sábado, 22 de janeiro de 2022

Quem foi Maria Quitéria, mulher que se vestiu de homem para lutar na Independência do Brasil

Primeira mulher a integrar as Forças Armadas, Maria Quitéria foi condecorada por D. Pedro 1º como heroína, exaltada pelo Exército a partir da década de 1950 e rosto emblemático na luta de organizações femininas pela anistia durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).

Detalhe do retrato póstumo de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, de Domenico Failutti

A Independência do Brasil completa 200 anos em 2022. A data que marca o bicentenário em torno do 7 de Setembro, quando país deixou de ser colônia portuguesa, é cercada de discordâncias em torno de sua real importância para a nação que começava a se formar, assim como personagens ainda pouco explorados nos livros didáticos.

Esses dois temas estão relacionados à história de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853), que se vestiu de homem, com a alcunha de 'soldado Medeiros', para participar das lutas independentistas em seu Estado, a Bahia, contra as tropas portuguesas resistentes às mudanças regimentais na política brasileira daquele período.

Reprodução/ Gravura de Augustus Earle exposta na Biblioteca Nacional da Austrália - 1823

As disputas na Bahia

Para entender a história de Maria Quitéria e sua entrada nas lutas independentistas, é preciso contextualizar o 7 de Setembro. A data, que marca o grito de D. Pedro 1º às margens do rio Ipiranga, não representa o que aconteceu de fato no Brasil, segundo alguns pesquisadores. O escritor Laurentino Gomes, no livro 1822, diz o seguinte:

"As demais províncias ou ainda estavam sob controle das tropas portuguesas, caso da Bahia, ou discordavam da ideia de trocar a tutela até então exercida por Lisboa pelo poder centralizado no Rio de Janeiro, caso de Pernambuco, que reivindicava maior autonomia regional", diz a obra.

Patrícia Valim, professora de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), corrobora essa versão. "O 7 de Setembro é a nossa primeira grande derrota enquanto país, ou na formação de um, porque é uma data fruto de um acordo feito em São Paulo. Muito diferente do que houve na Bahia e do contexto no qual a Maria Quitéria está inserida", afirma.

As lutas na Bahia se intensificaram em fevereiro de 1822, quando tropas portuguesas e soldados brasileiros travaram conflitos em torno do comando da província da Bahia, na contenda entre o português Luís Madeira de Melo e o brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães.

As disputas perduraram até julho de 1823, quando os portugueses se renderam. Nesse meio tempo, há a figura de Maria Quitéria, cuja presença na guerra de independência não foi nada simples.

Reprodução do boletim do Movimento Feminino pela Anistia / Boletim Maria Quitéria

Maria Quitéria nasceu em São José das Itapororocas, antiga Freguesia de Nossa Senhora do Porto da Cachoeira, atual município de Feira de Santana. Seu pai era o lavrador Gonçalo Alves de Almeida, e a mãe era Quitéria Maria de Jesus.

Boa parte do que se sabe sobre a trajetória de Maria Quitéria está em biografias escritas na década de 1950, quando comemorações em torno de seu centenário se avolumaram. O livro de Pereira Reis Junior, de 1953, é um exemplo.

Esses relatos partem de registros de jornais da época e também da escritora britânica Maria Graham, que escreveu um livro sobre sua viagem ao Brasil entre 1821 e 1823, intitulado Journal of a Voyage to Brazil, de 1824.

A partir daí, é possível saber que a mãe de Maria Quitéria teria falecido quando a filha ainda era criança, e que o pai casara-se uma porção de vezes nos anos seguintes.

O patriarca era proprietário da Fazenda Serra da Agulha, onde plantava algodão, criava cabeças de gado e detinha duas dezenas de negros escravizados. "Eles não eram ricos, mas também não tinham dificuldade", afirma Valim, da UFBA.

Maria Quitéria cresceu sendo criada por madrastas e pouco afeita aos trabalhos de casa, condição inerente às mulheres daquele período. "A família queria que ela bordasse, mas ela se recusava. Maria Quitéria gostava de montar a cavalo, cavalgar. Também manejava armas de caça, como espingarda, algo fora dos padrões", conta a historiadora.

Reprodução/ Quadro de Domênico Failutti - 1920 - Pertence ao Museu Paulista (ou do Ipiranga)

O Soldado Medeiros

Maria Quitéria soube da guerra quando emissários de uma Junta Provisória instalada para governar a Bahia em meio às disputas com Portugal chegaram ao Recôncavo Baiano à procura de homens para participar da luta armada a favor da independência do Estado.

Ao saber da notícia, Maria Quitéria tentou convencer seu pai a deixar que ela participasse da guerra, mas o pedido foi prontamente recusado. Então, Quitéria foi à casa de uma das irmãs, Teresa, e pegou a roupa de seu cunhado, José Cordeiro de Medeiros, além de cortar os cabelos. Nascia, então, o "Soldado Medeiros".

A versão corrente entre os biógrafos é que Maria Quitéria teria se apresentado ao Batalhão Nº 3 de Caçadores do Exército Pacificador como filho de seu cunhado, já que usava vestimenta masculina. A mentira deu certo.

"Ela assumiu a identidade masculina com muita propriedade. Apesar de ser iletrada, ela tinha um conhecimento militar de montaria, tiro ao alvo, que fazia diferença naquele contexto de conflito. Eram habilidades irrecusáveis pelos militares brasileiros", diz Valim.

Pouco tempo depois do sumiço da filha, Gonçalo, o pai, é informado pela irmã de que Maria Quitéria decidira se juntar às tropas disfarçada. Gonçalo vai à cidade de Cachoeira, encontra a filha e informa o major José Antônio Silva Castro de que o soldado Medeiros, na verdade, era uma mulher. "O pai pediu que ela voltasse imediatamente, sob pena de ser amaldiçoada, mas ela não retornou", conta Valim.

O major permitiu que Maria Quitéria continuasse no Batalhão, já que possuía habilidades destacáveis com armas de fogo. Ela tinha 30 anos na época. Em março de 1823, um registro de Portaria do Governo Provisório da Vila de Cachoeira mostra que o Major pediu ao Inspetor dos Fardamentos, Montarias e Misteres do Exército que enviasse "saiotes, e uma espada" para que ela fosse devidamente fardada como mulher.

Registros apontam a participação de Maria Quitéria em ao menos três combates. Enquanto a independência era gritada em São Paulo por D. Pedro 1º, os conflitos cresciam na Bahia. Maria Quitéria participou do primeiro deles em outubro de 1822, na região da Pituba. Depois, em fevereiro do ano seguinte, em Itapuã. Nesse período, ela foi promovida a 1º cadete.

Em abril de 1823, Maria Quitéria comandou um grupo de mulheres civis que se uniram para lutar contra os portugueses na Barra do Paraguaçu, no litoral do Recôncavo. A resistência vitoriosa foi fundamental para garantir não só a independência baiana, mas também para alçar a figura de Quitéria como heroína da pátria.

Os conflitos seguiram até 2 de julho, quando os últimos portugueses que ainda resistiam decidiram abdicar do combate. A data é celebrada como o dia da independência da Bahia até hoje. "Essa celebração marca uma oposição ao 7 de Setembro e a história criada em São Paulo. História mantida até hoje, com o que é contada no Museu Paulista e centraliza a narrativa em torno da independência", ressalta Valim.

Com o fim da guerra, Maria Quitéria vai ao Rio de Janeiro em agosto de 1823 para ser recebida por D. Pedro 1º. Ela foi condecorada com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, medalha criada como símbolo do poder imperial como forma de homenagear brasileiros ou estrangeiros que tenham lutado pela independência do país.

Maria Quitéria em reprodução da Pintura de Edward Finden, publicada no livro Journal of a Voyage to Brazil (Reprodução / Journal of a Voyage to Brazil)

O debate sobre as representações

É na visita ao Rio que Quitéria conhece Maria Graham. A escritora britânica descreve Quitéria como "iletrada, mas viva" e que "tem a inteligência clara e a percepção aguda". A lista de elogios à militar brasileira segue, com a avaliação de que "se a educassem, viria a ser uma personalidade notável''.

É também a partir do encontro com a escritora que a discussão em torno da compleição física de Quitéria começa a ser travada. Seu primeiro retrato foi feito pelo pintor inglês Augustus Earle (1793-1838), a pedido de Graham, em 1823. A tela está exposta na Biblioteca Nacional da Austrália, junto de parte do acervo do pintor.

"É um retrato cujo rosto não apresenta aspectos muito femininos. É mais quadrado, sem muitas nuances que demonstrem ser uma mulher. Na verdade, é bem similar à figura masculina", afirma Nathan Gomes, mestrando em História do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

A pesquisa de Gomes investiga como a imagem de Quitéria foi mudando ao longo dos anos. No segundo retrato, de 1824, feito pelo também inglês Edward Finden (1791-1857), a militar brasileira aparece de corpo inteiro, com vestimenta militar e uma paisagem que tenta reproduzir o Brasil à época, com um pando de fundo idílico.

Finden não estava no Rio de Janeiro, diferentemente de Earle. Gomes acredita que o segundo retrato tenha surgido a partir do que ele chama de "elementos não-originais". "Existem semelhanças, mas com diferenças. A insígnia não era a utilizada no Brasil, assim como o fardamento e a arma, que é um modelo inglês", diz o pesquisador.

Ele também acredita que o retrato de Finden, publicado no livro de Graham sobre sua viagem ao Brasil, tenha sido "construído por várias mãos", incluindo as da própria escritora e também dos editores da obra.

O último retrato, de 1920, feito pelo italiano Domenico Failutti, está exposto no Museu Paulista. A obra foi encomendada pelo intelectual Affonso Taunay (1876-1958), que reorientou o museu na década de 1920 para torná-lo símbolo da Independência. No retrato, Quitéria aparece ainda mais feminina, com busto saliente, as maçãs do rosto mais avolumadas e a boca delineada.

Gomes afirma que tem deslocado sua pesquisa à questão étnica e o tom da pele de Maria Quitéria, com receio de propor um debate que não aconteceu quando os quadros foram pintados. A imagem de 1920 mostra a militar fenotipicamente mais próxima de negros e indígenas. Já os retratos do século anterior mostram-na caucasiana, com traços europeus. "Ao olhar a recepção do quadro de 1920 na imprensa, não houve contenda sobre o tom da pele da Maria Quitéria. Não há registro de isso ser uma preocupação do Failutti. Talvez essa seja a tentativa de propor uma discussão em torno do tom da pele dela que tem mais a ver com a ótica dos nossos tempos", afirma.

Valim, da UFBA, diz que a discussão em torno da imagem de Quitéria é importante, já que envolve a narrativa em torno da independência do Brasil.

"Esse retrato, apesar de estar exposto no Museu Paulista, tenciona o 7 de Setembro enquanto uma ideia europeia e paulista de Independência. As lutas do Nordeste tiveram negros, indígenas, gente de todo tipo, mas esses fenótipos não aparecem", analisa.

Getúlio Vargas bancou construção de estátua de bronze em Salvador, com cerca de 1,60 m de altura, localizada ainda hoje no Largo da Soledade, no centro histórico da capital baiana (Nathan Gomes)

O legado de Maria Quitéria

Os relatos biográficos apontam que Maria Quitéria morreu sozinha, em sua cidade natal e em condições financeiras delicadas. Ela se casou e teve uma filha, cujo paradeiro é desconhecido. Seu pai nunca a perdoou por ter participado da guerra, apesar de ela ter sido tratada como heroína em seu retorno das lutas independentistas.

Em 1953, data que marcou o centenário de morte de Quitéria, seu nome foi trazido à baila em uma série de homenagens dentro das Forças Armadas. Em junho daquele ano, Getúlio Vargas bancou a construção de uma estátua de bronze em Salvador, com cerca de 1,60 m de altura, localizada ainda hoje no Largo da Soledade, no centro histórico da capital baiana.

No início de 1954, o Exército criou a Comenda Maria Quitéria, uma medalha em homenagem ao seu centenário. Alguns pesquisadores apontam o fato de que, a partir daquele momento, Quitéria foi alçada ao papel de mito dentro da corporação.

"Talvez um dos pontos mais interessantes seja o fato de a narrativa produzida pelas Forças Armadas construir Maria Quitéria como a personificação dessa mistura que caracteriza a fundação brasileira: filha de português, com características indígenas e nascida no interior do Brasil", diz um trecho da pesquisa de Raphael Pavão, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que analisa a trajetória da militar na caserna.

Para Giovana Zucatto, mestra em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e cuja pesquisa analisa a inserção de mulheres nas Forças Armadas, a trajetória de Maria Quitéria, e suas respectivas homenagens, não impactaram a presença de mulheres entre os militares.

"Ela é uma figura que ocupa uma certa mitologia no que diz respeito à incorporação de mulheres nas Forças Armadas. Ela é utilizada como símbolo. As mulheres só voltam ao combate na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e como enfermeiras. A entrada das mulheres nas Forças Armadas só foi oficializada na década de 1980. Não tivemos mulheres na Guerra do Paraguai (1864-1870), por exemplo", analisa.

Atualmente, quase 34 mil mulheres integram as Forças Armadas, segundo dados do Ministério da Defesa divulgados em março do ano passado. A parcela feminina representa menos de 10% do contingente militar total do país (em torno de 350 mil). Apesar do avanço nos últimos dois anos, a pesquisadora afirma que o cenário ainda não é inclusivo.

"Poucas mulheres chegaram à posição de general no Brasil, a maioria delas com atuação na área da saúde. São posições que não têm influência política nas decisões das Forças", complementa Zucatto.

Em 1996, o Exército homenageou Maria Quitéria como Patrono da corporação, ao lado de figuras como Duque de Caxias (1803-1880) e Marechal Rondon (1865-1958). Ela se tornou patrono do Quadro Complementar de Oficiais.

Estátua de Maria Quitéria em Salvador (Nathan Gomes)

"Foi algo influenciado pelo processo de redemocratização e a entrada de mulheres no Exército, que acontece a partir de 1992. É importante, mas não deixa de ser simbólico que ela seja homenageada em um quadro de apoio", pondera a pesquisadora.

Para além do legado nas Forças Armadas, a figura de Maria Quitéria se espraiou por outros setores. Durante a ditadura militar, o nome da combatente foi utilizado para nomear o boletim informativo do Movimento Feminino pela Anistia de São Paulo, criado em 1975 e liderado pela advogada e ativista Maria Therezinha Zerbini (1928-2015).

Depois, na década de 1980, o nome da baiana foi utilizado pelo partido Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para dar nome a uma editora criada em Salvador.

"Certamente o legado dela foi mais polissêmico do que as Forças Armadas gostariam. Há uma disputa em torno da memória da Maria Quitéria para além dos limites do Exército", comenta Nathan Gomes.

De acordo com Patrícia Valim, essa contraposição é saudável e condiz com a sua trajetória.

"Maria Quitéria está em todos os lugares. Há uma popularização dessa história, da personagem, com traços brasileiros, quase uma indígena quase negra. Esse é um resgate importante. Ela deveria ser a nossa Frida Khalo (1907-1954)", finaliza.

Guilherme Henrique, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 22.01.22.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Estamos por nossa conta e risco

Temos de nos envolver mais do que nunca no processo de discussão do Brasil que ansiamos e na escolha consciente, no pleito de 2022, de nossos representantes

As eleições gerais se aproximam e os primeiros pré-candidatos estão em cena. Boa hora para destacar o que faz este pleito exigir de nós, eleitores, mais atenção que a habitualmente observada.

Sim, atenção máxima, e não só com a escolha do presidente, dos governadores e dos parlamentares que vão dirigir o País depois de 2022, mas com as decisões atuais e as que ainda poderão ser tomadas até lá. Como porta arrombada, Executivo e Congresso estão aprovando o que em tempos normais já seria chocante, quanto mais com as contas públicas deficitárias há quase nove anos, o que significa que todo novo gasto federal está sendo bancado com dívida.

Em vez de ofertar suas emendas ao Orçamento, em troca de apoio ao governante de turno, para, assim, viabilizar o Auxílio Brasil, mudaram a Constituição para adiar o pagamento dos precatórios, que são dívidas federais transitadas em julgado. 

Calote de dívida líquida terá consequências danosas à confiança na ordem jurídica. Seria de se esperar algum constrangimento dos políticos nestes tempos marcados por eventos de horror, como as mortes pela covid, o desemprego, a volta da fome, as tragédias climáticas, as queimadas na Amazônia e no Pantanal. E o que tem sido?

O veto ao chamado fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões foi derrubado, de modo que os partidos terão mais que o triplo da dotação das eleições de 2018 para gastar em 2022. Deputados tentam aprovar um esdrúxulo projeto para legalizar a caça dita “esportiva” de animais em florestas. No Senado, há outro projeto que, a pretexto de facilitar o porte de armas para caçadores, flexibiliza sem necessidade o Estatuto do Desarmamento.

Essa agenda do atraso induz a mobilização de todos, para proteger os meses que faltam até as eleições e o que poderá vir depois.

O que a maioria decidir implicará ou o aprofundamento da letargia econômica e social, o que nesta década de transformações tecnológicas aceleradas no mundo significa um estado de crise permanente, ou o início da reconstrução de um País próspero, empreendedor e comprometido com as melhores expectativas do bem-estar de todos.

O que há pela frente, a menos de dez meses das eleições, é a certeza da inflação e dos juros punitivos para tentar debelá-la, dos investimentos externos amedrontados, dos 14 milhões de desempregados, em um ano em que a tendência é que predomine a discussão monotemática das alianças partidárias que visam à formação de palanques, não de propostas.

Os candidatos precisam explicitar o que propõem para tirar a economia da pasmaceira, para fazer o setor público servir à sociedade, como pensam entregar a educação de qualidade requerida pelas novas profissões que emergem dos saltos tecnológicos e, sobretudo, qual a macroeconomia cogitada para tirarmos da frente os rombos fiscais que turvam o horizonte e afastam os investimentos em projetos produtivos e de pesquisa e desenvolvimento.

Tais questões dialogam com o Brasil em que programas sociais são imprescindíveis para garantir condições mínimas de dignidade a um grande contingente de famílias, para as quais ainda faltam recursos e oportunidades de trabalho. Há algo muito errado com a economia, se a população em idade de trabalhar, segundo o IBGE, alcança 171 milhões de pessoas e a força de trabalho não passa de 106 milhões, incluindo entre estes os desempregados e os muitos com empregos precários.

Sobreviveremos, é claro, um país não acaba, mas, dependendo das escolhas que fizermos, correremos o risco de sairmos mais machucados, estendendo o prazo de recuperação por muitos anos durante os quais veremos negócios fechando, fome grassando e o tecido empresarial esgarçando. 

Não é hora de omissão. É preciso que se entenda que os governantes reagem à mobilização da sociedade. Significa que temos de nos envolver mais do que nunca no processo de discussão do Brasil que ansiamos, na construção de programas e consensos, e na escolha consciente de nossos representantes no pleito de 2022.

Usualmente se atribui a denominação de “elite” a quem parece estar em melhores condições de poder e riqueza, mas a verdade é que, no Brasil, todos os que leem este texto fazem parte do universo de formadores de opinião que precisam vocalizar suas preocupações de curto, médio e longo prazos. Medidas populistas que sugerem aliviar o presente e destroem o futuro devem ser barradas.

Como industriais acostumados a solavancos, cientes do potencial de crescimento do País, lidando com temas delicados, como a criação de empregos, a absorção de inovações e tecnologia em par com o mundo ágil e competitivo, assumindo riscos, nos parece fundamental, neste início de ano, refletir sobre as responsabilidades expressas pelo voto. Mas dedicando, igualmente, especial atenção aos meses adiante para evitar mais danos, além dos já criados.

Dos gabinetes dos altos poderes, infelizmente, há pouco a esperar. Estamos, brasileiros, por nossa conta e risco.

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, os autores deste artigo, são empresários. Publicado originalmente n'O Estado dce S. Paulo, em 21.01.22.

Cantanhede: União Brasil busca um candidato, Moro muda alvo, linguagem e estratégia

Sigla que nasce da fusão entre DEM e PSL não lançou nenhum nome, mas passa a ser um ‘partidão’ disputado na eleição

Praticamente todos os partidos, grandes, médios e até pequenos, têm candidatos à Presidência em outubro, seja para valer, seja para esquentar a cadeira até o baile de fato começar. Já o União Brasil, fusão de DEM e PSL, não lançou nenhum nome e passa a ser um “partidão” disputado na eleição. Mas nada a ver com o velho partidão, hein!

Com 81 deputados, os 52 do PSL e os 29 do DEM, o União Brasil tem a maior bancada da Câmara e R$ 1 bilhão de fundo eleitoral e partidário. Um dote e tanto para uma noiva indecisa que, neste momento, parece mirar Sérgio Moro, do Podemos.

Em terceiro lugar nas pesquisas, mas sem atingir dois dígitos, Moro é por enquanto candidato a ser a terceira via numa eleição polarizada entre o favorito Lula, do PT, e Jair Bolsonaro, do PL, que tem a vantagem de disputar a reeleição. E Moro fez uma guinada e tanto na campanha, no discurso e no alvo.

Em terceiro lugar nas pesquisas, mas sem atingir dois dígitos, Sérgio Moro é por enquanto candidato a ser a terceira via numa eleição polarizada entre o favorito Lula e Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

A previsão era de que ele mirasse Bolsonaro, para colher o eleitorado conservador desiludido com o presidente, enquanto fechava uma espécie de pacto com João Doria, do PSDB, e Luiz Henrique Mandetta, do então DEM: o mais bem colocado nas pesquisas e com mais capacidade de chegar ao 2.º turno levaria o apoio dos outros.

A realidade, no entanto, é mais forte do que avaliações e estratégias. E a realidade foi mostrando a consolidação de Lula na dianteira e a insistência de Bolsonaro em dar tiro no pé sozinho e em afugentar o eleitorado que é conservador, mas não brucutu, negacionista ou absurdo. Logo, Moro trocou de alvo e de linguagem.

Quando Lula o chamou de “canalha”, Moro devolveu: “Canalha é quem roubou o povo brasileiro”. E engrenou: “Deveria estar preso”. Poderia ser só um rompante, mas é pragmatismo. Moro vê que sua chance é bater de frente com Lula e tirar de Bolsonaro a condição de grande adversário do petista no 2.º turno. Além dos bolsonaristas arrependidos, quer atrair os antipetistas de todas as cores.

As crescentes divisões do bolsonarismo contribuem para a estratégia: Abraham Weintraub e Ernesto Araujo atacando o Centrão, Eduardo Bolsonaro e Fábio Faria tomando as dores, Damares Alves disputando vaga ao Senado com Janaina Paschoal. E esses rachas se refletem no próprio União Brasil.

De outro lado, uma aliança de Lula com Geraldo Alckmin atrapalha Moro, assim como a determinação de Doria. Alckmin é o ímã de Lula para atrair o centro e a direita equilibrada e Doria quer ser o candidato desse centro e dessa direita. Quanto mais todos racham, mais Lula trabalha pela união e o União Brasil exercita a paciência, para escolher o noivo certo, na hora certa.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal "Globo News em Pauta". Publicaso originalmente n'O Estado e S. Paulo, em 21.01.22.

Tabata diz que PSB não vai forçá-la a fazer campanha por Lula: ‘Meu partido nunca pediu isso’

Deputada se opõe a aliança de seu partido com o PT na disputa presencial; sigla pode filiar Alckmin para ser vice de petista.

Entrevista com

A deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP); ‘Geraldo Alckmin será bem-vindo ao PSB’, afirma Foto: Gabriela Biló/Estadão

Uma das principais vozes no PSB contrária à formação de uma federação partidária com o PT, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) diz não ver no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a capacidade de “unir o País da direita à esquerda”. Segundo ela, mesmo que uma aliança seja selada e seu partido decida apoiar a candidatura do petista ao Planalto, o acordo que tem com a sigla é de não ser obrigada a fazer campanha por qualquer nome. “Nunca fui forçada a dizer que apoiaria um candidato específico”, disse ela em entrevista ao Estadão. “Meu partido nunca pediu isso para mim.”

Por outro lado, Tabata vê com “muito bons olhos” a filiação do ex-governador de São Paulo e postulante a vice da chapa petista, Geraldo Alckmin, ao PSB. “Acredito que ele contribui para que essa conversa seja a mais ampla possível”, diz. Cotada para disputar a Prefeitura de São Paulo em 2024, ela diz não pensar em outro objetivo além da reeleição à Câmara, em outubro, mas não descarta a possibilidade de concorrer ao cargo daqui a dois anos.

Diante da falta de acordo para fechar alianças nos Estados, as cúpulas do PT e do PSB decidiram pedir mais prazo ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para formalizar uma possível federação partidária, novidade destas eleições. Impasses regionais ainda emperram um acordo.

As federações partidárias serão uma das novidades das disputas de 2022. Foram criadas pelo Congresso em setembro do ano passado, e regulamentadas por uma resolução do TSE publicada em 14 de dezembro, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte eleitoral.

Como a oposição declarada da senhora à formação de uma federação do PSB com o PT tem sido encarada dentro do partido?

Em todos os momentos até aqui eu tive a oportunidade de expor meu ponto de vista e participar do debate. E é só isso que eu peço. Eu vou respeitar qualquer decisão que meu partido tome, porque eu estou participando desse processo e podendo ser ouvida, podendo levar o meu lado, que é contra a federação com o PT. Essa democracia interna fez eu escolher o PSB. Essa foi a razão principal, porque dos partidos progressistas grandes, era o que não tinha um dono. É o que tem vários líderes que discordam, que vão para o debate.

Se o PSB fizer uma composição com o PT em uma federação, a senhora fará campanha para Lula?

Meu partido nunca pediu isso para mim. Obviamente, meu primeiro compromisso é contra o Bolsonaro desde sempre e para sempre, mas com uma solução que olhe para frente, que una o Brasil. Não sei se será possível. Não sabemos quem serão os candidatos. Minha inclinação não é votar no PT no primeiro turno, mas não terei dúvidas em fazê-lo no segundo turno, como fiz em 2018. A única coisa que está colocada é: se houver uma federação, está todo mundo junto. É o que eu gostaria? Não. É o que eu acho bom para o PSB, partido grande, com história? Não, acho que é muito ruim para o PSB, mas vou seguir. Nunca fui forçada a dizer que apoiaria um candidato específico. É claro que seria diferente se houvesse um candidato do partido. Seria o meu candidato. Não é o caso hoje, então estou bem tranquila.

A sra. saiu do PDT por ter votado a favor da reforma da Previdência. O PSB também foi contra a proposta e puniu parlamentares que votaram a favor. A sra. não teme que possa ser punida por uma futura divergência com o partido?

Não sei. Ninguém tem essa resposta. O que eu sei é que o que me fez escolher o PSB é que aqui as coisas são debatidas, o estatuto é seguido. O estatuto do PSB foi seguido na reforma da previdência, o PDT não. Nós temos o compromisso de que eu serei ouvida, de que o debate vai acontecer. Talvez o exemplo mais concreto e maior seja a federação com o PT. Sou absolutamente contra. Muito contra. Já tive a oportunidade de expressar isso, de participar de várias reuniões. Tenho uma visão que é minoritária quando a gente fala da bancada em termos de números, mas que é completamente consensual quando a gente fala das lideranças aqui de São Paulo. Se o PSB decidir pela federação, eu vou continuar no PSB, mas tendo a consciência de que eu pude me posicionar várias vezes. Inclusive, talvez tenha contribuído para mudar o rumo da conversa, para trazer pontos que não estavam sendo considerados. Sou cientista política. Acredito em partidos. Minha maior crítica ao PDT é porque não tem regra, é porque tem dono, porque minha voz não pôde ser ouvida.

A sra. acredita que tenha espaço dentro do partido para uma disputa a um cargo no Executivo, como a prefeitura de São Paulo?

Essa possibilidade é ventilada desde que eu me elegi deputada federal, e eu fico muito honrada, mas não espere de mim falar de qualquer eleição que não seja a que eu tenho que disputar esse ano. Seria errado, não faz sentido para mim. Depois dessa eleição que eu vou disputar e que é muito importante para o meu sonho de Brasil, para a contribuição que eu acredito que posso dar, a gente pode, sim, de futuras eleições. Escolhi o PSB para ser meu partido para a vida toda. E estou bem feliz com o espaço aqui em São Paulo, com o espaço nacional, com as pessoas ao lado de quem eu estou caminhando. E essas conversas vão seguir naturalmente.

A senhora tem uma posição muito clara contra a adesão à candidatura de Lula logo no primeiro turno. Como vê a possível filiação do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin ao PSB para ser vice na chapa do PT?

Vejo com muito bons olhos. Do meu lado, o Geraldo Alckmin será bem-vindo ao PSB, e eu já tive a oportunidade de dizer isso a ele. Acredito que ele contribui para que essa conversa seja a mais ampla possível. O que defendo há mais de um ano é que a gente tenha a frente mais ampla possível para enfrentar o bolsonarismo. Se essa frente for com o PT, ótimo. É um dos principais partidos do país. Eu só não acredito que um partido único, com nome único, tenha capacidade de unir o Brasil da esquerda à direita, tenha a capacidade de enfrentar não só o Bolsonaro, mas o bolsonarismo, e reconstruir o nosso País. Governar vai ser muito mais difícil do que ser eleito. Nesse sentido, como eu me oporia à construção de algo que é mais amplo, que é maior do que um partido, que dialoga com quem pensa diferente? Se isso vai determinar meu voto, eu não sei. O que eu quero é que quem ganhe não seja o Bolsonaro e tenha capacidade de dialogar, de governar. Nós andamos 20 anos para trás na educação. Isso não vai se resolver com uma única pauta, que não une o país.

O quão alinhada ideologicamente ao PSB a senhora se considera? Em uma eventual reforma administrativa, por exemplo, haveria divergência entre a sra. e o partido?

Eu sou 100% contra a reforma administrativa que tramita hoje. Sou a favor, sim, de uma reforma administrativa, mas não tem nada a ver com a do governo Bolsonaro. Sou contra os supersalários. Imagino que (os deputados federais Alessandro) Molon (PSB-RJ) e (Marcelo) Freixo (PSB-RJ) também sejam. Sou contra várias irregularidades que acontecem. Eu era contra a aposentadoria dos políticos. Minha visão de mundo não é a defesa de um Estado mínimo. O Estado mínimo já existe na periferia. É a defesa de um Estado eficiente.

A sra. defende a responsabilidade fiscal, o que a torna uma exceção dentro do campo da esquerda. Como isso é tratado dentro do PSB?

Quando se fala em responsabilidade fiscal, é importante entender que o PSB é um partido grande, com muitas lideranças. Sim, talvez a responsabilidade fiscal não seja um pilar principal para alguns dos nossos líderes, mas eu sei que é para o Márcio França. Eu sei que é para o (governador do Espírito Santo) Renato Casagrande. Eu sei que é para várias outras lideranças do PSB. Responsabilidade fiscal não é uma bandeira solitária minha no partido.

Gustavo Côrtes, O Estado de S.Paulo, em 21 de janeiro de 2022 | 16h23

Leõs e tigres sob ataques da Covid-19

Estudo aponta que animais desenvolveram quadros graves da doença e que infecção durou até 7 semanas - o que aumenta a preocupação quanto ao desenvolvimento de novas cepas

 Leoa no National Zoological Gardens, em Pretória, na África do Sul. Foto: Phill Magakoe/ AFP

Pesquisadores da Universidade de Pretória, na África do Sul, levantaram uma nova preocupação sobre o novo coronavírus, que continua a bater recordes de novos casos ao redor do mundo. Um estudo divulgado na terça-feira, 18, concluiu que leões de um zoológico sul-africano foram infectados por seus tratadores com o vírus causador da covid-19 e desenvolveram sintomas graves da doença, demorando até 7 semanas para se recuperarem - o que acendeu o alerta sobre os riscos do vírus se espalhar entre animais na natureza e criar novas mutações.

Os pesquisadores começaram a monitorar animais selvagens em cativeiro em zoológicos e santuários de conservação da África do Sul depois que um tigre no zoológico do Bronx, nos EUA, ficou doente em abril de 2020, de acordo com a professora Marietjie Venter, investigadora principal do estudo. A equipe monitorou, inicialmente, dois pumas que contraíram o coronavírus em um zoológico particular em julho de 2020, durante a primeira onda de pandemia no país. Cerca de um ano depois, no mesmo local, três leões começaram a apresentar sintomas semelhantes aos da covid-19 em humanos: dificuldades respiratórias, coriza e tosse. Além dos animais, um tratador e um engenheiro do zoológico também testaram positivo.

Por meio de amostras sequenciadas dos leões e dos humanos infectados, os pesquisadores conseguiram determinar que tanto os animais quanto os tratadores estavam infectados com a variante Delta.

Os leões se recuperaram após 25 dias, mas apresentaram PCR positivo por mais de três semanas adicionais. Os dados analisados pelo estudo sugeriram que a carga viral que os leões carregavam diminuiu ao longo dessas semanas, mas não ficou claro por quanto tempo eles foram capazes de transmitir a doença.

A doença desenvolvida pelos leões, particularmente nas fêmeas mais velhas, mostrou que os animais, como as pessoas, podem desenvolver sintomas graves . Uma leoa mais velha desenvolveu pneumonia

No caso dos pumas, que não são nativos do país, os sintomas incluíram perda de apetite, diarreia, coriza e tosse persistente. Ambos os felinos tiveram uma recuperação completa após 23 dias.

Em um ambiente de cativeiro, os animais infectados foram mantidos em quarentena, mas em parques espalhados pela África do Sul, onde os leões são uma atração turística, controlar um surto pode ser "muito, muito difícil", disse o estudo, principalmente se o vírus não for detectado. Em certos locais, os leões são frequentemente alimentados por humanos em vez de caçar por si mesmos, o que aumenta a chance de exposição ao vírus.

Apesar do estudo não deixar claro quanto de carga viral os leões estavam carregando ou se eles foram capazes de transmitir o vírus durante todo o período em que testaram positivo, períodos prolongados de infecção em grandes felinos aumentariam o risco de um surto na natureza se espalhar mais amplamente e infectar outras espécies, disseram os pesquisadores. Isso poderia  eventualmente tornar o vírus endêmico entre os animais selvagens e, na pior das hipóteses, dar origem a novas variantes que podem retornar aos humanos.

"Se você não souber que é covid, existe o risco de que possa se espalhar para outros animais e depois voltar para os humanos", disse Venter, professora de virologia médica, que se uniu a um cientista veterinário de vida selvagem para o estudo. Os animais foram infectados por tempo suficiente "para que o vírus pudesse realmente sofrer mutações", disse ela.

A transmissão de vírus entre animais e humanos é uma realidade conhecida pelos cientistas. O próprio coronavírus teria se originado em morcegos e acabou "pulando" para humanos, no que é conhecido como infecção por "transbordamento".

Os cientistas alertam que infecções de "refluxo" de humanos infectando animais - como ocorreu com martas, veados e gatos domésticos - podem devastar ecossistemas inteiros na natureza. As infecções que atingiram a natureza também podem expandir o potencial do vírus de se espalhar sem controle e sofrer mutações em animais, potencialmente em variantes perigosas para os seres humanos.

Um fenômeno bem estudado envolve infecções entre grandes populações de martas em cativeiro. Em uma fazenda de visons na Dinamarca, o vírus se transformou em uma nova cepa durante a mudança de humano para animal, levando ao abate em massa em todo o país e na Europa, para evitar sua propagação de volta aos humanos.

Em contraste, o estudo sul-africano envolveu pequenos surtos, mas Venter observou que a disseminação em martas mostra o perigo potencial de surtos maiores na vida selvagem./ NYT e AFP

Redação, O Estado de S.Paulo, em21 de janeiro de 2022 | 12h45 (O título original da matéria - "Leões diagnosticados com covid-19 preocupam pesquisadores na África do Sul" - foi substituido pelo editor do blog.

O que é a ansiedade e como ela se diferencia da depressão

É como um sinal de alerta do corpo diante do perigo.

Apesar da quantidade enorme de pessoas afetadas e dos diversos estudos sobre a ansiedade, transtorno ainda é um grande desafio para especialistas (Getty Images)

A ansiedade é comum a todos.

"É uma sensação difusa de desconforto, um desagradável sentimento de apreensão frequentemente acompanhado por tensão, antecipação de cenários de riscos, muitas vezes irreais, e diferentes manifestações físicas", explica a psiquiatra Gabriela Bezerra de Menezes, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A ansiedade é uma das principais causas de afastamento do trabalho ao redor do planeta. E pelo menos um terço da população mundial será afetada por ela ao longo da vida, incluindo crianças e adolescentes.

Segundo pesquisa do instituto Ipsos, a pandemia de coronavírus levou à piora da saúde mental de quase metade dos adultos de 30 países, incluindo o Brasil.

Mas em que momento a "primeira" ansiedade, como a preocupação, o medo ou o desconforto às vésperas de um acontecimento importante, se transforma na "segunda" ansiedade, ou melhor, num problema de saúde que afeta tanto a vida que muitos se sentem paralisados a ponto de não conseguir trabalhar?

Em geral, é quando essa resposta natural a ameaças ou incertezas se torna intensa ou frequente demais, e resulta em transtornos de saúde mental com sintomas como enjoo, falta de ar, perda de apetite, insônia, tontura, sudorese, fadiga, dor de estômago, batimento cardíaco acelerado e incapacidade de encontrar pessoas ou sair de casa.

Especialistas ainda não sabem direito as causas disso tudo, mas eles já têm algumas respostas sobre o momento indicado para procurar ajuda, os gatilhos mais comuns, os tratamentos mais eficazes e a forte ligação dos transtornos de ansiedade com outras doenças.

"Os transtornos de ansiedade raramente ocorrem de forma isolada, com transtornos mentais comórbidos, como depressão e transtornos por uso de substâncias ocorrendo em 60% a 90% dos casos", explica Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, em entrevista à BBC News Brasil.

Apesar da quantidade enorme de pessoas afetadas e dos diversos estudos sobre a ansiedade, é importante deixar claro que ela ainda é um grande desafio para especialistas.

Especialistas dizem que é hora de olhar com maior atenção e buscar ajuda profissional para a ansiedade quando ela se torna constante, afeta a qualidade de vida e passa a envolver muito além do fator que a desencadeou (Getty Images)

"Os transtornos de ansiedade são tipicamente subdiagnosticados, e estima-se que metade destes indivíduos não receba o diagnóstico correto", afirma Menezes, que também é supervisora clínica e pesquisadora do Programa de Ansiedade, Obsessões e Compulsões do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Entenda mais abaixo.

Quando e como se deve procurar ajuda para si ou para outras pessoas?

Especialistas dizem que é hora de olhar com maior atenção e buscar ajuda profissional para a ansiedade quando ela se torna constante, afeta a qualidade de vida e passa a envolver muito além do fator que a desencadeou.

Em termos mais concretos, quando se torna difícil lidar e realizar as tarefas do dia a dia, quando se estressa ou se preocupa demais com coisas pequenas ou quando aquele sentimento de ansiedade (como um aperto na barriga) dura dias e dias, entre outros exemplos.

Além dos sintomas citados acima no texto, como mudanças de comportamento, dificuldade de concentração, sudorese e tontura.

Muito se fala sobre o impacto da vida moderna, das redes sociais e da pandemia de covid-19 na ansiedade geral, mas esse fenômeno não é de agora.

Sêneca, um filósofo nascido na Andaluzia que costumava se preparar para o pior, já chamava atenção para o comportamento ansioso no Império Romano.

Na virada do século 17, o dramaturgo inglês William Shakespeare observava e escrevia sobre comportamentos ansiosos e obsessivos, a exemplo da personagem Lady Macbeth e do próprio Hamlet

Três séculos depois, o psicanalista austríaco Sigmund Freud analisava clinicamente o fenômeno da crise de pânico, numa época em que ainda não existiam termos científicos e diagnósticos sobre esse problema de saúde mental.

Há também uma perspectiva evolutiva em relação a isso. Segundo o Sistema de Saúde Pública do Reino Unido (NHS), a ansiedade é uma reação natural do corpo humano ligada muitas vezes ao que se chama de "luta ou fuga", que é uma espécie de instinto de preservação de um animal cercado por um predador na selva, por exemplo.

O organismo, por meio de instrumentos como o sistema nervoso e hormônios, percebe o perigo, foca a atenção nele, promove mudanças no corpo (como acelerar o batimento cardíaco) e fornece uma dose de adrenalina para reagir

Muito se fala sobre o impacto da vida moderna, das redes sociais e da pandemia de covid-19 na ansiedade geral, mas esse fenômeno não é de agora (Getty Images)

O problema é quando isso é excessivo no dia a dia.

E o gatilho para desencadear essa ansiedade desmedida pode ser de diversas e múltiplas naturezas, como ambiental, genética, psicológica e de desenvolvimento.

A exemplo, uma situação específica e concreta, como o adoecimento de um ente querido, a perda de um emprego, uma situação de violência, o temor de passar vergonha em público.

Mas muitas vezes esse excesso de ansiedade também surge de algo que nem mesmo a pessoa sabe identificar. Ou até sabe e entende que não há motivo para toda essa reação desproporcional, mas mesmo assim não consegue controlá-la sozinha.

"A ansiedade se torna patológica quando passa a interferir na vida do indivíduo, impactando de forma negativa no seu funcionamento e determinando sofrimento, desconforto emocional e prejuízo na qualidade de vida", explica Menezes, da UFRJ e da UFF.

"Nessas situações, deve-se buscar ajuda de um serviço especializado para que seja avaliada a presença de um possível transtorno de ansiedade", completa.

Algumas pessoas enfrentam problemas ou obstáculos para buscar atendimento especializado e conseguem ter avanços nesse processo ao conversarem sobre o assunto com familiares ou amigos, por exemplo.

Essa situação pode ser muito difícil também para crianças e adolescentes, faixa etária bastante afetada por problemas de saúde mental e por dificuldades de expor esses sintomas e buscar ajuda, principalmente durante a pandemia.

Um estudo liderado pelo professor e psiquiatra Guilherme Polanczyk, da Universidade de São Paulo (USP), com cerca de 6 mil jovens de 5 a 17 anos, apontou em outubro de 2021 que 36% deles apresentaram sintomas de ansiedade e depressão em níveis que demandam avaliação clínica.

Parte desses sinais está ligado aos temores ligados à doença e a restrições à circulação de pessoas adotadas por governantes para evitar o espalhamento do coronavírus, como o fechamento de escolas.x

Ansiedade também pode afetar crianças e adolescentes (Getty Images)

Quais são os principais tratamentos para transtornos de ansiedade?

O tratamento para o paciente com transtornos de ansiedade passa por identificar a intensidade e gravidade do quadro de saúde específico dele.

As principais formas de tratamento são a terapêutica (psicólogo, psicoterapeuta ou psicanalista), a psiquiátrica e a farmacoterápica (psiquiatria e psicoterapia). Mas cada caso é um caso, e o melhor tratamento deve ser definido pelo profissional de saúde que acompanha o paciente.

"Em transtornos de ansiedade mais leves, o tratamento somente com psicoterapia pode ser recomendado. Para quadros moderados a graves, é necessária a combinação da psicoterapia com o medicamento - esta é a forma mais eficaz de tratamento, com melhor resposta e retorno de qualidade de vida", diz Silva, da Associação Brasileira de Psiquiatria.

A psicóloga Juliana Vieira Almeida Silva, autora do livro Ansiedade, Medo e Preocupações: Manual da Mente Tranquila, cita como uma das principais e mais eficazes intervenções a terapia cognitiva comportamental (TCC), que por meio da conversa entre paciente e terapeuta ensina o paciente a identificar e lidar com pensamentos, crenças e sentimentos negativos, quebrando o ciclo em torno deles.

Segundo essa abordagem, explica Almeida Silva, "os transtornos psicológicos são decorrentes de uma maneira distorcida (os pensamentos) de perceber os fatos do seu dia a dia e com isto influencia o comportamento e afeto, trazendo grandes prejuízos, na maioria das vezes, para a vida da pessoa".

Para além dos tratamentos tradicionais citados acima, há outras ferramentas de autoconhecimento e autocuidado podem ajudar no enfrentamento da ansiedade, como meditação, técnicas de mindfulness e de respiração, psicoeducação (tomar conhecimento sobre sua condição e compartilhar com os familiares, pensar e falar sobre o assunto, fazendo com que o paciente se sinta mais ativo em sua recuperação), exercícios físicos (como caminhadas), mudanças nas alimentação, escrever diários (anotando pensamentos e sentimentos) e identificar atividades que fazem bem (para alguns, pode ser ouvir música, por exemplo).

Grupos de apoio, sejam eles virtuais ou presenciais, também podem ser bons para algumas pessoas trocarem experiências e possibilidades de lidar com o problema, além de entenderem que não estão enfrentando tudo isso sozinhas

Há diversos gatilhos para comportamento ansioso (Getty Images)

Algumas pessoas também encontram benefícios ao evitar o consumo de alimentos que podem agravar os sintomas, como a cafeína, ou de substâncias psicoativas que podem ter o mesmo efeito negativo, como álcool.

Além disso, Silva afirma que "para alívio dos sintomas, sugerimos, sempre que possível, um afastamento dos possíveis gatilhos. Por exemplo: caso o trabalho represente um fator diretamente agravante da ansiedade, podemos solicitar o afastamento laboral pelo tempo necessário ao indivíduo".

Tudo isso pode parecer simples e prático, mas Menezes, da UFF e do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, ressalta que ainda há muitos problemas, barreiras e desafios ligados a esses transtornos de ansiedade.

Segundo ela, muitos pacientes não são diagnosticados, metade recebe diagnóstico errado e apenas um terço tem acesso ao tratamento correto.

Além do mais, segundo ela, o quadro se agrava porque, "apesar da evidência de eficácia de diferentes intervenções, há um longo intervalo de tempo entre o início dos sintomas e a busca por tratamento". Mas as consequências não se limitam à vida do paciente.

"Há ainda um grande impacto no sistema de saúde, não só pelo gasto com o tratamento, mas também pela busca mais frequente por atendimento médico em decorrência de sintomas físicos resultantes da ansiedade", afirma a psiquiatra.

No Sistema Único de Saúde (SUS), pacientes podem buscar orientação e tratamento em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura, ambulatórios multiprofissionais, Unidades de Acolhimento (UAs), hospitais especializados e hospitais-dia de atenção integral.

Parte dos medicamentos que podem ser prescritos está disponível em preços mais acessíveis na rede de Farmácia Popular.

Segundo o Ministério da Saúde, há 2.742 CAPS espalhados por 1.845 cidades do país. O atendimento não é feito apenas por médicos nessas unidades, mas também por psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, entre outros profissionais de saúde das equipes multidisciplinares.

Se os casos forem mais graves, os pacientes são encaminhados para hospitais especializados. Se houver diagnóstico da forma mais leve do transtorno, pode haver um direcionamento para uma Unidade Básica de Saúde (UBS), por exemplo.

Qual é a diferença entre ansiedade e depressão e por que elas são associadas?

"Tanto a ansiedade quanto a depressão paralisam o indivíduo e são consideradas doenças que tiram a qualidade de vida e o prazer de fazer atividades antes prazerosas. São transtornos que caminham de mãos dadas, porém cada uma possui seu quadro sintomático e tratamento adequado", afirma Silva, da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Silva explica que a maior diferença é que a ansiedade é caracterizada pelo medo e angústia constantes e a depressão, com graus variados, é geralmente um transtorno no qual a pessoa se sente deprimida e não tem motivação ou interesse para desempenhar tarefas que antes eram satisfatórias.

O que é depressão e como buscar ajuda e tratamento para você ou outras pessoas

Em geral, a presença de um transtorno de ansiedade é considerado um fator de risco para a depressão e vice-versa. Mas por quê?

Segundo um grupo de oito pesquisadores da Universidade de Groningen, na Holanda, há uma perspectiva de rede interligada na área da psicopatologia (braço da ciência que se dedica à saúde mental). Como assim? Eles explicam que um distúrbio psiquiátrico tende a gerar sintomas que servem de gatilhos para novos transtornos.

"Por exemplo, sentir-se apático torna difícil se manter ativo durante o dia, o que mais tarde resulta em maior tristeza e inquietação porque a pessoa não realizou o que pretendia fazer", afirma o grupo de pesquisadores em artigo publicado em 2020.

Presença de um transtorno de ansiedade é considerado fator de risco para a depressão e vice-versa (Getty Images)

Esses pesquisadores aventam a possibilidade da existência de uma espécie de ponte de estados mentais que conectaria ansiedade e depressão, como se sentir preocupado ou irritado demais.

Além disso, há diversos sintomas comuns (e sobrepostos) nesses dois transtornos que podem ajudar a entender a comorbidade entre ambos. Como é o caso da dor.

Segundo a Universidade Harvard, estudos científicos apontam que existe uma relação anatômica entre ansiedade, depressão e dor, principalmente em pacientes com condições crônicas como fibromialgia, síndrome do intestino irritável, dor na lombar, enxaquecas e dor neuropática (causada por danos nos nervos).

"O córtex somatossensorial (a parte do cérebro que interpreta as sensações como o toque) interage com a amígdala, o hipotálamo e o giro cingulado anterior (áreas que regulam as emoções e a resposta ao estresse) para gerar a experiência mental e física da dor. Essas mesmas regiões também contribuem para a ansiedade e a depressão. Além disso, dois neurotransmissores — serotonina e norepinefrina — contribuem para a sinalização da dor no cérebro e no sistema nervoso. Esses neurotransmissores também estão envolvidos com ansiedade e depressão."

Além disso, Silva, da Associação Brasileira de Psiquiatria, explica que transtornos mentais comórbidos (como ansiedade e depressão) ocorrem de 60% a 90% dos casos e que há um amento de taxas de transtornos depressivos e, em menor grau, de transtornos de uso de substâncias psicoativas nos primeiros anos do transtorno de ansiedade.

Segundo o psiquiatra, a presença desses quadros na infância, na adolescência ou no início da vida adulta "aumenta o risco de transtornos depressivos e a probabilidade de um curso grave de depressão com cronicidade e tentativas de suicídio".

Além disso, estudos científicos apontam que "todos os transtornos de ansiedade, particularmente o transtorno de pânico, a agorafobia e o transtorno de ansiedade social são fortes fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos depressivos e abuso de substâncias", afirma Silva.

Quais são os principais tipos de transtorno de ansiedade?

Estão no grupo dos transtornos de ansiedade, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria, o transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do pânico, transtorno de ansiedade social, agorafobia, fobia específica, transtorno de ansiedade de separação e mutismo seletivo.

"Embora não mais integre o grupo dos Transtornos de Ansiedade, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) compartilham muitas características com estes últimos, incluindo a presença frequente de sintomas ansiosos", afirma Menezes, da UFF e da UFRJ.

O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), mencionado pela psiquiatra, costuma ser descrito como uma condição crônica onde o cérebro é acometido por pensamentos, ideias ou imagens angustiantes, o que gera mais ansiedade ainda.

É caracterizado por comportamentos e atos mentais repetitivos, assim como compulsões.

Geralmente, o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) se dá em pacientes que viveram um evento traumático como um acidente, abuso sexual, sequestro, com sintomas físicos e psicológicos, como pensamentos intrusivos e memórias involuntárias repetidas.

Estudos científicos apontam que existe uma relação anatômica entre ansiedade, depressão e dor (Getty Images)

Segundo o Sistema de Saúde Pública do Reino Unido (NHS), um paciente com transtorno do estresse pós-traumático revive o episódio do trauma por flashbacks, pesadelos. Pode ter dificuldades para dormir, dificuldade para focar, se concentrar e pode sentir irritação, culpa. Esses pacientes costumam evitar situações ou pessoas que lembrem o evento traumático.

Almeida Silva, psicóloga e também professora da Univali, lembra à BBC News Brasil que os transtornos de ansiedade caminham muito com outras comorbidades, "por exemplo, um paciente pode ter transtorno de ansiedade generalizada (TAG) e transtorno do pânico (TP) ao mesmo tempo".

O TAG, ou transtorno de ansiedade generalizada, costuma ser descrito pela ansiedade excessiva e constante afetando as atividades do dia a dia do paciente, se manifestando quase todos os dias por pelo menos 6 meses.

O Sistema de Saúde Pública do Reino Unido define o TAG como condição de longo prazo que faz com que se sinta ansioso sobre vários tipos de problemas e situações, ao invés de um evento específico.

Os pacientes com TAG se sentem ansiosos na maioria das vezes e podem ter dificuldade para lembrar quando foi a última vez em que se sentiram relaxados, e, por isso, é comum que, quando um pensamento ansioso é resolvido, outro apareça ocupando o lugar do anterior.

O transtorno do pânico é definido por especialistas pelos frequentes ataques de pânico. Aqui os sintomas são físicos e psicológicos. É comum que as pessoas que passam por esses ataques confundam os sintomas da crise com os de um ataque cardíaco e acabam indo parar em uma emergência.

Dentre os sintomas estão dor no peito, calafrios, palpitações, suor, sensação de asfixia, entre outros.

Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, a pessoa com transtorno de ansiedade de separação sente uma ansiedade persistente de que a pessoa com a qual é muito próxima (mãe, pai, cônjuge, filho) se separe dela.

A intensidade sentida é maior do que a esperada para a idade e pode levar a decisões que limitam sua convivência e desenvolvimento no mundo.

Cristiane Martins, de Londres para a BBC News Brasil, em 22 dezembro 2021.

Covid: o que são baricitinibe e sotrovimab, novos remédios autorizados pela OMS

A Organização Mundial da Saúde (OMS) autorizou o uso dos medicamentos baricitinibe e sotrovimabe para o tratamento da covid-19.

Baricitinibe é usado para tratar artrite em vários países ao redor do mundo (Getty Images)

De acordo com as informações da OMS, o aval do uso desses medicamentos se deu após análises feitas por especialistas internacionais que atuam em um Grupo de Desenvolvimento de Diretrizes da agência de saúde e cujos resultados foram publicados no British Medical Journal.

O baricitinibe é um anti-inflamatório usado principalmente no tratamento da artrite reumatoide, enquanto o sotromivabe é um novo medicamento que foi testado para tratar pacientes com risco de desenvolver covid-19 moderado a grave. Ele está sendo usado no Reino Unido, entre outros países.

Na pesquisa publicada pelo grupo de trabalho da OMS, o uso do baricitinibe é recomendado em pacientes graves, pois aumenta a probabilidade de sobrevivência às complicações que o coronavírus pode causar, além de reduzir a necessidade de ventilação mecânica

Já o sotrovimab é recomendado em casos moderados de covid, para evitar que eles piorem. O estudo afirma que não há efeitos colaterais graves.

A OMS também descartou o uso de outros dois medicamentos no tratamento da covid: ruxolitinibe e tofacitinibe. As avaliações que foram feitas com eles não mostraram benefícios para os pacientes. No caso do tofacitinibe foi inclusive observado que ele poderia causar efeitos adversos.

A entidade voltou a desaconselhar o uso de remdesivir e ivermectina, dois medicamentos que ganharam popularidade desde o início da pandemia, mas não têm respaldo científico.

A OMS recomenda o uso de baricitinibe em pacientes graves (Getty Images)

Isso aumenta para cinco a lista de medicamentos autorizados para o tratamento da covid-19. Para casos graves, são recomendados três remédios: corticosteroides, IL-6RB e baricitinibe. E em casos moderados, dois: REGN-COV e sotrovimab.

A ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) pediu aos governos que façam o que for necessário para que as patentes não sejam um obstáculo ao acesso ao tratamento.

O que é baricitinibe

De acordo com a OMS, o baricitinibe é um medicamento inibidor da enzima Janus quinase. Serve especialmente para reduzir a inflamação e é usado para tratar a artrite reumatoide.

A pesquisa, que incluiu mais de 4 mil pessoas, descobriu que esse medicamento em combinação com corticosteroides (uma variedade de hormônios usados ​​no tratamento da artrite) pode ajudar o paciente a evitar ser colocado em ventilação mecânica nos casos mais graves de coronavírus.

A MSF destacou que em muitos países o baricitinibe está sob patente da empresa norte-americana Eli Lilly, que o vende por um preço próximo a US$ 2 mil (R$ 11 mil), e que isso pode impedir o tratamento de pacientes em países com menos recursos.

"Em países como Bangladesh ou Índia, uma versão genérica desse medicamento pode ser obtida por menos de US$ 6 (R$ 3,3 mil), mas em muitos países o baricitinibe genérico não está disponível porque está sob o monopólio de patente da Eli Lilly, empresa que solicitou e obteve patentes em muitos lugares, incluindo países duramente atingidos pela pandemia, como Brasil, África do Sul, Indonésia e Rússia", acrescentou a organização.

O laboratório Eli Lilly, em e-mail enviado à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), afirmou: "as novas diretrizes são uma notícia positiva para profissionais de saúde e pacientes, pois oferecem clareza adicional sobre o potencial uso de baricitinibe em pacientes hospitalizados com covid-19, segundo dados do estudo".

"A Lilly está trabalhando com hospitais, profissionais de saúde e governos para facilitar o acesso dos pacientes ao baricitinibe e continua a explorar o uso potencial do medicamento no covid-19 com as agências reguladoras."

"A Lilly está trabalhando ativamente com parceiros internacionais para entender as regiões com necessidades não atendidas, pois o fornecimento de tratamentos contra covid-19 para países de renda baixa/média baixa depende da capacidade de cada país de aceitar e aprovar medicamentos para uso de emergência pelos consumidores", diz o comunicado da empresa.

Mas a OMS também observou em sua recomendação que o baricitinibe "tem efeitos semelhantes a outros medicamentos para artrite chamados inibidores da interleucina-6`, portanto, quando ambos estão disponíveis, sugere-se a escolha de um com base no custo. disponibilidade e preferência do médico"

Sotrovimab 

O sotrovimab é um medicamento que começou a ser usado pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), entre outros, como teste no tratamento de pacientes moderadamente afetados pela covid.

De acordo com especialistas, o sotrovimab é um anticorpo monoclonal que é administrado como transfusão para receptores de transplantes, pacientes com câncer e outros grupos de alto risco.

E de acordo com pesquisas feitas pela OMS e pelo NHS, se administrado rapidamente após o desenvolvimento dos sintomas, o sotrovimab pode ajudar a evitar que as pessoas fiquem gravemente doentes.

O sotrovimab tem sido usado no Reino Unido nos últimos meses para tratar casos moderados de covid-19 (Getty Images)

"Esses novos medicamentos têm um papel importante a desempenhar", disse Steven Powis, diretor médico nacional do NHS da Inglaterra, à BBC.

De acordo com Powis, a administração deste medicamento é focada em pacientes que apresentam condições de saúde subjacentes, como diabetes ou problemas respiratórios, e que podem ser gravemente afetados pelo vírus.

Além disso, as evidências sugerem que a droga deve funcionar contra a variante Ômicron.

Acesso

Na América Latina, o baricitinibe já foi autorizado para uso no tratamento de pacientes com covid-19 em julho passado no México.

Na maioria dos países da região o medicamento pode ser obtido para o tratamento da artrite. Com a autorização da OMS certamente começará a ser utilizado em tratamentos locais.

O sotrovimab já foi aprovado para uso em vários países europeus, no Japão e na Arábia Saudita.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 21.01.2022

Elza Soares: 'rainha invencível' da música brasileira morre aos 91 anos

Considerada uma das maiores cantoras da música brasileira, Elza Soares continuou com a carreira ativa, com planos de shows e discos de músicas inéditas, até o final da vida.

A cantora Elza Soares morreu nesta quinta-feira (20/01) no Rio de Janeiro, aos 91 anos. Segundo Pedro Loureiro, empresário da artista, em um post do Instagram, a morte foi por causas naturais e ocorreu às 15h45.

"A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo o mundo", diz a postagem do empresário.

"Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim."

O velório está previsto para esta sexta-feira (21) no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Em entrevista ao site de notícias G1, Loureiro disse que Elza estava bem nos últimos dias, tendo gravado um DVD em 17 e 18 de janeiro. Nesta quinta-feira (20), ela seguiu sua rotina normalmente até sentir um certo cansaço, apresentar uma respiração mais ofegante e a fala mais enrolada.

Apesar de dizer às pessoas próximas que estava se sentindo bem, o empresário relatou que a cantora disse aos familiares: "Acho que eu vou morrer".

Uma ambulância foi chamada, mas Elza morreu antes.

"Foi uma morte tranquila, sem traumas, sem motivo. Morreu de causas naturais. Esse, aliás, era um grande medo dela: ter uma morte sofrida, por doença. Hoje, ela simplesmente desligou", disse Pedro Loureiro ao G1.

Garrincha e Elza Soares na Itália em foto de 1970 (Getty Images)

A cantora faleceu no mesmo 20 de janeiro em que Garrincha, com quem foi casada, morreu de cirrose hepática, em 1983.

Em janeiro de 2021, a BBC produziu o especial A Rainha Invencível do Samba, dedicado a Elza Soares. Confira aqui (em inglês).

O programa tem uma entrevista com Elza, que comentou diversas passagens de sua vida e carreira.

Nascida Elza da Conceição em um sítio de Padre Miguel, bairro da zona oeste do Rio, a cantora teve uma infância pobre em Água Santa. Trabalhou como faxineira, empacotadora e doméstica.

Casou-se aos 12 e foi mãe aos 13. O sobrenome Soares vem do primeiro marido.

Um de seus filhos morreu em decorrência de uma pneumonia. Foi justamente em um momento de desespero para comprar remédios contra a doença que ela se inscreveu no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi.

Com vestimentas improvisadas, sustentadas por alfinetes em seu corpo magro pela pobreza, Elza foi alvo de uma pergunta irônica do famoso apresentador e compositor de Aquarela do Brasil: "De que planeta você veio, minha filha?".

"Do planeta fome", ela respondeu.

O episódio rendeu o título do 34º e disco final da carreira de Elza, Planeta Fome (2019).

Em uma entrevista à BBC News Brasil em 2018, ela contou: "Sempre gostei de cantar, desde pequenininha. Ser cantora na época era uma coisa pejorativa. Meu pai queria que eu estudasse muito, que não falasse em ser cantora".

Ela ganhou o prêmio do programa de Ary Barroso, com a nota máxima, ao interpretar o samba-canção Lama. Com a vitória, Elza conseguiu comprar os medicamentos contra pneumonia, mas um de seus filhos não resistiu.

A data de nascimento de Elza sempre foi envolta em mistério. Tanto o dia (23 de junho ou 22 de julho) quanto o ano (1930 ou 1937). Nem para seus biógrafos ela esclareceu a questão.

"Não se pergunta sobre idade a mulher. Esse negócio de idade... não tem idade, cara. Sou atemporal".

Elza Soares foi homenageada pela escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel em 2020 (Getty Images)

Relação com Garrincha

Aclamada por seu talento musical em diversas fases da carreira, Elza Soares também ganhou notoriedade formando um casal-celebridade ao lado de Garrincha, um dos maiores jogadores da história do futebol brasileiro.

O relacionamento, iniciado quando Garrincha ainda era casado com outra mulher, foi condenado pela conservadora opinião pública da época - levando os dois a se mudarem para Roma.

A turbulenta relação que durou 17 anos teve um conhecido episódio de violência doméstica. Agredida pelo jogador, que era alcólatra e enfrentava uma derrocada financeira, ela preferiu não denunciar o caso à polícia.

Mas faz referência a esse período na música Maria da Vila Matilde, que aborda o feminicídio, com o verso "Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim".

"A violência doméstica, por mais que você fale e tente combater, ainda é muito presente. É triste que você ainda tenha a necessidade de fazer músicas falando da violência contra a mulher, que é uma coisa horrível. Isso você vai ter que falar a vida toda? É um câncer, né?", disse a cantora à BBC News Brasil.

Garrincha morreu aos 39 anos em 1983. Um filho do casal, Garrinchinha, morreu em um acidente de carro três anos depois.

"Eu penso nos momentos de amor. Procuro esquecer os momentos de ódio, porque a coisa pior do mundo é o ódio, né? Então penso no momento de amor, que foi lindo."

A cantora também falou sobre como superou diversos obstáculos ao longo da vida. "Garra. Vontade. Entendeu? Acreditar. Tudo isso você tem que ter contigo. Eu acredito. Eu tenho garra. Eu tenho persistência. Eu acho que isso faz acontecer", disse.

Reinvenção constante

Apresentação de Elza Soares no Rock in Rio 2019 (Crédito EPA)

Em 1999, a Rádio BBC elegeu Elza a cantora brasileira do milênio, dentro do projeto The Millennium Concerts, criado para celebrar a chegada do novo milênio.

Apesar das décadas de carreira e dos sucessos acumulados, uma das marcas de Elza era não se prender ao passado e procurar voos artísticos diferentes a cada novo álbum.

Especialmente no novo milênio. Em 2002, gravou o aclamado Do Cóccix Até o Pescoço ao lado do compositor José Miguel Wisnik.

No ano de 2016, a cantora ganhou o Grammy de melhor álbum de música popular brasileira com A Mulher do Fim do Mundo, disco que trabalhou tanto sonoridades quanto temas contemporâneos e que recebeu grandes elogios da crítica.

Ela comentou sobre a sua constante reinvenção durante toda a carreira: "My name is now ("meu nome é agora"). E deixa o futuro vir. Como deveria ser. O passado já foi".

Shin Suzuki, da BBC News Brasil em São Paulo, em 20 janeiro 2022

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Integrantes do centrão avaliam cenário com Lula, mas rejeitam 'entorno' formado por petistas

Lideranças ouvidas pelo blog não querem o retorno ao poder de figuras expressivas do PT, como Gleisi Hoffmann e Aloizio Mercadante.

 

Hoje, o PL, comandado por Valdemar Costa Neto, tem Bolsonaro como filiado.

Aliados, hoje, ao presidente Bolsonaro, caciques importantes e que integram a linha de frente do centrão já admitem sentar para conversar com o ex-presidente Lula – mas rejeitam o que chamam de "entorno" do PT, como figuras expressivas do partido que já ocuparam cargos chave na administração federal e têm dado opiniões nessa pré-campanha a respeito de áreas como a economia.

Lideranças do núcleo duro do centrão ouvidas pelo blog deixam claro que a intenção é apoiar o presidente Bolsonaro na eleição de 2022 – mas não ignoram a vantagem de Lula nas pesquisas e registram, quando questionados sobre um eventual "dia seguinte" sem Bolsonaro, que os partidos do centrão são "partidos de governo". Ou seja, não existiria nenhum constrangimento em "sentar para conversar" com o ex-presidente Lula para discutir composições políticas. Inclusive, só não conversaram ainda apenas para evitar desgastes junto ao presidente Bolsonaro.

Os principais partidos do centrão – como PP, Republicanos e PL – já foram da base do governo de Lula.

O PP ocupa o Ministério da Casa Civil e também tem a presidência da Câmara com Arthur Lira, considerado um aliado do presidente Bolsonaro. E o Republicanos, hoje com Bolsonaro, tem boa relação com o PT também.

O problema, afirmam, não é Lula, mas o "entorno", formado por dirigentes do PT. Entre os nomes citados nos bastidores e rejeitados pelos políticos do centrão, estão a deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, Aloizio Mercadante, ex-ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff, e até o ex-ministro José Dirceu, condenado no mensalão. Recentemente, entrou na mira desses políticos o nome de Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda de Lula, após ele escrever um artigo sobre economia na imprensa, que foi lido por deputados e senadores como um "recado" da pré-campanha de Lula – apesar de o ex-presidente deixar claro que ninguém fala pela economia em sua campanha.

Apesar de elogiar Lula, integrantes do centrão afirmam não querer o "retorno" desse núcleo – e avaliam que a estratégia de Bolsonaro será "colar" o discurso de que, se Lula voltar ao poder, levará consigo esse grupo de petistas que sofreu rejeição no Congresso e, também, no mercado.

No entanto, apesar de oficialmente apoiarem o presidente Bolsonaro em 2022, lideranças do centrão admitem que, se houver uma vitória de Lula, o partido não será "aliado, mas também não será inimigo de Lula".

E avaliam que o perfil do Congresso, independentemente do presidente eleito, deve ser de centro-direita.

Andréia Sadi, a autora desta reportagem, cobre os bastidores de Brasília para o Jornal Hoje (TV Globo) e na GloboNews. Apresenta o Em Foco (GloboNews) e integra o Papo de Política (G1). Publicada originalmente por G1, em 20.01.2022.

Relógio do apocalipse permanece a 100 segundos da meia-noite

Também chamado de relógio do fim do mundo, ele simboliza a iminência de um cataclismo planetário e foi criado em 1947. 


Imagem do ‘Relógio do apocalipse’ divulgada em 20 de janeiro, em Washington DC — Foto: The Hastings Group / AFP

Prazo atual iguala recorde batido em 2020; riscos representados pela proliferação nuclear, mudanças climáticas e pandemia foram exacerbados este ano por 'um ecossistema de informação disfuncional que prejudica a tomada de decisões racional'.

O relógio do apocalipse, que simboliza a iminência de um cataclismo planetário, se manteve nesta quinta-feira (20) a 100 segundos da badalada final, sem observar qualquer melhora desde este recorde estabelecido em 2020.

Os riscos representados pela proliferação nuclear, mudança climática e pela pandemia foram exacerbados este ano por "um ecossistema de informação disfuncional que prejudica a tomada de decisões racional", afirma a ONG que, desde a Guerra Fria, faz essa alegoria da nossa exposição a perigos globais.

(O que é o Relógio do Apocalipse, e por que ele indica que desde 1953 nunca estivemos tão perto de uma catástrofe global. (Veja após o final desta, matéria da BBC News, publicada em 14.07.2017)

"Estamos presos em um momento perigoso, que não traz nem estabilidade nem segurança", disse a acadêmica Sharon Squassoni, uma das editoras do Boletim de Cientistas Atômicos, que administra este relógio.

Também chamado de relógio do fim do mundo, este indicador metafórico foi criado em 1947 devido ao crescente perigo nuclear e ao aumento das tensões entre os dois blocos.

Desde então, os membros dessa organização com sede em Chicago ampliaram os critérios para incluir, este ano, "a Covid-19, a proliferação nuclear, a crise climática, as campanhas estatais de desinformação e as tecnologias disruptivas".

"O relógio do fim do mundo continua flutuando sobre nossas cabeças, nos lembrando do trabalho necessário para garantir um planeta mais seguro e saudável", disse a presidente da organização, Rachel Bronson.

Publicado originalmente pela Agência France Press. Reproduzido no Brasil por G1, 20.01.2022.

O que é o Relógio do Apocalipse, e por que ele indica que desde 1953 nunca estivemos tão perto de uma catástrofe global

Criado há 70 anos para medir risco de acidente nuclear, relógio sugere que fim da humanidade está mais próximo desde chegada de Donald Trump à presidência dos EUA.

Existe um relógio que, em vez de medir a passagem do tempo, indica o quão perto o planeta está de ser destruído. Atualmente, seus ponteiros marcam dois minutos e meio para meia-noite, horário previsto para o fim do mundo.

É o chamado Relógio do Apocalipse, criado em 1947 pelo Boletim dos Cientistas Atômicos (BPA, na sigla em inglês), nos Estados Unidos.

Não se trata de um objeto, mas de uma ilustração simbólica. Os ponteiros do relógio não se movem por meio de uma medida científica, mas de acordo com o parecer dos integrantes do conselho de ciência e segurança do BPA, que se reúne duas vezes por ano para determinar o quanto falta para meia-noite.

"É um símbolo que representa o quão perto ou longe estamos de uma catástrofe global. O que queremos mostrar com isso é o quão próximos estamos de destruir a vida na Terra como a conhecemos", explica Rachel Bronson, diretora-executiva e editora do boletim.

O último ajuste nos ponteiros aconteceu em janeiro deste ano, logo após a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Na ocasião, o relógio foi adiantado em meio minuto.

Apenas em 1953 os ponteiros estiveram mais adiantados do que agora, marcando dois minutos para meia-noite, após os EUA e a antiga União Soviética testarem bombas termonucleares.

Para os responsáveis pelo relógio, eventos recentes - como o lançamento de um míssil balístico intercontinental pela Coreia do Norte e a decisão de Trump de retirar os EUA do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas - acendem um alerta.

"Não estamos nos movendo na direção certa", diz Bronson à BBC.

Quando o Relógio do Apocalipse foi criado, em 1947, simbolizava a preocupação dos cientistas com o risco de um conflito nuclear diante da corrida armamentista no início da Guerra Fria.

Desenhado pela pintora Martyl Langsdorf, mulher do físico Alexander Langsdorf, do Projeto Manhattan (projeto de pesquisa e desenvolvimento que produziu as primeiras bombas atômicas durante a 2ª Guerra Mundial), o relógio marcava sete minutos para meia-noite em sua primeira aparição na capa do boletim.

Desde então, a posição dos ponteiros foi ajustada 22 vezes para frente ou para trás.

Do rock à ONU

As referências ao relógio vão muito além da ciência e da política. Bandas de rock - como Iron Maiden e Smashing Pumpkins - já dedicaram músicas a ele ("2 minutes to Midnight" e "Doomsday Clock", respectivamente).

O Relógio do Apocalipse também apareceu em um episódio da série Doctor Who, produzida pela BBC.

Atualmente, o relógio reflete, juntamente com o risco nuclear, a preocupação dos cientistas com os efeitos da mudança climática e novas tecnologias, como a inteligência artificial e a biologia sintética.

Em março, Kim Won-soo, representante da ONU para assuntos de desarmamento, alertou que o Relógio do Apocalipse tinha atingido sua pior marca em 64 anos.

"A necessidade de avançar no desarmamento nuclear poucas vezes foi tão urgente como é hoje", disse Kim Won-soo.

O relógio está mais adiantado do que se encontrava durante a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, quando marcava sete minutos para meia-noite, embora muitos acreditem que o horário deveria ter sido ajustado, na ocasião.

Bronson explica que isso aconteceu porque a Crise dos Mísseis foi tão rápida que os especialistas não chegaram a se reunir para ajustar o relógio. Quando se encontraram, os EUA e a então União Soviética já tinham assinado acordos para controle de armas.

Em 1991, com o fim da Guerra Fria e novos acordos firmados entre Washington e Moscou para redução de armas, o relógio chegou a indicar 17 minutos para meia-noite, sua melhor marca.

Mas o alívio sentido na época contrasta com o risco apontado agora.

'Mais perigoso'

Bronson explica que o último ajuste do relógio Apocalipse, em janeiro, refletiu uma crescente falta de consideração no mundo em relação ao conhecimento especializado, como comentários imprudentes em diferentes países sobre a questão nuclear.

"O presidente Trump e seu governo são grandes motivos de preocupação. Mas não são os únicos", declara.

"E (Trump) continua a fazer declarações que podem ser vistas - não sabemos se ele tem essa intenção - como uma ameaça velada ao uso de armas nucleares, o que é muito assustador", acrescenta Bronson.

Gestão de Donald Trump é um dos motivos de preocupação dos cientistas — Foto: Reuters/Jonathan Ernst

A cientista afirma que tem sido questionada se o relógio será acelerado novamente, diante do teste de míssil balístico intercontinental realizado pela Coreia do Norte na semana passada.

Mas, segundo ela, um novo ajuste não está sendo cogitado por enquanto, uma vez que o adiantamento dos ponteiros em janeiro já antecipou "que o mundo se tornaria mais perigoso" e é isso que está acontecendo.

Bronson admite, no entanto, que a situação pode mudar e o boletim se reserva ao direito de mover o relógio se for preciso.

"O importante é a tendência. Isso me preocupa muito. Estamos chegando mais perto ou nos afastando da meia-noite? Acreditamos que não está tão perigoso quanto em 1953, mas estamos caminhando para isso", conclui.

Por BBC, em 14/07/2017 16h05  Atualizado há 4 anos.