sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
Como era o Brasil do 1º centenário da Independência, há 100 anos
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022
Depois de Moïse: imigrante venezuelano é morto em SP por dívida de R$ 100 de aluguel
Acusado do crime é preso; Movimentos sociais citam xenofobia e cobram punição para homicídio ocorrido em Mauá
O venezuelano Marcelo Caraballo, de 21 anos, foi morto por uma dívida de aluguel em Mauá (SP) Foto: Reprodução
Um imigrante venezuelano foi assassinado na Grande São Paulo por causa de R$ 100. Esse era o valor que Marcelo Antonio Larez Gonzalez, de 21 anos, devia do aluguel da casa onde morava com a família em Mauá, a 40 minutos da capital paulista.
Segundo informações da família à polícia, o locatário teria cobrado o atraso no pagamento. Ele e Marcelo discutiram na porta da casa, o locatário saiu e voltou minutos depois, armado, e disparou contra o jovem venezuelano.
Movimentos sociais pedem Justiça e citam o caso como mais um exemplo de xenofobia, depois que o refugiado congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos, foi morto por espancamento no Rio de Janeiro, no mês passado.
Marcelo tinha quatro filhos e morava com a esposa, a mãe e um irmão, todos venezuelanos. Eles viviam no mesmo terreno do locatário, que fugiu depois de atirar, na noite da última quinta-feira (3). O Samu foi acionado para prestar socorro, mas já era tarde.
Com medo, a família deixou o local e foi acolhida por um vizinho, que teria cedido um salão ainda em construção para que ficassem temporariamente. Sem renda, eles dependem de doações.
Segundo o coletivo Dandara Quilombo, a família conseguiu alguns móveis e alimentos. Mas precisam ainda de fraldas, carrinho de bebê, guarda-roupa e máquina de lavar, entre outros itens.
A família morava há oito meses no Jardim Oratório, em Mauá, em um local do bairro que teve expansão recente com ocupações, e pagava R$ 500 de aluguel. No último mês, só conseguiram pagar R$ 400. A diferença de R$ 100 motivou o desentendimento entre o jovem venezuelano e o locatário.
Prisão temporária
Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, investigações da Polícia Civil de Mauá levaram à identificação do autor dos disparos, que teve a prisão temporária decretada e foi detido na terça (8). Ainda segundo a pasta, agentes do 1º DP de Mauá trabalham agora para finalizar o inquérito e relatá-lo ao Poder Judiciário.
A proximidade do caso com o assassinato de Moïse tornou inevitáveis as comparações.
Histórias de quem fugiu para o Brasil: As leis brasileiras são generosas com os refugiados. A realidade, não
"No passado final de semana, enquanto nos mobilizávamos pela morte do Moïse, aconteceu outro crime de xenofobia e racismo que acabou com a vida de Marcelo, migrante venezuelano que morava em Mauá (SP). Uma e outra vez gritamos: BASTA DE XENOFOBIA, BASTA DE RACISMO! Exigimos justiça para o Marcelo e para todas as pessoas migrantes e refugiadas que perdem a vida nesse país por causa da intolerância e a falta de respeito à diversidade!", publicou a Equipe Base Warmis, grupo de mulheres voluntárias que atua na defesa dos direitos humanos e no combate à violência e discriminação.
Segundo integrantes do movimento, uma rede de coletivos está acompanhando o caso com a família e organiza uma campanha de doações, além de uma vigília.
A articulação na rede #VidasImigrantesNegrasImportam foi formada a partir do assassinato do imigrante angolano João Manuel, em 2020. O frentista de 47 anos foi esfaqueado em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, depois de uma discussão sobre o pagamento para imigrantes do auxílio emergencial do governo federal. Além da Equipe Base Warmis, acompanham o caso os coletivos Dandara Quilombo e Fronteiras Cruzadas.
Em comunicado conjunto, os movimentos lembram que o caso de Moïse mobilizou a sociedade civil, "mas infelizmente esses casos não são isolados. O racismo e a xenofobia já ceifaram as vidas de muitos migrantes e refugiados que escolhem o Brasil para viver".
No mesmo texto, os coletivos reforçam a exigência de regularização da documentação para os migrantes, "para que a documentação não seja mais um motivo de vulnerabilidade para essas populações".
Venezuelanos são a nacionalidade com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas no Brasil (46.412) entre 2011 e 2020. O número aumentou significativamente com a decisão de 2019 do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça, de reconhecer a situação de “grave e generalizada violação de direitos humanos” na Venezuela.
Elisa Martins / O Globo, em 10/02/2022 - 09:00 / Atualizado em 10/02/2022 - 16:12
O sujo e o mal lavado
Nem Bolsonaro nem Lula sabem montar e gerenciar coalizões
Por Carlos Pereira
Lula criticou as relações de Bolsonaro com o Congresso classificando-o como “subserviente aos interesses dos parlamentares”. “Criaram o orçamento secreto que é tão secreto que não podemos nem saber o nome de quem recebe uma emenda”, complementou o ex-presidente.
De fato, as relações de Bolsonaro com o Legislativo têm sido um desastre. Uma combinação predatória de falta de transparência, baixo sucesso legislativo e alto custo de governabilidade. Inicialmente ignorou e desenvolveu uma relação adversarial com o Legislativo. Mas, diante de vertiginosa perda de popularidade e de crescentes riscos de ver seu mandato abreviado, se aproximou do Centrão e montou uma coalizão minoritária, mas que lhe garante sobrevivência.
Se observarmos as escolhas de Lula e dos outros governos do PT na montagem e na gerência das suas coalizões, vamos perceber desempenhos igualmente desastrosos. Lula montou coalizões com um número muito grande de partidos e heterogêneos entre si, o que dificultou a coordenação e aumentou os custos de governabilidade.
Ao tomar posse em 2003, Lula expandiu o número de ministérios de 23 postos para 35. Diferentemente de FHC, cujo partido (PSDB) ocupava apenas 26% dos cargos ministeriais, as novas posições criadas por Lula foram ocupadas por integrantes do PT que, mesmo com uma bancada de apenas 18% das cadeiras (91 deputados), ocupou 60% dos ministérios (21 postos). Por outro lado, o PMDB, com 15% das cadeiras (78 deputados), ocupou apenas 6%; ou seja, 2 ministérios.
O governo Lula preferiu alocar os espaços do seu gabinete para várias tendências internas do PT em vez de parceiros de coalizão. Naturalmente que tais parceiros se sentiram excluídos do jogo. Para tentar compensar a progressiva frustração e animosidade decorrente da desproporcionalidade da coalizão, o governo Lula recompensou os aliados por meio de pagamentos ilegais, escândalo que ficou conhecido como mensalão.
O STF, muito antes da atuação do “vilão” Sérgio Moro, condenou 25 dos integrantes do que o PGR da época chamou de uma “sofisticada organização criminosa”, incluindo lideranças do PT como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu; o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha; o ex-presidente do PT José Genoino; e seu tesoureiro, Delúbio Soares. Curiosamente, Lula foi implicado apenas indiretamente no escândalo, sendo acusado de omissão.
A narrativa de que Lula se relacionou bem com o Legislativo e que soube montar e gerenciar suas coalizões é simplesmente falsa. É o sujo falando do mal lavado.
Carlos Pereira, o autor deste artigo, é Cientista Político e Professor Tiular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. Publicado originalmnete n'O Estado de S. Paulo, em 10.02.22
Briga de irmãos
Centrão e setores do mercado não enxergam diferenças entre Bolsonaro e Lula
Por William Waack
Há setores do mercado que vivem no curtíssimo prazo e que pulam de Bolsonaro para Lula e vice-versa com a rapidez com que se especula por resultados imediatos. Os setores com horizontes mais distantes não enxergam diferenças significativas entre os dois líderes das pesquisas.
Mais de um grande fundo já disse isso aos cotistas. O mais recente foi o respeitado Verde, para o qual Lula e Bolsonaro “são irmãos gêmeos, separados no nascimento”. Ambos, diz carta redigida pelo fundo, recorrem ao mesmo “populismo eleitoreiro barato totalmente irresponsável”.
Há setores do mercado que vivem no curtíssimo prazo e que pulam de Bolsonaro para Lula e vice-versa com a rapidez com que se especula por resultados imediatos.
Essa afirmação resultou da análise “técnica” (levando em conta apenas modelos econômicos) dos instrumentos pelos quais o governo Bolsonaro pensa conseguir baixar preços de energia em geral e combustíveis em particular. Conclusão similar ao alerta feito pelo próprio Banco Central, segundo o qual a maneira pela qual o Planalto quer baixar preços e inflação arrisca a produzir o resultado contrário – obrigando o BC a subir mais ainda os juros.
Populismo eleitoreiro não é fenômeno restrito a personagens como Lula e Bolsonaro nem ao sistema político brasileiro. É generalizado mesmo em democracias liberais “estáveis” por toda a Europa. A questão para o Brasil, porém, é muito mais abrangente por causa do consenso amplo na sociedade brasileira de que a prioridade não é combater desigualdade, mas, sim, promover o crescimento dos gastos públicos, dos quais grupos privados e corporativistas extraem renda.
Esse tipo de “escolha” não é racional nem deliberada, e resulta de longo processo histórico e cultural – portanto, político. A composição do Parlamento brasileiro, com suas atuais inéditas prerrogativas de poder, espelha exatamente esse consenso. Uma amorfa massa “central” de deputados e senadores luta apenas por seus interesses paroquiais ou setoriais, acomodando-os à custa dos cofres públicos, sem diferenças ideológicas significativas.
O que mais impressiona quando se olha para o Brasil de uma perspectiva ampla é o longo tempo em que está preso à armadilha de renda média. Situação agravada de forma dramática pelas severas perdas sociais causadas pela pandemia na saúde, educação e renda. Esse “plano geral” – o das verdadeiras questões de fundo – não transparece no atual debate político-partidário.
Que se concentra em quem vai apoiar quem em troca de quê. O Centrão segue a lógica do sistema e tem como prioridade formar bancadas. Muito antes dos fundos sofisticados de investimento já havia demonstrado não ver diferenças significativas entre Lula e Bolsonaro. O resto é briga de irmãos.
William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.02.22.
Pastor admite intermediar emenda para favorecer filhos políticos: ‘Quer dinheiro?’; veja vídeo
Líder da Assembleia de Deus no Brasil, José Wellington Bezerra da Costa afirma que recurso só chega ao prefeito com aval da igreja
O pastor José Wellington Bezerra da Costa, um dos líderes mais influentes da Assembleia de Deus no Brasil, admitiu que a igreja tem feito a intermediação do pagamento de emendas parlamentares para eleger três de seus filhos em São Paulo, maior colégio eleitoral do País. José Wellington também proibiu o apoio de pastores a candidatos que não sejam “ungidos” pela denominação evangélica.
Os filhos do pastor – o deputado federal Paulo Freire Costa (PL-SP), a deputada estadual Marta Costa (PSD-SP) e a vereadora Rute Costa (PSDB-SP) – tiveram acesso a R$ 25 milhões em recursos públicos, no ano passado. Nas eleições que disputaram, os três foram abertamente apoiados pela igreja durante as campanhas.
“A emenda só vai para o prefeito por intermédio do pedido do pastor da Assembleia de Deus”, disse José Wellington durante reunião de obreiros, realizada na última segunda-feira, em São Paulo. “O eleitorado que ali está, irmãos, não é do prefeito, mas são irmãos em Cristo que estão nos apoiando para que os nossos candidatos continuem trabalhando.”
José Wellington controla a Convenção-Geral das Assembleias de Deus no Brasil, a mais antiga do segmento, há três décadas. Em São Paulo, é líder do Ministério do Belém, vertente mais tradicional da denominação no Sudeste, e apoiou a campanha de Jair Bolsonaro em 2018. No culto, ele afirmou que os filhos são livres para escolher os beneficiados, mas revelou como abordam os prefeitos: “Você quer dinheiro? Quer, mas chame então o pastor da Assembleia de Deus”.
No ano passado, o deputado Paulo Freire Costa teve acesso a R$ 16 milhões em emendas, valor destinado a cada um dos congressistas. Ele indicou verbas para 26 beneficiários, incluindo R$ 395 mil para Campinas, onde é pastor, e R$ 600 mil para dois municípios (Bilac e Santópolis do Aguapeí) na modalidade transferência especial, apelidada de “pix orçamentário” por repassar um “cheque em branco” para prefeituras sem fiscalização federal.
Templo
Apesar do apoio a Bolsonaro, José Wellington já foi próximo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje favorito nas pesquisas de intenção de voto para a disputa ao Planalto. Na reunião em que discorreu sobre as emendas estavam presentes pré-candidatos em outubro, incluindo o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), aliado de Bolsonaro. Aos subordinados, José Wellington costuma dizer que ora por todos e dá espaço a concorrentes de diferentes partidos no púlpito do templo.
Nos últimos anos, a Assembleia de Deus do Belém, uma das vertentes da denominação no Brasil, viu outras alas ocuparem espaços políticos no Congresso. A presidência da bancada evangélica na Câmara passou ontem das mãos do deputado Cezinha de Madureira para as de Sóstenes Cavalcante, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (mais informações nesta página). As duas igrejas são consideradas “irmãs” do Belém, mas disputam poder onde estão instaladas.
Aos líderes, José Wellington expôs a preocupação com o apoio de pastores a candidatos que não são da Assembleia de Deus e apontou o pagamento de emendas como forma de dar força aos nomes escolhidos para representar os fiéis no Legislativo. “Meus irmãos, trabalhem para eleger os nossos irmãos na fé, procurem eleger os nossos irmãos na fé. Glória! Seja fiel a este nome: Assembleia de Deus no Brasil.”
A chancela dos recursos pelos pastores serve, nas palavras do patriarca assembleiano, “para evitar qualquer nuvem negra sobre o comportamento dos nossos companheiros”. José Wellington fez um alerta para que os pastores não aceitem emendas diretamente para as igrejas, ou seja, a intermediação tem de ser feita para destinar recursos às prefeituras ou a outras instituições. “A igreja não precisa de dinheiro do Estado”, insistiu.
Procurado pela reportagem, o pastor confirmou que põe líderes da igreja em contato com prefeitos beneficiados por emendas de seus filhos parlamentares, mas negou troca de favores. “Quando o prefeito de uma cidade precisa de uma verba, é evidente que nós mandamos o pastor da nossa igreja para que ele tenha conhecimento com o prefeito. O nosso deputado vai entender, naturalmente, se a verba for coisa lícita, for necessária, mas pelos canais oficiais”, disse ele. “A igreja não tem qualquer compromisso político.”
Ao admitir que a igreja lança candidatos e pede voto para os fiéis, José Wellington disse ser preciso manter a doutrina. “O candidato da minha igreja, eu ponho ele no púlpito, eu ponho ele na minha casa, eu ponho ele no meu carro, eu ponho ele onde eu quiser. Outros candidatos de fora, não”, afirmou. “Quem trouxe a política para o ministério da Assembleia de Deus fui eu porque entendi que existem interesses da igreja, especialmente legais. Alguns deputados estão fazendo coisas meio marotas contra nossa doutrina pública, que precisamos manter.”
Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo, em 10 de fevereiro de 2022 | 05h00
Bolsonaro deixa o Brasil de joelhos diante de Putin
A visita ao seu homólogo russo em um momento de máxima tensão global é a enésima loucura de um presidente que até seus ministros tentam impedir. Comentário de Juan Árias, do EL PAÍS.
Os presidentes da Rússia e do Brasil, durante a reunião de economias emergentes do BRICS, em 2019, em Brasília. (Sérgio Lima)
O anúncio de uma visita do presidente Bolsonaro a Vladimir Putin na próxima semana gerou polêmica dentro e fora do governo brasileiro. Pensa-se que o encontro em Moscovo, num momento de tensão em que pode eclodir a qualquer momento uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia envolvendo a Europa e o mundo, escapa a qualquer prudência diplomática. Ainda mais quando não há motivos para o Brasil participar desse encontro, que só servirá para colocar o país de joelhos diante de Putin.
O único motivo da visita é pessoal: Bolsonaro quer a fotografia com o presidente russo para usá-la em sua campanha presidencial e esfregá-la na cara do presidente dos EUA, Joe Biden, enquanto agradece a Putin pelo elogio pessoal que lhe deu no último Cúpula do BRICS .
Segundo especialistas em política externa, a visita de Bolsonaro a Moscou é uma das muitas loucuras a que o presidente brasileiro se acostumou no país. A tal ponto que não só a oposição, mas também seus ministros mais políticos, estão tentando convencê-lo a desistir da viagem.
Quando perguntado a Bolsonaro se ele discutiria a questão candente da crise na Ucrânia com Putin, o presidente respondeu que o faria "somente se ele pedir". O que Bolsonaro está tentando mostrar – especialmente para os Estados Unidos, onde perdeu seu grande amigo Donald Trump – é que mantém um vínculo forte com a Rússia e tem aliados no exterior. Durante a viagem, ele aproveitará para conhecer o líder da Hungria, o ultradireitista Víktor Orbán, com quem mantém relações próximas. O Brasil precisará de anos para consertar a bagunça de sua diplomacia atual, dizem os especialistas.
A imprensa brasileira intitulou a viagem de Bolsonaro a Moscou neste momento de tensão como alguém caindo “de joelhos diante do Kremlin”. E o pior da polêmica visita é que o presidente pretende usá-la para fortalecer sua campanha de reeleição para o próximo mês de outubro. Suas chances se esgotam todos os dias. De acordo com as últimas pesquisas, o presidente perderia as eleições presidenciais no primeiro turno .
Nesse contexto, Bolsonaro quer agradecer a Putin os elogios que lhe deu como “exemplo” de gestão da pandemia, que parece uma zombaria da realidade dos fatos , bem como os elogios relacionados à sua “masculinidade”. “Você mostrou as melhores qualidades masculinas como coragem e vontade”, disse Putin ao brasileiro. Nada poderia soar melhor aos ouvidos de Bolsonaro, cuja homofobia não é apenas conhecida, mas incentivada por ele mesmo. No pior da pandemia, o presidente afirmou que quem ficou em casa por medo de se infectar eram "bichas".
A homofobia e a misoginia do capitão são conhecidas desde que ele era um deputado obscuro. Na época, ele disse que sua quinta filha acabou sendo uma mulher porque ele “se distraiu”, e que teria preferido que ela fosse um menino também. Às vezes me pergunto o que aquela menina de 11 anos pensará sobre seu pai no futuro. Em relação à sua homofobia, basta lembrar o dia em que admitiu que antes de ver o filho chegar "no braço de um bigodudo" preferiria vê-lo morto sob as rodas de um caminhão.
O mais triste para o Brasil, país que em algum momento teve um papel importante no xadrez global, é ter um presidente que se encolhe na política externa a um ponto grotesco que ofende o país. Não adianta a Bolsonaro que até os seus estejam tentando convencê-lo do perigo de visitar Putin.
Em três anos de governo, Bolsonaro ignorou totalmente a Europa , cujos países ele nem visitou. O presidente brasileiro vive preso em seu mundo estreito, criado a partir de seu ódio e de seu sonho de que um golpe militar lhe permita permanecer no poder para sempre. Ele gostaria de ser um Trump, a quem ama; ou ser um novo Putin, cujo mito de masculinidade ele inveja.
A palavra que Bolsonaro mais usou quando era deputado é “macho”. Chegou a afirmar que sua esposa o considera "o macho dos machos" e sem a menor vergonha revelou que ele é imbroxavel , ou seja, que nunca falha sexualmente.
Se Bolsonaro se encontrar com Putin nos próximos dias, será interessante saber sobre o que eles vão conversar, já que o drama de uma possível guerra com a Ucrânia deixa o mundo no limite, mas eles parecem pouco se importar. Embora Bolsonaro tenha afirmado mais de uma vez que as armas com as quais ele diz que dorme ao lado dele foram seu melhor talismã. Ele os ama com tanta paixão que legislou que hoje todos os brasileiros podem possuir até seis armas para legítima defesa . Um assunto sobre o qual, sem dúvida, você poderá conversar livremente com o líder russo.
Juan Árias, o autor deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 10.02.22.
Estudo acusa alta global do autoritarismo e cita Bolsonaro
Presidente brasileiro é incluído entre líderes que contribuem para deterioração mundial da democracia em análise publicada por grupo britânico. Apenas 45% da população do planeta vivia numa democracia em 2021, aponta.
Um relatório divulgado nesta quinta-feira (10/02) aponta que a democracia continua a se deteriorar mundialmente em meio à pandemia e ao crescente apoio ao autoritarismo. A análise da Economist Intelligence Unit (EIU) aponta Bolsonaro como um exemplo de líder populista que provoca a erosão da democracia atacando as instituições.
Sediada em Londres e vinculada ao grupo The Economist, a EIU elabora anualmente seu Índice de Democracia conforme indicadores separados em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis.
O grupo afirma que o índice "lança luz sobre os desafios contínuos à democracia em todo o mundo, sob pressão da pandemia de coronavírus e crescente apoio a alternativas autoritárias".
Nesta edição, o relatório anual, chamado Índice de Democracia, registra sua maior queda desde 2010 e estabelece "outro recorde sombrio", com a pior pontuação global desde que a análise foi produzida pela primeira vez em 2006.
"Os resultados refletem o impacto negativo da pandemia na democracia e na liberdade no mundo pelo segundo ano consecutivo, com a extensão considerável do poder do Estado e a erosão das liberdades individuais", diz o estudo.
Bolsonaro e a piora recorde na América Latina
Citando o presidente Jair Bolsonaro como um dos exemplos no continente, a EIU afirma que América Latina teve nesta edição a maior queda anual no índice de democracia entre todas as regiões do globo desde que o relatório é elaborado.
O documento afirma que a "pontuação da região piorou em todas as categorias", atribuindo a isso sobretudo "um declínio acentuado na cultura política".
"O compromisso cada vez mais fraco da América Latina com uma cultura política democrática abriu espaço para o crescimento de populistas iliberais, como Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés Manuel López Obrador no México e Nayib Bukele em El Salvador, além de fomentar regimes autoritários na Nicarágua e na Venezuela", aponta o relatório.
O texto lembra os ataques do presidente brasileiro ao Supremo Tribunal Federal e suas investidas contra o sistema eletrônico de votação.
"O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, exigiu a renúncia de dois membros do Supremo Tribunal Federal após uma investigação sobre alegações de que grupos pró-Bolsonaro estavam espalhando 'fake news'", diz o relatório.
"Bolsonaro chegou ao ponto de dizer que ignoraria os resultados das eleições presidenciais e legislativas de 2022 – comentários que ele retirou posteriormente", acrescenta.
A análise aponta o governante brasileiro como uma ameaça para a campanha eleitoral deste ano. "Bolsonaro provavelmente continuará com seus ataques às instituições democráticas e minará a confiança na integridade eleitoral, diante das eleições de outubro de 2022."
Impacto da pandemia
Menos da metade (45,7%) da população mundial agora vive em algum tipo de democracia, um declínio significativo em relação a 2020, quando o número era de 49,4%.
Ainda menos (6,4%) residem agora em uma "democracia plena" - categoria que inclui apenas 21 de 167 países e territórios analisados -, depois que Chile e Espanha foram rebaixados para "democracias imperfeitas".
Mais de um terço da população mundial (37,1%) vive sob regime autoritário, grande parte na China. "A China não se tornou mais democrática porque se tornou mais rica. Pelo contrário, tornou-se menos livre", disse a EIU. Dos países analisados, 59 foram incluídos nessa categoria.
Os três primeiros lugares do índice são ocupados por Noruega, Nova Zelândia e Finlândia, enquanto os três últimos países são Coreia do Norte, Mianmar e Afeganistão.
Junto com a Tunísia, Mianmar e Afeganistão registraram as maiores quedas no índice após o golpe militar e a tomada do Talibã nesses dois últimos países.
Deustche Welle Brasil, em 10.02.22
Porandubas Políticas
Por Gaudêncio Torquato
Abro a coluna com uma deliciosa historinha da Bahia.
Se deixou, não há crime
Cosme de Farias foi um grande advogado dos pobres da Bahia. Enveredou também pela política. Vereador e deputado estadual por muito tempo. A historinha. Um ladrão entrou na Igreja do Senhor do Bonfim e roubou as esmolas. Cosme de Farias foi para o júri:
– Senhores jurados, não houve crime. Houve foi um milagre. Senhor do Bonfim, que não precisa de dinheiro, é que ficou com pena da miséria dele, com mulher e filhos em casa com fome e lhe deu o dinheiro, dizendo assim:
– Meu filho, este dinheiro não é meu. Eu não preciso de dinheiro. Este dinheiro foi o povo que trouxe. É do povo com fome. Pode levar o dinheiro.
E ele levou. Que crime ele cometeu? Se houve um criminoso, o criminoso é o Senhor do Bonfim, que distribuiu o dinheiro da Igreja. Então vão buscá-lo agora lá e o ponham aqui no banco dos réus. E ainda tem mais. Senhor do Bonfim é Deus, não é? Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro, tinha impedido. Se não impediu, é porque deixou. Se deixou, não há crime.
Cosme de Farias ganhou no verbo. O réu foi absolvido.
Panorama visto do alto
As melhores visões são do alto. Quando os olhos estão próximos aos objetos, certas partes serão bem focadas, mas os contextos podem ficar de fora. É oportuno um enquadramento que flagre o conjunto. Ver do alto é melhor. Vamos tentar enxergar os fenômenos sob essa perspectiva.
1. A cereja
As esquerdas tentam compor uma ampla frente sob a liderança de Luiz Inácio. A cereja para atrair fatias do centro e até da direita tem o nome de Geraldo Alckmin. É um chamariz que impacta no primeiro momento, mas, com o tempo, tende a perder a vitalidade e cair na mesmice da velha política. Truque de Lula, que, ao fim e ao cabo, se for o vitorioso, fará o governo do PT, com o PT e para o PT. Compromisso histórico. Pano de fundo: os dois governos Lula. Não, os de Dilma.
2. O bolo da esquerda
Como é sabido, o PT virou uma igreja. Mais acolhedora a seus fiéis. O núcleo duro está saindo dos buracos em que se escondeu e mostra sua velha cara: Gleisi, Mercadante, Mantega, Franklin Martins, os laboratórios da Fundação Perseu Abramo etc. O bolo seria uma federação de partidos de esquerda, liderada pelo PT e pelo PSB. Difícil de agradar ao paladar dos partidos por causa das conveniências eleitorais. O PT vai acabar indo pra guerra com seus exércitos.
3. O bolo da direita
À direita, a novidade teria o nome de União Brasil, fusão do PSL, com 55 deputados, e o DEM, com 26. Seria o maior bolo do Parlamento. Seria. Mas como as conveniências partidárias nos Estados são bem diferentes, a debandada está bem assinalada. Até o fechamento da janela partidária, em abril, espera-se uma debandada de pelo menos 20 deputados da bancada bolsonarista do PSL. Bivar pode ir aposentando sua ideia de compor uma chapa como vice.
4. O voo baixo de Sergio Moro
A escalada do ex-juiz Sergio Moro está muito devagar, quase parando. É verdade que, nas últimas semanas, Moro mergulhou fundo nas águas da política, correndo regiões, conversando com uns e outros, até posando junto à imagem do padre Cícero, de Juazeiro/CE. Mas não tem agregado apoios substantivos. A galera parlamentar espera vê-lo alçar voos mais altos, subindo nas pesquisas. Oscila entre 8% e 12%.
5. Mulher na chapa
Além de Alckmin, há outra cereja no bolo eleitoral. Uma mulher para compor a chapa. Mulher está na onda eleitoral, envolvida em um manto de grandes valores – honestidade, sinceridade, maior assepsia política, ou seja, se posiciona melhor como contraponto à velha política. Fosse mais conhecida, Simone Tebet estaria bem posicionada nas pesquisas eleitorais. É considerada, ainda, como um forte potencial na condição de vice em outras chapas, como a tucana liderada por João Doria. Mas o MDB decidiu bancar sua candidatura que conta com a simpatia de tucanos de plumagem densa, como Tasso Jereissati e José Aníbal.
6. Os ciclos da campanha
É evidente que a campanha ainda está morna. Vivemos o primeiro ciclo – o das articulações, fusões, noivados e casamentos. Entraremos no segundo ciclo em abril, quando o quadro geral se firmar na parede. Maio/junho e julho serão meses de consolidação e fechamento de articulações. O terceiro ciclo, como se vê, será dedicado aos lançamentos oficiais. Agosto, o quarto ciclo, é o mês dos grandes embates. Setembro, o pico da montanha e a corrida pelo país. O Senhor Imponderável poderá nos visitar a qualquer momento. O quinto ciclo será o mês das grandes decisões. Na primeira semana de outubro, teremos festas e velórios.
7. Os círculos do presidente
Pergunta recorrente: Bolsonaro crescerá? Irá ao segundo turno? Respostas: a) a depender das circunstâncias – economia, adjutórios sociais, intensa polarização, clima de guerra – ou eu ou ele; b) mudança de postura, tentativa de ser mais equilibrado; c) apoio centrífugo – mais engajamento dos contingentes do centro; d) divisão extremada da esquerda, que pode dividir os votos do arco ideológico. Em suma, Jair precisa engrossar, avolumar os círculos de apoio e engajamento.
8. As lembranças dos dutos
A imagem do duto que joga dinheiro – aquela massificada imagem de corrupção, divulgada diariamente por meses pela TV Globo por ocasião da Lava Jato deverá aparecer. A não ser que a Globo, a essa altura, já tenha decidido caminhar junto com Lula, o que já faz parte das conversas. A banalização da imagem negativa acabou repartindo seus efeitos por toda a classe política.
9. Ciro, sempre o mesmo
Não será desta vez que o marqueteiro João Santana alavancará a imagem de Ciro Gomes. Mudança ligeira de linguagem passará despercebida pelas correntes das margens sociais. Ciro é Ciro e não haverá argamassa capaz de mudar sua fachada. É bom de debate e conhece o Brasil. Mas o pouco debate não deixa emergir tais qualidades.
10. João Doria, o vacinador
O governador de São Paulo será embalado no manto das vacinas, como o homem público que abriu as gavetas da vacinação em massa. Mas o jeito João Doria de ser – sofisticação e paulista no corpo e mente – será uma barreira de difícil travessia. Faz um bom governo. Mas o governo gira em torno de si. Parece não ter equipe. Suas mensagens não chegam às massas.
11. Simone, a surpresa
Simone Tebet, a senadora do MDB do Mato Grosso do Sul, se conseguir ter boa visibilidade, poderá alçar voo. Tem estofo e postura de inovação.
12. Bolsonaro na Rússia
Imprudência, inoportunidade, falta de bom senso. São os termos que cobrem a marcada visita de Bolsonaro à Rússia, nesse momento de tensão com a Ucrânia. Uma bela foto de Putin e Bolsonaro no Kremlin será vista pelo mundo. Mas o isolamento do Brasil será mais intenso. Bolsonaro sonha com a foto., que não o fará um estadista.
13. Haddad versus Garcia
Em São Paulo, é muito provável que Fernando Haddad, o ex-prefeito da capital, seja o candidato do PT a enfrentar Rodrigo Garcia, que foi eleito pelo DEM, mas virou tucano. É este vice-governador que João Doria quer eleger governador. Face à polarização, Garcia terá mais chance que Haddad. São Paulo, capital, abriga os maiores núcleos antipetistas do país. A conferir.
14. Ezequiel no RN
O presidente da Assembleia Legislativa do RN, Ezequiel Ferreira de Souza (PSDB), está articulando uma ampla frente para derrotar a atual governadora, Fátima Bezerra. Ele tem condições, mesmo considerando que a máquina governamental que administra é uma forte alavanca da governadora. Mas a máquina legislativa é também poderosa.
15. Disputa ferrenha
O deputado José Dias (PSDB) explica: "A primeira etapa é a definição da candidatura a senador. Quanto a isso, não há decisão alguma. Mas, o meu desejo e a minha expectativa é de que Rogério Marinho e Fábio Faria entrem em entendimento e decidam essa questão até o final dessa semana, pois não temos muito tempo. Essa conversa é apenas entre os dois ministros e as lideranças do governo do presidente Jair Bolsonaro. Nós não temos a menor interferência nesse diálogo. Acreditamos que o melhor nome da oposição para o governo é o de Ezequiel, que conta com o apoio político de, pelo menos, 18 deputados estaduais e 130 prefeitos espalhados pelo Estado". Fátima lidera a intenção de votos. Se Lula estiver bem folgado nas pesquisas, será difícil remover a governadora.
O carro se atolou-se
Nesses tempos de chuvarada, fecho a coluna com atoleiro.
Walfredo Paulino de Siqueira foi um típico coronel da política pernambucana. Escrivão de polícia, comerciante, deputado, industrial, presidente da Assembleia, vice-governador de PE. Era uma figura folclórica, como conta Ivanildo Sampaio, ex-diretor de redação do Jornal do Commercio, de Pernambuco, e meu contemporâneo na faculdade. Um dia, dois eleitores discutiam sobre o uso da partícula "se". O exemplo era com um automóvel que ficara preso em meio a um atoleiro. O primeiro afirmava que a forma correta de se expressar era falar que "o carro atolou-se"; o outro insistia que não; o correto era "o carro se atolou". Consultado, Walfredo deu a sentença salomônica:
– Escutem aqui. Se os pneus que ficaram presos foram os dois da frente, o correto é dizer que "o carro se atolou". Se foram os pneus traseiros, a gente fala assim: "o carro atolou-se". Mas, acontecendo de ficarem presos os quatro pneus, os da frente e os de trás, então, meus filhos, a forma correta mesmo é "o carro se atolou-se"...
Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.
Livro Porandubas Políticas A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato. Em forma editorial, o livro "Porandubas Políticas" apresenta saborosas narrativas folclóricas do mundo político acrescidas de valiosas dicas de marketing eleitoral. Cada exemplar da obra custa apenas R$ 60,00. Adquira o seu, clique aqui. |
Federações partidárias: horizonte incerto
Por Marcos Queiroz
As recém-criadas federações partidárias vão estrear nas eleições gerais deste ano como uma incógnita na política nacional. Embora muito semelhantes às extintas coligações proporcionais, esse instituto ainda gera certa insegurança. Isso porque, ao contrário das coligações, não se restringe apenas à eleição. A aliança necessita ser mantida em âmbito nacional durante todo o período de mandato dos eleitos.
O grande mérito das federações é a tentativa de dar mais organicidade à política ao unir partidos de visões ideológicas idênticas ou aproximadas. Diferentemente do pragmatismo eleitoral das coligações, nas quais parlamentares de visões completamente opostas eram eleitos na mesma chapa.
Apesar de uma maior afinidade de pensamento entre as legendas federadas, não há garantia de coesão. Os interesses imediatos e futuros são empecilhos que não permitem afirmar antecipadamente que o funcionamento desse instituto será bem-sucedido na prática.
No interesse imediato, mira-se apenas a eleição de outubro. As siglas maiores pretendem fortalecer candidaturas executivas (governadores e presidente da República) ao agregar mais legendas em torno de si e propiciar maior estrutura de campanha.
De outro lado, estão os partidos menores, que têm na eleição à Câmara dos Deputados sua trincheira de sobrevivência, pois o desempenho nesse pleito determina o montante de dinheiro que vão receber dos fundos partidário e eleitoral e o direito a tempo de mídia gratuito. Sem tais recursos, essas legendas serão asfixiadas. Nessa eleição, a cláusula de barreira terá como requisitos mínimos a obtenção de 2% dos votos nacionais ou a eleição de 11 deputados federais.
Portanto, para esses partidos a federação representa uma boia de salvação, na medida em que coligados a outros permite-se que alcancem quociente eleitoral para eleger candidatos. Isso dificilmente ocorreria se disputassem o pleito sozinhos.
O aspecto relacionado à eleição parlamentar embute ainda algumas questões que os partidos têm analisado com certa cautela, pois podem ser cruciais no resultado final. Vejamos alguns pontos que fazem parte do cálculo eleitoral.
— Número de candidatos: a Lei 14.211/2021 estabeleceu que cada partido ou federação só possa lançar candidatos no mesmo número de vagas em disputa para os cargos proporcionais (deputados federais, estaduais e vereadores), acrescido de mais uma cadeira. A regra anterior permitia que cada um pudesse lançar entre 150% e 200% do número de lugares a preencher. Dessa forma, como a federação corresponde a agremiação única, o total de candidatos deve ser dividido entre as legendas que a compõem. Esse é um ponto de grande receio, pois é determinante para o desempenho das siglas.
— Sobras: a mesma Lei 14.211/2021 também definiu que só poderão concorrer às vagas remanescentes após a divisão das vagas entre as representações que atingiram o quociente eleitoral, conhecidas como "sobras", apenas os partidos que tenham alcançado 80% do quociente e candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% desse quociente. Caso não seja possível atender a esse critério, as vagas serão preenchidas pelos candidatos mais votados. Esse é um ponto que favorece quem apresenta os nomes com maior potencial de voto.
— Cota de gênero: por força da Lei 12.034/2009, cada partido e federação são obrigados a reservar no mínimo 30% e no máximo 70% de candidaturas para cada sexo. Obviamente, devido à baixa participação feminina na política, os 30% se destinam às mulheres. Esse critério deve ser observado não só no total de candidaturas da federação, mas também em cada legenda integrante da aliança. Somado a isso à Emenda Constitucional 111/2021, que determina apenas para efeito da distribuição dos recursos dos fundos públicos já mencionados, os votos recebidos por candidatas mulheres são contabilizados em dobro. Esse ponto, em específico, revela-se bastante vantajoso para as siglas que possuem candidatas com boa densidade eleitoral.
Entretanto, a conjunção de tais regras torna ainda mais complexa a montagem da "nominata" dos partidos dentro de uma federação e ainda mais incertos os resultados.
Em relação ao futuro, há uma grande discussão sobre o processo de tomada de decisões. Não há lei para disciplinar como será exercida a liderança da federação em sua atuação parlamentar, nem mesmo o peso que cada legenda terá nas deliberações internas. Essa é uma relação que os partidos devem negociar, pois suscita divergências.
Outro ponto de discórdia que se projeta para adiante e necessita de pactuação diz respeito às eleições municipais de 2024. Quem terá a preferência nas disputas? Será permitido que agremiações parceiras em âmbito nacional disputem ente si no pleito local?
Dadas as muitas indefinições, os pretensos federados solicitaram ao Supremo Tribunal Federal a extensão do prazo para formalização das uniões. Em decisão liminar, o ministro Luís Roberto Barroso havia determinado que as federações devem ser oficializadas até 1º de março. Porém, no julgamento em curso no Pleno da corte, a maioria dos ministros acolheu o pedido de dilação do prazo para 31 de maio.
Como se vê, o horizonte está repleto de senões. Portanto, previsibilidade não é a palavra do momento. Aguardemos os próximos capítulos.
Marcos Queiroz, o augtor deste artigo, é jornalista, analista político e consultor da Arko Advice. Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 10.02.22.
Capez: Considerações sobre a lógica do poder na política
É um erro político primário menosprezar a ambição alheia ou estabelecer limites éticos ao adversário que busca o poder a qualquer custo. A política revela o melhor e o pior de cada ser humano.
Há quase três mil anos, Sun Tzu apontou em seu livro "A Arte da Guerra" ("The Book of War") um dos segredos para o triunfo no campo de batalha: "Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas" [1]. Na política não é tão simples, nela nem sempre é fácil identificar o inimigo, muitas vezes camuflado de aliado. O amigo na bonança pode ser o adversário na tormenta, quando não o agente provocador. A lógica da sobrevivência política compreende vários aspectos, mas é fundamental entender que ela, paradoxalmente, está longe de ser um processo lógico. A chegada e manutenção no poder pressupõem saber identificar os obstáculos que estão por vir e os inimigos que se ocultam na mesma trincheira. É um erro político primário menosprezar a ambição alheia ou estabelecer limites éticos ao adversário que busca o poder a qualquer custo. A política revela o melhor e o pior de cada ser humano. Por isso, muito interessante a obra de James D. Morrow, Randolph M. Siverson, Alastair Smith e Bruce Bueno de Mesquita denominada "A Lógica da Sobrevivência Política" ("The Logic of Political Survival") [2], que buscou identificar os imperativos lógicos em um processo não tão lógico, como o da batalha pelo poder.
Os autores pesquisaram as razões pelas quais governantes conseguem permanecer muito tempo no poder, independentemente do sistema institucional do país. Afirmam que não basta o suporte das Forças Armadas ou prestígio popular, sendo necessário o apoio de uma elite dominante, política ou econômica, capaz de enxergar no líder o meio para a preservação de seus interesses. A sobrevivência política é, acima de tudo, a sobrevivência do poder de mando, quase sempre predatório e personalista. Como bem dizia John Dalberg-Acton: "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus" [3].
Contemporaneamente, a classe política considera a estabilidade econômica como importante trunfo para a manutenção do poder. A percepção histórica revela que as grandes transformações sociais e guerras na história da humanidade tiveram como causa preponderante a economia.
O estopim da Revolução Francesa ocorreu com a crise agrária provocada, entre outras causas, por um vulcão que entrou em erupção na Islândia, destruindo as safras e propagando fome e desespero na população, sobretudo a do Terceiro Estado, formado por camponeses e burgueses, representando 98% do total. Toleraram as excentricidades e guerras de Luís XIV, o Rei Sol ("L´État c´est moi"), as festas e desperdícios de Luís XV ("Rien de tout"), mas, com o agravamento das condições econômicas, perderam a paciência quando a miséria lhes bateu à porta, depondo Luís XVI, para depois decapitá-lo ("Aprés moi le déluge").
A Segunda Grande Guerra, maior catástrofe humanitária do século passado, começou nas pesadas dívidas de guerra impostas à Alemanha pelo Tratado de Versailles e o crack da Bolsa de Nova York em 1929. O desespero econômico da população germânica abriu as portas para sua manipulação política por um grupo de fanáticos desprovidos de limites éticos e liderados por um genocida.
Na campanha presidencial norte-americana de 1992, quando o então candidato do Partido Democrata, governador do pequeno estado do Arkansas, Bill Clinton, enfrentou o ex-presidente republicano George Bush, credenciado pelo sucesso militar na Guerra do Golfo, o estafe democrata se questionava quais seriam os pontos vulneráveis da gestão Bush capazes de provocar sua derrota e assegurar a vitória de Clinton.
Uns apontaram o belicismo da política internacional e a demonstração de força da América (Mighty America), outros, a solução dos problemas sociais, até que o marqueteiro da campanha, James Carville, cunhou a frase: "It is the economy, stupid" ("É a economia, estúpido"). Nasce, então, a convergência de quase toda a classe política ocidental no sentido de que o bem-estar econômico, fundado no crédito e aumento do poder de compra, seria o alicerce para um governante se reeleger.
Em se tratando de mecanismos de perpetuação do poder, faz-se necessário compreender as razões pelas quais uma sociedade não só escolhe alguém para governar, como ainda o mantém no governo. A estabilidade econômica é um bom termômetro, mas não o único. Adeptos da escola neo-institucionalista, os autores dividem os mecanismos de sobrevivência política de acordo com a estrutura institucional do país, a saber: regimes autoritários e democráticos, concluindo pela maior longevidade nas ditaduras.
É fato que a situação financeira das pessoas tem grande influência, pois, se o poder de compra aumenta e as contas conseguem ser pagas, cria-se uma sensação de bem-estar propícia à preservação do poder. Em uma métrica cartesiana, existe uma "equação sociológica" que passa necessariamente pela economia, a qual se considera um dos mais importantes e decisivos "imperativos de ação para permanência no poder".
Mas outros pontos também merecem destaque, entre os quais a legitimação do poder. O governante pode ser escolhido por meio do voto, hereditariedade ou força. Em todas essas três formas, após chegar ao poder, terá de traçar estratégias para sua manutenção. É o que os autores chamaram de "teoria dos selecionadores" (selectorate theory) e "coalizão vencedora" (winning coalition).
A teoria dos selecionadores estuda a forma de seleção dos líderes em cada país. Escolhido ou imposto, não importa o meio, o líder terá de prover sua governabilidade e segurança no cargo, por meio de uma coalizão vencedora (winning coalition).
A coalizão vencedora nos regimes democráticos terá de ser majoritária nas casas legislativas, a fim de evitar a obstrução da agenda de governo ou sua deposição por impeachment. Por essa razão, independentemente da identidade de ideias, o líder político precisa construir meios de contato com adversários de outros partidos, inclusive os derrotados no pleito, visando a buscar apoio e pontos de convergência. Sem a winning coalition, corre o risco de não governar ou até ser deposto.
Em um Estado democrático, o líder tem seu poder limitado pela Constituição e a oposição possui mecanismos de participação por meio de vetos ou obstruções, ou ainda provocando o Poder Judiciário quando vislumbrada alguma inconstitucionalidade ou abuso de autoridade. Ao mesmo tempo, a coalizão vencedora ocupará espaços na Administração Pública, dividindo com o líder a responsabilidade de gerenciamento do Estado e o exercício do poder.
Nos regimes autoritários, a chegada e permanência no poder se processam de modo diverso. Ao invés de eleições diretas, o autocrata chega ao poder por meio de um golpe de Estado com apoio das Forças Armadas e, às vezes, de parcela da própria população. A ascensão ao poder também pode ocorrer mediante processo revolucionário, no qual um grupo ideológico toma para si o poder e se autoproclama fiel defensor dos interesses do povo. Existe ainda a possibilidade de líderes autoritários chegarem ao poder por meio de falsas eleições, tais como as que elegiam Saddam Hussein no Iraque em um pleito unipartidário e era reeleito com a totalidade dos votos. Por fim, citamos ainda os exemplos da extinta União Soviética e de Cuba, onde os líderes emergiram da vontade da cúpula do Partido Comunista.
Depois de chegar ao poder, o autocrata centralizará suas ações na sua manutenção, mantendo e expandindo os privilégios dos selecionadores que lá o colocaram. A coalizão vencedora responsável pela segurança e governabilidade do autocrata traduzirá os anseios de uma pequena aristocracia, ligada aos líderes do partido dominante, Forças Armadas ou conglomerado econômico que o selecionou. A governabilidade é pautada pela lealdade pessoal ao líder, uma vez que os integrantes da aristocracia gozam de benefícios privados por fazerem parte de sua base de sustentação e não desejam colocar em risco os privilégios alcançados.
Há de se ressaltar que os dados referentes à permanência de um líder no poder não podem ser interpretados isoladamente, uma vez que no regime democrático o sistema de governo instituído poderá falsear as conclusões obtidas. Enquanto no sistema presidencialista temos a limitação de permanência no poder a um ou dois mandatos eletivos (exemplos: Brasil e Estados Unidos), no parlamentarista não há fixação de tempo de exercício do poder pelo primeiro-ministro. Dessa forma, ignorado o contexto histórico e levados em conta apenas os anos de permanência no poder, uma democracia parlamentarista poderia, equivocadamente, ser tida como um regime autoritário.
Diante de todas as ponderações, a referida obra mostra-se de fundamental importância na compreensão dos mecanismos de perpetuação do poder, lastreados na estrutura histórico-institucional do Estado. Bastante atual e adaptado a qualquer regime político, o trabalho nos induz à reflexão e mostra que os métodos apresentam similaridade com os regimes da Antiguidade, como o da Roma Antiga, com uma diferença básica: normalmente, as 23 punhaladas no imperador Caio Júlio César na entrada do Senado romano, em regra, se apresentam em sentido figurado, na forma de sutis traições. Triunfar na política pressupõe conhecer as mazelas da alma humana e saber liderar com elas, até para conseguir fazer o bem.
[1] TZU, Sun. A Arte da Guerra, 1ª edição, Ed. L&PM POKET, 2012.
[2] MORROW, James D.; SIVERSON, Randolph M.; ALASTAIR, Smith e MESQUITA, Bruce Bueno de. A Lógica da Sobrevivência Política, 1ª edição, Ed. Vide Editorial, 2022.
[3] "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost bad men". Carta para o Bispo Mandell Creighton, 5 de abril de 1887, In FIGGS, J. N. e LAURENCE, R. V. Historical Essays and Studies: Macmillan, 1907
Fernando Capez, o autor deste artigo, é procurador de Justiça, mestre e doutor em Direito e presidente do Procon-SP. Publicado originalmente pelo Consultor Juridico, em 10.02.22.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
Futuro roubado
Não é difícil avaliar o impacto negativo que a alfabetização tardia tem no desenvolvimento das crianças
Os impactos da pandemia de covid-19 sobre a educação só não são mais trágicos do que os que se abateram sobre as famílias dos mais de 630 mil brasileiros mortos em decorrência da doença. Para os que sofreram a perda de entes queridos, não há reparo possível. Para a educação, há, mas isso demandará um monumental esforço concentrado do governo, nas três esferas da administração, e da sociedade. Será necessária, sobretudo, a reconstrução do Ministério da Educação (MEC), reduzido a pó e mofo ideológico pela torpeza do presidente Jair Bolsonaro, que instrumentalizou a pasta para defender seus delírios anticomunistas e interesses eleitorais – não raro congruentes.
Um levantamento da organização Todos Pela Educação, publicado pelo Estadão, mostrou que o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever cresceu 66,3% entre 2019 e 2021. Em números absolutos, isso significa que, desde o início da pandemia, a quantidade de crianças que não foram alfabetizadas saltou de 1,43 milhão para 2,39 milhões. É um desastre. Não é difícil avaliar o desdobramento que terá a alfabetização tardia no desenvolvimento educacional dessas crianças.
Além desse problema, grave por si só, o levantamento do Todos Pela Educação, feito com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, lança mais luz sobre a profunda desigualdade social e econômica no Brasil, uma chaga que a pandemia de covid-19 só agravou. Entre as crianças mais pobres, o porcentual das que não sabiam ler e escrever saltou de 33,6% para 51% entre 2019 e 2021. A razão é de uma simplicidade revoltante: a imensa maioria das crianças mais pobres depende da educação pública. E sabe-se que a educação pública foi absolutamente negligenciada pelos governos federal, estaduais e municipais no curso da pandemia, ampliando ainda mais o abissal fosso que separa as crianças mais carentes das crianças que podem contar com as escolas particulares.
O levantamento do Todos Pela Educação também mostrou que a negligência com a educação pune mais as crianças pretas e pardas, em geral mais pobres e mais dependentes da educação pública. Os porcentuais de pretas e pardas que não sabiam ler e escrever saltaram, respectivamente, de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021. Entre as crianças brancas, houve prejuízos, mas em menor grau. Entre estas, o crescimento das que não leem nem escrevem foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período.
“A educação precisa ser, de fato, prioritária na pauta política do País para que possamos mitigar esses efeitos”, escreveu Gabriel Corrêa, líder de políticas educacionais do Todos pela Educação, em análise para o Estadão. Ele tem razão. É urgente a coordenação entre o MEC e as Secretarias da Educação nos Estados e municípios para definição de políticas públicas de resgate da aprendizagem perdida. Não será um esforço trivial, mas, se a educação não sair do campo dos discursos e passar para o campo da ação, triste é o futuro que o País tem à frente.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 09 de fevereiro de 2022 | 03h05
Sobe para 41% fatia das crianças de 6 a 7 anos que não sabem ler e escrever
Em 2012, eram 28%, segundo estudo do Todos pela Educação com base na Pnad Contínua
Menina de 5 anos, aluna de escola municipal de São Paulo, tenta escrever o próprio nome. No país, 41% das crianças de 6 e 7 anos não aprenderam a ler e escrever - Marlene Bergamo - 13.dez.20/Folhapress
O Brasil atingiu o maior patamar, desde 2012, de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever. No ano passado, chegou a 40,8% a fatia da população dessa faixa etária que não havia sido alfabetizada, o equivalente a 2,4 milhões.
Os dados são de um estudo divulgado nesta terça-feira (8) pelo Todos pela Educação, com base na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE. Na pesquisa, os responsáveis pelos domicílios responderam se suas crianças sabiam ler e escrever.
Por lei, as crianças deveriam ter assegurado o direito de aprender a ler e a escrever até o fim do 2º ano do ensino fundamental, ou seja, aos 7 anos. O país, no entanto, atingiu o recorde dos últimos dez anos de crianças sem acesso a esse direito. Em 2012, 28,2% da população dessa idade não estava alfabetizada, cerca de 1,7 milhão.
O aumento de crianças de 6 a 7 anos nessa situação ocorreu durante a pandemia de Covid-19. Em 2019, 1,4 milhão não tinha sido alfabetizada (25,1% da população dessa faixa etária).
O impacto é ainda maior entre as crianças mais pobres, pretas e pardas. Além de terem tido menos oportunidade de continuar estudando a distância, foram esses alunos que ficaram mais tempo com as escolas fechadas no país.
"Os dados reforçam o que outras pesquisas já apontaram, a pandemia teve impactos brutais no aprendizado das crianças e reforçou as imensas desigualdades que já existiam no país. É urgente colocar em prática políticas que tenham como prioridade o ensino das crianças mais pobres, pretas e pardas", diz Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do Todos pela Educação.
Entre as crianças que moram nos 25% de domicílios mais pobres do país, 51% não sabem ler e escrever. Já entre as que moram nos 25% mais ricos, 16,6% ainda não tinham aprendido.
As crianças pretas e pardas, que já tinham o direito menos assegurado em anos anteriores, foram ainda mais impactadas. A diferença entre o percentual de crianças brancas e pretas que não sabiam ler e escrever subiu de 8,5 pontos percentuais para 12,3 entre 2019 e 2021.
Em 2019, 20,3% das crianças brancas não sabiam ler e escrever. O percentual subiu para 35,1%, em 2021. No mesmo período, entre as crianças pretas, a proporção cresceu de 28,8% para 47,4%. Entre as pardas, subiu de 28,2% para 44,5%.
"As crianças negras e as mais pobres tiveram menos oportunidade de continuar estudando durante a pandemia, principalmente por terem tido menos acesso ao ensino remoto. Por isso, precisamos de ações que sejam pensadas para quem foi mais prejudicado. Infelizmente, não é o que estamos vendo", diz Corrêa.
Desde o início da pandemia, o Ministério da Educação, que tem uma secretaria exclusiva para a alfabetização, não desenvolveu nenhum programa ou destinou recursos extras às escolas para evitar prejuízos nessa fase de aprendizado. Questionada, a pasta não respondeu sobre suas ações.
Segundo Corrêa, com a ausência do governo federal, é importante que os estados apoiem técnica e financeiramente os municípios para garantir a qualidade da educação nos primeiros anos escolares. "As escolas municipais são responsáveis pela maioria das matrículas nos anos iniciais do fundamental, mas não podemos achar que o desafio é só ter as crianças dentro da sala de aula, precisamos garantir educação de qualidade. E os estados precisam ajudar."
Na cidade mais rica do país, nem mesmo a matrícula de todas as crianças dessa idade foi garantida no início deste ano letivo. Em São Paulo, até 14 mil alunos que estão ingressando no 1º ano do ensino fundamental não tiveram vaga assegurada pelo governo estadual nem pela prefeitura.
"É o reflexo da falta de planejamento e cooperação entre o governo e a prefeitura. Essa situação dá um indicativo do tamanho do desafio que estados e municípios mais pobres podem ter pela frente se não tiverem organização e apoio. Garantir escola é só o primeiro passo, nós precisamos de escola de qualidade", diz Corrêa.
Isabela Palhares, para a Folha de S. Paulo, em 09.02.22
Por que Alemanha e outros países proíbem o nazismo?
"Uma ideia que tem circulado cada vez mais é a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a própria democracia", afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.
Em podcast, apresentador Monark disse que deveria haver um 'partido nazista reconhecido pela lei' (Divulgação)
Ao argumentar que foi um "erro" a criminalização do nazismo pela Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) tocou em um dos maiores desafios para as democracias liberais contemporâneas: qual a linha que separa a liberdade de expressão e a apologia ao crime? Quando a garantia à liberdade de expressão de um grupo representa dar-lhes os instrumentos democráticos para destruir a própria democracia? Por que, afinal, a Alemanha, um dos países mais democráticos do mundo, criminaliza até hoje o discurso nazista?
A fala de Kim Kataguiri - que em janeiro anunciou que se filiará ao Podemos - aconteceu na última segunda-feira (7/2), durante a participação do integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) no programa de podcast Flow, conduzido pelo apresentador Bruno Aiub, conhecido como Monark.
"O que eu defendo, e acredito que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco o que o sujeito defenda, isso não deve ser crime porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente", disse Kataguiri no podcast.
No mesmo programa, Monark afirmou que "deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil" e que "se o cara for anti-judeu ele tem direito de ser anti-judeu".
O 'falso' paradoxo da liberdade
Nesta terça (8/1), o apresentador disse que estava "muito bêbado" durante o podcast e se desculpou pelas palavras. Afirmou que foi "insensível" e que pareceu defender "coisas abomináveis" quando na verdade queria argumentar a favor da liberdade de expressão. O podcast Flow anunciou que Monark havia sido retirado da apresentação da atração e deixado a sociedade que gerencia o produto.
Alguns anunciantes do programa, que tem quase 4 milhões de inscritos no Youtube, divulgaram que romperiam seus contratos com o Flow. A Confederação Israelita do Brasil (Conib) condenou, em nota, "a defesa da existência de um partido nazista" e até a Embaixada da Alemanha no Brasil soltou nota em que afirmou que "defender o nazismo não é liberdade de expressão".
Um dia após o episódio, a Procuradoria Geral da República abriu investigação contra Kataguiri e Monark por eventual crime de apologia ao nazismo. No Brasil, divulgar o nazismo pode resultar em pena de 2 a 5 anos de cadeia e pagamento de multa.
O deputado federal foi às redes sociais argumentar que sua defesa era da liberdade de expressão e não do nazismo. Em nota, afirmou que vai "colaborar com as investigações pois meu discurso foi absolutamente anti-nazista, não há nada de criminoso em defender que o nazismo seja repudiado com veemência no campo ideológico para que as atrocidades que conhecemos nunca sejam cometidas novamente".
Especialistas em democracia e fascismo ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, veem no argumento pró-liberdade de expressão absoluta de Kataguiri e Monark um falso - e perigoso - paradoxo.
"Uma ideia que tem circulado cada vez mais é a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a própria democracia", afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.
Finchelstein apela para uma metáfora futebolística para explicar por que a lógica de Kataguiri e Monark é incorreta.
"Imagine que a democracia é um jogo de futebol, com todas as regras do jogo, como só jogar com os pés. Todos podem jogar, desde que sigam as regras. Ao defender que alguns têm o direito de expressar e aplicar ideias que destroem a democracia, essas pessoas estão dizendo que parte dos jogadores vai jogar futebol com a mão, o que destrói o jogo. É algo perigoso e típico do fascismo, uma manipulação para causar confusão com a noção de liberdade, como se a liberdade na democracia incluísse ser livre para contaminar os outros, para eliminar grupos sociais, para cassar vozes alheias", diz Finchelstein.
Filósofo Karl Popper disse que "a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância" (Getty Images)
O suposto paradoxo da democracia - de garantir liberdades que podem destruir a própria democracia - não é uma ideia nova na filosofia e na política. Em 1945, o filósofo liberal Karl Popper publicava o seu "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", escrito ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Na obra, ele afirma que "a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles".
'Democracia militante': a experiência alemã
Para Johannes von Moltke, especialista em movimentos de direita e sua atuação nas mídias, da Universidade de Michigan, foi essa lição que a Alemanha falhou em entender há quase 90 anos e que a levou a ter um governo nazista no comando.
"A Alemanha do pós segunda guerra não proibiu o nazismo apenas pela experiência do Holocausto. Os alemães estavam muito preocupados em não repetir os erros da era pré-nazista, da chamada República de Weimar (1919-1933), que permitiu que partidos como o nacional-socialista de Hitler se estabelecessem. O que o deputado brasileiro está defendendo é basicamente a rota de uma democracia não liberal para o fascismo, justamente o caminho que a Alemanha tomou no final dos anos 1920, que levou à eleição do Partido Nazista, responsável por cassar todas as salvaguardas democráticas na sequência", explica von Moltke.
Ao tomar o controle da então frágil e jovem democracia alemã, Adolf Hitler não só destruiu as instituições democráticas como passou a usar a máquina do Estado alemão para perseguir e exterminar minorias: judeus, negros, homossexuais. As ações de Hitler desaguaram na Segunda Guerra Mundial, da qual ele saiu derrotado e, o país, dividido
Em 1949, o governo da então Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de símbolos, linguagem e propagandas nazistas. Estudioso do desenvolvimento de leis contra o discurso e os crimes de ódio no mundo, o professor da Faculdade Middlebury College, Erik Bleich lembra que até mesmo a famosa saudação "Heil Hitler!" foi oficialmente proibida pelos alemães.
Em 1949, o governo da então Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de símbolos, linguagem e propagandas nazistas (Getty Images)
No entanto, ainda levaria quase duas décadas para que os alemães passassem a olhar de modo crítico para a própria história, resgatassem a memória das atrocidades do período nazista e discutissem nas escolas os crimes cometidos pelos avós dos estudantes. Ainda nos anos 1960, passou a ser crime "incitar ódio e violência contra parcelas da população", lei que foi atualizada para criminalizar também o racismo e expressamente banir racismo e fascismo.
"É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los. Os alemães viram em primeira mão onde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de 'democracia militante' - em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia", afirmou Bleich à BBC News Brasil.
Segundo Bleich, a Alemanha é a democracia mais restritiva enquanto os Estados Unidos, onde é relativamente comum ver manifestações da extrema direita com suásticas e símbolos de supremacia branca, têm menos regulações.
"Ambos os países ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e ações, em diversos espectros ideológicos. A parte difícil dessa história para as democracias é descobrir como restringir, banir ou punir apenas os discursos, grupos e partidos realmente perigosos, deixando o escopo mais amplo possível do que é permitido. Diferentes países desenvolveram soluções diferentes para este enigma", diz Bleich.
No Brasil, durante o governo Bolsonaro, a questão entrou na ordem do dia. Por um lado, integrantes do governo foram acusados de promover propaganda fascista. Em janeiro de 2020, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim foi demitido depois de divulgar um vídeo que fazia referência à fala de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Ele atribuiu o episódio a uma "coincidência retórica". Em março de 2021, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins foi acusado de fazer gesto supremacista branco durante sessão no Congresso. Martins negou intenção racista em seu gesto e acabou absolvido na Justiça.
De outro lado, integrantes do governo e o próprio presidente passaram a acusar a Justiça de cercear a liberdade de expressão dos brasileiros. Seus apoiadores chegaram a ameaçar invadir o Supremo Tribunal Federal, que deu sucessivas decisões contra o que considerou serem atos anti-democráticos de bolsonaristas. Entre as decisões judiciais estão a derrubada de páginas de internet e perfis de redes sociais que espalhavam desinformação favorável ao atual governo.
Segundo Finchelstein, existe uma ressurgência do fascismo em diversos países e o Brasil não escapa desse movimento global, que seria uma busca por respostas para os problemas da vida cotidiana, como a pandemia e suas restrições, as crises econômicas, a intensidade das migrações com a globalização. "Há uma espécie de crise da democracia. As pessoas estão descontentes com o desenvolvimento político, econômico e social. Mas elas parecem esquecer que a solução que o fascismo propõe é ainda pior do que uma democracia problemática, diz Finchelstein.
Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washinton,DC, para a a BBC News Brasil.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2022
MPF pede à Justiça que governo Bolsonaro seja proibido de fazer publicações celebrando golpe de 1964
Procuradoria também pediu que ex-secretário de Comunicação Social Floriano Barbosa e empresário sejam condenados a pagar indenização de R$ 1 milhão
O presidente Jair Bolsonaro, durante visita ao Comando do Exército Foto: Marcos Corrêa/Presidência/11-05-2021
O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública na qual pede que o governo federal seja proibido de fazer publicações que celebrem o golpe militar de 1964. Também solicitou que o ex-secretário de Comunicação Social do governo de Jair Bolsonaro, Floriano Barbosa, e o empresário Osmar Stábile sejam condenados a pagar uma indenização por dano moral coletiva de R$ 1 milhão por ocasião de um vídeo divulgado em 2019 com celebração da ditadura militar, classificado pelo MPF como "antidemocrático".
O referido vídeo, que trata o golpe de 1964 como um momento da história em que o Exército "salvou" o Brasil de supostas ameaças comunistas, foi divulgado pela Secretaria de Comunicação Social na rede de WhatsApp do Palácio do Planalto em 31 de março de 2019. Em resposta ao MPF, o governo federal disse que o vídeo foi publicado por engano por um funcionário do Planalto e que não teve uso de recursos públicos, por ter sido produzido pelo empresário.
"Diante dos elementos informativos colhidos na investigação, não convence a tese sustentada de que a postagem se deu por um equívoco de um servidor público, notadamente quando verificado o contexto dos fatos. A publicação de um vídeo em um canal oficial de comunicação da Presidência da República não é — e não pode ser — um ato tão simples e banal, uma vez que ficou incontroverso que sempre há uma autorização expressa do Secretário de Comunicação Social da Presidência da República, conforme nota técnica", escreveu o procurador Pablo Coutinho Barreto, na ação apresentada à Justiça Federal do Distrito Federal.
"A defesa e exaltação de regime ditatorial, por instituição ou agente públicos, sob qualquer pretexto, também viola a ordem constitucional vigente, incorrendo, também, em ato ilícito aquele que financia a defesa e exaltação de regime ditatorial promovida por instituição ou agente públicos", completou.
A ação ainda cita a Comissão Nacional da Verdade, instaurada para apurar "graves violações a direitos humanos" e que reconheceu, em seu relatório final, a prática dessas violações pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar.
Para o procurador, o dano moral coletivo ficou configurado porque o vídeo tomou proporção nacional, já que foi objeto de reportagens na imprensa a respeito da sua veiculação pelo Palácio do Planalto. Durante a investigação, foi constatado que a repercussão gerou inclusive um aumento no cache pago pelo empresário ao ator que atuou no vídeo, passando de R$ 500,00 para R$ 35 mil.
Ao final, o MPF fez três pedidos à Justiça Federal envolvendo a União. Primeiro, uma determinação ao governo para que "abstenha-se de promover novas publicações que façam qualquer tipo de celebração/comemoração em relação ao do Golpe Militar de 1964". Em seguida, que a União publique uma mensagem retificadora esclarecendo os equívocos das informações que constam no vídeo divulgado em 2019.
Aguirre Talento e Mariana Muniz para O Globo, em 08/02/2022
O rico PT dá calote trabalhista
Dos quase R$ 24 milhões devidos pelo PT, 70% são débitos com a Previdência Social. Débito de FGTS soma R$ 135 mil
O Partido dos Trabalhadores (PT) é o partido político que acumula a maior dívida com os cofres públicos entre todas as legendas. E a maior parte desse passivo, quem diria, é composta por débitos com a Previdência Social. Portanto, uma dívida de natureza trabalhista.
O PT que alardeia ser o grande defensor dos interesses da classe trabalhadora do País é o mesmo partido que acumula as maiores dívidas com o Tesouro pelo não recolhimento das contribuições para o INSS e para o FGTS dos funcionários de seus diretórios estaduais e municipais.
É muito fácil assumir o papel de patrono das grandes causas dos desvalidos da porta de casa para fora. Benemerência com chapéu alheio é extremamente confortável.
Os débitos do partido do sr. Lula da Silva somam R$ 23,7 milhões, quase o quádruplo do valor devido pela segunda legenda mais endividada, o DEM, com R$ 6,5 milhões. Cerca de 70% da dívida petista é com a Previdência Social (R$ 16,4 milhões). Em seguida, vêm as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral (R$ 5,1 milhões), impostos não pagos (R$ 709 mil) e o não recolhimento de valores devidos ao FGTS (R$ 135 mil).
O Estadão procurou a direção nacional do PT para obter explicações, mas o partido não quis se manifestar. É difícil explicar mesmo. É no mínimo inusitado que um dos partidos políticos mais ricos do País seja também o maior caloteiro. O PT foi o segundo partido que mais recebeu recursos do Fundo Partidário em 2021 (R$ 95,7 milhões), atrás apenas do PSL (R$ 112,7 milhões). Além disso, o partido conta com uma militância tão aguerrida que já se mostrou disposta a pagar até as multas aplicadas a alguns de seus líderes condenados pela Justiça.
É bastante improvável que o PT, ou qualquer outra legenda, quite os seus débitos. O Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), o chamado fundo eleitoral, são excrescências que fazem um mal terrível à democracia representativa. Quanto mais vultosos são os recursos públicos recebidos pelos partidos, maior é a distância que separa as legendas de seus apoiadores, os quais, afinal, os partidos deveriam atrair para obter doações e, assim, custear suas atividades, como qualquer outra organização privada da sociedade civil. Multas aplicadas pela Justiça Eleitoral obviamente não podem ser pagas com recursos dos fundos públicos. Logo, sem se esforçar para obter meios privados de pagamento, os partidos simplesmente ignoram os débitos.
Como se essa distorção causada pelos fundos públicos não fosse grave por si só, além de aboletar os caciques partidários em um confortável sofá recheado de recursos dos contribuintes, a dinheirama fácil, aliada à falta de sanções mais duras pela incúria, ainda tem o condão de fazer os partidos se sentirem intocáveis, pairando acima das mesmas leis que são aplicadas a quaisquer outras empresas – e é nisto em que se transformaram muitas legendas – que têm débitos com o Tesouro.
Ao dito popular “devo, não nego, pago quando puder”, em relação aos partidos políticos, pode-se acrescentar “e se quiser”.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.02.22
O Supremo – e a lei – sob ataque
O descumprimento pelo Congresso de decisão judicial sobre a publicidade das emendas de relator é parte do retrocesso institucional instaurado pelo bolsonarismo
São conhecidos os ataques e as ameaças do bolsonarismo contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Ao constatar a disposição do Judiciário em defender a Constituição – é a Justiça, e não o Congresso ou mesmo a oposição, que tem recordado os limites institucionais da Presidência da República –, Jair Bolsonaro transformou os ministros do Supremo em inimigos políticos. Mais do que Luiz Inácio Lula da Silva, seriam os membros do STF que demandam a constante mobilização dos bolsonaristas.
Inédita desde a redemocratização do País, essa atitude de confronto por parte do presidente da República contra o Judiciário expressa-se de diversas maneiras. Por exemplo, Jair Bolsonaro fala abertamente em deturpar o funcionamento do STF, prometendo usar as indicações presidenciais tanto para diminuir a independência da Corte como para aparelhá-la ideologicamente. Para piorar, Jair Bolsonaro apresenta esse aparelhamento do Judiciário como uma espécie de diferencial eleitoral. Só o bolsonarismo estaria disposto a realizar esse enviesamento ideológico e negacionista do Supremo.
Trata-se de desavergonhada promoção do retrocesso institucional. Ignorando a Constituição, Jair Bolsonaro trata o Supremo como mero ator político – e ainda subalterno ao Executivo. Essa manipulação não é apenas um erro teórico. Ela gera graves prejuízos ao País. Depois que o lulopetismo instalou a divisão do “nós contra eles”, o bolsonarismo tenta agora inserir o Supremo na mesma odiosa polarização.
Tem-se, assim, um cenário de desrespeito ao Estado Democrático de Direito, em especial a um de seus mais importantes elementos: o sistema de freios e contrapesos, que regula todo o funcionamento dos Poderes. O problema não se resume, portanto, à pretensão de Bolsonaro de agir fora dos limites constitucionais, o que por si só é grave. Sob a égide da bagunça bolsonarista – como se tudo fosse mera política, como se tudo ao final dependesse não das regras institucionais, mas da esperteza de cada um –, o peso da lei e, por consequência, o peso das decisões judiciais perdem importância.
Veja-se, por exemplo, o descumprimento pelo Congresso da decisão do STF sobre a publicidade do repasse das verbas públicas envolvendo as emendas de relator, como mostrou o Estadão. Após a revelação, no ano passado, por este jornal, do esquema do orçamento secreto – dinheiro público era usado para atender a interesses políticos discricionários, sem a devida transparência –, o Supremo determinou, entre outras medidas, que o Legislativo devia informar o nome do parlamentar que apresentou o pedido de verba. Trata-se de informação essencial numa democracia.
No entanto, o Congresso não vem cumprindo integralmente a determinação do Supremo. Por exemplo, entre 13 e 31 de dezembro do ano passado, o relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (PSL-AC), registrou no site do Congresso indicações no valor de R$ 4,3 bilhões, mas em 48% dos repasses os nomes dos parlamentares que apadrinharam esses pedidos não foram apresentados.
Além disso, as informações incluídas por Márcio Bittar não cobriram a totalidade do valor empenhado no período para as emendas de relator, da ordem de R$ 6,6 bilhões. Ou seja, além de a publicidade sobre R$ 4,3 bilhões ser incompleta, também não se sabe como ocorreu o repasse em relação a outros R$ 2,3 bilhões, se foram parlamentares que apresentaram os pedidos de repasse ou se foi o Executivo federal quem definiu o destino desses recursos.
É muito dinheiro público gasto sem a devida transparência. Ainda que fosse apenas um centavo, é muito descaramento essa parcial divulgação dos dados exigidos pelo Supremo. Num Estado Democrático de Direito, decisão judicial deve ser cumprida, e ponto final.
Engana-se quem pensa que os ataques de Jair Bolsonaro contra o Supremo e o descumprimento do Congresso de decisão da Corte são fenômenos independentes. A malemolência do Legislativo em dar plena publicidade aos dados das emendas de relator é parte do retrocesso institucional instaurado pelo bolsonarismo. É urgente restaurar o valor do STF – e da lei.
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.02.22.
Moro defende lei contra aborto e imunidade tributária de igrejas em carta a evangélicos
O ex-ministro busca atrair votos conservadores que hoje são mais simpáticos ao presidente Jair Bolsonaro
Sergio Moro durante a filiação de membros do MBL ao Podemos - Adriano Vizoni - 26.jan.22/Folhapress
"Valorizaremos a autonomia da instituição familiar, respeitaremos as preferências afetivas e sexuais de cada indivíduo e a preservação dos direitos de cada um dos seus membros", escreveu.
O ex-juiz Sergio Moro lançou uma carta nesta segunda-feira (7) em que defende a atual lei que restringe as situações em que o aborto é permitido e promete manter a imunidade tributária das igrejas.
A iniciativa do pré-candidato à Presidência da República faz parte da estratégia eleitoral para atrair voto dos evangélicos, segmento em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) conta com apoio de populares líderes religiosos.
O lançamento ocorreu em um evento no Ceará com a divulgação da "Carta de Princípios para Cristãos".
Moro não entrou no mérito das discussões sobre as garantias do público LGBTQIA+, mas defendeu respeito a este grupo da sociedade.
"Valorizaremos a autonomia da instituição familiar, respeitaremos as preferências afetivas e sexuais de cada indivíduo e a preservação dos direitos de cada um dos seus membros", escreveu.
O ex-ministro de Bolsonaro leu a carta e disse que as promessas estão "escritas na pedra" e que traduzem "princípios que não serão desconsiderados em qualquer hipótese, seja em 2022 ou em anos vindouros".
Moro também criticou "ataques e ofensas à imprensa" e disse que esses episódios refletem um comportamento agressivo "em relação a nós próprios". Ele disse que é contra discursos de ódio e que trabalhará contra a polarização que divide a sociedade.
Também se comprometeu em não fazer divulgações de campanha em celebrações religiosas e disse que buscará "apoio individual de lideranças eclesiásticas e de influenciadores do segmento" sem perseguir sustentação política institucional de igrejas.
Em sinalização para o campo conservador da sociedade, em que ele disputa voto com Bolsonaro, reiterou ser contrário a possibilidade de aumentar as hipóteses em que o abordo é permitido.
"Defenderemos a não ampliação da legislação em relação ao aborto e faremos a defesa da preservação da vida humana em todas as suas manifestações, conforme lei brasileira em vigor", disse.
Ele afirmou que irá prestigiar o "papel constitucional colaborativo das organização religiosas" e que pretende manter a imunidade tributária das igrejas.
Além disso, disse que já fez um trabalho de combate ao tráfico quando foi ministro da Justiça e que seguirá firme contra substâncias ilícitas.
Moro também se disse contra a "sexualização das crianças", termo usado por Bolsonaro para acusar, sem provas, líderes de esquerda de promoverem a pedofilia.
"O Estado deve evitar ao máximo invadir a esfera da liberdade privada, assim como deve preservar as crianças e adolescentes da sexualização precoce".
Matheus Teixeira, de Brasília para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 07.02.22., às 20h51