSE já foi usada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) quando sugeriu uma contabilização paralela de votos controlada pelos militares.

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(Ministério da Defesa quer evitar ser envolvido em ação de deputado bolsonarista contra urnas eletrônicas

Ministério da Defesa quer evitar ser envolvido em ação de deputado bolsonarista contra urnas eletrônicas)

Apesar das suspeitas que o representante das Forças Armadas apresentou ao TSE, discurso que também é sustentado pelo presidente Jair Bolsonaro, até o momento não foi encontrada nenhuma prova de fraude nas eleições com urnas eletrônicas. No ano passado, a Polícia Federal fez levantamento de todos os inquéritos abertos desde 1996 e nada encontrou que colocasse em suspeita a segurança do processo de votação. Os indícios de irregularidades foram detectados quando ainda havia cédula de papel.

Como o Estadão revelou, as Forças Armadas fizeram 88 questionamentos ao TSE, sendo que 81 deles já tinham sido divulgados. Estavam pendentes esses que fazem parte da resposta tornada pública nesta segunda-feira, 9, pela Corte.

O relatório técnico do TSE classifica como “opinião” as avaliações apresentadas pelo representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência, criada pela Corte para aperfeiçoar o processo eleitoral neste ano. Mesmo assim, rebate um a um os questionamentos em que os militares defendiam mudanças no processo de apuração e totalização dos votos, apontando o que chama de “equívocos”, “erros amostrais” e “erros de premissa”.

“Não há, pois, com o devido respeito, “sala escura” de apuração. Os votos digitados na urna eletrônica são votos automaticamente computados e podem ser contabilizados em qualquer lugar, inclusive, em todos os pontos do Brasil”, diz a Corte, que, no entanto, afirma agradecer “todas as considerações e contribuições ofertadas”.

No dia 27 de abril, Bolsonaro defendeu em cerimônia oficial no Palácio do Planalto uma apuração paralela do TSE, encabeçada pelas Forças Armadas, e citou que atualmente havia uma “sala secreta”. “Como os dados vêm pela internet para cá e tem um cabo que alimenta a sala secreta do TSE, uma das sugestões é que, nesse mesmo duto que alimenta a sala secreta, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador das Forças Armadas, para contar os votos no Brasil”, afirmou o presidente na ocasião. No ano passado, ele dizia que o tribunal queria eleger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) numa “sala escura”.

O TSE ainda desmente a tese apresentada pelas Forças Armadas de que a totalização dos votos seria feita apenas pelo TSE. “É impreciso afirmar que os TREs não participam da totalização: muito pelo contrário, os TREs continuam comandando as totalizações em suas respectivas unidades da federação”, afirma o ofício. A resposta foi dada a um quesito em que as Forças Armadas parecem indicar como ser um problema a Corte eleitoral em Brasília somar o resultado da votação. “Recomenda-se que a totalização dos votos seja feita de maneira centralizada no TSE em redundância com os TRE, visando a diminuir a percepção da sociedade de que somente o TSE controla todo o processo eleitoral e aumentar a resiliência cibernética do sistema de totalização dos votos”, escreveu o general que representa os militares. Na resposta, o tribunal esclareceu ainda que, apesar de haver contagem nos Estados, a soma final ocorre em equipamentos centralizados em Brasília. O TSE lembrou que isso foi, inclusive, uma orientação da Polícia Federal para minimizar risco de ataques hackers.

A minuta de respostas às Forças Armadas veio acompanhada de um despacho assinado pelo presidente do TSE, ministro Edson Fachin, que defende a Corte. “Ciente e cumpridor do seu papel constitucional ao longo dos últimos 90 anos, este Tribunal manterá a sua firme atuação voltada a garantir paz e segurança nas eleições, a aprimorar o processo eleitoral, a propagar informações de qualidade e, acima de tudo, a exortar o respeito ao resultado das eleições como condição de possibilidade do Estado de Direito Democrático e de uma sociedade livre, justa e solidária, nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil”, diz o magistrado.

Eduardo Gayer, de Basília para O Estado de S. Paulo, em 09.05.22

A parte da elite que apoia o atraso

Seduzidos pelas canetadas populistas de Bolsonaro, alguns empresários flertam com o apoio à sua reeleição, atentando não só contra os interesses nacionais, mas contra o seu próprio

Desde as eleições de 2018, entrou na cena pública um escrete de folclóricos empresários bolsonaristas, tão histriônicos e incorrigíveis como o seu “mito”. Mas, às vésperas de novas eleições, segundo a colunista do Estado Adriana Fernandes, novas lideranças empresariais têm flertado com o apoio à reeleição de Jair Bolsonaro. Com assombrosa capacidade de abstração, elas excluem de seus cálculos a mistura de estagnação econômica, autoritarismo político, indigência administrativa, instabilidade institucional e degradação moral que é o governo Bolsonaro.

A psique infantil e insegura do presidente; as afrontas ao decoro e à liturgia do cargo; as relações obscuras com milicianos; a truculência no debate público; as crises institucionais artificiais; as calúnias ao sistema eleitoral e as ameaças de descumprir a vontade das urnas; a degradação da administração federal; o obscurantismo que asfixia a educação, a cultura e a ciência; a devastação do patrimônio ambiental; o nanismo diplomático que, oscilando entre a negligência geopolítica e os insultos a parceiros internacionais, resultou num descrédito sem precedentes; o escárnio pelas minorias; a sabotagem às medidas de contenção do vírus da covid-19 e à imunização, resultando em milhares de mortes evitáveis; o descompromisso com as reformas e privatizações, malgrado suas tonitruantes promessas eleitorais; o sequestro do Orçamento com os fisiologistas do Centrão e a deterioração das contas públicas; os indícios de corrupção na compra de vacinas, verbas escolares e licenças a criminosos ambientais; a captura da máquina pública para fins eleitoreiros; a predisposição a privilegiar interesses familiares sobre os corporativos, os corporativos sobre os de governo e os de governo sobre os de Estado – nenhuma dessas mostras de incompatibilidade com os deveres de um estadista parece pesar na intenção de voto desses empresários.

Tampouco os motiva a estratégia do “voto útil” contra o suposto “mal maior”, questionável, mas compreensível, ante a ameaça do mandarinato lulopetista de recobrar o poder e restabelecer seu desenvolvimentismo irresponsável, sua hostilidade ao livre mercado, os gastos descontrolados, o aparelhamento do Estado e a capilarização da corrupção, tendo como corolário o retrocesso socioeconômico.

Não, as razões são mais primárias e constrangedoras: uma mescla de egoísmo e credulidade.

Entusiasmados com uma momentânea melhora nos indicadores econômicos, afagados por benefícios, créditos e isenções sacados a golpes da caneta presidencial, encantados pelos gráficos fabricados no Ministério da Economia e pelas gesticulações do seu “superministro”, esses empresários parecem comprar um pacote de inovações “estruturais” prometidas para o próximo mandato.

A novidade não é a insensibilidade com o opróbrio da esmagadora maioria de seus conterrâneos, a fome, o desemprego, a inflação que corrói a renda das famílias pobres. Essa indiferença é moeda corrente em parte significativa das elites nacionais. O surpreendente é a ignorância em relação aos seus próprios interesses. Com tantos anos de experiência, essa parcela do empresariado parece que ainda não entendeu que os votos comprados pelo populismo hoje cobram juros escorchantes amanhã, seja pela fuga de capitais, escassez de investimentos públicos, deterioração do capital humano e degradação institucional, seja pelos demais ingredientes que alimentam a estagnação da economia, a incivilidade nas ruas ou a rapacidade das classes políticas.

Que esse engano é autoengano, ou seja, que ainda resta um laivo recôndito de preocupação republicana, depreende-se do relato da colunista Adriana Fernandes, segundo o qual “o apoio à reeleição é ainda envergonhado”.

Diversas vezes a elite empresarial e suas associações se manifestaram contra os desmandos de Bolsonaro na área ambiental, educacional, sanitária ou diplomática. É hora de se mobilizarem para expor tudo o que há de vergonhoso no voto de seus colegas seduzidos pelo canto desafinado da sereia bolsonarista. Se não for pelos interesses nacionais, que seja ao menos para preservar seus próprios interesses.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 09.05.22

O inimigo institucional

Bolsonaro estendeu a sua noção de inimigo ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu adversário principal na eleição, Lula.

O cenário político brasileiro entrou numa zona cinzenta, de contornos indefinidos, em que o jogo partidário normal está derrapando para o confronto institucional. Não se trata apenas de um embate eleitoral, próprio do jogo democrático, mas sinaliza para algo mais, a saber, a própria existência de instituições democráticas. No momento em que as próprias instituições são questionadas e sua legitimidade é posta em dúvida, a política deriva para uma espécie de não política no sentido clássico do termo, isto é, pode concretizar-se em soluções autoritárias, que se situam fora do cenário propriamente democrático.

A partir da condenação do deputado Daniel Silveira, da base de apoio bolsonarista, pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente Bolsonaro aproveitou-se da ocasião para deslanchar toda uma campanha contra o Supremo enquanto instituição, vindo, na sequência, a questionar o processo de apuração da urna eletrônica, chamando as Forças Armadas para si, como se fizessem parte de sua base de apoio, quando são instituições de Estado. Há, claramente, aqui um apagamento de fronteiras constitucionais. Assim se conduzindo, ele tornou o próprio Supremo o seu novo inimigo, o que significa dizer que a própria democracia pode estar a perigo. Note-se que o alvo não é Lula ou outro competidor, mas uma instituição republicana, sem a qual o regime democrático desmorona. O inimigo torna-se institucional.

Não se trata, aqui, de defender a decisão específica do Supremo, considerada inclusive por não bolsonaristas como excessiva em sua pena, além de criar problemas, no que diz respeito à cassação do mandato, com o Poder Legislativo, que teria essa cassação como uma atribuição sua. Outros poderiam argumentar, com certa dose de razão, que o inquérito das fake news já teria ido longe demais. No entanto, não é isso que está em questão, uma vez que o presidente Bolsonaro, por sua vez, no uso de suas prerrogativas presidenciais, recorreu ao indulto individual como se estivesse a defender a liberdade, um princípio constitucional. Deu, assim, um passo político temerário, colocando-se na posição de revisor constitucional, quando não tem essa prerrogativa. Anulou, dessa maneira, a divisão de Poderes.

Trata-se de uma autoatribuição sem nenhuma base constitucional. O indulto é, sim, uma prerrogativa sua para ser utilizada com o objetivo de suspender a pena dos criminosos, não lhe cabendo discutir as razões da condenação. Reiterando, ele não é uma suprema instância cujo poder reside acima do próprio Judiciário. Seria ele, segundo uma tal concepção, um poder correcional das decisões de um Supremo que cessaria de ser supremo. Em outras palavras, tal formulação é de cunho claramente autoritário, a partir da qual as portas estariam abertas para ele “corrigir” qualquer decisão de nossa mais alta Corte, o que significaria dizer que poderia descumprir qualquer decisão dela derivada. Poderia não acatar, por exemplo, uma decisão do Supremo relativa aos resultados da urna eletrônica, como se coubesse a ele decidir sobre esses resultados. A crise institucional estaria instalada.

Note-se que Bolsonaro chegou a utilizar a expressão “comoção social” para justificar o seu ato de indulto, quando não houve nenhuma manifestação deste tipo, salvo o barulho já usual de suas redes sociais, que são ainda mais atiçadas quando seus objetivos políticos assim o exigem. Sugeriu que haveria uma profunda insatisfação social com a condenação de Daniel Silveira, quando ela concerne somente à própria bolha bolsonarista. A imensa maioria dos cidadãos brasileiros está preocupada com a inflação, com o desemprego, com a baixa renda e com suas necessidades mais imediatas.

Desde uma perspectiva eleitoral, o atual mandatário procurou unicamente aumentar a coesão do grupo dos seus apoiadores, cansados e desiludidos com a falta de cumprimento de suas promessas, exemplificada em sua aliança com o Centrão, em sua “conversão” à “velha política”.

A política bolsonarista, conforme assinalado em outros artigos, é de cunho schmittiano, baseada na distinção entre amigo e inimigo. Há uma clara estratégia a esse respeito, embora as oportunidades para reiterá-la resultem das intervenções, muitas vezes improvisadas, do presidente. Recuos fazem igualmente parte desta sua estratégia, como moderações repentinas, a exemplo das recentes manifestações de rua. O inimigo é todo aquele que é designado como tal, não importa quem seja ou o que faça. Basta que tenha essa designação, que é atribuição daquele que assim o denomina. Pode ser qualquer um, seja alguém real, seja alguém imaginário, seja uma instituição.

No caso em questão, Bolsonaro estendeu a sua noção de inimigo ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu adversário principal, Lula. Tivesse ele se restringido a este último, estaria ainda submetido às regras democráticas; extrapolando seu gesto, ele termina se situando para além dessas regras. Passa a democracia a ser o seu alvo.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidde Federal do Rio Grande do Sul.  Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 09.05.22

domingo, 8 de maio de 2022

O Brasil não vai se acabar

Essa próxima eleição tem que servir para evitar a catástrofe definitiva. É a disputa entre a civilização e a barbárie. Lembra Cacá Diegues.

Lévi Strauss nos disse que existem dois grupos de cientistas sociais e homens políticos: os conservadores, que acham que a idade de ouro da humanidade foi vivida no passado; e os progressistas, que garantem que a idade de ouro está no futuro. Ninguém se dá conta de que a idade de ouro será sempre o tempo que nos é dado viver, o único no qual podemos intervir e dar-lhe um rumo mais próximo daquilo que julgamos valer à pena.

Estamos praticamente às vésperas de uma eleição presidencial e temos que exigir, em primeiríssimo lugar, que o vencedor respeite a Constituição que nós todos, expressa ou implicitamente, juramos respeitar. Governar ignorando a Constituição é viver numa selva em que só a violência e o acaso decidem o que deve acontecer. Temos o direito de supor que as leis talvez não traduzam a cultura de nosso povo, a quem devemos propor a mudança, se precisarmos mudá-las. Mas só ele e seu desejo têm o direito de mexer nelas.

Toda Constituição democrática deve garantir à maioria a liderança da sociedade e reconhecer o direito de as minorias se manifestarem e viverem do jeito que julgarem mais apropriado, sem fazer mal a ninguém. Se no discurso dominante não houver uma mínima possibilidade de o contrário do que afirmamos estar certo, ele será sempre um discurso autoritário que não serve ao progresso da humanidade. Toda lei é um acordo entre cidadãos que desejam permanecer juntos, unidos numa mesma sociedade, com os mesmos fins.

O sonho acabou e o Brasil virou o que é agora — um país sem caráter, de desigualdades e desemprego, de fome e miseráveis desassistidos, uma economia em recessão, sem expectativa de recuperação em prazo humano. Um país violento, desorientado e caótico, à beira de uma catástrofe definitiva. E nada mais iluminado para nossos olhos do que aquilo que não temos como evitar. Basta dormir em paz e, na manhã seguinte, acordar novamente com o relho na mão. O que valia mesmo era o prazer de viver num país onde, mesmo merecendo essa ou aquela correção de rumo (às vezes profunda), havia um horizonte de luz à nossa espera. E nós todos acreditávamos com orgulho nesse horizonte, podíamos viver dessa expectativa ou dessa esperança.

A democracia, o sistema político por excelência da civilização, não é a imposição do modo de vida da maioria; mas o regime em que as minorias têm garantido o seu direito de ser diferente.

Essa próxima eleição tem que servir para evitar a catástrofe definitiva. Não se trata de uma escolha entre políticos, programas, partidos. O que está em jogo é um capítulo final dessa história de decadência, a disputa que pode ser derradeira entre civilização e barbárie. É a uma dessas duas formas de viver e conviver que vamos dar o nosso voto.

O Brasil cansou mas não acabou. Nessas eleições mesmo, com tão pouca reflexão, a multiplicação das posições políticas, deixando o esquematismo tradicional dos diversos “populismos nacionais”, é uma notícia positiva que deve ser desenvolvida, fora das eleições, por quem estiver afim de reencontrar o povo. As mulheres brasileiras, por exemplo, foram às ruas, exercendo seu direito de manifestação e inaugurando uma nova etapa em seu papel na sociedade em que vivemos. Parabéns a elas.

Ao contrário do que diz e age a insensatez de alguns brasileiros inconformados com nossas peculiaridades, é em nome do peculiar que devemos nos comportar. Em nome sobretudo do respeito ao direito do outro ser diferente de nós e, afinal de contas, sermos todos iguais perante nós mesmos. É em benefício disso, desse sonho ideal, que devemos votar em outubro e sempre.

Cacá Diegues, o autor deste artigo, é cineasta ("By By Brasil", dentre outros clássicos nacionais). Publicado originalmene n'O Globo, em 08.05.22

Financiamento público inibe ‘terceira via’

Neste ano, estão disponíveis R$ 5 bilhões de fundo eleitoral, R$ 1 bilhão de fundo partidário (sem falar nos R$ 16,5 bilhões do orçamento secreto à mercê das lideranças do Congresso).

Congresso Nacional | O Globo

Se você quer sair candidato à Presidência e seu nome não é nem Luiz Inácio Lula da Silva nem Jair Messias Bolsonaro, o primeiro obstáculo que terá diante de si nem será a previsível pontuação baixa nas pesquisas eleitorais. Será convencer o próprio partido a lançar candidato. As regras para o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais funcionam contra o lançamento de candidaturas presidenciais — e esse tem sido o empecilho mais concreto às candidaturas alternativas a Lula e Bolsonaro, a proverbial “terceira via”.

(Eleições: saída do União Brasil enfraquece terceira via)

O maior interesse de praticamente todos os partidos hoje é obter uma bancada robusta no Congresso. É o tamanho dessa bancada que garantirá acesso aos fundos partidário e eleitoral, além do protagonismo nas mesas das duas Casas, com a influência decorrente sobre os recursos do Orçamento. Neste ano, estão disponíveis R$ 5 bilhões de fundo eleitoral, R$ 1 bilhão de fundo partidário (sem falar nos R$ 16,5 bilhões do orçamento secreto à mercê das lideranças do Congresso).

Os dois primeiros equivalem a R$ 6 bilhões pingando no cofre dos partidos, na proporção direta do tamanho das bancadas. Por que alguém gastaria dinheiro com uma campanha presidencial de chance incerta diante da possibilidade de investir no crescimento da própria bancada e de ganhar acesso a uma fatia maior de tais recursos?

(Crise entre os Poderes: Fachin defende posição firme contra ameaças à democracia)

É esse o cálculo que explica a resistência dos caciques do MDB à candidatura da senadora Simone Tebet (MT). Ou o lançamento do inexpressivo Luciano Bivar pelo União Brasil, de modo a preservar recursos para as campanhas ao Legislativo. Ou mesmo a sabotagem de parcela expressiva dos tucanos à candidatura do ex-governador paulista João Doria, mesmo depois de ele ter derrotado o ex-governador gaúcho Eduardo Leite em prévias transparentes de repercussão nacional.

A menos que um nome decole de modo inequívoco com potencial de derrotar Bolsonaro ou Lula, nada mudará nesse cálculo. Continuará mais vantajoso para os líderes partidários apostar na conquista de uma bancada maior, em vez de embarcar numa candidatura presidencial de risco.

(Sem alianças: União Brasil terá 'chapa pura' à Presidência) 

Tal situação demonstra a deficiência da atual legislação de financiamento público das campanhas. É um modelo que pode funcionar em regimes parlamentaristas, em que tudo o que está em jogo na eleição é o tamanho das bancadas. Mas não no nosso presidencialismo, dependente de nomes fortes para erguer uma candidatura com perspectiva de poder.

Se o financiamento privado, em particular por empresas, abria brechas inaceitáveis à corrupção e ao tráfico de influência, ao menos trazia a garantia de um leque mais plural de candidaturas. Teria sido possível aperfeiçoá-lo, exigindo maior transparência e limitando seu alcance para evitar o abuso de poder econômico. Infelizmente, não foi o caminho adotado pelos tribunais, nem pelo Congresso.

O efeito indesejado é evidente: agrava-se a característica mais nefasta do sistema partidário brasileiro. Em vez de veículos para a expressão legítima de ideologias ou interesses, os partidos se tornaram, antes de tudo, negócios que precisam zelar pelas próprias receitas. Nisso, não há rigorosamente nenhuma diferença entre aqueles oriundos de legendas tradicionais, como PT, PDT, PSB, PSDB, MDB ou União, e as tão criticadas agremiações venais associadas ao Centrão.

Editorial de O Globo, edição de 08.05.22

Bolsonaro não mascara intenção de golpe

Jair Bolsonaro não usa máscara. Sempre apostou na exposição total. Não usou máscara contra a Covid-19, quando poderia ter incentivado milhões de brasileiros a se proteger da pandemia — um dia, talvez, será possível contabilizar a real extensão dessa semeadura da morte, cujo registro até agora é de mais de 663 mil vítimas oficiais. 

O presidente tampouco usa de qualquer escudo para esconder sua índole golpista. Nunca precisou de camuflagem. Ao contrário, chegou aonde está graças a sua ostentação incendiária, tão nua quanto crua. A cada etapa, mostra-se mais arrojado, amealhando quanto pode dos podres poderes que nossa democracia em construção ainda tolera. Primeiro como vereador, depois deputado federal pelo Rio de Janeiro, chegou a presidente da República em 2018 nos braços de 55,13% dos votos válidos, ou 57,7 milhões de eleitores. A cada pit stop, tratou de estender benefícios e métodos a sua voraz parentela e conseguiu fidelizar a atual plêiade de sacripantas instalada a sua volta.

Nenhum motivo para mudar de curso, portanto —menos ainda quando cada nova pesquisa de opinião pública para o pleito de outubro próximo reaparece como assombração. A pesquisa mais recente confirma a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva nas intenções de voto. Como num cenário de segundo turno contra Lula a perspectiva de ser derrotado só aumenta, Bolsonaro está em modo bunker, 100% dedicado a abortar esse roteiro. A qualquer custo e por meio de qualquer arma, como já vem demonstrando de forma estridente.

Pode ser de utilidade pública atentar ao duplo encurtamento do tempo — à medida que a eleição se aproxima, Bolsonaro antecipa o golpe em algumas casas. Senão, vejamos. Desde seu tonitruante discurso com “aviso aos canalhas que não serei preso”, proclamado às massas no último 7 de Setembro e dirigido ao Supremo Tribunal Federal (STF), o cardápio de ataques a Poderes republicanos e a campanha contra a lisura do voto eletrônico se alastraram. Tornaram-se verdade venenosa junto às hostes bolsonaristas, impregnaram o país de dúvidas futuras e obrigaram o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a trabalhar dobrado em busca de um antídoto eficaz.

Mas, tal qual numa guerra, a estratégia inicial do golpismo foi sendo alterada. Ao longo dos primeiros meses, o timing para a insurreição planejada parecia depender do resultado das urnas. Fosse a derrota já no primeiro turno ou no segundo, a ação visaria a reverter o desfecho post factum ou, talvez, até já no início da apuração. Contudo esse calendário de violência anunciada tem se estreitado à luz do dia e, simultaneamente, aliciado altas patentes verde-oliva. Criticado com razão pela recente loquacidade espaventosa em seminário na Alemanha, o ministro Luís Roberto Barroso sabia do que falava: sim, as Forças Armadas “estão sendo incitadas a atacar o processo eleitoral brasileiro”. Os próprios fatos assim atestam. Quando um ministro da Defesa, no caso o general Paulo Sérgio Nogueira, envia 55 questionamentos ao presidente do TSE, Edson Facchin, com demandas de aprimoramento da urna eletrônica para 2022, deixou de ser sinal. É atestado de que as Forças Armadas do Brasil estão com as duas botas e várias estrelas fincadas na autocracia eleitoral.

Como é sabido, quem está acostumado a privilégio sente opressão quando ouve falar de igualdade. Daí a aparente necessidade de acelerar a marcha. Em sua live semanal de quinta-feira, Bolsonaro, tendo ao lado o cada vez mais cavernoso general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, foi fundo. Informou ao país que “as Forças Armadas não serão meras espectadoras das eleições”, são convidadas dele. Também anunciou a contratação de uma “empresa de ponta” para realizar a auditoria das eleições. Essa empresa, a ser contratada pelo PL do pantanoso Valdemar Costa Neto, atuaria não após, mas antes do pleito. Para que correr riscos? Por que esperar até as eleições? Recado dado: o golpe já começou. Ou, pelo menos, a tentativa de.

Dorrit Harazin, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.05.22. 

Ao vencedor, a crise

O presidente eleito este ano encontrará um legado de inflação alta, juros elevados, economia travada e contas públicas em perigo.

Bolsolula é o candidato mais cotado, neste momento, para assumir a Presidência em janeiro de 2023. Em campanha contra si mesmo, o líder petista parece empenhado em se mostrar tão perigoso quanto seu rival imediato, o inquilino do Palácio da Alvorada. Deve estar ficando difícil, para muitos eleitores, distinguir os dois adversários, o ex-sindicalista e o motoqueiro avesso às obrigações de governo. As diferenças ficam borradas, quando Luiz Inácio Lula da Silva fala em controle social dos meios de comunicação, ou quando aponta como igualmente culpados pela guerra o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelensky, e o autocrata russo Vladimir Putin. O Direito Internacional, tanto quanto o Código Penal brasileiro, diferencia claramente o agressor e a vítima. O agressor, neste caso, foi saudado por Jair Bolsonaro, poucos dias antes da invasão, com uma declaração de solidariedade.

Quem se esforça para ver os detalhes ainda pode apontar algumas distinções. Lula jamais combateu vacinas ou quaisquer medicamentos. Além disso, é difícil imaginá-lo indiferente a milhares de mortes, durante uma epidemia, ou devastando o Ministério da Saúde. Mas ele se aproxima do rival quando propõe irresponsabilidades, como a revogação da minirreforma trabalhista de 2017, a eliminação do teto de gastos e a intervenção nos preços da Petrobras. Também perde pontos, diante de qualquer cidadão atento, quando fala em deixar para depois de eleito um debate amplo e claro sobre política econômica. A frase apareceu na entrevista publicada pela revista Time: “Nós não discutimos política econômica antes de ganhar as eleições”.

Nenhum candidato sério recusa a exposição de seus planos, especialmente depois de haver apresentado ideias polêmicas sobre política fiscal, leis trabalhistas e gestão de uma empresa com ações no mercado. Expor planos e discuti-los é ainda mais importante quando a economia está emperrada, a indústria retrocede, os preços disparam, o desemprego continua elevado, os juros vão às alturas e a dívida pública se mantém acima dos padrões internacionais.

O presidente eleito vai encontrar um legado econômico desastroso. Terá de trabalhar desde o primeiro minuto – ou desde antes da posse – para abrir algum espaço a uma nova política, se tiver, de fato, alguma pretensão de consertar e dinamizar o País. O Banco Central (BC) projeta inflação acima de 7% neste ano e próxima de 3,5% em 2023, mesmo com juros muito altos e crédito apertado. Mas há previsões bem mais feias.

Novas estimativas do setor financeiro apontam alta de preços na faixa de 8% a 10% em 2022. Só com muito otimismo se pode apostar num grande recuo na virada do ano, como se os fados quisessem dar boas-vindas a um novo governo. Em condições pouco melhores, a redução dos juros básicos deverá ser gradual. O crédito escasso continuará dificultando o consumo, entravando a atividade econômica e encarecendo a dívida pública. Projeções da pesquisa Focus divulgadas no começo de maio indicaram crescimento econômico de apenas 0,70% neste ano, de 1% no próximo e de 2% nos dois anos seguintes.

Essa taxa de 2%, frequente nas projeções de médio e de longo prazos, corresponde ao potencial de expansão econômica estimado para o País. Há quem estime potencial menor, mas a mensagem é basicamente a mesma: o Brasil está despreparado para avançar mais velozmente e de forma sustentada. Sua capacidade produtiva tem sido limitada por baixo investimento em máquinas, equipamentos, obras civis, infraestrutura e – detalhe nem sempre lembrado – educação, ciência e tecnologia. O valor investido em capital físico oscila, desde o começo do século, perto de 18% do Produto Interno Bruto (PIB), taxa bem inferior àquelas observadas em outras economias emergentes. Concebida há muitos anos, a meta de investir o equivalente a 24% ou 25% continua sendo apenas um desejo.

Para retomar o crescimento duradouro e a modernização, será preciso definir metas qualitativas e quantitativas de investimento e garantir a mobilização de recursos públicos e privados. Isso envolve planejamento, uma atividade fora dos padrões do presidente Jair Bolsonaro, de sua equipe econômica e, de modo geral, dos ministros e daqueles aliados notáveis principalmente pela voracidade.

Muito mais propenso a inaugurar do que a iniciar obras, o presidente encerrará seu mandato, desastroso para a economia e perigoso para a ordem democrática, sem ter sido contaminado pelas noções de governo, de administração e de responsabilidade presidencial.

Uma derrota eleitoral de Bolsonaro será um ganho para o País, para a civilização e para a limpeza ambiental. Mas é cedo para apostar numa ampla regeneração econômica. Candidatos mais promissores em termos econômicos e políticos continuam mal situados nas pesquisas. Luiz Inácio Lula da Silva pode ser menos perigoso que Bolsonaro, em alguns aspectos. Mas seu segundo mandato abriu caminho para os desmandos da presidente Dilma Rousseff e seu discurso de candidato, hoje, está longe de prenunciar um governo sério e seguro para o País.

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo em 08.05.22 

Dúvida é uma coisa, má-fé é outra

A dúvida que deriva da curiosidade genuína é o motor do desenvolvimento humano. A dúvida que Jair Bolsonaro instila como tática eleitoral é mais vulgar

O presidente Jair Bolsonaro conseguiu transferir para uma expressiva parcela da sociedade os seus próprios medos e inseguranças. Hoje, muitos brasileiros afirmam ter dúvidas em relação a temas que até pouquíssimo tempo atrás eram pacíficos, como a importância das campanhas de vacinação ou a segurança das urnas eletrônicas, apenas para citar dois exemplos paradigmáticos desses tempos esquisitos.

Bolsonaro quer fazer os brasileiros acreditarem que, por trás de tudo que contrarie seus interesses e crenças, haveria um ardil para impedi-lo de governar, para apeá-lo da Presidência da República ou para permitir o triunfo de seus adversários, notadamente o ex-presidente Lula da Silva. Para Bolsonaro e seu grupo de apoiadores mais radicais, dúvidas e insinuações valem mais do que a verdade factual.

Não passa pela cabeça do presidente que ele possa cometer erros, como qualquer ser humano, ou que servidores públicos, ao tomarem decisões que lhe desagradem, possam agir orientados apenas pelo interesse público, dentro dos limites legais de suas atribuições. A Bolsonaro também escapa a compreensão de que os cidadãos possam manifestar livremente repúdio ao seu modo calamitoso de conduzir o País.

Consensos sociais mínimos foram obliterados. Instalou-se no Brasil um clima de permanente desconfiança. Estimulados pelo discurso do presidente, cidadãos suspeitam a priori da boa-fé e dos argumentos uns dos outros, interditando o diálogo civilizado nas esferas pública e privada. Sob essa espessa nuvem de suspeição que paira sobre o País, autoridades como o presidente do Superior Tribunal Militar (STM) e o vice-presidente da República se sentem à vontade para tentar reescrever a história da ditadura militar e seus horrores. É nesse ambiente tóxico que achados científicos são desqualificados por leigos sem qualquer constrangimento. Instituições republicanas, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, passaram a ser vistas com receios injustificados – quando não tratadas com desrespeito – por indivíduos que até ontem não tinham quaisquer reparos a fazer sobre suas decisões.

Não é errado, de forma alguma, que cidadãos tenham dúvidas em relação ao funcionamento das instituições e ao exercício do poder, que emana do povo. O ceticismo é nutriente primordial para uma democracia saudável. Só no campo das religiões as certezas se sobrepõem às dúvidas. Na vida civil, essencialmente laica, o questionamento é fundamental. Mas há dúvidas e dúvidas.

A dúvida que deriva de uma curiosidade legítima do indivíduo é o motor da produção do conhecimento e do desenvolvimento humano. Tanto é assim que a espinha dorsal do método científico experimental é a dúvida. Ninguém é absolutamente confiável, nem mesmo os cientistas. Não porque sejam movidos por uma vontade deliberada de enganar os outros, mas porque são humanos, demasiadamente humanos, e, como tais, sujeitos a vieses que podem levar ao autoengano. Por isso que, imbuídos de boa-fé, dão transparência ao seu trabalho e submetem seus experimentos ao escrutínio de outros observadores.

A dúvida que Bolsonaro instila é vulgar. Ao contrário daquela, é nociva, pois carece de quaisquer fundamentos. Afinal, o que ocorreu de relevante no País para que parte dos brasileiros passasse a desconfiar das vacinas ou das urnas eletrônicas de uma hora para outra? A rigor, nada, a não ser a eleição de Jair Bolsonaro. Todo esse clima de suspeição decorre diretamente da obsessão do atual mandatário em se manter no poder. O presidente concebe a reeleição como um fim em si mesma, quase um direito divino, e não como o coroamento de uma boa administração, algo que foi incapaz de realizar. Logo, quem pensa ser infalível – ou “imorrível” ou “imbroxável”, como já se autointitulou – não admite derrota, que só poderia decorrer de uma “fraude”.

Bolsonaro aposta em dúvidas infundadas para deslegitimar o resultado da eleição caso seja derrotado. Ainda causará muita confusão, mas, ao fim e ao cabo, prevalecerá a vontade da maioria dos eleitores, seja ela qual for.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 08 de maio de 2022 

"A democracia brasileira está respirando por aparelhos"

Para cientista político e sociólogo, líderes como Bolsonaro são mais um sintoma do que a causa da decadência democrática, e o que está em jogo no Brasil é se haverá condição de "recompor o que foi destruído".

Para o cientista político e sociólogo Luis Felipe Miguel, não cabem eufemismos para analisar o atual momento político do Brasil: ele vê um país em que a democracia "está fraturada" e denuncia que pilares do próprio Estado constitucional foram à falência na década passada, sobretudo a partir do processo de impeachment que destituiu a presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e coordenador do Grupo de Pesquisa Sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), Miguel acaba de lançar livro Democracia na periferia capitalista. Na obra, o autor contextualiza as fragilidades do arranjo político nacional a partir da trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), de sua criação, ascensão, auge — com a chegada ao poder, por meio da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente entre 2003 e 2010 —, e queda.

"O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país", afirma em entrevista à DW Brasil.

Antes do novo livro, Miguel já publicou outros  de cunho político, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa, Consenso e conflito na democracia contemporânea e O Colapso da Democracia no Brasil: da Constituição ao Golpe de 2016.

À DW Brasil, ele aponta que parte da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, "os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo". "Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática", diz.

DW Brasil: De acordo com sua análise, por que a democracia está em risco no Brasil?

Luis Felipe Miguel: A democracia brasileira está bem baqueada, respirando por aparelhos. A derrubada da presidente Dilma Rousseff, em 2016, mostrou que um pilar da democracia liberal, o respeito aos resultados eleitorais, estava corroído. A perseguição judicial contra o Partido dos Trabalhadores, sobretudo por meio da Operação Lava Jato, mostrou a falência do outro pilar, o império da lei. O veto à candidatura do ex-presidente Lula, em 2018, naquilo que o cientista político Renato Lessa chamou de "impeachment preventivo", retirou a legitimidade das eleições. Um veto, convém lembrar, que dependeu não só da atuação enviesada do Poder Judiciário como também da pressão das Forças Armadas: portanto, não se pode falar em neutralidade política dos militares e obediência aos governantes civis, que são outros elementos fundantes da democracia liberal.

É todo um processo de desmonte acelerado da ordem regida pela Constituição de 1988, que culmina na presidência de Jair Bolsonaro, alguém que não se cansa de alardear seu desprezo pelas liberdades, pela democracia, pela Constituição – e que vem agindo para destruí-las, com a cumplicidade ou a omissão dos outros Poderes.

Em suma, nós saímos de uma situação de democracia incompleta, em que muitas regras definidas nos textos legais tinham dificuldade de se efetivar (penso aqui sobretudo nos direitos sociais), para uma espécie de vale-tudo. A anarquia entre os Poderes, que vivem numa permanente queda de braço, é uma faceta. A outra é a liquidação de direitos e de garantias constitucionais, feita sem qualquer diálogo ou negociação com a sociedade.

O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país.

Nos últimos dias, mais uma vez o presidente Bolsonaro afrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao conceder indulto ao deputado Daniel Silveira. Qual sua leitura sobre gestos assim? São sinais de que o atual presidente pode não aceitar o resultado das próximas eleições, por exemplo?

O comportamento de Bolsonaro é um exemplo claro daquilo que a ciência política chama de "seletividade das instituições". Os governos de centro-esquerda tinham que reiterar, a todo momento, sua fidelidade às leis, seu republicanismo. Qualquer iniciativa que parecesse um pouco heterodoxa era recebida como afronta e rechaçada com alarido. Já Bolsonaro testa seus limites todos os dias e é respondido em geral com tolerância, por vezes com apelos para algum tipo de acerto, de composição – isto é, uma negociação sobre até que ponto as regras valem para ele. É um comportamento que só estimula novas bravatas, novas ameaças.

No caso do deputado Daniel Silveira, Bolsonaro concedeu um indulto que, legalmente, é questionável, mas do ponto de vista moral, não há dúvida nenhuma, é inaceitável. O Supremo mostrou pouca disposição para reagir, e agora Bolsonaro anuncia que está preparando uma anistia a todos os seus apoiadores condenados pela Justiça, afirma que não vai cumprir a decisão sobre o marco temporal caso o voto do relator, favorável aos povos indígenas, seja vitorioso, e assim por diante. São demonstrações de força que animam sua base militante, que é minoritária, insuficiente para vencer as eleições, mas muito aguerrida, muito agressiva.

A campanha incessante de denúncias infundadas contra o processo eleitoral tem esse mesmo objetivo. Alimenta a possibilidade de um novo golpe, que é algo com que Bolsonaro sonha, mas que até o momento não tem condições de realizar. E mantém motivada essa militância de extrema direita, para funcionar até como uma espécie de escudo humano contra uma eventual punição a ele mesmo e a seus filhos, por parte de um futuro governo democrático. O recado é: "Não mexam comigo que eu tenho muita gente disposta a tumultuar o país para me proteger."

Como a sociedade deve reagir caso Bolsonaro não aceite o resultado das próximas eleições?

O problema é que Bolsonaro está ameaçando o processo eleitoral há muito tempo e nunca recebeu uma resposta à altura. Pelo contrário, o esforço era para apaziguá-lo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a montar uma comissão de supervisão da segurança das urnas eletrônicas com representação militar, o que é absolutamente descabido. É como se o bolsonarismo agisse de boa fé, como se a comprovação de que o processo é idôneo fosse calar as acusações. Mas eles sabem que as urnas são seguras, o que querem é manter a base mobilizada, tumultuar.

É inadmissível ter um candidato e, pior, aquele que ocupa a presidência da República trabalhando para subverter o processo eleitoral. Mas é cada vez mais difícil se opor a isso, já que as mentiras e ameaças de Bolsonaro se tornaram parte do cenário.

O correto, a meu ver, diante de ameaças contra a realização das eleições ou de desrespeito a seus resultados, seria afastá-lo imediatamente do cargo, como medida profilática, necessária para resguardar o que resta de democracia no país. Mas duvido que haja coragem para tal. O que é necessário, então, é mobilizar a sociedade civil. As pessoas precisam saber que nestas eleições não basta votar. Temos que estar preparados para garantir, por meio de nossa pressão, o respeito ao resultado eleitoral.

Em sua análise, quais fatores levaram à atual crise da democracia brasileira? São mais fatores internos – e isso teria a ver com a própria crise do PT e dos partidos mais à esquerda – ou são fatores externos?

Há uma crise da democracia que não é exclusividade do Brasil, que se manifesta mesmo nos países que, dizia-se, tinham democracias plenamente consolidadas. É um fenômeno global, portanto. Mas é claro que o caso brasileiro não é simplesmente a expressão local da crise geral; ele precisa ser entendido à luz das nossas especificidades.

Muito da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, que desprezam as liberdades, tentam massacrar a oposição e usam as regras do jogo democrático para destruí-lo por dentro – os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo. Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática.

Há um processo anterior de "desdemocratização", isto é, de perda de efetividade das instituições democráticas, cujas origens estão no agravamento das tensões na convivência, desde sempre conflituosa, entre economia capitalista e democracia política. […] Em países periféricos, como o Brasil, o arranjo democrático sempre funcionou de maneira mais travada. Nossa economia tem menos gordura para gastar, e nossa classe dominante tem pouca autonomia, já que está acomodada na posição de sócia menor do capitalismo internacional. Portanto, a margem de manobra para a acomodação de pressões, necessária para a convivência entre democracia e capitalismo, é bem menor.

O PT chegou ao governo ciente desse fato e propondo uma política de mínimo atrito. Seu propósito era não afrontar os interesses dominantes, mas buscar brechas que permitissem garantir um padrão mínimo de vida para todos. Ainda assim, pôs em marcha mudanças que acabaram incomodando.

Por um lado, a economia brasileira é pouco dinâmica, sua competitividade é muito dependente da baixa remuneração da mão de obra. A redução da miséria tem como efeito lógico permitir que a força de trabalho negocie a sua venda em condições menos desvantajosas, logo tende a reduzir o nível de exploração.

Por outro lado, a nossa classe dominante tem o complexo de ser, na verdade, dominada por seus parceiros externos. Por isso, para ela, assim como para a classe média que nela se espelha, a manutenção das distâncias sociais tem um papel fundamental. Temos uma classe dominante alérgica à igualdade, por isso mesmo as medidas cautelosas dos governos petistas geraram tanta reação.

Edison Veiga é Repórter. Publicado originalmente por DeuscheWelle Brasil, em 07.05.22

'Só quando Putin entender que não pode vencer poderemos acabar com esta guerra', afirma ex-diretor da CIA

Mas quanto melhor os ucranianos enfrentarem os russos no campo de batalha, mais poder terão nas negociações.

Panetta: "Há apenas um recado que Putin entende: a força" (Getty Images)

Leon Panetta conhece o governo dos EUA por dentro e ocupou cargos importantes.

Foi chefe de gabinete do presidente Bill Clinton, diretor da agência de inteligência CIA e secretário de Defesa do governo de Barack Obama.

No comando da CIA, ele foi responsável por supervisionar a operação que levou à localização e morte de Osama bin Laden.

(Guerra na Ucrânia: crianças em Mariupol tomaram água de poças para sobreviver)

Como chefe do Pentágono, ele teve que assumir o sistema de alianças de segurança que os EUA têm com países de diferentes partes do mundo, a começar pela Otan, que agora desempenha um papel central na guerra na Ucrânia.

Panetta é um crítico da invasão da Ucrânia pelo presidente russo, Vladimir Putin, que vê o conflito atual como uma "guerra por procuração" (um conflito realizado por terceiros) entre EUA, Otan e a Rússia.

Nesta entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC), Panetta afirma que Putin só entende o recado da força, portanto esse é o caminho que a Ucrânia deve seguir para viabilizar as negociações de paz.

BBC News Mundo - Você disse que a diplomacia não vai a lugar nenhum a menos que os ucranianos tenham a capacidade de influenciar as negociações. O que a Ucrânia pode fazer para obter essa capacidade e como o Ocidente pode ajudá-la a alcançar isso?

Leon Panetta - O mais importante para os ucranianos é continuar vencendo a guerra contra os russos. Essa é a vantagem mais importante que eles têm. Obviamente, até agora eles conseguiram impedir que os russos capturassem sua capital, Kiev, e agora estão em guerra para garantir que os russos não assumam o controle da área do Donbas.

Mas quanto melhor os ucranianos enfrentarem os russos no campo de batalha, mais poder terão nas negociações.

BBC News Mundo - Esse seria o melhor caminho para alcançar a paz?

Panetta - Correto. Há apenas um recado que Putin entende: a força.

Segundo Panetta, as forças ucranianas têm que mostrar a Putin que ele não vencerá, apesar de toda a destruição que possa causar (Getty Images)

BBC News Mundo - Quando você era secretário de Defesa, os EUA voltaram sua atenção da Europa para a Ásia, embora Putin já tivesse travado uma guerra contra a Geórgia. Você acha que essa mudança de atenção em direção à Ásia foi um erro?

Panetta - Não, porque ao mesmo tempo em que implantávamos navios de guerra adicionais no Pacífico, também aumentamos nossa presença de tropas na Europa para manter um forte apoio à Otan.

BBC News Mundo - Você diria que a Rússia é atualmente a maior ameaça à segurança dos EUA e à ordem mundial?

Panetta - Eu acho que a realidade é que estamos enfrentando uma série de ameaças no século 21. A Rússia está agora no topo da lista por causa da guerra na Ucrânia que eles travaram.

A mensagem enviada à Rússia sobre o preço que teria que pagar por sua invasão é a mesma mensagem que os EUA e seus aliados devem enviar à China, Coreia do Norte e Irã, para que eles entendam que pagarão um preço se decidirem entrar em guerra.

BBC News Mundo - Você disse que o que está acontecendo na Ucrânia é uma guerra por procuração contra a Rússia. Você poderia explicar por que você pensa assim?

Panetta - Os EUA e nossos aliados da Otan se uniram em oposição à invasão da Ucrânia por Putin. E é claro que por causa dessa aliança eles estão trabalhando para garantir que a Rússia pague um preço por essa invasão.

Eles implementaram severas sanções econômicas contra a Rússia. Eles estão fornecendo armas aos ucranianos para ajudá-los a combater a invasão russa e estão reforçando os países da Otan para deixar claro que resistirão a qualquer nova invasão russa.

Os EUA e seus aliados da Otan tomaram uma decisão muito importante de apoiar a Ucrânia em seus esforços para se defender. É evidente que esses países democráticos que se uniram estão fazendo tudo o que podem para impedir Putin e a Rússia.

EUA e seus aliados da OTAN estão equipando a Ucrânia com armas avançadas para se defender contra a Rússia (Getty Images)

BBC News Mundo - Portanto, seria o nível de envolvimento e intenção da aliança ocidental que faria disso uma "guerra por procuração"...

Panetta - Sim, quero dizer, na medida em que os EUA e nossos aliados estão fazendo tudo o que podem para apoiar a Ucrânia em sua guerra contra a Rússia, você pode dizer que isso é o equivalente a uma guerra por procuração.

BBC News Mundo - Alguns especialistas argumentam que o Ocidente não está usando a Ucrânia como "proxy" (um terceiro país que faz guerra contra a Rússia no lugar dos EUA e da Europa), mas que eles estão simplesmente ajudando um governo legítimo a se defender...

Panetta - Bem, isso depende da sua definição de "proxy". Está claro pelo que o presidente Biden disse e pelo que o secretário de Defesa Lloyd Austin disse nas últimas semanas que o objetivo aqui é enfraquecer a Rússia.

[Nota da BBC: após esta entrevista, Biden negou que o que está acontecendo na Ucrânia seja uma guerra por procuração contra a Rússia].

BBC News Mundo - Se o que os EUA e a Otan travam for mesmo uma guerra por procuração, com o secretário de Defesa dos EUA dizendo que quer ver a Rússia enfraquecida, é possível que Moscou sinta que tem o direito de levar a guerra para além da fronteira da Ucrânia?

Panetta - Putin e Moscou decidiram pela guerra, invadindo uma democracia soberana. São eles que devem arcar com as consequências de sua invasão, e a melhor maneira de acabar com esse conflito é Putin e a Rússia decidirem deixar a Ucrânia. Essa é a conclusão.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse que quer que a Rússia saia enfraquecida da guerra na Ucrânia (Getty Images)

BBC News Mundo - Você foi secretário de Defesa e também diretor da CIA. Como você avalia a estratégia inicial de Biden de compartilhar publicamente informações sobre os planos de Putin sobre a guerra na Ucrânia?

Panetta - Acho que foi uma estratégia muito eficaz fornecer informações ao público sobre o que a Rússia estava fazendo em seus planos de invadir a Ucrânia. A Rússia continuou negando, Putin continuou negando que eles iriam invadir a Ucrânia, enquanto todas as evidências e informações mostravam claramente que eles estavam planejando a invasão.

Acho importante que o público entenda a hipocrisia que Putin e a Rússia demonstraram ao mentir para o mundo sobre quais eram suas verdadeiras intenções.

 BBC News Mundo -  Alguns argumentam que, ao fazer isso, Biden poderia ter colocado em risco alguns ativos de inteligência…

Panetta - Acho que hoje em dia existem várias fontes de inteligência, sejam elas tecnológicas ou humanas. Existem fontes diferentes e algumas delas não colocam as pessoas em risco, então tenho certeza que eles foram cuidadosos com a inteligência que divulgaram.

(A indignação de Israel com declaração russa de que Hitler 'tinha sangue judeu')

Antes do início da guerra, Biden divulgou publicamente informações sobre os planos de guerra de Putin (Getty Images)

BBC News Mundo - Em relação à expansão da Otan, você acha que a aliança foi longe demais na inclusão de novos membros ou deveria ter ido ainda mais longe enquanto ainda tinha a oportunidade de se expandir?

Panetta - Eu acho que a decisão sobre a Otan é uma decisão tomada por países independentes e soberanos e se esses países decidiram que querem fazer parte da Otan — como, por exemplo, a Finlândia e a Suécia, que estão considerando essa possibilidade hoje — então eu acho que é uma decisão que esses países deveriam tomar.

Eu acredito que alianças são absolutamente essenciais para enfrentar nossos adversários como a Rússia e outros.

BBC News Mundo - Mas geralmente as grandes potências se sentem ameaçadas se houver uma aliança poderosa ao seu redor...

Panetta - A melhor maneira de a Rússia não ser ameaçada é se tornar parte da família internacional de nações, engajando-se no comércio, engajando-se em relações financeiras, engajando-se com outros países para tentar promover a paz e a prosperidade. É assim que você protege sua segurança. Não com guerra.

BBC News Mundo - Como você acha que essa guerra vai acabar?

Panetta - Eu rezo para que acabe logo. Eu acho que Putin deve entender que não pode alcançar a vitória na Ucrânia, não importa o quanto ele destrua, não importa quantos inocentes ele mate. Quando ele estiver disposto a entender isso, acho que só então teremos uma chance de acabar com essa guerra.

BBC News Mundo - Quão perto estamos desse ponto?

Panetta - Eu acho que as próximas semanas nos dirão muito sobre se podemos chegar a esse ponto em breve ou se essa guerra se arrastará ainda mais no futuro.

Ángel Bermúdez (@angelbermudez), da BBC News Mundo, em 07.05.22