quarta-feira, 23 de março de 2022

Trinta moedas pela educação

O funcionamento do gabinete paralelo no MEC, com pastores influenciando na liberação de verbas da pasta, é grave ofensa à ordem jurídica. Educação é inegociável

Desde que o Estadão revelou, na semana passada, a existência de mais um gabinete paralelo no governo Bolsonaro, desta vez no Ministério da Educação (MEC), têm vindo à tona novos dados sobre o aparelhamento da estrutura estatal para atender a interesses de lideranças religiosas. Trata-se de uma situação rigorosamente inconstitucional, que desrespeita princípios básicos da administração pública, fere o caráter laico do Estado e, não menos importante, prejudica diretamente a qualidade da educação pública.

Revelado agora, o esquema não é novo. Foi apurado que, desde 2019, pastores evangélicos vêm exercendo influência no MEC. Esse marco temporal indica que o aparelhamento religioso da pasta da Educação não é algo meramente circunstancial, que teria nascido após a aproximação do governo Bolsonaro com o Centrão. O assunto é mais grave. Desde o início do seu mandato, o presidente Bolsonaro permitiu que a estrutura do Estado fosse usada para fins particulares, de determinados grupos religiosos.

A agravar o quadro, o aparelhamento não ocorreu em um setor secundário da administração federal. Entregou-se a lideranças religiosas uma das áreas mais importantes, se não a mais importante, para o futuro do País. E, consequentemente, uma pasta que possui um dos maiores orçamentos do governo federal.

Sabe-se que o MEC de Bolsonaro não funciona bem desde o início do governo. A pasta responsável por cuidar do futuro das novas gerações notabilizou-se por polêmicas, agressões, ineficiências e omissões, o que, entre outros danos, produziu significativa desarticulação com os outros entes federativos. Agora, com a revelação da existência de um gabinete paralelo liderado por pastores, conheceu-se uma nova faceta. Nem tudo era ineficiência. Para os amigos dos pastores, a verba chega rapidamente.

Segundo a reportagem do Estadão apurou, o gabinete paralelo é bastante ágil na liberação de verbas do MEC para determinados municípios, em uma velocidade que destoa dos padrões de repasses da União. Em um dos casos, a prefeitura conseguiu o empenho de parte do dinheiro pleiteado 16 dias depois do encontro mediado pelos religiosos. Durante o mês de dezembro de 2021, foram firmados, depois desses encontros com pastores, termos de compromisso, uma etapa anterior ao contrato, entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e nove prefeituras no valor de R$ 105 milhões.

Esses dados confirmam que a atuação do gabinete paralelo do MEC é muito mais ampla do que apenas controlar a agenda do ministro Milton Ribeiro, o que já seria extravagante e incompatível com o funcionamento republicano do poder público. Os pastores exercem influência na decisão sobre o destino das verbas e a velocidade de sua entrega.

Do início de 2021 para cá, sabe-se que ao menos 48 municípios foram contemplados com verbas após encontros com os pastores do gabinete paralelo. Desses repasses, 26 deles utilizaram recursos próprios do FNDE. O restante recebeu dinheiro por meio de emendas do orçamento secreto.

A operação do gabinete paralelo no MEC merece uma responsável, cuidadosa e diligente investigação. A subordinação do Estado a interesses religiosos é grave ofensa à Constituição, além de produzir distorções, ineficiências e privilégios no próprio sistema educativo. Não é aceitável, num Estado Democrático de Direito, que a proximidade de gestores públicos com pastores evangélicos signifique condições especiais no acesso a verbas públicas.

Por força de sua missão constitucional, o Ministério Público tem especial responsabilidade no desmantelamento dessa estrutura paralela no MEC, apurando, em conjunto com os órgãos policiais, os fatos e as respectivas responsabilidades. Também o Legislativo e o Judiciário, no que lhes couber, não podem ficar passivos. É inconcebível que a definição de políticas públicas educacionais, responsabilidade fundamental do Estado, seja entregue, sem controle e sem transparência, a lideranças religiosas, sem vínculo com a administração pública. É grave traição da República.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23.03.22

terça-feira, 22 de março de 2022

Putin é um ditador acuado em sua ratoeira; leia a coluna de Moisés Naim

No início de sua presidência, em 2000, Vladimir Putin deu uma longa entrevista na televisão. Ele falou de sua visão para o futuro da Rússia, compartilhou memórias de sua juventude e refletiu sobre o que experimentou e aprendeu. Ele conta, por exemplo, a lição que um rato lhe deu.

Quando muito jovem, Putin e seus pais moravam em um pequeno apartamento em um prédio decadente em Leningrado (atual São Petersburgo) que, entre outros problemas, sofria de uma infestação de ratos. O jovem Putin os perseguia com uma vara. “Lá, recebi uma lição rápida e duradoura sobre o significado da palavra ‘encurralado’”, diz Putin. Ele acrescenta: “Uma vez eu vi um rato enorme e o persegui pelo corredor até que o levei para um canto. Ele não tinha para onde correr. De repente, ele se lançou em mim e eu me esquivei, mas agora era o rato que estava me perseguindo. Felizmente, fui um pouco mais rápido e consegui fechar a porta.”

(EUA condenam deportações forçadas pela Rússia de civis de Mariupol)

Assim, desde muito jovem, Putin entendeu que um rato encurralado pode se tornar perigosamente agressivo. É uma lição que não devemos esquecer. Mas e se, em vez de ser atacada, ela for pega em uma ratoeira?

A ratoeira é uma armadilha para pegar ratos. Consiste em uma caixa na qual há uma porta pela qual o roedor pode entrar. No interior, há um mecanismo com um pedaço de queijo. Ao pegar o queijo, o rato aciona uma mola que fecha a porta e o deixa na ratoeira sem conseguir sair. Está preso.

A mesma coisa acontece com os ditadores contemporâneos. Eles entraram no palácio presidencial atraídos pelo queijo, que neste caso é o poder, e ficaram presos. Se deixam o poder, colocam em risco a sua liberdade ou mesmo a sua vida, bem como a dos seus familiares e cúmplices. Sua alta posição também lhes permite preservar melhor as enormes fortunas roubadas. Obviamente, é normal que os ditadores não desejem renunciar ao poder.

A ratoeira metafórica que prende ditadores no poder ilustra um dos grandes desafios do mundo atual. Que destino deve ser dado aos ditadores? No passado, aqueles que não foram mortos ou presos e conseguiram escapar com sua fortuna ilícita costumavam se estabelecer nos lugares paradisíacos frequentados pela realeza europeia. Agora, os tiranos que perdem o poder acabam na Europa, mas não em Mônaco ou Biarritz, mas no Tribunal Penal Internacional, em Haia.

A impunidade de vários ditadores desapareceu quando o ex-presidente do Chile, Augusto Pinochet, foi preso enquanto visitava Londres em 1998. Essa medida é uma expressão da nova doutrina dos direitos humanos: “jurisdição universal”. Isso marcou o início de uma nova era de responsabilização por graves violações de direitos humanos. Para um ditador como Nicolás Maduro, por exemplo, renunciar significa ir para a cadeia. Vladimir Putin enfrenta o mesmo risco.

Naturalmente, essa realidade torna os ditadores mais teimosos em se apegar ao poder. Eles não têm garantias de que a impunidade prometidas por outros durará. Circunstâncias, alianças e governos mudam, e novos governantes podem decidir que não estão vinculados aos compromissos de seus predecessores. Para esses ditadores, o único governo confiável é é o que eles mesmos presidem, as únicas Forças Armadas que os defenderão são às que comandam.

Este é um dos problemas mais espinhosos do nosso tempo. Deve-se buscar um acordo com os ditadores responsáveis pela morte de milhares de inocentes? Ou melhor, a ética, a justiça e a geopolítica nos obrigam a tentar derrubar esses ditadores?

Não há respostas fáceis. Quantas mortes seriam evitadas se um cessar-fogo fosse alcançado na Ucrânia? É aceitável fazer um acordo com Vladimir Putin para retirar suas tropas em troca de concordar com algumas de suas condições? Para muitos isso seria imoral e a única saída aceitável é deixar Putin. Outros sustentam que a prioridade é impedir a morte de inocentes.

Não há respostas óbvias para essas perguntas. Mas pelo menos hoje sabemos que as respostas podem ser moldadas por países onde reina a democracia. De todas as notícias horríveis que a invasão de Putin produziu, há uma boa notícia que deve nos dar esperança: as democracias mostraram que podem trabalhar em conjunto e aumentar sua capacidade de enfrentar coletivamente os males que afetam o planeta. Esta é uma oportunidade para os defensores da liberdade definirem a agenda, e não os tiranos.

Moisés Naim, o autor deste artigo, é É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowmen. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 21.03.22

Plano B de Putin na guerra da Ucrânia é inundar UE de refugiados; leia artigo de Thomas Friedman

Estratégia do Kremlin se opõe ao ‘plano A’ de Zelenski e Biden: fazer a Ucrânia resistir em uma espécie de ‘empate militar’ com os russos

Bombeiro apaga fogo em prédio atingido pela artilharia russa em Kiev, na Ucrânia Foto: Vadim Ghirda/AP

Após um mês confuso, agora está claro quais estratégias estão sendo jogadas na Ucrânia: estamos observando o plano B de Vladimir Putin versus o plano A de Joe Biden e Volodmir Zelenski. Esperemos que Biden e Zelenski triunfem, porque o plano C de Putin é realmente assustador – e eu nem quero escrever o que temo ser seu plano D.

Não tenho nenhuma fonte secreta no Kremlin, apenas a experiência de ter visto Putin operar no Oriente Médio por muitos anos. Assim, parece óbvio para mim que Putin, tendo percebido que seu plano A falhou – a expectativa de que o Exército russo marcharia para a Ucrânia, decapitaria sua liderança “nazista” e esperaria que o país caísse pacificamente nos braços da Rússia – mudou para seu plano B.

O plano B é que o Exército russo atire deliberadamente contra civis ucranianos, prédios de apartamentos, hospitais, empresas e até abrigos antiaéreos – tudo isso aconteceu nas últimas semanas – com o objetivo de encorajar os ucranianos a fugir de suas casas, criando uma crise de refugiados dentro da Ucrânia e, ainda mais importante, dentro das nações vizinhas da Otan.

Um mar de refugiados no leste

Putin, suspeito, está pensando que, se não puder ocupar e manter toda a Ucrânia por meios militares e simplesmente impor seus termos de paz, o melhor passo seguinte seria conduzir 5 ou 10 milhões de refugiados ucranianos, principalmente mulheres, crianças e idosos, para a Polônia, Hungria e Europa Ocidental – para criar ônus sociais e econômicos tão intensos que esses Estados da Otan acabarão pressionando Zelenski a concordar com quaisquer termos que Putin exija para parar a guerra.

Desde muito jovem, Putin entendeu que um rato encurralado pode se tornar perigosamente agressivo

Putin, provavelmente, espera que, embora esse plano envolva cometer crimes de guerra que possam deixar ele e o Estado russo párias permanentes, a necessidade de petróleo, gás e trigo russos – e da ajuda da Rússia para lidar com questões regionais como o iminente acordo nuclear com o Irã – logo forçariam o mundo a voltar a fazer negócios com o “Bad Boy Putin”, como sempre fez no passado.

O plano B de Putin parece estar se desenrolando como planejado. A agência de notícias France-Presse informou de Kiev no domingo: “Mais de 3,3 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia desde o início da guerra – a crise de refugiados que mais cresce na Europa desde a 2.ª Guerra – a grande maioria mulheres e crianças, segundo a ONU. Outros 6,5 milhões estão deslocados dentro do país.”

A matéria continuou dizendo: “Em uma atualização de inteligência, o Ministério da Defesa do Reino Unido disse que a Ucrânia continua a defender seu espaço aéreo, forçando a Rússia a confiar em armas lançadas de seu próprio espaço aéreo. Assim, a Rússia foi forçada a “mudar sua abordagem e agora está buscando uma estratégia de atrito. Isso envolve o uso indiscriminado de poder de fogo, resultando em aumento de vítimas civis, destruição da infraestrutura e intensificação da crise humanitária.”

Um empate militar

O plano B de Putin, no entanto, está colidindo com Biden e Zelenski. O plano A de Zelenski, que suspeito estar se saindo ainda melhor do que ele esperava, é lutar contra o Exército russo até um empate, quebrar sua vontade e forçar Putin a concordar com os termos de Zelenski para um acordo de paz – com apenas o mínimo para poupar a imagem do líder do Kremlin. Apesar de todo o derramamento de sangue bárbaro e bombardeios das forças russas, Zelenski está – sabiamente – ainda de olho em uma solução diplomática, sempre pressionando por negociações com Putin enquanto reúne suas forças e seu povo.

O Times informou, no domingo, que “a guerra na Ucrânia chegou a um impasse após mais de três semanas, com a Rússia obtendo apenas ganhos marginais e cada vez mais visando civis, segundo analistas e autoridades dos EUA. “As forças ucranianas derrotaram a campanha russa inicial desta guerra”, disse o Instituto para o Estudo da Guerra, com sede em Washington. “Os russos não têm homens ou equipamento para tomar Kiev, a capital, ou outras grandes cidades como Kharkiv e Odessa”, concluiu o estudo.


Com ofensiva terrestre perdendo força, Rússia bombardeia cidades

Sanções devastadoras

O plano A de Biden, sobre o qual ele explicitamente alertou Putin antes do início da guerra, em um esforço para impedi-lo, era impor sanções econômicas à Rússia como nunca haviam sido impostas antes pelo Ocidente – com o objetivo de paralisar a economia russa.

A estratégia envolvia enviar armas aos ucranianos para pressionar militarmente a Rússia. Está tendo sucesso, provavelmente, além das expectativas de Biden porque foi amplificada por centenas de empresas estrangeiras que operam na Rússia e também suspendendo suas operações no país – voluntariamente ou por pressão de funcionários.

As fábricas russas agora estão tendo de fechar porque não podem obter do Ocidente microchips e outras matérias-primas de que precisam; as viagens aéreas para e ao redor da Rússia estão sendo reduzidas porque muitos de seus aviões comerciais eram, na verdade, de propriedade de empresas de leasing irlandesas, e a Airbus e a Boeing não prestam serviços aos que a Rússia possui.

Enquanto isso, milhares de jovens trabalhadores de tecnologia russos estão demonstrando ser contra a guerra e simplesmente deixando o país – tudo em apenas um mês após Putin iniciar essa guerra ilegítima.

“Mais da metade dos bens e serviços que chegam à Rússia vêm de 46 ou mais países que aplicaram sanções ou restrições comerciais, com os EUA e a União Europeia liderando o caminho”, informou o Washington Post, citando a empresa de pesquisa econômica Castellum.

A matéria do Post acrescentou: “Em um discurso televisionado, na quinta-feira, um desafiador presidente russo, Vladimir Putin, parecia reconhecer os desafios do país. Ele disse que as sanções generalizadas forçariam difíceis mudanças estruturais profundas em nossa economia, mas prometeu que a Rússia superaria as tentativas de organizar uma blitzkrieg econômica.” Putin acrescentou: “É difícil para nós no momento. Empresas financeiras russas, grandes empresas, pequenos e médios negócios estão enfrentando uma pressão sem precedentes”.

Hospital de Mariupol foi alvo de ataques russos em 9 de março Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Pressão humanitária x pressão econômica

Então, aí está a pergunta do momento: será que a pressão sobre os países da Otan, de todos os refugiados que a máquina de guerra de Putin está criando – mais e mais a cada dia – superará a pressão que está sendo criada em seu Exército estagnado na Ucrânia e em sua economia em casa, cada vez mais a cada dia?

A resposta a essa pergunta deve determinar quando e como essa guerra termina – se com um claro vencedor e perdedor ou, talvez mais provavelmente, com algum tipo de acordo sujo inclinado a favor ou contra Putin.

Digo “talvez” porque Putin pode sentir que não pode tolerar qualquer tipo de empate ou acordo sujo. Ele pode sentir que qualquer coisa além de uma vitória total é uma humilhação que minaria seu controle autoritário do poder. Nesse caso, ele poderia optar por um plano C – que, suponho, envolveria ataques aéreos ou com foguetes contra linhas de suprimentos militares ucranianos do outro lado da fronteira com a Polônia.

A Polônia é membro da Otan e qualquer ataque ao seu território exigiria que todos os outros membros da aliança agissem em defesa da Polônia. Putin pode acreditar que, se puder forçar essa questão, e alguns membros da Otan se recusarem a defender a Polônia, a Otan poderá ser fraturada.

Ucrânia rejeita ultimato para entregar Mariupol e shopping é bombardeado em Kiev

Centro comercial de Kiev foi atingido por bombardeios que deixaram pelo menos seis mortos. Autoridades ucranianas negaram o ultimato para entregar Mariupol.

Planos C e D: as escolhas impensáveis de Putin

Certamente, desencadearia debates acalorados em todos os países da Otan – especialmente nos EUA – sobre se envolver diretamente em uma 3.ª Guerra Mundial com a Rússia. Não importa o que aconteça na Ucrânia, se Putin pudesse fragmentar a Otan, isso seria uma conquista que poderia mascarar todas as suas outras perdas.

Se os planos A, B e C de Putin falharem, porém, temo que ele se torne um animal encurralado e possa optar pelo plano D – lançar armas químicas ou a primeira bomba nuclear desde Nagasaki. Essa é uma frase difícil de escrever, e ainda pior de imaginar. Mas ignorá-la como uma possibilidade seria ingênuo ao extremo. / 

TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES. Publicada n'O Estado de S. Paulo, em 22.03.22.


Não há vácuo de poder

Desde 2015, estamos diante de uma gradual reação do sistema político que também altera relação de forças entre os Poderes. Leia o artigo de Mônica Sodré, cientista política, publicado no Estadão hoje.

Os cientistas políticos pós-década de 1990 estudaram um Brasil que parece não existir mais. Crescemos com a tese de que a Constituição de 1988 trazia em seus dispositivos uma preponderância decisória do Executivo baseada no seu poder de agenda institucional. Em outras palavras, a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo favorecia propositadamente o primeiro e a Constituição garantia ao presidente da República instrumentos e capacidade de fazer valer seus interesses. Dentre os mecanismos para isso estava a possibilidade de editar medidas provisórias, de solicitar regime de urgência a qualquer momento da tramitação de um projeto de lei e de vetar projetos após apreciação do Parlamento, além da prerrogativa de iniciar e controlar o processo orçamentário.

Esses são tempos pretéritos. A realidade tem demonstrado que estamos, desde 2015, diante de uma gradual reação do sistema político que altera também a relação de forças entre os dois Poderes.

Quando a Operação Lava Jato foi deflagrada, em 2014, empresas doaram, juntas, mais de R$ 3 bilhões para campanhas eleitorais, representando 80% do total doado naquele ano. Não há dúvidas de que a operação ajudou a consolidar a percepção da opinião pública de que empresas interferiam e desequilibravam o jogo eleitoral e de que seus recursos eram, se não a origem, parte importante da explicação sobre corrupção e desvios na política. Naquele momento, o único recurso público a financiar os partidos políticos advinha do Fundo Partidário e somava R$ 25 milhões ao ano.

Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou o fim da doação de empresas às campanhas eleitorais, após cinco anos de análise sobre o assunto. O fechamento da torneira das empresas implicou, é claro, a abertura da torneira dos recursos públicos à disposição dos partidos. Naquele ano, os recursos do Fundo Partidário foram triplicados (chegando a R$ 868 milhões) e, de lá para cá, cresceram em torno de 150%. Criou-se, ainda, um novo fundo exclusivo para financiamento de campanhas eleitorais, iniciado em 2017 com o montante de R$ 1,7 bilhão e que teve recentemente seu valor triplicado para R$ 5,7 bilhões.

Paralelamente aos recursos públicos que passaram a abundar para partidos e candidatos, o Parlamento ampliava sua atuação em relação ao Orçamento federal e ganhava mais acesso a recursos públicos. Foi também em 2015 que as emendas individuais passaram a ser impositivas, ou seja, com execução obrigatória, o que impactou o Orçamento em quase R$ 10 bilhões naquele ano. A iniciativa abriu caminho para as emendas de bancada, que seguiram o mesmo caminho em 2019, ano em que foram aprovadas, também, as chamadas transferências especiais, modalidade em que o parlamentar repassa recursos para governo ou prefeitura sem destinação específica e sem que seja necessária a apresentação de um plano de trabalho ou projeto pelo ente recebedor.

Nesse meio tempo, uma mudança também ocorria em relação aos vetos presidenciais. Como demonstra Bruno Carazza, a média mensal de vetos do período atual é duas vezes maior que a do governo Lula, e a derrubada mensal de vetos presidenciais no Congresso é cerca de quatro vezes maior hoje do que seu índice mais baixo no passado, durante o segundo governo Dilma. Estamos diante de um Executivo com dificuldades para coordenar a coalizão ou de um Parlamento reativo a um Executivo que usa os vetos como instrumento de publicidade para sua base eleitoral.

Outras duas variáveis, ligadas ao sistema eleitoral, também mudam a lógica da política como a conhecemos. São elas o fim das coligações em eleições proporcionais e a cláusula de desempenho progressiva, que tem como efeito a diminuição do número de partidos representados no Parlamento e com acesso a recursos públicos. Há mais dinheiro disponível – dos fundos públicos e no Orçamento federal – e teremos em breve menos partidos à mesa. Por óbvio, a disputa entre eles passará a ser não apenas mais acirrada, como também aumentará o poder na mão dos dirigentes e das lideranças partidárias.

Em pouco mais de cinco anos, e curiosamente no bojo do descrédito que acompanhou os políticos, assistimos à inversão do financiamento de campanha, à ampliação da influência do Legislativo federal sobre recursos públicos e a um outro padrão de interação entre os Poderes.

Caímos na ilusão de que o financiamento privado era a origem e a causa dos desvios políticos, o que levou a uma série de mudanças formais ou informais que tornaram o Parlamento um ator mais forte e o acesso a recursos públicos não necessariamente mais transparente. É possível antever que a governabilidade almejada com a diminuição do número de partidos encontre dificuldades de se concretizar, se o Executivo não recuperar para si algumas de suas prerrogativas e se mostrar capaz de coordenar a coalizão. Como é possível ver, na política não existe vácuo de poder.

Mônica Sodré, autora deste artigo, é cientista política e Diretor Execetuiva da Rede de Ação Política pela Sustententabilidade. (RAPS). Publicado originalmente n'O Estado de S; Paulo, em 22.03.22.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Queremos liberdade! Por que então defender ditadores?

Não entendo como parte da esquerda pode defender regimes autoritários como os de Putin, na Rússia, e Ortega, na Nicarágua. Quem reclama para si direitos democráticos deveria defender o mesmo em outras partes do mundo. Artigo de Thomas Milz

Mural com imagem de Vladimir Putin vandalizado após invasão da Ucrânia, com a palavra "assassino" pichada, em Belgrado, Sérvia. (Foto: ZORANA JEVTIC/REUTERS)

É assustador ver regimes autoritários como os da Nicarágua ou da Rússia serem defendidos. A democracia não era um valor universal, principalmente para a esquerda?

Cresci na Europa ocidental durante os anos 80, no auge da Guerra Fria. Na escola, os professores passavam vídeos em que se explicava como se comportar durante um ataque com bombas atômicas. Vindo da União Soviética. E no cinema passavam filmes que falavam sobre um mundo pós-destruição nuclear. Tudo muito assustador para uma criança como eu.

A única coisa que nos salvaria eram as bombas atômicas dos Estados Unidos, ou melhor: a "promessa" de que os EUA iriam responder a um ataque russo na mesma moeda. E funcionou: a Guerra Fria nunca esquentou.

Com meu pai, eu ia até a fronteira das duas Alemanhas, observando de longe os soldados da Alemanha Oriental que vigiavam aquele corredor da morte, a fim de não deixar ninguém passar do lado "comunista" para o lado "capitalista". Cada família tinha amigos ou parentes no outro lado, e todos sabiam de histórias de compatriotas tentando fugir da ditadura "comunista". Poucos conseguiam.

Para aos do outro lado, a história vinha sendo cruel: depois de 12 anos de ditadura de Hitler, tiveram que engolir ainda mais 40 anos de ditadura soviética. Lembro-me de um amigo da minha avó, preso durante o Terceiro Reich, depois prisioneiro de guerra na Rússia, para então ser preso na Alemanha Oriental. Uma vida destruída pelo cruel caminho da história.

Desejo de liberdade 

Para muitos europeus que conheço, como amigos poloneses e búlgaros, a queda da União Soviética foi um alívio, a melhor coisa que poderia acontecer. A partir de então conseguiam estudar e trabalhar em outros países da União Europeia, viajando pelo mundo, matando toda aquela vontade que se acumulara durante a Guerra Fria. Liberdade, ar para respirar! Finalmente.

Não cresci na América Latina ou no Brasil. Só cheguei aqui quando já tinha 26 anos, no final dos anos 90. Mas fiz muitas entrevistas com pessoas que lutavam contra as ditaduras latino-americanas. E a maioria dessas cruéis ditaduras foi apoiada pelos Estados Unidos, durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos que libertaram os alemães do monstro Hitler e que salvaram a gente de um ataque russo, aqui causaram muito sofrimento. Entendo que muitos latino-americanos desconfiem dos Estados Unidos.

Mas isso não os abstém da obrigação de refletir e de se atualizar. Havia muitos argumentos para derrubar ditadores como Fulgencio Batista em Cuba, em 1959, ou Anastasio Somoza na Nicarágua, em 1979. Mas nada justifica defender, em pleno 2022, a falta de liberdades impostas pelos regimes que sucederam àqueles ditadores. Hoje em dia, falo com ex-combatentes sandinistas que me dizem que Daniel Ortega se transformou num ditador tão cruel - ou até mais cruel - que o próprio Somoza.

Não entendo como parte da esquerda latino-americana pode defender esses regimes. Como, também não entendo como defendem o regime russo de Vladimir Putin. Um regime que cala a oposição, envenenando ou prendendo-na, botando ativistas gays na prisão e desrespeitando direitos fundamentais dos seus próprios cidadãos. Além de achar ter o direito de ditar o modo de vida de povos que habitam países vizinhos.

Entendo o desejo de pessoas do Leste Europeu de levar uma vida de liberdade de escolher, liberdade de viajar, de viver em paz onde quiser, ou melhor dizendo, de se tornar um cidadão da União Europeia. Voltar para o colo esmagador da Rússia seria inaceitável!

Mas é difícil encontrar pessoas aqui no Brasil que levem em conta a vontade dos povos e países do Leste Europeu sobre como viver a própria vida. São brasileiros que defendem a própria liberdade - e com toda a razão -, mas não dão o mesmo direito às pessoas no Leste Europeu.

Esquerda deveria ter mais capacidade de refletir

Não espero nada do campo da extrema direita bolsonarista. Bolsonaro gosta automaticamente de líderes tipo macho alfa que topam tirar foto com ele, como Donald Trump ou Vladimir Putin. No tabuleiro das ideologias, ele não sabe se é para jogar com as figuras brancas ou pretas. Não tem bússola ideológica ou norte moral nenhum.

Mas da esquerda eu esperava mais. Mais capacidade de refletir e abstrair. De se colocar no lugar do outro. Vladimir Putin mudou a Constituição russa para ficar no poder até 2036. Seriam 37 anos no poder, pois assumiu em 1999. E o líder da oposição Alexei Navalny corre o risco de passar o resto da vida na prisão, depois de sobreviver a uma tentativa de envenenamento.

Na Nicarágua, Daniel Ortega está no poder desde 2006 e agora tem mandato até 2026. Mandou condenar os políticos da oposição para que fiquem uma eternidade na prisão.

Até quando haverá apoio a esses regimes? Aqueles que reclamam para si direitos democráticos têm de defender os direitos democráticos em outras partes do mundo. Afinal de contas, não existia um compromisso com uma democracia universal? Cadê?

Thomas Milz, o autor deste artigo,  saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado por Deutsche Welle Brasil, em 16.03.22

Putin cometeu um profundo erro de cálculo sobre a Ucrânia; leia a análise


Primeiro, ele esperava que o Ocidente engolisse sua agressão contra a Ucrânia, como aconteceu com a Geórgia; segundo, achou que as tropas russas seriam bem recebidas pelos ucranianos. Leia a análise de Yaroslav Hrytsak, do New York Times.


A Ucrânia está mais uma vez no centro de um conflito potencialmente global. A Primeira Guerra Mundial, como disse o historiador Dominic Lieven, “desencadeou o destino da Ucrânia”. A Segunda Guerra Mundial, segundo o lendário jornalista Edgar Snow, foi “antes de tudo uma guerra ucraniana”. Agora, a ameaça de uma terceira guerra mundial depende do que pode acontecer na Ucrânia.

É uma repetição impressionante. Por que a Ucrânia, um país de médio porte de 40 milhões de pessoas no extremo leste da Europa, esteve no epicentro da guerra não uma, não duas, mas três vezes?

(Ucrânia rejeita ultimato para rendição de Mariupol e Rússia amplia ataques à cidade sitiada)

Parte da resposta, pelo menos, é geográfica. Situada entre a Rússia e a Alemanha, a Ucrânia há muito tempo é vista como o local da luta pela dominação do continente. Mas as razões mais profundas são de natureza histórica. A Ucrânia, que tem um ponto de origem comum com a Rússia, desenvolveu-se de maneira diferente ao longo dos séculos, divergindo de maneira crucial de seu vizinho do leste.

O presidente Vladimir Putin gosta de invocar a história como parte do motivo de sua sangrenta invasão. A Ucrânia e a Rússia, ele afirma, são de fato um país: a Ucrânia, na verdade, não existe. Isso, é claro, está totalmente errado. Mas ele está certo em pensar que a história contém uma chave para entender o presente. Ele simplesmente não percebe que, longe de permitir seu sucesso, isso é o que o frustrará.

Um homem segura um retrato do presidente russo, Vladimir Putin, durante as comemorações do oitavo aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia em Simferopol, Crimeia, em 18 de março de 2022.
Um homem segura um retrato do presidente russo, Vladimir Putin, durante as comemorações do oitavo aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia em Simferopol, Crimeia, em 18 de março de 2022 Foto: Alexey Pavlishak/Reuters
Em 1904, um geógrafo inglês chamado Halford John Mackinder fez uma previsão ousada. Em um artigo intitulado “O pivô geográfico da história”, ele sugeriu que quem controlasse o Leste Europeu controlaria o mundo. Em ambos os lados dessa vasta região estavam a Rússia e a Alemanha, prontas para a batalha. E no meio estava a Ucrânia, com seus ricos recursos de grãos, carvão e petróleo.

Não há necessidade de entrar nos detalhes mais sutis da teoria de Mackinder; ela tinha seus defeitos. No entanto, provou ser extremamente influente após a Primeira Guerra Mundial e tornou-se uma espécie de profecia autorrealizável. Graças ao geopolítico nazista Karl Haushofer, o conceito migrou para o “Minha Luta” de Hitler. Lenin e Stalin não leram Mackinder, mas agiram como se tivessem lido. Para eles, a Ucrânia era a ponte que levaria a Revolução Russa para o oeste até a Alemanha, tornando-a uma revolução mundial. O caminho para o conflito novamente passou pela Ucrânia.

A guerra, quando ocorreu, foi catastrófica: na Ucrânia, cerca de sete milhões pereceram. Na sequência, a Ucrânia foi selada à União Soviética, e a questão por um tempo parecia resolvida. Com o colapso do comunismo, muitos acreditavam que a tese de Mackinder estava ultrapassada e o futuro pertencia a estados independentes e soberanos, livres das ambições de vizinhos maiores. Eles estavam errados.

Exército russo bombardeia escola Ucrânia

O Exército russo bombardeou uma escola que servia de abrigo para centenas de pessoas na cidade de Mariupol, situação humanitária piora.

O argumento de Mackinder – de que o Leste Europeu e a Ucrânia eram a chave para uma disputa entre a Rússia e a Alemanha – nunca desapareceu. Na verdade, ocupou um lugar de destaque na mente de Putin. Com uma mudança, no entanto: ele substituiu a Alemanha pelo Ocidente em sua totalidade. A Ucrânia, para Putin, tornou-se o campo de batalha de uma disputa civilizatória entre a Rússia e o Ocidente.

Ele não agiu de acordo com isso a princípio. Nos primeiros anos de seu mandato, ele parecia esperar – em linha com aqueles no círculo de Boris Yeltsin que supervisionaram o fim da União Soviética – que a independência ucraniana não duraria muito. Com o tempo, a Ucrânia imploraria para ser retomada. Isso não aconteceu. Embora alguns ucranianos permanecessem sob o domínio da cultura russa, politicamente eles se inclinavam para o Ocidente, como mostrado pela Revolução Laranja de 2004, quando milhões de ucranianos protestaram contra a fraude eleitoral.

Então, Putin mudou de rumo. Logo após a guerra na Geórgia em 2008, na qual o Kremlin assumiu o controle de duas regiões da Geórgia, ele desenhou uma nova política estratégica para a Ucrânia. De acordo com o plano, quaisquer medidas que Kiev pudesse tomar em direção ao Ocidente seriam punidas com agressão militar. O objetivo era separar o leste russófono da Ucrânia e transformar o resto do país em um estado vassalo liderado por um fantoche do Kremlin.

Na época, parecia fantástico, ridículo. Ninguém acreditava que pudesse ser genuíno. Mas nas semanas finais da Revolução de Maidan na Ucrânia em 2014, na qual os ucranianos exigiram o fim da corrupção e a aceitação do Ocidente, ficou terrivelmente claro que a Rússia pretendia agredir. E assim foi: em uma operação rápida, Putin apreendeu a Crimeia e partes de Donbas. Mas, crucialmente, toda a extensão de sua ambição foi frustrada, em grande parte pela resistência heroica montada por voluntários no leste do país.

Ucranianos analisam um prédio parcialmente destruído por um míssil russo em Kiev, Ucrânia Foto: Atef Safadi/EFE

Putin calculou mal de duas maneiras. Primeiro, ele esperava que, como havia acontecido com sua guerra contra a Geórgia, o Ocidente engolisse tacitamente sua agressão contra a Ucrânia. Uma resposta unificada do Ocidente não era algo que ele esperasse. Segundo, já que em sua mente russos e ucranianos eram uma nação, Putin acreditava que as tropas russas mal precisavam entrar na Ucrânia para serem recebidas com flores. Isso nunca se concretizou.

O que aconteceu na Ucrânia em 2014 confirmou o que historiadores liberais ucranianos vêm dizendo há muito tempo: a principal distinção entre ucranianos e russos não está na língua, religião ou cultura – aqui eles são relativamente próximos – mas nas tradições políticas. Simplificando, uma revolução democrática vitoriosa é quase impossível na Rússia, enquanto um governo autoritário viável é quase impossível na Ucrânia.

A razão para esta divergência é histórica. Até o final da Primeira Guerra Mundial (e no caso da Ucrânia ocidental, o final da Segunda Guerra Mundial), as terras ucranianas estavam sob forte influência política e cultural da Polônia. Essa influência não era polonesa em si; era, antes, uma influência ocidental. Como disse o bizantino de Harvard Ihor Sevcenko, na Ucrânia o Ocidente estava vestido com roupas polonesas. No centro dessa influência estavam as ideias de restringir o poder centralizado, uma sociedade civil organizada e alguma liberdade de reunião.

Morte e devastação entre os escombros do quartel de Mikolaiv

A Rússia intensificou sua ofensiva, anunciando o uso de mísseis hipersônicos e Zelensky diz que é hora de Moscou aceitar em "conversar" seriamente sobre a paz.

Putin parece não ter aprendido nada com seus fracassos em 2014. Ele lançou uma invasão em grande escala, aparentemente destinada a remover o governo ucraniano do poder e pacificar o país. Mas, novamente, a agressão russa foi recebida com a heroica resistência ucraniana e uniu o Ocidente. Embora Putin possa escalar ainda mais, ele está longe da vitória militar que buscava. Mestre da tática, mas estrategista inepto, ele cometeu seu mais profundo erro de cálculo.

Ele baseia-se na crença de que está em guerra não com a Ucrânia, mas com o Ocidente em terras ucranianas. É essencial compreender este ponto. A única maneira de derrotá-lo é transformar sua crença – de que a Ucrânia está lutando não sozinha, mas com a ajuda do Ocidente e como parte do Ocidente – em um pesadelo acordado.

Como isso poderia ser feito, seja por meio de ajuda humanitária e militar, incorporando a Ucrânia à União Europeia ou mesmo fornecendo-lhe seu próprio Plano Marshall, são questões em aberto. O que importa é a vontade política de respondê-las. Afinal, a luta pela Ucrânia, como a história nos diz, é muito mais do que apenas sobre a Ucrânia ou a Europa. É a luta pela forma do mundo que está por vir.

Yaroslav Hrytsak é professor de história na Universidade Católica Ucraniana e autor, mais recentemente, de uma história global da Ucrânia. Publicado  pelo New York Times. Reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo. TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

Todo o nacionalismo de Putin e o desafio ao Ocidente em um único discurso: analisamos ponto a ponto

Um discurso proferido na última quarta-feira mostra as posições radicais que oprimem a sociedade russa e abalam a ordem mundial

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, proferiu na última quarta-feira perante os principais líderes federais e regionais do país e em plena campanha de guerra contra a Ucrânia , um discurso de tom nacionalista exacerbado, repleto de acusações contra o Ocidente e pouco sutil ameaças contra supostos traidores e quinta-colunas na sociedade russa. A seguir, explicamos as chaves de interpretação da narrativa que o Kremlin busca difundir entre seus cidadãos e além das fronteiras da Rússia.

Discurso de Vladimir Putin em 16.03.2022

Boa tarde companheiros.

Funcionários de alto escalão do governo, enviados presidenciais plenipotenciários nos distritos federais e os presidentes das regiões russas estão presentes em nossa reunião.

Estamos nos reunindo durante um período difícil, quando nossas Forças Armadas estão realizando uma operação militar especial na Ucrânia e em Donbas .

"Operação Militar Especial"

O órgão supervisor de telecomunicações russo, Roskomnadzor, ordenou que a mídia com edições no país exclua o conteúdo onde definem o conflito como "guerra" em vez da forma oficial, "operação militar especial para a proteção das repúblicas de Donetsk e Lugansk". Vários veículos foram bloqueados para isso, como a televisão independente Dozhd, que ainda transmite no YouTube, e as versões russas da BBC, Deutsche Welle e Voice of America, entre outros canais. Além disso, fechou Eco de Moscou, rádio e portal com mais de três décadas de história onde havia espaço para vozes de oposição e prokremlin. O conflito, que começou em 24 de fevereiro, é a maior campanha militar na Europa em oito décadas e já causou milhares de mortes.

Gostaria de lembrá-los que logo no início, na manhã de 24 de fevereiro, anunciei publicamente as razões para realizar as ações da Rússia e seu objetivo principal. É para ajudar nosso povo de Donbass, que há oito anos sofre um verdadeiro genocídio da maneira mais selvagem, ou seja, através de um bloqueio, operações punitivas em grande escala, ataques terroristas e constantes assaltos de artilharia .

"Genocídio"

de violações diárias do cessar-fogo por ambos os lados desde a trégua de 2015. Isso também não constitui em si um genocídio. Durante a Conferência de Segurança de Munique, realizada em fevereiro, o chanceler alemão Olaf Scholz descreveu a acusação de genocídio como “ridícula”.

Sua única falha foi pedir que os direitos humanos básicos fossem respeitados: viver de acordo com as leis e tradições de seus ancestrais, falar sua língua materna e criar seus filhos como eles desejam.

"Língua materna"

O russo é a segunda língua do país e, embora devamos voltar a 2001, segundo o último censo era falado por um terço da população, sendo difundido nas duas grandes cidades do país e agora sitiadas, kyiv e Carcóvia. O governo anterior de Kiev, o de Petró Poroshenko, publicou uma lei em 2019 para fortalecer o ucraniano como a primeira língua sobre o resto das línguas minoritárias do país, não apenas o russo, mas também o tártaro. Entre outras medidas, contempla que as escolas dêem aulas em ucraniano e que a indústria hoteleira assista nesse idioma, a menos que o cliente solicite expressamente outro. Um de seus pontos, que entrou em vigor este ano, exige que todas as mídias em russo tenham uma versão em ucraniano (mas não em outros idiomas da União Europeia, como o inglês).

Durante estes anos, as autoridades de Kiev ignoraram e sabotaram a implementação do Pacote de Medidas de Minsk para uma resolução pacífica da crise e, finalmente, no final do ano passado, recusaram-se abertamente a aplicá-lo.

"Pacote de medidas Minsk"

Nenhum dos lados cumpriu os acordos de Minsk de 2014 e 2015 para a paz no leste da Ucrânia. O Kremlin exigiu esses anos que Kiev concedesse um status especial à zona separatista por meio de uma reforma constitucional (item 11) e realizasse eleições lá (item 12). Para realizar eleições justas, o governo ucraniano exigiu que a área seja desmilitarizada antecipadamente com a saída de todos os grupos armados presentes na região (ponto 10), a retirada de todas as armas pesadas (ponto 3) e que Kiev recupere as controle da fronteira de Donbass com a Rússia (item 9).

Eles também começaram a realizar planos para ingressar na OTAN. Além disso, as autoridades de Kiev também anunciaram sua intenção de adquirir armas nucleares e dispositivos de entrega. Era uma ameaça real.

"Armas nucleares"

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, nunca anunciou que implantaria armas nucleares em seu país. O presidente declarou durante a Conferência de Segurança de Munique em fevereiro que convocaria os signatários do Memorando de Budapeste de 1994 para exigir garantias de segurança ou rescindir o acordo. Esse pacto, também assinado por Rússia e Estados Unidos, previa a retirada do arsenal nuclear que a Ucrânia herdou da URSS em troca da garantia de sua integridade territorial e soberania. Zelensky destacou que Kiev tentou convocar as partes até três vezes desde a anexação russa da Crimeia em 2014, e alertou que a quarta tentativa seria a última: "Se não ocorrer ou seus resultados não garantem a segurança do nosso país,

O regime pró-nazista de Kiev, com assistência técnica estrangeira, teria obtido armas de destruição em massa em um futuro próximo e naturalmente as dirigido contra a Rússia.

"O regime pró-nazista"

Volodymyr Zelensky é judeu. O Kremlin manteve uma relação relativamente cordial com ele de 2019 a 2021, quando as relações foram rompidas após o desmantelamento das emissoras de televisão e a prisão do político de oposição ucraniano Viktor Medvedchuk, que era muito próximo do Kremlin. Tanto Zelensky quanto seu antecessor, Petró Poroshenko (2014-2019), foram reconhecidos por Putin assim que ele venceu as eleições presidenciais. O partido de Zelenski, Servo do Povo, foi promovido pelo ator e outros membros de sua produtora Kvartal 95 como uma alternativa às formações dos oligarcas e não tem abordagens pró-nazistas. Nas eleições legislativas de 2019, conquistou a maioria (254 cadeiras), enquanto a formação de extrema-direita Sbovoda, protagonista das acusações de extremismo nos eventos Maidan de 2014, obteve apenas uma das 450 cadeiras na Rada. A acusação de "regime nazista" geralmente é apoiada pela integração dos voluntários do batalhão Azov e Pravy Sektor, conhecido por mostrar suásticas em algumas imagens e homenagear o ultranacionalista Stepan Bandera, nas forças armadas ucranianas durante o Donbas guerra. O líder deste último grupo, Dmitro Yarosh, foi nomeado conselheiro do comandante-em-chefe ucraniano, Valerii Zaluzhnii, em novembro de 2021, em pleno rearmamento russo. No entanto, é apenas uma fração do exército ucraniano, e eles não têm influência política significativa. nas forças armadas ucranianas durante a guerra de Donbas. O líder deste último grupo, Dmitro Yarosh, foi nomeado conselheiro do comandante-em-chefe ucraniano, Valerii Zaluzhnii, em novembro de 2021, em pleno rearmamento russo. No entanto, é apenas uma fração do exército ucraniano, e eles não têm influência política significativa. nas forças armadas ucranianas durante a guerra de Donbas. O líder deste último grupo, Dmitro Yarosh, foi nomeado conselheiro do comandante-em-chefe ucraniano, Valerii Zaluzhnii, em novembro de 2021, em pleno rearmamento russo. No entanto, é apenas uma fração do exército ucraniano, e eles não têm influência política significativa.

Havia uma rede de dezenas de laboratórios na Ucrânia nos quais programas biológicos militares eram realizados sob a supervisão do Pentágono e com sua ajuda financeira, que incluía experimentos com tipos de coronavírus, antraz, cólera, peste suína africana e outras doenças mortais. Eles estão tentando desesperadamente esconder o rastro desses programas secretos. No entanto, temos motivos para acreditar que os componentes das armas biológicas foram fabricados nas proximidades da Rússia em território ucraniano . A Ucrânia e seus patrocinadores nos EUA e na OTAN rejeitaram abertamente, de forma arrogante e cínica, nossos inúmeros avisos de que esses eventos representavam uma ameaça direta à segurança da Rússia.

"armas biológicas"

Os Estados Unidos não escondem que financiam vários laboratórios ucranianos no âmbito do programa Cooperação para Redução de Ameaças para prevenir surtos de possíveis pandemias. A origem deste programa remonta à queda da União Soviética, quando Washington apoiou a transferência de pesquisas militares para outros civis nas ex-repúblicas da URSS. O objetivo seria detectar precocemente surtos de doenças endêmicas na região. As acusações do Kremlin têm origem nas explicações dadas pela subsecretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland, perante o Comitê de Relações Exteriores do Senado. A reunião serviu para detalhar a atividade desses laboratórios. As acusações russas não são apoiadas por provas credíveis.

Em outras palavras, todos os nossos esforços diplomáticos foram completamente em vão. Eles não nos deixaram uma alternativa pacífica para resolver os problemas que surgiram sem culpa nossa. Nesta situação, fomos forçados a iniciar esta operação militar especial.

"Fomos forçados"

A retórica oficial russa negou a possibilidade de guerra até o reconhecimento das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk em 21 de fevereiro, dia em que Putin ordenou o envio de tropas para a região. Na noite de sexta-feira, 18 de fevereiro, as autoridades da zona separatista anunciaram a evacuação da população civil devido à ameaça de uma suposta iminente ofensiva ucraniana e a intensificação das violações do cessar-fogo na linha de contato no dia anterior, o 17. Os metadados dos vídeos mostraram que eles foram gravados na quarta-feira, 16, apesar de o presidente de Donetsk, Denis Pushilin, ter dito "hoje, 18 de fevereiro". Na semana anterior ao início da guerra, a atividade diplomática europeia foi frenética e incluiu visitas a Moscou do presidente francês, Emmanuel Macron, e do chanceler alemão, Olaf Scholz. No encontro com este último, Putin assegurou que havia pontos de vista em comum com os Estados Unidos e que as propostas da OTAN eram aceitáveis ​​para negociações. Um dia antes, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, disse que o diálogo com Washington e a Aliança Atlântica estava "longe de se esgotar".

A pressão das forças russas contra Kiev e outras cidades ucranianas não está relacionada com o desejo de ocupar aquele país. Não é nosso objetivo, como apontei abertamente em minha declaração de 24 de fevereiro.

Quanto às táticas de combate elaboradas pelo Ministério da Defesa russo e pelo Estado-Maior, elas são plenamente justificadas. Nossos colegas soldados e oficiais estão mostrando coragem e heroísmo, fazendo tudo o que podem para não causar baixas civis nas cidades ucranianas.

"Evitar vítimas civis"

A ONU confirmou em 18 de março pelo menos 816 cidadãos mortos e 1.333 feridos desde o início da invasão, a maioria deles devido a ataques de artilharia pesada, embora alerte que o número real é sem dúvida consideravelmente maior porque não pode acessar pontos quentes como Mariupol . As informações que chegam do campo apontam para o enorme sofrimento da população. A cidade de Mariupol, chave para ligar a Crimeia a Donbas, está agora protagonizando um dos piores cercos. Outro exemplo é um bombardeio em Chernigov, onde pelo menos 10 pessoas foram mortas enquanto faziam fila para comprar pão. Ataques contra civis em fuga e instalações médicas foram registrados. Muitos cidadãos ucranianos ficaram sem água ou eletricidade por causa da ofensiva russa e vivem há quase um mês em abrigos e porões.

Isto é o que eu gostaria de dizer pela primeira vez: no início da operação em Donbas, as autoridades de Kiev tiveram a oportunidade de evitar hostilidades, por vários meios, simplesmente retirando suas tropas de Donbas como uma alternativa ao derramamento de sangue. Eles não queriam fazer isso. Bem, é a decisão que eles tomaram; agora eles vão entender o que realmente acontece, no terreno. A operação está sendo realizada com sucesso, em estrita conformidade com o plano adotado.

Devo salientar que a Ucrânia, encorajada pelos EUA e outros países ocidentais, preparou-se deliberadamente para um cenário de força, matança e limpeza étnica em Donbas. Era apenas uma questão de tempo até que houvesse um ataque maciço em Donbas e depois na Crimeia. No entanto, nossas Forças Armadas interromperam esses planos.

Kiev não estava apenas se preparando para a guerra, para a agressão contra a Rússia, mas na verdade levando-a a cabo. Houve tentativas incessantes de organizar atos subversivos e uma rede terrorista clandestina na Crimeia. Durante todos esses anos, as hostilidades em Donbas e o bombardeio de áreas residenciais pacíficas continuaram. Ao longo deste tempo, cerca de 14.000 civis , incluindo crianças, foram mortos.

"14.000 civis morreram"

A ONU confirmou a morte de 3.095 civis na guerra de Donbass entre o início do conflito em 2014 e setembro de 2021. Segundo as Nações Unidas, o restante das 13.300 mortes estimadas eram combatentes de ambos os lados. A missão especial da OSCE e da Human Rights Watch registraram nestes sete anos violações do cessar-fogo e bombardeios de áreas residenciais em ambos os lados da frente.

Como você sabe, em 14 de março, ocorreu um ataque com mísseis no centro de Donetsk . Foi um ato terrorista sangrento óbvio que tirou mais de 20 vidas. Durante os últimos dias os bombardeios continuaram. Eles estão atacando quadrados ao acaso com o fervor dos fanáticos e a exasperação dos condenados. Eles se comportam como os nazistas quando tentaram arrastar o maior número possível de vítimas inocentes para a morte.

"Ataque no centro de Donetsk"

O Ministério da Defesa da Rússia afirmou que um míssil balístico ucraniano Tochka-U matou 23 pessoas no centro de Donetsk em 14 de março. Autoridades separatistas da região disseram anteriormente que derrubaram um foguete inimigo e seus fragmentos caíram sobre a cidade, matando vários civis. Por sua vez, o porta-voz da Defesa ucraniano, Leonid Matyujin, afirmou que o míssil era, "sem erro, um foguete russo ou outro tipo de munição. Não há o que falar". Nenhuma das teorias até agora foi verificada de forma independente.

Mas o que é escandaloso por seu cinismo extremo não são apenas as mentiras descaradas de Kiev e suas alegações de que a Rússia supostamente lançou esse míssil contra Donetsk (eles foram tão longe), mas a atitude do chamado mundo civilizado . A imprensa europeia e americana nem sequer prestou atenção a esta tragédia em Donetsk , como se nada tivesse acontecido.

"A imprensa europeia e americana..."A imprensa ocidental, tanto as agências de notícias quanto a mídia, noticiaram o evento e o cruzamento de acusações de ambos os lados. No entanto, as restrições ao acesso à zona separatista impedem uma maior cobertura por parte dos jornalistas no terreno.

Assim têm sido, hipócritamente olhando para o outro lado nos últimos oito anos , enquanto as mães enterravam seus filhos em Donbas e os idosos eram assassinados. É pura degradação moral e total desumanização.

"Olhando Para Longe"

A cobertura do conflito latente em Donbass ficou em segundo plano também para a mídia russa de 2016-2017 e até sua reativação em 2021 não voltou a ser manchete. Da zona separatista esse silêncio tem sido criticado. Por exemplo, o comandante Alexánder Khodakovski disse em seu blog pessoal em maio de 2017 que durante as negociações com Kiev ele estava jogando com a carta de repetir o cenário da Transnístria (território não reconhecido que a Moldávia exige recuperar) "com silêncio, novamente , do oficial russo meios de comunicação".

Essa atitude escandalosa em relação ao povo de Donbas não podia mais ser tolerada. A Rússia, para pôr fim a este genocídio, reconheceu as Repúblicas Populares de Donbas e assinou tratados de amizade e ajuda mútua com elas. Com base nesses tratados, as repúblicas pediram ajuda militar à Rússia para repelir a agressão. Nós lhes demos essa ajuda porque simplesmente não podíamos fazer mais nada. Não tínhamos o direito de agir de outra forma.

Gostaria de salientar este ponto e pedir-lhe que preste atenção: se as nossas tropas tivessem actuado apenas dentro das repúblicas populares e ajudado a libertar o seu território, não teria sido uma solução final, não teria conduzido à paz e não teria eliminado definitivamente a ameaça ao nosso país, desta vez à Rússia. Pelo contrário, uma nova linha de frente teria se estendido ao redor do Donbas e suas fronteiras, e os bombardeios e provocações teriam continuado. Em outras palavras, esse conflito armado teria se arrastado indefinidamente, alimentado pela histeria de vingança do regime de Kiev, à medida que a OTAN implantava sua infraestrutura militar cada vez mais rápida e agressivamente. Neste caso, estaríamos diante do fato de que o ataque, as armas ofensivas da aliança, já estavam em nossas fronteiras.

"OTAN implantado"

A OTAN não tem bases nem baterias na Ucrânia, país que não faz parte da Aliança Atlântica. Alguns países da organização de fato enviaram conselheiros militares ao país e ofereceram armas defensivas (mísseis antitanque e antiaéreos) individualmente. A Ucrânia e a OTAN anunciaram uma série de exercícios conjuntos em outubro de 2021, depois que se soube que a Rússia e a Bielorrússia realizariam outra série de exercícios com mais de 100.000 soldados no total.

Repito, não tivemos outra alternativa para nos defender e garantir a segurança da Rússia além dessa operação militar especial. Alcançaremos os objetivos que estabelecemos para nós mesmos. Certamente garantiremos a segurança da Rússia e de nosso povo e nunca permitiremos que a Ucrânia seja uma ponte para realizar ações agressivas contra nosso país.

Continuamos prontos para discutir questões de importância fundamental para o futuro da Rússia durante as negociações. Isso inclui o status da Ucrânia como um país neutro, desmilitarização e desnazificação . Nosso país tem feito tudo o que pode para organizar e manter essas negociações porque sabe que é importante aproveitar todas as oportunidades para salvar pessoas e vidas.

Mas vemos repetidas vezes que o regime de Kiev, dirigido pelo Ocidente, foi encarregado de adotar uma postura agressiva anti-russa, sem se importar com o futuro do povo da Ucrânia. Ele não se importa que as pessoas estejam morrendo, que centenas de milhares, ou mesmo milhões, tenham sido forçadas a fugir de suas casas , e que um terrível desastre humanitário esteja acontecendo nas cidades controladas pelos neonazistas e criminosos armados que foram colocar na Liberdade.

"Milhões de pessoas tiveram que fugir"

De fato, mais de três milhões de pessoas deixaram a Ucrânia desde 24 de fevereiro, segundo dados da ONU. Eles fogem das bombas disparadas pela Rússia em uma ofensiva não provocada. A UE abriu as suas portas a todos os refugiados da Ucrânia.

Está claro que os padrinhos ocidentais de Kiev o estão pressionando para continuar o derramamento de sangue. Eles continuam fornecendo-lhe armas e inteligência , além de outros tipos de ajuda, incluindo conselheiros militares e mercenários.

"Fornecê-lo com armas"

Os países ocidentais evitaram fornecer armas relevantes para a Ucrânia após a eclosão do conflito em 2014 precisamente para evitar o risco de escalada. Os EUA entregaram um número muito pequeno de mísseis antitanque Javelin, com a condição de que fossem armazenados longe das linhas de frente. Após a invasão de 24 de fevereiro, houve um aumento da oferta, mas de armas defensivas de pequena escala, como o próprio Javelin ou os Stingers anti-aviação. Nenhum sistema de armas sofisticado foi entregue.

Eles usam sanções econômicas, financeiras, comerciais e outras contra a Rússia como armas, mas essas sanções tiveram repercussões na Europa e nos EUA , onde os preços do gás, da energia e dos alimentos dispararam e foram perdidos. mercado russo. Portanto, não nos culpem e não acusem nosso país de tudo o que há de errado em seus países.

Também quero que os ocidentais comuns me ouçam. Eles são repetidamente informados de que suas dificuldades atuais se devem às ações hostis da Rússia e que eles têm que pagar do próprio bolso pelos esforços para repelir a suposta ameaça russa. Tudo isso é mentira.

A verdade é que os problemas enfrentados por milhões de pessoas no Ocidente são o resultado das ações da elite dominante de seus respectivos países ao longo de muitos anos, seus erros e suas políticas e ambições míopes. Essa elite não pensa em como melhorar a vida de seus cidadãos nos países ocidentais. Ela é obcecada por seus próprios interesses e super lucros.

Isso pode ser visto nos dados fornecidos por organizações internacionais, que mostram claramente que os problemas sociais, mesmo nos grandes países ocidentais, se agravaram nos últimos anos, que a desigualdade e o fosso entre ricos e pobres estão aumentando e que as diferenças étnicas e raciais os conflitos se fazem sentir. O mito da sociedade de bem-estar ocidental, de pessoas relativamente ricas, está desmoronando.

"Problemas sociais nas sociedades ocidentais"

É verdade que em alguns países ocidentais existem dinâmicas desfavoráveis ​​de desigualdade e problemas de integração das minorias. Putin, no entanto, evita mencionar importantes elementos de contexto. De qualquer forma, as sociedades europeias estão, em termos gerais, na vanguarda mundial da coesão social graças a poderosos sistemas de segurança social. Por outro lado, a denúncia das elites ocidentais obcecadas com "super-lucros" é surpreendentemente impressionante quando uma casta de oligarcas prospera na Rússia que não apenas acumula fortunas extrativistas impressionantes, mas faz muito mais com base na corrupção e nas relações pessoais. do que talento e inovação.

Reitero que o planeta inteiro está agora pagando pelas ambições e tentativas ocidentais de manter o maior domínio possível.

A imposição de sanções é a continuação lógica e a síntese da política míope e irresponsável dos governos e bancos centrais dos EUA e da Europa. Eles mesmos causaram o aumento da inflação global nos últimos anos, e suas ações levaram ao aumento da pobreza global e à maior desigualdade em todo o mundo. A questão que surge agora é quem ajudará os milhões de pessoas que passarão fome nos países mais pobres do mundo devido à crescente escassez de alimentos.

Permitam-me enfatizar que a economia global e o comércio como um todo foram duramente atingidos, assim como a confiança no dólar americano como principal moeda de reserva.

O bloqueio ilegal de uma parte das reservas monetárias do Banco da Rússia marca o fim da confiança nos chamados ativos de primeira classe.

"O bloqueio ilegal"

A consideração de qualquer atividade como ilegal ou não corresponde a autoridades judiciais independentes. O governo russo alertou que recorrerá a tribunais internacionais. Em todo caso, posta a risca por ilegalidade, a lógica exige primeiro avaliar a guerra não provocada desencadeada por Putin, da qual o bloqueio em questão constitui uma resposta punitiva. É verdade que o Ocidente tem uma posição de supremacia nos mercados financeiros que pode ser explorada de forma muito eficaz. Sem dúvida, muitos tomaram nota, mas o "fim da confiança" referido no discurso não é de forma alguma generalizado, mas limitado àqueles que consideram lançar agressões com base legal manifestamente discutível.

De fato, os EUA e a UE renegaram suas obrigações para com a Rússia. Agora todos sabem que as reservas financeiras podem simplesmente ser roubadas. E muitos países no futuro imediato podem começar - tenho certeza que é isso que vai acontecer - transformando seus ativos digitais e de papel em reservas reais de matérias-primas, terras, alimentos, ouro e outros ativos reais, levando a mais escassez nesses mercados .

Permitam-me acrescentar que a apreensão de ativos e contas estrangeiras de empresas e indivíduos russos também é uma lição para as empresas nacionais de que não há nada mais confiável do que investir no próprio país. Eu pessoalmente já disse isso várias vezes.

Agradecemos a posição das empresas estrangeiras que continuam trabalhando em nosso país apesar da pressão descarada dos EUA e seus vassalos. Tenho certeza de que eles encontrarão mais oportunidades de crescimento no futuro.

Também conhecemos aqueles que traíram covardemente seus parceiros e negligenciaram sua responsabilidade para com seus funcionários e clientes na Rússia para obter lucros ilusórios ao se juntar à campanha contra a Rússia. No entanto, ao contrário dos países ocidentais, respeitaremos os direitos de propriedade.

"Responsabilidade com seus funcionários"

Mais de 400 empresas reconsideraram suas atividades na Rússia por causa da invasão, de acordo com uma contagem da Universidade de Yale. Cerca de 160 retiraram-se do mercado, cerca de 180 suspenderam a actividade, outros 25 reduziram a sua actividade. A casuística é, portanto, muito variada, mas muitas das empresas em questão não concluíram as suas operações e estão à espera de ver o desenrolar dos acontecimentos. Por exemplo, o McDonald's garantiu que, por enquanto, manterá seus 62.000 funcionários na equipe.

Isto é o que eu gostaria de salientar. Devemos entender claramente que um novo pacote de sanções e restrições teria sido imposto a nós em qualquer caso. Eu quero enfatizar isso. Para o Ocidente, nossa operação militar na Ucrânia nada mais é do que um pretexto para nos impor mais sanções. Não há dúvida de que desta vez eles estão concentrados. Da mesma forma, o Ocidente usou como pretexto o referendo na Crimeia que, aliás, foi realizado em 16 de março de 2014, oito anos atrás, quando o povo da Crimeia e Sebastopol escolheu livremente pertencer à sua pátria histórica .

"Escolheu livremente"

Putin reconheceu no documentário 'Back' (2015) que ordenou às suas forças de segurança a missão de "recuperar a Crimeia". De acordo com suas palavras, ele decidiu na noite de 23 de fevereiro de 2014, quando o ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovych fugiu do país após o massacre de Maidan. Em 27 de fevereiro, com o governo provisório ucraniano desconcertado, soldados russos não identificados apareceram na península do Mar Negro e tomaram o parlamento regional, entre outros edifícios. Entre os combatentes estava o comandante Igor Girkin 'Strelkov', que atacaria Donbas em abril e iniciaria a guerra. Em 16 de março, foi realizado o referendo de anexação, que nem os EUA nem a União Europeia reconheceram, e sobre o qual a China permaneceu em silêncio até agora. Segundo o suposto escrutínio, o sim venceu com 95, 7% de apoio e 83,1% de participação. Desde então, o chefe da Crimeia é Sergei Aksionov, cujo partido, a Unidade Russa, conquistou apenas três dos 100 assentos nas últimas eleições regionais sob a bandeira ucraniana.

Repito que são apenas desculpas. A política de conter e enfraquecer a Rússia, inclusive por meio do isolamento econômico, por meio do bloqueio, é uma estratégia deliberada de longo prazo. Os líderes ocidentais não escondem mais o fato de que as sanções não são direcionadas a indivíduos ou empresas. O seu objetivo é desferir um golpe em toda a nossa economia, nas nossas esferas sociais e culturais, em todas as famílias e em todos os cidadãos russos.

De fato, as medidas destinadas a piorar a vida de milhões de pessoas têm todas as marcas da agressão, da guerra por meios econômicos, políticos e informativos, e de natureza flagrante e abrangente. Mais uma vez, os principais círculos políticos ocidentais nem sequer hesitam em falar abertamente sobre isso.

A pátina verbal do politicamente correto, a inviolabilidade da propriedade privada e a liberdade de expressão desapareceram da noite para o dia. Até os princípios olímpicos foram pisoteados. Eles não hesitaram em acertar suas contas através dos atletas paralímpicos. Adeus àquele "esporte é separado da política".

Em muitos países ocidentais, as pessoas são perseguidas apenas porque vêm da Rússia, não recebem assistência médica, seus filhos são expulsos das escolas, seus pais perdem seus empregos e a música, a cultura e a literatura russas são proibidas. Em suas tentativas de "anular" a Rússia, o Ocidente tirou sua máscara de decência e começou a agir grosseiramente mostrando sua verdadeira face. Não podemos deixar de lembrar os pogroms antissemitas nazistas na Alemanha na década de 1930 e, posteriormente, os pogroms realizados por seus asseclas em muitos países europeus que se juntaram à agressão nazista contra nosso país durante a Grande Guerra Patriótica.

"Os Pogroms Nazistas"

Novamente, uma hipérbole que toca a chave nazista sem qualquer justificativa factual, na qual parece ser uma aposta retórica consciente para acender o ardor nacionalista, conectando o presente com a epopeia da luta contra as hostes hitleristas.

Também houve um ataque maciço contra a Rússia no ciberespaço.

"Ataque contra a  Rússia no Ciberespaço"

Um relatório recente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres classifica a Rússia como a potência mais agressiva em termos de atividades disruptivas no ciberespaço. A Ucrânia tem sido precisamente o alvo de vários desses ataques nos últimos anos, mas o registro russo vai muito além.

Uma campanha de informação sem precedentes foi lançada através da mídia social global e de todos os meios de comunicação ocidentais, cuja imparcialidade e independência têm se mostrado um mero mito.

"Imparcialidade e independência"

Mais uma vez, ele denuncia supostos problemas no Ocidente e obviamente ignora a brutal repressão à liberdade de informação que lidera em seu país.

O acesso à informação é restrito e as pessoas são bombardeadas com todo tipo de histórias falsas, propagandas e invenções, ou simplesmente, vendem fumaça. Chegou ao ponto em que as empresas de mídia social americanas disseram abertamente que as chamadas para matar cidadãos russos podem ser postadas.

   "Matar cidadãos russos"

Em 10 de março, a agência Reuters publicou informações que apontavam para documentos internos da Meta (empresa-mãe do Facebook e Instagram) segundo os quais foi decidido modificar as regras de censura ao discurso de ódio em uma dúzia de países para permitir a incitação à violência contra. alvos russos. Posteriormente, a empresa definiu as exceções à sua política geral de forma mais restritiva, o que justifica com a ideia de que os mesmos padrões não podem ser aplicados diante da agressão russa como em outras situações.

Estamos cientes dos recursos disponíveis para esse império de mentiras, mas ao mesmo tempo, diante da verdade e da justiça, ele se sente impotente. A Rússia nunca deixará de tentar deixar sua posição clara para o mundo inteiro. Nossa posição é honesta e aberta, e mais e mais pessoas a ouvem, entendem e compartilham.

Quero ser o mais direto possível: o discurso hipócrita e as ações recentes do chamado Ocidente coletivo escondem intenções geopolíticas hostis. Eles não suportam — simplesmente não suportam — que a Rússia seja forte e soberana, e não nos perdoarão por nossa política independente ou por defendermos nossos interesses nacionais.

Ainda nos lembramos de como eles apoiaram o separatismo e o terrorismo incentivando terroristas e bandidos no norte do Cáucaso. Como nos anos 1990 e início dos anos 2000, eles querem tentar acabar conosco novamente , nos reduzir a nada, tornando-nos um país fraco e dependente, destruindo nossa integridade territorial e desmembrando a Rússia como bem entenderem. Eles falharam então, e falharão desta vez.

                                    "Eles querem tentar acabar com a gente"

Este é um dos elementos centrais na narrativa política de Putin. Ressentimento pelas supostas tentativas do Ocidente de dobrar a Rússia em seu momento de fraqueza e caos após a dissolução da URSS, ou pelo menos as supostas manobras para tirar proveito da situação. Central para a narrativa é a expansão da OTAN para o leste, de acordo com Moscou quebrando pactos anteriores. Não há nenhum tratado vinculante para esse efeito, e os historiadores contestam até que ponto pode ter havido promessas orais do Ocidente. De qualquer forma, a retórica de Putin geralmente omite qualquer referência ao livre arbítrio democrático de muitas sociedades na esfera soviética para se juntar a organizações ocidentais. De qualquer forma, diante dela, são apontadas manobras norte-americanas para manipular a opinião pública.

Sim, claro, eles vão voltar para a chamada quinta coluna, para os traidores nacionais, para aqueles que ganham dinheiro aqui em nosso país, mas vivem lá , e "vivem" não no sentido geográfico da palavra, mas em suas mentes, em sua mentalidade servil.

"Aqueles que moram lá"

O próprio círculo do Kremlin também tem propriedades de milhões de dólares na Europa. Por exemplo, Svetlana Krivonogikh, que teria tido um relacionamento com Vladimir Putin segundo o portal investigativo russo Proekt, apareceu nos jornais de Pandora depois de ter obtido um apartamento de luxo em Mônaco por meio de uma conta offshore. Da mesma forma, Londres congelou os bens de seis oligarcas próximos ao Kremlin, como o do milionário russo mais conhecido no Reino Unido, Roman Abramóvich. No total, um patrimônio de quase 18.000 milhões de euros.

Não condeno de forma alguma aqueles que têm vilas em Miami ou na Riviera Francesa, que não podem viver sem foie gras, ostras ou liberdade de gênero, como eles chamam. Esse não é o problema, não mesmo. O problema, mais uma vez, é que muitas dessas pessoas estão basicamente lá em suas mentes e não aqui com nosso povo e com a Rússia. Em sua opinião — em sua opinião! — é um sinal de pertencer a uma casta superior, a raça superior. Pessoas assim venderiam suas próprias mães apenas para poder se sentar no banco de entrada da casta superior. Eles simplesmente querem ser como eles e imitá-los em tudo. Mas eles esquecem, ou simplesmente não veem, que embora essa suposta casta superior precise deles, ela precisa deles como matéria-prima descartável para infligir o máximo de dano ao nosso povo.

O Ocidente como um todo tenta dividir nossa sociedade usando baixas de combate e as consequências socioeconômicas das sanções para seu próprio benefício, e para provocar agitação social na Rússia e usar sua quinta coluna para tentar alcançar esse objetivo. Como mencionei antes, seu objetivo é destruir a Rússia.

Mas qualquer nação, e ainda mais o povo russo, sempre será capaz de distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores, e simplesmente os cuspirá como um inseto na boca, cuspi-los-á na calçada. Estou convencido de que uma auto-desintoxicação natural e necessária da sociedade como esta fortaleceria nosso país , nossa solidariedade e coesão, e nossa prontidão para responder a qualquer desafio.

"Auto Desintoxicação"

O número total pode não ser quantificado por algum tempo, mas dezenas de milhares de russos deixaram seu país desde que a guerra começou em 24 de fevereiro. Segundo um estudo do portal Takie Delá baseado em dados da agência de estatísticas Rostat, cerca de cinco milhões de pessoas deixaram o país nos primeiros 20 anos de Putin no poder. A maior emigração foi registrada com a chegada de sanções: mais de 300.000 russos saem todos os anos desde 2016.

O chamado Ocidente coletivo e sua quinta coluna costumam medir tudo e todos segundo seus próprios padrões. Eles acreditam que tudo está à venda e que tudo pode ser comprado e, portanto, acreditam que entraremos em colapso e nos retiraremos. Mas eles não conhecem nossa história ou nosso povo o suficiente.

De fato, muitos países ao redor do mundo há muito suportam viver com as costas corcundas, aceitando submissamente todas as decisões que vêm de seu soberano, a quem olham servilmente. É assim que muitos países vivem. E, infelizmente, também na Europa.

"Viver com as costas curvadas"

A maioria da população ucraniana precisamente não quer viver de costas para os desejos do Kremlin. Este é provavelmente o caso da população bielorrussa, que não pode expressá-lo devido à repressão brutal. Certamente é para as ex-repúblicas soviéticas do Báltico e os países do Pacto de Varsóvia, cujos cidadãos fugiram o mais rápido e o mais longe possível de Moscou após décadas de opressão e miséria sob seu jugo.

Mas a Rússia nunca se encontrará em uma situação tão miserável e humilhante, e a luta que estamos travando é a luta por nossa soberania e pelo futuro de nosso país e de nossos filhos. Lutaremos pelo direito de ser a Rússia e permanecer assim. A coragem e a força de nossos soldados e oficiais, os fiéis defensores da pátria, devem nos inspirar.

Companheiros,

Sem dúvida, os eventos atuais estão acabando com o domínio político e econômico dos países ocidentais. Além disso, questionam o modelo econômico imposto nas últimas décadas aos países em desenvolvimento e ao resto do mundo.

O importante é que essa obsessão dos Estados Unidos e de seus apoiadores por sanções não é compartilhada pelos países onde reside mais da metade da população mundial. Esses estados representam a parte mais promissora e de crescimento mais rápido da economia mundial. E entre eles está a Rússia.

"Obsessão de sanções"

É verdade que os países que impõem sanções não são a maioria nem em número nem em peso demográfico. Estes incluem a UE (27 países membros), os EUA, o Reino Unido, mas também países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul ou a tradicionalmente neutra Suíça. É verdade que entre os que não aderem estão países de rápido crescimento como China ou Índia, mas a definição como a parte mais promissora é altamente discutível quando o outro grupo inclui grandes potências com forte potencial tecnológico.

De fato, estamos em um momento realmente difícil para nós. As empresas financeiras russas, grandes corporações e PMEs estão sob uma pressão incomum . O sistema bancário foi o primeiro a sofrer as sanções, mas nossos bancos enfrentaram esse desafio. Trabalham literalmente dia e noite para efetuar pagamentos e liquidações entre clientes individuais, bem como para garantir o funcionamento dos negócios.

A segunda rodada de sanções foi pensada para causar pânico no varejo. Segundo os cálculos, nas últimas três semanas, a demanda adicional por bens ultrapassou um trilhão de rublos. No entanto, nossos fabricantes, fornecedores, transportadores e empresas de logística fizeram todo o possível para evitar grandes rupturas de estoque nas redes de varejo.

"Causa Pânico"

As sanções têm níveis diferentes. Entre os financeiros, mencionados no parágrafo anterior, destacam-se o congelamento de fundos de reserva russos no exterior ou a expulsão de entidades bancárias russas do sistema SWIFT. Entre os comerciais, destaca-se a proibição de exportação de determinados produtos, principalmente no setor de tecnologia. Outros tipos de turbulências do mercado devem ser distinguidos deles, como aqueles que têm a ver com as decisões autônomas de centenas de empresas privadas, seja por decisões morais ou também pelas incertezas inerentes à situação, incluindo o valor real do rublo agora. As empresas ocidentais não foram as únicas que interromperam o envio de produtos para a Rússia ou dispararam seus preços. Isso também foi feito por empresas chinesas. A escassez de alguns produtos básicos, como o açúcar, deve-se até agora ao excesso de demanda devido ao pânico, como aconteceu com o papel higiênico durante a pandemia na Espanha. No entanto, o Banco Central da Rússia alerta que o setor enfrenta um gargalo devido à falta de recursos e uma escassez real pode ocorrer em breve.

Gostaria de agradecer à comunidade empresarial e às equipes de empresas, bancos e organizações, que não apenas estão respondendo efetivamente aos desafios relacionados às sanções, mas também lançando as bases para a manutenção do desenvolvimento sustentável de nossa economia. Gostaria de mencionar em particular o Governo, o Banco da Rússia, os governadores regionais e as equipes dos governos regionais e municipais. Nessas condições adversas, você está cumprindo admiravelmente suas responsabilidades.

(...)

Reitero que os acontecimentos atuais representam um desafio para todos nós. Tenho certeza que passaremos com dignidade. Trabalhando firmes e unidos, apoiando-nos mutuamente, superaremos todas as dificuldades e sairemos ainda mais fortes, como sempre aconteceu nos mil anos de história russa . É assim que eu quero que você aborde esta tarefa.

"Mil anos de história"

Ao final do discurso, uma referência que se enquadra em outro dos eixos centrais da narrativa de Vladimir Putin, a perspectiva histórica, verdadeiro pilar do edifício nacionalista construído em mais de duas décadas de poder na Rússia.

Andrea Rizzi , de Madrid para o El País, em 20.03.22. Andrea Rizzi é Correspondente de assuntos globais do EL PAÍS e autor de uma coluna dedicada aos assuntos europeus que é publicada aos sábados. Anteriormente, foi editor-chefe do Internacional e vice-diretor de Opinião do jornal. É licenciado em Direito (La Sapienza, Roma), mestre em Jornalismo (UAM/EL PAÍS, Madrid) e em Direito da UE (IEE/ULB, Bruxelas).

Moro usará viagem à Alemanha para tentar se contrapor a Bolsonaro sobre guerra e Amazônia

Guerra, acordos comerciais e Amazônia. Esses são os temas principais que Sergio Moro vai abordar na sua viagem para a Alemanha, na próxima semana. Conta Bela Megale, repórter de O Globo.

Sérgio Moro é aconselhado a prender a si mesmo para evitar vexame nas urnas | Pablo Jacob / Agência O Globo

Nos cinco dias em que ficará no país, o ex-juiz vai se encontrar com presidentes do Partido Verde e do Partido Liberal Democrático (FDP), além de lideranças das outras legendas que dão sustentação à coalizão do primeiro-ministro Olaf Scholz. 

A agenda internacional é uma tentativa de Moro de mostrar que, assim como outros presenciáveis, tem apelo e interlocução na comunidade internacional. O tour acontece depois de viagens de seus adversários ao exterior. Lula esteve há poucos dias no México e Bolsonaro foi à Rússia no mês passado.  

A agenda inclui conversas na presidência e com políticos de sete partidos com assento no Parlamento Alemão, o Bundestag. Moro também se reunirá com ex-ministros do governo de Angela Merkel. Nessas conversas, o ex-juiz vai se contrapor à posição neutra de Bolsonaro sobre a guerra e fazer uma condenação enfática aos ataques russos, em sintonia com a postura da Alemanha sobre o tema.

Moro também fará uma investida junto ao meio empresarial. Nessa frente, os temas prioritários serão políticas ambientais, especialmente focadas na Amazônia, para a reaproximação entre o Mercosul e a União Europeia. O ex-juiz se reunirá com a Federação das Indústrias Alemãs (BDI), associações nacionais de comércio exterior e executivos de multinacionais. Depois, terá agendas com uma associação ligada a países árabes e com a Associação Empresarial para América Latina na Alemanha (LAV), onde vai dar uma palestra.

O ex-juiz visita ainda uma das maiores companhias de transporte e logística marinha do mundo, localizada em Hamburgo, para discutir a privatização dos portos.

Bela Megale, O Globo, em 19.03.22.

O valor de um presidente capaz

É fato que irresponsáveis seduzem eleitores e podem alcançar a Presidência, mas a política destrambelhada de Bolsonaro mostra o custo pesado dessa escolha

A invasão da Ucrânia pela Rússia, além de causar imensos danos sobre a população e a economia ucranianas, produziu um novo patamar de incerteza e trouxe muitos desafios para o mundo inteiro – obviamente também para o Brasil. Agora, cada país tem pela frente um panorama novo, em boa parte ainda desconhecido, a exigir planejamento sério e execução criteriosa.

Tudo isso reitera a importância de ter um governo responsável e competente, que esteja apto a reagir à altura dos acontecimentos. No caso brasileiro, a situação é desconcertante. A guerra de Putin não suscitou nenhuma expectativa de que o governo Bolsonaro fosse atuar de forma prudente. A experiência com a pandemia foi traumática o suficiente para atestar a incapacidade e o despreparo de Jair Bolsonaro para lidar com eventos desconhecidos. Vez ou outra, o ex-capitão ainda trata a maior crise sanitária da história recente, que abalou o mundo inteiro, como uma conspiração para tirá-lo do poder.

O fato é que, com sua incompetência, Jair Bolsonaro deixa o País vulnerável em áreas cruciais – econômica, social, ambiental e diplomática. Neste momento, e como sempre, o governo não tem um plano minimamente consistente para atravessar e enfrentar as novas circunstâncias internacionais. A população e as empresas contam apenas com suas próprias forças. Se essa vulnerabilidade causada pelo governo, com razão, assusta, deve também suscitar reflexão sobre as próximas eleições. A Presidência da República reúne atribuições institucionais muito graves para ser entregue a quem nunca na vida deu mostras mínimas de ter condições para a função.

O presidente da República é chefe de Estado e de governo. No art. 84, a Constituição define nada menos do que 27 competências privativas do presidente da República. Entre elas, “exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal” (inciso II), “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos” (inciso VII) e “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (inciso VIII).

O cargo de presidente da República não é, portanto, para demagogos, aventureiros ou principiantes. Exige competências cognitivas e intelectuais que forneçam um mínimo de sentido comum à administração federal e à condução dos assuntos de Estado. É verdade que existem aspectos da vida social e econômica de um país que não dependem do governo ou que, ao menos, têm certo grau de independência em relação ao Estado. No entanto, é também verdade que, diante de eventos como a pandemia ou a guerra de Putin, tudo se torna mais condicionado à atuação do governo federal.

Crises imprevistas, como a pandemia e a guerra na Ucrânia, lembram-nos de que o exercício da Presidência não pode se limitar ao enfrentamento de problemas conhecidos. A realidade tem sempre uma dimensão de incerteza e surpresa, a exigir estadistas que tenham noção dos reais interesses da sociedade. Se é criticável eleger para o Congresso candidatos que fazem da antipolítica sua bandeira eleitoral – como foi, por exemplo, a candidatura do palhaço Tiririca –, muito mais grave é colocar na chefia do Executivo pessoas escandalosamente inaptas para governar mesmo em circunstâncias normais.

De modo similar, é também uma temeridade conduzir ao Palácio do Planalto quem mantém uma visão de mundo retrógrada e encerrada em categorias ultrapassadas, como é o caso do PT. A posição da legenda sobre o ataque russo contra a Ucrânia revela que o despreparo e o alheamento da realidade não são circunstanciais. Estão na essência do lulopetismo, que se aferra ao negacionismo e à cegueira diante dos dados que confrontam suas certezas ideológicas.

As circunstâncias dramáticas da pandemia e da guerra de Putin reiteram a responsabilidade do eleitor em outubro. Há pluripartidarismo e livre exercício dos direitos políticos. Ou seja, não há nenhuma necessidade em votar em despreparados ou incompetentes. A Presidência da República exige gente séria, capaz de conduzir o País especialmente nas horas difíceis.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 20.03.22