terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A precariedade dos jovens ameaça a democracia

A falta de expectativas no local de trabalho e a imobilidade política estão lançando os jovens de forma alarmante em um novo paradigma anti-sistema, individualista e reacionário. 

Um jovem espera para entrar em um Escritório de Emprego em Valência no ano passado. (Rober Solsona / Europa Press).

Um menino de cerca de 22 anos se aproximou de mim para me perguntar se eu acreditava que a democracia representativa estava "exaurida" para defender os interesses dos jovens, e ao me recuperar do meu espanto pensei que, de repente, as piores previsões que eu havia exposto para eles foram confirmados durante a pré-palestra. Ou seja, a tese de que estamos criando uma geração de jovens anti-sistema , porque eles não se sentem vinculados ao sistema, lançando-os numa espécie de noventayochismo juvenil, que mais cedo ou mais tarde estourará diante de nossa estupidez democrática.

Basta observar o coquetel que nossos jovens vivenciam no dia a dia (niilismo, frustração, raiva, tristeza ...) ao assumir que não existem instituições ou grupos sociais capazes de oferecer uma alternativa à sua precariedade. Esse abandono está se traduzindo gradativamente em um paradigma de para si mesmo que pode , de um individualismo flagrante, não encontrar soluções aplicadas, não para a direita, mas não para a esquerda, onde se refugiar. Embora o segundo, é claro, seja aquele que vai acabar fracassando ainda mais antes da imolação do ideal de progresso comunitário.

Talvez a política espanhola possa encher a boca de ter encontrado remédios eficazes, senão curas paliativas, para o drama das rendas ou do trabalho. Talvez o sindicalismo seja o seu referencial hoje, sabendo que se não se quer certas condições de trabalho, alguém na fila atrás dele as vai querer, cheio de garotos do mesmo grau e desespero. A maioria acenou para mim que não confiava nesses agentes sociais como intermediários.

O problema com a representação juvenil é de tal calibre que até transcende fronteiras. Na Alemanha, abriu-se o debate sobre a redução da idade para votar, como forma de corrigir seu desamparo, por meio de incentivos eleitorais. Não seja ingênuo: se a política investe tanto esforço na previdência, é porque os boomers e os aposentados colocam e levam governos em todo o continente, inclusive na Espanha.

Porém, ser um jovem da classe abastada nunca significará o mesmo que o da classe humilde, porque o primeiro verá sua situação aliviada no longo prazo pelo patrimônio familiar. Embora seja enganoso confiar o drama juvenil a uma mera questão de classe ou status. Há indícios para intuir a formação de uma nova cultura ou socialização entre os jovens, o que até quebra padrões em outra área da vida social como o emprego.

Amostra é o chamado fenômeno da Grande Renúncia. Milhares de jovens deixam seus empregos nos Estados Unidos, atolados em uma mistura entre a exaustão emocional e a falta de sentido de resistir em condições miseráveis. Por que deixar sua pele naquela empresa que não se adapta às suas necessidades por mais tempo ou flexibilidade no ambiente de trabalho, se em troca não terá estabilidade ou garantias de longo prazo. O emprego deixou, portanto, de ser um dos pilares sólidos aos quais se agarrar, mesmo em um contexto de incerteza como a pandemia.

Em nosso país, as consequências desse noventayochismo são evidenciadas pela desconfiança no futuro. Se a nostalgia reacionária prolifera, é porque explodiu a ideia clássica do progresso como motor de obtenção do bem-estar. Poucos jovens hoje pensam que o amanhã será melhor que o presente, por isso olham para o passado na busca incessante daquela prosperidade que uma sociedade que agora lhes dá as costas promete.

Soma-se a isso a suposição de que a política, como eles a conhecem, é irreformável. Apenas 10 anos se passaram desde o 15-M, um marco que com perspectiva deve ser entendido como um apelo reformista final sobre os pilares do nosso sistema político. No entanto, o desapontamento com esse fracasso pode, doravante, assumir outras formas destrutivas. O principal risco é que muitos jovens hoje tomem a democracia como um dado adquirido, borrando o medo de uma possível involução, uma vez que não vivenciaram o clima da Transição.

Apesar disso, há janelas para otimismo. Os jovens lutam coletivamente em causas como o feminismo, as alterações climáticas ... porque aí eles acreditam que o sistema pode ser ainda diferente. Protestos recentes, como o do setor siderúrgico, trouxeram até uma memória comum que estava enterrada, fator fundamental para combater sua atomização social: direitos ou melhorias salariais, antes, eram travados juntos. Embora, a esperança sempre possa ser frustrada.

De repente, a menina que acompanhava o menino interveio. Ambos sugeriram, se não fosse um problema, que a democracia era "cada vez mais uma luta entre grupos de identidade", em detrimento da questão econômica. Eu respondi que se eles tivessem um irmão, um primo, um amigo ou um vizinho que fosse LGTBI ... eles não iriam remar com eles por sua liberdade? Eles acenaram com a cabeça, para meu descanso, porque a reclamação nunca será a reivindicação dos direitos dos grupos vulneráveis.

O verdadeiro perigo é que, uma vez que os nossos jovens sintam que nada podem fazer para melhorar as suas condições materiais de vida ou de trabalho, abraçem aquela anti-política que os convida a lutar contra os diferentes, com medo de continuar a perder alguma coisa. "Pelo menos a identidade que ninguém tira de mim." Talvez assim pensem alguns, de maneira tão errônea quanto falsa, naquele novo paradigma anti-sistema , individualista e reacionário, ao qual os estamos lançando de forma alarmante.

Estefanía Molina, a autora deste artigo, é cientista política e jornalista. Ela é a autora de The political tantrum (Destiny). O texto acima foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de aneiro de 2022.

A ética da responsabilidade dos intérpretes da Constituição

A Suprema Corte e os magistrados constitucionais devem agir de forma que suas resoluções sejam percebidas como justas, e não como resultado de convicções partidárias ou cego voluntarismo doutrinário.

O trabalho dos intérpretes da Constituição está sujeito à observância inequívoca, verificada e incondicional de um conjunto de valores e princípios de natureza material ou substantiva, que constituem a base ideológica do Estado Constitucional, e cuja afirmação está ligada a a definição da Constituição Constituição feita pelos nossos constituintes como “Carta Magna de dignidade, harmonia civil, liberdade e justiça social”.

No preâmbulo da Constituição e nos seus artigos, é proclamado um núcleo de valores, que são expressão dos limites do Estado constitucional, que é estabelecer a justiça, a liberdade e a segurança, promover o bem comum de todos nós que constituem a nação e garantem a convivência democrática dentro da Constituição e das leis de acordo com uma ordem econômica e social justa, que compõem a ideologia coletiva que compartilhamos como membros da comunidade política decorrente de um cenário de liberdade sob a proteção de nossa Lei Básica.

Os valores de liberdade, igualdade, justiça e pluralismo político, consagrados como valores superiores do ordenamento jurídico no artigo 1º da Constituição , enquadram a função hermenêutica dos intérpretes da Constituição, que não podem ignorar ou se furtar a qualquer desses valores na resolução de litígios de qualquer natureza que surjam antes de sua sede.

A par destes valores constitucionais, que estão na base do Estado constitucional, concebido como Estado social e democrático de direito, se descobre no texto constitucional um conjunto de valores, entre os quais vale destacar a dignidade humana, o espírito do a abertura e a tolerância, o Respeito pela liberdade dos outros, a diversidade ideológica e cultural, a solidariedade, a justiça social, a coesão social e territorial, que definem o âmbito de ação de todos os poderes do Estado e a conduta da cidadania.

Mas, para além destes valores, a Constituição estabelece princípios éticos expressamente dirigidos aos chefes das instituições do Estado, constituídas sob a sua tutela, incluindo os órgãos que constituem o aparelho judicial: o princípio da submissão à Constituição e às leis, o princípio da lealdade constitucional, o princípio da transparência, o princípio da responsabilidade ou o princípio da interdição da arbitrariedade, que procuram limitar o exercício da autoridade pública e prevenir o uso abusivo do poder.

A função desses princípios e valores é dignificar as instituições do Estado, na medida em que atuam como guardas que protegem a sobrevivência do sistema democrático, que seria seriamente corroído se comportamentos dos funcionários públicos contrários à Constituição fossem impostos no âmbito político. realidade e estatuto jurídico do Estado de Constituição.

É indiscutível que a democracia constitucional se desenvolve, se fortalece e resiste quando todos os atores constitucionais exercem suas funções conscientes do peso da responsabilidade que assumem no acesso a cargos e cargos públicos. O Estado constitucional falha e a Constituição perece num cenário potencial de flagrante desprezo ou desrespeito pelo círculo virtuoso dos valores éticos referidos às ideias de honestidade, exemplaridade, responsabilidade e responsabilização.

Estes deveres éticos são particularmente exigíveis dos poderes que lhe são conferidos de forma proeminente a missão de interpretar a Constituição, - juízes e magistrados membros do judiciário e magistrados do Tribunal Constitucional - que devem exercer as suas funções jurisdicionais com retidão, temperança, profissionalismo, com extremo rigor jurídico, com sentido de ponderação, para que as suas resoluções sejam percebidas como justas, fruto de um bom trabalho judicial, assente na correta aplicação dos métodos de interpretação do Direito Constitucional, e não como consequência das convicções partidárias, do mero subjetivismo ideológico ou do voluntarismo doutrinário cego.

A caracterização dos intérpretes da Constituição como independentes e imparciais exige uma predisposição para exercer as suas atribuições de forma objetiva, com plena submissão ao Estado de Direito e ao direito, sem estar condicionada pelos interesses das partes no processo ou por terceiros persuadidos. dos deveres legais que implica o cumprimento dessas garantias processuais para preservar a confiança dos cidadãos nas instâncias jurisdicionais.

O espírito de temperança e moderação exige dos intérpretes constitucionais o esforço intelectual de contenção necessário para que suas decisões não contribuam para a politização da justiça ou a indesejável judicialização da política, que degradam o bom funcionamento do Estado democrático.

Em particular, aos juízes constitucionais, que têm a missão de controlar, na perspetiva e na dinâmica jurídica, a submissão à Constituição do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial, através do prosseguimento dos processos constitucionais, em Defesa do A própria ordem constitucional, a comunidade jurídica e a sociedade em geral exigem que exerçam a sua função de vigilância e fiscalização, conscientes de que as possibilidades de intervenção não são ilimitadas - como advertiu o ilustre jurista presidente do Tribunal Constitucional, Manuel García Pelayo-. Os juízes constitucionais estão proibidos de impor seus critérios acima ou fora dos desígnios ou mandatos da Constituição, mas também de usurpar os poderes que correspondem ao poder constituinte.

A justiça constitucional não pode negar ou obscurecer o papel que cabe ao Parlamento e ao Governo, conforme argumentado pelo juiz da Suprema Corte do Reino Unido Jonathan Sumption, no cumprimento dos direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ecológicos reconhecidos no Constituição.

É responsável por construir uma base jurídica sólida o suficiente para construir uma democracia avançada, plena e forte, apoiada na proteção dos direitos humanos, dotada da autoridade necessária para ser governada de forma eficaz na busca do interesse geral e do bem comum.

A ética comunicativa, no sentido de Jürgen Habermas, exige que os intérpretes constitucionais desempenhem suas funções no contexto da racionalidade argumentativa e com total transparência, para que os cidadãos possam ver que a justiça é feita.

O discurso da ética pública fornece aos intérpretes da Constituição uma base legitimadora de suas ações, na medida em que suas resoluções só são lícitas quando se baseiam na busca da extensão da liberdade, da igualdade e da justiça e buscam e promovem a paz social.

Sabendo o que significa a Constituição, o intérprete constitucional deve buscar a defesa da democracia entendida como razão pública, preconizada por Amartya Sen, estando plenamente comprometidos com a ideia de que, ao decifrar o conteúdo dos dispositivos constitucionais e resolver tensões e conflitos, contribuem de forma decisiva caminho para o desenvolvimento e consolidação do Estado constitucional, uma vez que o seu trabalho visa estabelecer o sentido das normas constitucionais, estando em jogo a determinação, o sentido e o conteúdo dos valores democráticos que regulam as condições de liberdade dos cidadãos e definem o poderes dos órgãos constitucionais.

A boa governação do Estado constitucional exige que os órgãos constitucionais com competência para interpretar a Constituição respeitem de forma absoluta os imperativos de natureza substantiva e ética que regem a sua actividade, ajudando assim a iluminar o universo axiológico da democracia, constituído pelos valores da democracia. • a coexistência, o respeito mútuo e a fraternidade e o fortalecimento da democracia jurídica, que constitui um dos componentes do Estado constitucional essencial para garantir a estabilidade institucional, combater a desigualdade e a injustiça e gerar bem-estar e prosperidade.

José Manuel Bandrés, o autor deste artigo, é magistrado do Supremo Tribunal do Reino da Espanha. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de janeiro de 2022.

Brasil, cada vez mais distante do resto da América Latina

O país celebra este ano 200 anos da sua independência de Portugal com um presidente que só está interessado em manter boas relações com a extrema direita

A rejeição do presidente brasileiro, o de extrema direita Jair Bolsonaro, à oferta de ajuda do governo argentino ao Brasil devido às graves enchentes que atingiram o Estado da Bahia com dezenas de mortos e mais de meio milhão de desprotegidos no meio do Natal São mais um sintoma de como o Bolsonaro está distanciando o Brasil da América Latina e, em geral, do mundo. A desculpa dada pelo Chefe de Estado foi que seu homólogo argentino "está de esquerda".

Neste momento em que o Brasil parece estar mais centrado nas suas origens coloniais portuguesas com as classes altas comprando ali uma segunda casa e com visitas mais frequentes ao local, o jornalista Carlos Fino, uma das figuras mais proeminentes do jornalismo português, acaba de lançar o livro Brasil: Raizes do Estranhamento , para demonstrar o contrário. Segundo Fino, 73, a chamada “Russofobia” está crescendo no Brasil, alimentada por uma visão negativa de Portugal presente na imprensa, em livros e até em filmes e novelas: “O Brasil tem vergonha da herança de Portugal. E isso até pelas elites mais iluminadas ”.

Se a isso se acrescenta que o Bolsonaro nada fez, ao contrário, para fortalecer os laços do Brasil com o resto da América Latina, nem mesmo com a América do Sul, que nunca foi idílica, fica mais claro o perigo de o Brasil ficar cada vez mais isolado. o mundo trancado em si mesmo.

Quando cheguei ao Brasil, há 20 anos, o que mais me impressionou foi ver que entre as pessoas comuns e entre os estudantes pouco ou nada se sabia sobre o resto do continente americano . E quando perguntei aos intelectuais o que eles sentiam no mundo, eles me olharam de forma estranha e responderam: "Brasileiros". Muito poucas elites falavam espanhol e durante 10 anos houve uma batalha no Parlamento para tornar o ensino da língua Cervantes obrigatório nas escolas. Foi inútil . A lei foi esquecida sob a desculpa de que não havia professores suficientes e eles ganhavam menos do que em outras partes do mundo.

A isso se soma a escassa informação que a grande mídia, com pequenas exceções, oferece sobre a América Latina. Isso explica porque os brasileiros se sentem apenas brasileiros, pertencentes a um império próprio, cientes de sua grande riqueza, de ser o quinto maior território do planeta a ter 16% da água potável do mundo. Isso junto com a incrível diversidade da Amazônia que este Governo está fazendo de tudo para destruir para dar lugar à pecuária e ao cultivo da soja, sacrificando se necessário os povos indígenas que sempre foram os donos desses territórios.

Esse isolamento desde as origens leva o Brasil a não saber com quem se identificar ou com quem compartilhar sua história. O resultado é o empobrecimento e o crescente isolamento do mundo.

O Brasil vai comemorar os 200 anos da Independência de Portugal este ano com um governo que empobrece o país cada vez mais. Em vez de transformar esta data em um momento de reflexão para saber de onde veio e para onde quer ir, o Brasil convive com ansiedade e ameaças à sua democracia, acossado por um governo golpista cujo presidente só tem interesse em manter boas relações com ele. Trump, de extrema direita americana, com a esperança de retornar ao poder.

Segundo estudo do Instituto Cervantes no Brasil, apenas 6,7% conhecem ou estudam espanhol no Brasil e 3% não sabem quais são os países da América Latina. E, no entanto, assim como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura português José Saramago foi irônico que os espanhóis continuassem a manter Portugal no mapa porque se o retirassem sentiriam um “complexo de castração”, pode-se dizer do Brasil em comparação com o resto do continente. Se isolarmos o Brasil da América Latina, que faz fronteira com 10 de seus países, o mapa ficaria muito feio.

O Brasil será apenas a potência geográfica e econômica que representa enxertada no continente e só poderá ser visto como uma força mundial dentro de sua região. Isso só acontecerá se as ideias mais abertas de alguns políticos brasileiros do passado, que sonhavam com um continente rico, unido e com uma moeda única, uma espécie de Estados Unidos latino-americanos, voltassem a ser levantadas.

Se a desunião dos povos só cria pobreza, violência e deserto, a união dos povos acaba enriquecendo a todos. A experiência da União Europeia pode ser criticada , mas a verdade é que, enquanto antes da união o continente sempre viveu em guerras, hoje, desde então, nunca sofreu um conflito violento entre os seus Estados e tem uma moeda forte.

Bolsonaro chegou ao poder com o vírus da separação, ódio e isolamento do Brasil do resto do mundo. Hoje a única possibilidade de voltar a sonhar com um Brasil enxertado no resto do mundo, especialmente na América Latina, é que o segundo centenário de sua independência seja também o da libertação daquele que já foi considerado o "pior governo", o mais empobrecedor e isolacionista de sua história.

Juan Árias, o autor deste artigo, integra a equipe do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 03 de janeiro de 2022.

A falência do ex-presidente e ícone polonês Lech Walesa

Após deixar de viajar para proferir palestras por causa da covid-19, o ex-presidente polonês Lech Walesa diz que está falido. Mas o líder do movimento Solidariedade enfrenta problemas financeiros já há algum tempo.

Até meados de 2020, o ex-presidente e ícone do movimento anticomunista Solidarnosc (Solidariedade) dos anos 1980 na Polônia, Lech Walesa, ganhava a vida no lucrativo circuito internacional de palestras.

Desde então, porém, as restrições por causa da covid-19 o deixaram à beira da falência, relatou ao tabloide polonês Super Express: "Eu tinha muitas viagens planejadas e deveria ter voado para Itália, Alemanha, EUA e outros países, mas infelizmente todas falharam".

Os falantes de polonês são poucos e distantes do circuito internacional de palestras em língua inglesa, mas Walesa lidera entre os reconhecidos no exterior. Além dele, há Donald Tusk e Robert Lewandowski, dizem pessoas ligadas ao setor. E antes deles houve o papa João Paulo 2º.

A expertise polonesa em "questões do Leste", como a Ucrânia, elevou o preço dos dois palestrantes políticos desde 2014. Mas o que fontes do setor chamam de "cansaço da guerra cultural" diminuiu a demanda por opiniões tidas como partidárias, seja de um lado, seja do outro. E Walesa nunca deixou de dizer o que pensa, por vezes de maneiras que podem não ser consideradas politicamente corretas.

Além disso, a covid-19 levou os países a imporem restrições de viagens.

Tempos difíceis para Walesa

"Estou falido agora, porque recebo 6 mil zlotys  [R$ 8.400] mensais de aposentadoria, e minha esposa gasta 7 mil zlotys cada mês", disse Walesa ao jornal. Após reformas em agosto, o valor da aposentadoria aumentou para 18 mil zlotys por mês.

"Palestras no Ocidente? De 10 mil a 100 mil euros [R$ 64 mil a R$ 640 mil]", disse Walesa ao tabloide. "Ganhei dinheiro com capitalistas ocidentais." Um serviço de contratação de oradores estaria oferecendo palestras de Walesa a preços entre 50 mil e 100 mil dólares (R$ 283 mil a R$ 566 mil).

Ele ainda complementa sua renda de orador oferecendo sessões de liderança, reuniões motivacionais para empresas e serviços de publicidade. Uma reunião de uma a duas horas tem o preço mínimo de 20 mil zlotys.

Esta não é a primeira vez que Walesa enfrenta problemas financeiros. Em fevereiro, disse que estava à procura de trabalho adicional, uma vez que a pandemia estava afetando sua renda.

"Seis meses mais disso [pandemia] e vou pedir dinheiro na frente da igreja", afirmou Walesa, ou retornar ao trabalho de eletricista – a profissão que adotou no estaleiro de Gdansk em 1967, antes de fundar o movimento Solidariedade, 13 anos mais tarde.

Em abril, Walesa escreveu que estava procurando emprego e postou seu anúncio no site polonês flexi.pl, um portal para maiores de 50 anos em busca de ocupação. 

"Um líder experiente, grande orador, vencedor do Prêmio Nobel da Paz, presidente da República da Polônia entre 1990 e 1995, cofundador e primeiro presidente do Solidariedade, conduz reuniões e formação para lideranças, aceita convites para reuniões de incentivo em empresas, mas também em famílias, possíveis serviços publicitários adicionais, fotos conjuntas e autógrafos", diz o texto.

Circuito de palestrantes

Muitos dos contemporâneos de Walesa na década de 1990 – como Bill Clinton, Gerhard Schroeder e Tony Blair – se beneficiaram do circuito de palestras e suas listas de contatos de alto nível, incluindo aí apresentações para regimes não totalmente democráticos e financiados por combustíveis fósseis.

Os arranjos podem ser bastante lucrativos: Hillary Clinton ingressou no circuito após deixar o cargo de secretária de Estado dos EUA, em 2013. Seu preço? Um mínimo de 225 mil dólares por palestra.

A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, supostamente ganhou 7 milhões de dólares em dois anos, em honorários de palestras em grandes corporações, fundos de investimentos e bancos de Wall Street.

Os fundos soberanos são grandes pagadores e buscam uma combinação de conhecimento do mercado e anedotas de bastidores. O banco de investimentos Goldman Sachs é um dos mais renomados clientes de palestrantes. Mas sua série Talks with GS não incluiu nenhum político desde, pelo menos, o início de 2021.

"É um grande mercado, de vários bilhões de dólares, globalmente. O maior mercado é o dos EUA", diz Tom Kenyon-Slaney, presidente do London Speaker Bureau. "Corporações e governos gostam de receber gente experiente e de alto gabarito para falar ou mesmo aconselhá-los."

"Nosso setor fez a transição para o virtual durante a covid-19, e isso tem sido bom para todos. Mesmo que os honorários dos palestrantes tenham diminuído, os eventos e as conferências continuam acontecendo, embora online", acrescenta.

Segundo Nick Gold, diretor-geral do Speakers Corner, o setor está estimado em cerca de 5 bilhões de dólares. "Não há uma tabela de classificação de palestrantes. Em última análise, trata-se de um mercado onde não há barreiras de entrada. Afinal, qualquer um pode se proclamar palestrante. E, como todos nós temos nossas próprias experiências e conhecimentos únicos, pode ser considerado uma proclamação legítima."

Ele ressalva que ninguém poderia prever a pandemia e o impacto que ela teria sobre o setor: "Isso gerou uma grande instabilidade e um abalo sísmico para palestrantes, escritórios de oradores, organizadores de eventos e todos ligados ao setor de palestras."

"O mundo virtual abriu uma nova plataforma para os palestrantes apresentarem seu conteúdo. Não se trata de uma mudança para palestras online, mas o desenvolvimento de uma nova plataforma para transmitir uma mensagem. Os oradores tiveram que reinventar e reimaginar sua apresentação levando em conta essa nova plataforma virtual, de modo a dar ao público os melhores resultados possíveis", acrescenta Gold.

Problemas no instituto de Walesa

Mas os problemas de Walesa com dinheiro têm uma longa história. O Instituto Lech Walesa – uma organização não governamental e sem fins lucrativos criada em 1995 por Walesa e inspirada no Carter Center, dos EUA – mudou seu nome para Centro de Solidariedade Europeia depois que seu presidente de 2000 a 2014, Piotr Gulczynski, foi acusado de prevaricação financeira.

A promotoria de Varsóvia recebeu uma relação de possíveis crimes cometidos por Gulczynski e outra sobre o ex-presidente do instituto, Mieczyslaw Wachowski, ex-motorista e confidente de Walesa. Em 2014, o instituto apresentou um lucro de 3,7 milhões de zlotys. Em 2017, seus cofres estavam vazios.

De acordo com investigações do portal de notícias Gazeta, Wachowski usou os fundos principalmente para dar "prêmios" para si mesmo. Ele também perdeu um processo contra a empresa energética Energa e tem que pagar 825 mil zlotys.

O porta-voz do Grupo Energa, Adam Kasprzyk, disse que o instituto não prestou nenhum dos serviços de marketing com os quais se comprometera em nome da Energa.

Em 2017, o instituto viu uma onda de demissões e a renúncia de seu então presidente após uma auditoria – que ele encomendou – revelar dívidas de mais de 1 milhão de zlotys.

Em abril, o portal de notícias TVN24.pl relatou o pedido de entidades vinculadas a empresas do Tesouro do Estado para a devolução de subsídios no valor de 1,7 milhão de zlotys concedidos ao instituto para a realização de projetos.

Bryan Harper escreveu este artigo para a Deutsche Welle, que o publicou em 04.01.22

Emprego fraco e dólar nas alturas: o que vem por aí na economia em 2022

Saiba o que esperar para PIB, emprego, inflação, câmbio, economia mundial, contas públicas e política monetária em 2022, na visão de um time de especialistas que inclui os economistas Daniel Duque e André Braz (FGV), Silvio Campos Neto (Tendências), Vilma Pinto (IFI) e Rafaela Vitória (Banco Inter).

Inflação deve perder força, mas PIB tende a ficar estagnado, preveem economistas para o próximo ano (Paulo PInto / Fotos Públicas)

O ano de 2022 deve trazer pelo menos uma boa notícia na economia: a inflação tende a perder um pouco de força, como resultado da safra recorde de alimentos, redução de preço dos combustíveis e diminuição da demanda, resultado da forte alta dos juros e da atividade fraca.

No entanto, para além dessa perda de ímpeto dos preços, o ano eleitoral tende a ser mais um período difícil para a economia brasileira.

PIB recua 0,1% no 3º tri e Brasil entra em 'recessão técnica'. E agora?

Para o PIB (Produto Interno Bruto), indicador que soma todos os bens e serviços produzidos no país, a expectativa dos economistas é de estagnação.

Os analistas divergem se o número vai ser um pouco negativo ou um pouco positivo, mas todos concordam que, no azul ou no vermelho, o desempenho deve ficar muito próximo de zero.

Como consequência, o mercado de trabalho tende a perder ímpeto, com a taxa de desemprego caindo mais devagar e a geração de vagas formais mais fraca.

Já o câmbio — relação entre o valor da moeda brasileira e as moedas de outros países — deve ter um ano bastante volátil (isto é, deve variar bastante, ser inconstante), reagindo à corrida eleitoral e à provável alta de juros para conter a inflação nos mercados desenvolvidos.

Esse movimento tende a atrair investimentos principalmente aos Estados Unidos, enfraquecendo as moedas de países emergentes, como o Brasil, e já há quem aposte em um dólar encostando nos R$ 6 ao longo do próximo ano.

Nas contas públicas, a arrecadação de impostos deve perder força, enquanto o custo da dívida pública tende a continuar em alta, devido ao aumento dos juros.

E para coroar esse cenário desfavorável, a economia mundial pode perder força, com destaque para a China, principal parceira comercial do Brasil.

Saiba o que esperar para PIB, emprego, inflação, câmbio, economia mundial, contas públicas e política monetária em 2022, na visão de um time de especialistas que inclui os economistas Daniel Duque e André Braz (FGV), Silvio Campos Neto (Tendências), Vilma Pinto (IFI) e Rafaela Vitória (Banco Inter).

Com dois resultados negativos no segundo e terceiro trimestres de 2021, a economia brasileira entrou este ano em "recessão técnica" — termo usado pelos economistas quando são registrados dois trimestres seguidos de PIB em queda.

No quarto trimestre, a coisa não melhorou, com indústria (-0,6%), varejo (-0,1%) e serviços (-1,2%) em retração em outubro, na comparação com setembro, sugerindo que a atividade econômica continuou em baixa nos últimos três meses do ano.

As vendas da Black Friday em novembro e do Natal em dezembro, com crescimento fraco em relação a 2020, reforçaram a sensação de falta de ímpeto da economia.

É em meio a esse desânimo que o país adentra 2022, ano que os economistas preveem que será de estagnação para o PIB brasileiro.

Segundo o boletim Focus do Banco Central (de 27/12), que reúne as expectativas de diversos analistas do mercado, o PIB brasileiro deve crescer apenas 0,4% em 2022, após avançar cerca de 4,5% este ano, recuperando a queda de 3,9% de 2020, quando a pandemia fez seu maior estrago.

Conforme Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do banco Goldman Sachs, o ano de 2022 deve ser marcado pela continuidade da recuperação do setor de serviços no Brasil, em meio ao avanço da vacinação.

"No entanto, a inflação em dois dígitos, a taxa de juros em alta, o aumento do ruído e da incerteza política, o alto nível de endividamento das famílias e a deterioração da confiança de consumidores e empresários são ventos contrários significativos para a atividade", escreve Ramos, em relatório.

Mercado de trabalho perde força

O ano de 2021 foi de recuperação para o mercado de trabalho, após o forte baque registrado no ano anterior.

A taxa de desemprego, que começou o ano em 14,5%, chegou a outubro em 12,1%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Até novembro, haviam sido criadas no país quase 3 milhões de vagas com carteira assinada, conforme dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do Ministério da Economia.

Recuperação do emprego deve perder ritmo em 2022, diz Daniel Duque, do Ibre-FGV (Agência Sindical).

"Devemos chegar ao primeiro trimestre de 2022 com uma taxa de desemprego já bem próxima da que tínhamos no início da pandemia", prevê Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

Em fevereiro de 2020, quando foi identificado o primeiro caso de coronavírus no Brasil, a taxa de desemprego estava em 11,8%.

"A partir daí, no entanto, essa recuperação deve perder ritmo", diz Duque, explicando que há sempre um atraso entre a atividade econômica e o mercado de trabalho.

"A desaceleração da atividade que sofremos no segundo semestre de 2021, que foi bem forte, deve começar a ter um impacto no emprego a partir do primeiro trimestre de 2022 e a renda do trabalho deve continuar bem baixa, sofrendo com os efeitos da inflação e com reajustes nominais abaixo da alta de preços", avalia o pesquisador.

Segundo o boletim Salariômetro da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), em 12 meses até novembro de 2021, apenas 19,4% das negociações salariais entre sindicatos patronais e de trabalhadores resultaram em reajustes acima da inflação, enquanto para 50,8% os reajustes foram inferiores e 29,8% conseguiram ao menos repor a alta de preços.

Já conforme o IBGE, em outubro, o rendimento médio dos brasileiros caiu 11,1% na comparação anual, para R$ 2.449. Com isso, a renda no país descontada a inflação se encontra no menor patamar da série histórica, que tem início em 2012.

Ainda de acordo com Duque, a recuperação modesta do emprego que deve ocorrer em 2022 tende a ser puxada pelos trabalhadores informais e por conta própria.

"O emprego formal tem uma correlação bem forte com o PIB", explica o economista. "Como estamos vendo uma estagnação nos últimos trimestres, que deve continuar em 2022, principalmente devido à alta dos juros, muito provavelmente veremos em breve o fim da expansão dos empregos formais."

Inflação perde força, mas 2021 deixa herança

Segundo o boletim Focus, a inflação medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) deve desacelerar de cerca de 10% no acumulado de 12 meses até dezembro de 2021, para algo em torno de 5% ao fim de 2022.

No entanto, o indicador ainda tende a ficar acima da meta para o próximo ano, que é de 3,5%.

Boa parte da inflação de 2022 vai ser influenciada pela alta de preços de 2021, diz André Braz, da FGV (Agência France Press)

"Dado que a nossa economia ainda é muito indexada [quando os preços são reajustados de acordo com a inflação do período anterior], boa parte da inflação de 2022 vai ser influenciada pela inflação de 2021", diz André Braz, coordenador de índices de preços na FGV.

Um exemplo disso é o salário mínimo, que deve passar de R$ 1.100 em 2021 para R$ 1.212 em 2022, acompanhando a alta da inflação. O salário básico serve de referência para os salários do setor privado e também define o valor de benefícios sociais e aposentadorias.

Também os aluguéis, mensalidades escolares e impostos como IPVA e IPTU devem ser influenciados pela inflação do ano passado em seus reajustes, cita o economista.

Segundo Braz, boa parte da pressão inflacionária só deve perder forçar a partir do segundo semestre, já que a alta da taxa básica de juros leva de seis a nove meses para ter efeito sobre a economia.

"O efeito colateral disso vai ser um crescimento menor e isso vai bater direto no mercado de trabalho e nas oportunidades de emprego, contribuindo de forma mais aguda no segundo semestre para diminuir a demanda, que já está enfraquecida, mas que tende a se enfraquecer ainda mais", prevê Braz.

Comida, gasolina, conta de luz: por que está tudo tão caro no Brasil?

Segundo o economista, a inflação de alimentos deve desacelerar de uma alta acima de 7% em 2021, para avanço entre 3,5% e 4% em 2022, devido à safra agrícola recorde esperada.

"Uma oferta maior de alimentos pode contribuir para uma inflação mais baixa", diz Braz.

Ele pondera, no entanto, que o câmbio é um risco para essa previsão, já que a moeda brasileira desvalorizada incentiva a exportação de alimentos, o que reduz a oferta no mercado interno.

O real fraco também eleva o preço dos produtos no país, já que commodities como soja e milho são cotadas no mercado internacional em dólar.

Ano eleitoral desfavorece reajustes nos transportes, diz economista (Elineudo Meira / Fotos Públicas)

Para os preços administrados — aqueles controlados pelo poder público, como combustíveis, contas de luz e tarifas de transporte —, Braz prevê uma pressão menor devido à queda de preços do petróleo e à expectativa de uma bandeira menos onerosa nas contas de luz, graças à normalização das chuvas e dos reservatórios hidrelétricos nos últimos meses.

Já no transporte público, pressionado pela alta de quase 50% do diesel nos últimos 12 meses, joga a favor dos usuários o fato de 2022 ser um ano eleitoral, o que desincentiva o reajuste de tarifas pelas prefeituras e governos estaduais.

Em São Paulo, por exemplo, a Secretaria Municipal de Transporte e Mobilidade Urbana e a SPTrans avaliam que a tarifa de ônibus precisaria subir dos atuais R$ 4,40 para R$ 5,08 para recompor a inflação desde o último reajuste.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB), no entanto, adiou a correção até fevereiro, enquanto aguarda o Senado votar projeto que passaria o custeio da gratuidade para idosos ao governo federal.

Câmbio pressionado e mundo menos favorável

Para Silvio Campos Neto, economista da Tendências Consultoria, dois fatores principais devem influenciar a cotação da moeda brasileira em 2022: as eleições presidenciais no Brasil e a alta dos juros nos Estados Unidos.

'Processo eleitoral sempre gera muita volatilidade e apreensão', diz Silvio Campos Neto, da Tendências (Sam Cowiw)

"A perspectiva de que o Fed [Federal Reserve, o banco central americano] eleve as taxas de juros por lá é um sinal de dólar forte no mundo todo", diz Campos Neto.

Isso acontece porque os juros mais altos nos EUA atraem investimentos para os papeis do Tesouro americano, valorizando o dólar e diminuindo os recursos disponíveis para aportes em países emergentes, que são considerados mais arriscados.

"Por aqui, o processo eleitoral sempre gera muita volatilidade e muita apreensão", acrescenta.

Segundo o economista, nos últimos anos, o real brasileiro teve comportamento atípico em relação às outras moedas de países emergentes, como o peso mexicano, colombiano e chileno, o rand sul-africano e o rublo russo.

Embora todas essas moedas tenham perdido valor com a pandemia, o real não se recuperou, ao contrário das demais, devido a fatores internos.

Pesou sobre a moeda brasileira principalmente o descontrole fiscal, com o calote nos precatórios — dívidas da União reconhecidas pela Justiça — e a mudança na regra do teto de gastos com a justificativa de pagar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família.

"O câmbio realmente está fora de lugar, mas para ele voltar para um patamar mais baixo teria que ter uma mudança de sinalização em termos de política macroeconômica, especialmente um comprometimento maior na questão fiscal", diz Campos Neto.

"Isso é algo que não deve vir de nenhum dos dois candidatos mais cotados. Então, em 2022, esperamos pressões renovadas [sobre o câmbio]. Ao longo do ano, podemos perfeitamente observar novos picos, até próximos de novo a R$ 6", prevê.

Ao fim do ano, no entanto, o economista avalia que o câmbio deve ceder de volta aos R$ 5,70, já que o vencedor das eleições tende a tentar amenizar o ambiente adverso, fazendo acenos mais responsáveis em relação à agenda econômica.

Além do câmbio volátil, Campos Neto prevê um "mundo mais desafiador" para o Brasil.

"Será um mundo que ainda cresce, especialmente nos Estados Unidos, mas com início de retirada dos estímulos monetários, com destaque para o Fed, que deve começar a subir juros entre março e junho", diz o economista.

Outro ponto de atenção é a China, cuja economia já dá sinais de desaceleração, devido a um rearranjo do setor imobiliário do país asiático, que cresceu muito nos últimos anos com base em um forte avanço do endividamento.

Por que Brasil pode ser um dos países mais afetados por crise na empresa chinesa Evergrande

"Essa desaceleração já está acontecendo e já se reflete, por exemplo, no preço do minério de ferro", diz Campos Neto.

Ele destaca que o efeito da desaceleração chinesa sobre os preços das commodities é positivo para a inflação brasileira, mas negativo para a balança comercial, já que o país é um grande exportador de produtos básicos.

Nas contas públicas, arrecadação menor e dívida mais cara

A política fiscal — ramo da política econômica que trata do gasto público e da arrecadação de impostos — deve ser um dos grandes temas das eleições de 2022.

Isso porque a corrida eleitoral deve acontecer em meio a um ano de piora no quadro das contas públicas.

Segundo Vilma Pinto, diretora da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, em 2022 tende a haver uma expansão da despesa, por conta do Orçamento aprovado — que prevê mudanças no pagamento dos precatórios e no teto de gastos para permitir maiores despesas, além de acomodar gastos como o aumento do fundo eleitoral e o reajuste dos salários de policiais federais, definido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

Já a arrecadação recorde observada em 2021 deve perder força, já que ela foi impulsionada pela recuperação da atividade e pela alta de preços dos produtos e serviços, devido ao aumento da inflação. Com PIB e inflação mais fracos em 2021, esses efeitos se perdem.

"Outra questão importante — que reforça o pessimismo para o quadro fiscal — são os juros e seu impacto para a dívida pública. Em dezembro, o Tesouro divulgou dados da dívida federal, que já mostram um crescimento na margem do custo médio da dívida", observa Vilma.

Conforme o Tesouro, o custo médio acumulado em 12 meses do estoque da dívida pública federal subiu de 8,02% ao ano em outubro para 8,62% em novembro, maior valor desde outubro de 2020.

No mesmo período, o custo médio das emissões em oferta pública da dívida interna aumentou de 7,48% ao ano para 8,02%.

A relação entre dívida e PIB, observada pelos economistas como sinal da saúde das contas públicas de um país, deve voltar a subir em 2022, nas projeções da IFI.

O indicador chegou a 88,6% em dezembro de 2020, devido ao aumento de gasto em resposta à pandemia da covid-19. Em 2021, deve cair a 82,1%, voltando a subir para 84,8% em 2022.

Essa elevação da dívida/PIB deve acontecer devido à combinação de piora do resultado primário do governo, aumento do custo da dívida e PIB mais fraco.

A saúde das contas públicas é um tema importante para a população em geral porque ela define a capacidade do governo de gastar e, consequentemente, a qualidade dos serviços públicos oferecidos.

Além disso, a percepção do mercado com relação à capacidade do governo de honrar suas dívidas influencia variáveis como o risco-país e o câmbio, que têm efeito direto sobre a inflação, já que muitos insumos da indústria são importados e as commodities são cotadas em dólar.

Atividade fraca pode pôr fim a alta dos juros

Em sua reunião de dezembro, o Copom (Comitê de Política Monetária) elevou a taxa básica de juros da economia brasileira em 1,5 ponto percentual (p.p.), para 9,25%.

Foi o sétimo aumento seguido da Selic, que ao fim de 2020 estava em 2%, menor nível da história.

Selic começou o ano em 2% e chegou a 9,25% em 2021. Novas altas de juros são esperadas para 2022 (Marcelo Casal Jr. / Agência Brasil)

Em sua última reunião do ano, o Copom também indicou mais um aumento de 1,5 p.p. para sua próxima reunião, em fevereiro de 2022.

No entanto, os sinais de fraqueza da atividade e os últimos dados de inflação abaixo do esperado fazem alguns economistas acreditarem que a autoridade monetária pode optar por subir menos os juros no início deste ano.

"Temos visto diversos sinais de desaceleração da economia, na indústria, nos investimentos e nos indicadores de confiança, que mostram um empresário mais cauteloso para 2022", diz Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter.

"Ao mesmo tempo, a inflação dá bons sinais de desaceleração", observa. Tanto o IPCA de novembro, como IPCA-15 de dezembro, apesar de altos, vieram abaixo das expectativas dos economistas.

"O consumo mais fraco acaba não alimentando a demanda e a gente pode ter uma inércia inflacionária bem menor, por conta da economia mais fraca. Isso pode resultar em uma política monetária um pouco mais gradual", acredita a economista.

Ela aposta em uma alta de 1 p.p. para Selic em fevereiro e outra de 0,75 p.p. em março, o que encerraria o ciclo de alta dos juros em 11%, abaixo dos 11,75% esperados pela maioria do mercado.

Para a analista, passadas as eleições e com o candidato eleito dando sinais de retomada das reformas macroeconômicas, o BC poderá voltar a reduzir a Selic, encerrando 2022 com a taxa em 10,5%.

No boletim Focus, o mercado também aposta em um início do corte de juros já no próximo ano, mas mais modesto, para 11,5%.

Thais Carrança - @tcarran, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 3 janeiro 2022

Bolsonaro internado de novo: o que é obstrução intestinal?

O quadro de suboclusão intestinal seria decorrente da facada e das quatro cirurgias a que ele foi submetido desde então.

Bolsonaro foi internado após passar mal no último domingo (Reprodução Twitter

O presidente Jair Bolsonaro (PL) foi internado na madrugada de segunda-feira (3/1) na cidade de São Paulo por causa de uma obstrução intestinal, de acordo com um boletim médico.

Bolsonaro informou no Twitter que começou a se sentir mal depois do almoço de domingo.

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Ele foi transportado por um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) de Santa Catarina, onde passava férias, ao hospital Vila Nova Star, onde foi colocado em uma sonda nasogástrica.

Em nota na noite de segunda-feira (3), a assessoria de imprensa do hospital afirmou que o presidente "apresentou melhora clínica após a passagem da sonda nasogástrica, evoluindo sem febre ou dor abdominal".

"O presidente fez uma curta caminhada pelo corredor do hospital e permanece em tratamento clínico", completou a instituição, acrescentando que ainda não foi decidido se haverá necessidade de cirurgia.

Também não há previsão de alta.

O médico Antônio Luiz de Vasconcellos Macedo, que estava viajando, está retornando ao Brasil para atender o presidente. Macedo foi quem operou Bolsonaro após o atentado a facada que o feriu no abdômen, em setembro de 2018, em um ato de sua campanha eleitoral.

Segundo o próprio Bolsonaro, esta é a segunda internação pelo mesmo motivo.

O presidente ficou quatro dias internado no mesmo hospital em julho do ano passado para se tratar.

Uma intervenção cirúrgica chegou a ser considerada, mas não foi necessária porque o intestino do presidente voltou a funcionar normalmente.

O quadro de suboclusão intestinal seria decorrente da facada e das quatro cirurgias a que ele foi submetido desde então.

O que é obstrução intestinal?

A obstrução pode ocorrer em qualquer parte do intestino (Getty Images)

Como o próprio nome já diz, o quadro está relacionado ao bloqueio de parte do intestino delgado ou do intestino grosso.

Essa obstrução impede a passagem de alimentos e enzimas digestivas que, ao longo dos intestinos, estão envolvidos em uma série de processos para extrair nutrientes e descartar aquilo que não será aproveitado pelo corpo, formando as fezes.

O gastroenterologista e cirurgião Flávio Quilici, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, explica que os intestinos têm uma estrutura parecida a de canos ou mangueiras.

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"Se você pisar na mangueira ou entrar alguma pedra ali dentro, isso causa um entupimento que não deixa a água passar", diz.

O mesmo raciocínio se aplica ao nosso tubo digestivo: caso alguma coisa fique emperrada ali dentro, não há como o conteúdo transitar pelos órgãos e seguir adiante.

Esse entupimento pode ser provocado por uma série de fatores, como doenças inflamatórias (caso de Crohn e diverticulite), tumores e até alimentos secos e duros (como sementes de jabuticaba, por exemplo).

No caso específico de Bolsonaro, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o quadro está de fato possivelmente relacionado às várias cirurgias que ele precisou passar após sofrer a facada em 2018.

De acordo com o médico Lúcio Lucas, chefe do centro cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês em Brasília, as operações no abdômen levam a um processo de cicatrização, que pode resultar na perda da movimentação do intestino.

"Para funcionar a contento, o tubo digestivo se mexe constantemente. E essa mobilidade pode ser prejudicada pela formação do processo cicatricial após os procedimentos cirúrgicos", contextualiza.

Um intestino mais "rígido" e com algumas estruturas cicatrizadas que grudam umas nas outras, portanto, pode sofrer uma espécie de torção, que obstrui parcialmente ou totalmente a passagem dos alimentos — é como se a mangueira do exemplo anterior se dobrasse por completo.

Vale ressaltar que essa é uma hipótese provável no caso do presidente, mas que ainda precisa ser confirmada pelos profissionais que o acompanham.

Problema intestinal de Bolsonaro pode estar relacionado com as cirurgias que ele realizou após sofrer a facada.

Esse problema pode evoluir aos poucos e só dar sinais mais contundentes no momento em que a situação está mais grave.

"Os soluços são um sintoma da obstrução, especialmente quando ela acontece em algumas regiões do intestino delgado", observa Lucas.

Essa condição também costuma estar relacionada com inchaço e dores fortes na barriga.

Quilici diz que é possível detectar a obstrução intestinal no exame físico, feito no próprio consultório, especialmente quando o paciente tem um histórico de cirurgias na região do abdômen.

"Podemos também fazer uma radiografia ou uma tomografia para encontrar essa obstrução", complementa.

Esses exames são de rotina quando um paciente é internado com os sintomas de Bolsonaro, segundo médicos ouvidos pela BBC News Brasil.

O que é feito após o diagnóstico?

Dependendo da causa, da gravidade e do local onde a obstrução ocorreu, o médico opta pelo tratamento conservador ou pela cirurgia.

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Lucas explica que, nos casos menos graves, é possível recorrer ao jejum, a algumas medicações específicas e a determinados procedimentos menos invasivos, como a aspiração do líquido acumulado em razão do entupimento.

O paciente então é monitorado por um tempo, até que sua situação melhore.

Quando o bloqueio do tubo digestivo é maior, geralmente é preciso abrir a barriga para desfazer a obstrução ou remover a estrutura que bloqueia e aflige o intestino.

Quilici e Lucas concordam que a cirurgia é relativamente simples e não costuma estar relacionada a complicações ou a um pós-operatório muito difícil.

"Quando a operação consiste em apenas desfazer a dobra no intestino, a recuperação é rápida, e o quadro costuma evoluir muito bem", aponta Lucas.

"Agora, se o diagnóstico e a intervenção demoram muito a acontecer, há o risco de a região intestinal afetada sofrer uma necrose, o que exige a remoção desse pedaço", acrescenta Quilici.

Com reportagem de André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo.

Bolsonaro faz lembrar que a história é feita também do 'imponderável' e golpes de sorte ou azar

O retrato de hoje é um, mas o filme da eleição é dinâmico como a política, as campanhas e a própria vida. Leia aqui o comentário de Eliane Cantanhede publicado hoje n'O Estado de S. Paulo.
 
A nova crise, a nova hospitalização e a possível nova cirurgia do presidente Jair Bolsonaro são um alerta: a eleição não está decidida e muita água ainda vai rolar embaixo da ponte até outubro, desde puros golpes de sorte a ataques sórdidos, sem descartar o “imponderável”, tão presente na história brasileira.

O próprio Bolsonaro é um exemplo de que o “imponderável” pode alterar o rumo de uma eleição, depois de sofrer em 2018 uma facada que, na mesma intensidade, ameaçou sua vida e sedimentou sua vitória.

José Sarney virou presidente porque Tancredo Neves morreu. Fernando Collor criou a ficção do “caçador de marajás” e foi o primeiro presidente eleito depois da ditadura militar. Itamar Franco jamais seria presidente pelas urnas, mas apostou certo ao virar vice de Collor e foi o homem certo na hora certa.

Fernando Henrique Cardoso, então senador, discutia se se elegeria deputado quando Itamar assumiu, delegou a ele o Itamaraty e a formação da equipe econômica e chancelou o Plano Real, que empurrou FHC rampa acima.

O ex-sindicalista Lula não se elegeu por um golpe de sorte, um plano bombástico ou o imponderável. Ele caiu de maduro. Depois de tentar em 1989, 1994 e 1998, o País e FHC julgaram em 2002 que chegara sua vez. A primeira ação de Lula foi a fake news da “herança maldita”, mas isso é outra história.

Dilma Rousseff não caiu de madura, como Lula, mas caiu de paraquedas, como Collor e, mais adiante, Jair Bolsonaro. Os improváveis. Primeira mulher presidente do Brasil, ela foi candidata com a queda em dominó de petistas como José Dirceu e Antonio Palocci... E porque Lula quis. Na campanha, teve uma mãozinha de mais um “imponderável”: a morte de Eduardo Campos num acidente aéreo.

Depois de recordes de popularidade, Dilma esfarelou pela personalidade, isolamento, erros crassos na política e na economia, até as pedaladas que a levaram ao impeachment. E veio Michel Temer, que foi presidente do MDB e, como FHC, tinha biografia, livros publicados e era forte no mundo político, não nas urnas. Chegou lá porque trocou os tucanos pelo PT e aboletou-se na vice de Dilma.

Em 2022, Bolsonaro, fruto de internet, marketing e desgaste da política, agora tem sequelas. Lula, que foi preso, tem mensalão e petrolão nas costas. Sérgio Moro virou, simultaneamente, fato novo e vidraça. Ciro Gomes parece andar para trás. Governador do principal Estado, João Doria enfrenta forte rejeição.

O retrato de hoje é um, mas o filme da eleição é dinâmico como a política, as campanhas e a própria vida. Ninguém ganha ou perde eleição de véspera, muito menos dez meses antes.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do TeleJornal "Globo News Em Pauta". 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Bolsonaro joga com religiões por popularidade, diz 1ª mulher a liderar conselho de igrejas cristãs

Os evangélicos no Brasil são classicamente divididos entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a Universal).

A pastora luterana Romi Márcia Bencke, que estuda o diálogo interreligioso (Arquivo Pessoal)

A pastora luterana Romi Márcia Bencke defende que o termo "evangélicos" é mal compreendido no Brasil contemporâneo. "Quem são os sujeitos desse universo gigantesco chamado evangélico?", diz a líder religiosa, reconhecida pela postura progressista.

"Assim como a Igreja Católica é extremamente plural com infinitas igrejas dentro de uma grande igreja, também temos (evangélicos) conservadores, tradicionais, progressistas… Tem de tudo."

Bencke afirma que o segmento se tornou amplamente conhecido com o advento das chamadas igrejas neopentecostais, mas os protestantes já estão presentes há muito tempo no Brasil. Ela cita dificuldades para a denominação ser reconhecida no período do império e a repressão ocorrida no governo Getúlio Vargas. "Isso fez com que tivéssemos uma presença muito discreta na sociedade brasileira, embora não menos relevante", explica.

Os evangélicos no Brasil são classicamente divididos entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a Universal).

A líder religiosa observa que os mais conservadores chamam mais atenção, mas recorda que, ao longo da carreira, trabalhou em comunidades temas como direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. "E isso nunca foi problema", ressalta. "Tem abertura para debate."

Para ela, dentro das igrejas a polarização ideológica e política do país está presente "muito fortemente". E isso tem afetado principalmente as igrejas menores. "Tudo é ideologizado. Por exemplo: tu vais falar do Evangelho e que Jesus caminhava com as pessoas pobres e perdoava a mulher pega em adultério, coisa e tal, aí já vira um 'ó, o que está defendendo'. É um negócio difícil hoje você conseguir fazer um trabalho comunitário", afirma.

Ao longo da carreira, a gaúcha atuou em defesa de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres desde os tempos em que liderava uma comunidade em São Sepé (RS), atuou no auxílio a migrantes e trouxe para a pauta de suas comunidades temas ligados à cidadania, às relações de gênero e à modernidade desde que foi ordenada sacerdote da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em 1999.

Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). Tornou-se, então, uma voz pública nos debates brasileiros.

"A sociedade brasileira no dia a dia tem uma tendência mais conservadora. Ou da dupla moral, que é pior do que o conservadorismo. O conservador diz o que pensa. Eu posso não concordar, mas é o que ele pensa. O problema é a dupla moral: o sujeito que defende a família e tem duas famílias desconhecidas", argumenta.

A pastora luterana afirma que a polarização no Brasil está gerando "uma teologia bem vazia" que não abarca as contradições humanas da realidade. "A gente ter divergências, posições diferentes, visões de mundo diferentes é ok. Mas tem ido além do pensar diferente."

"A polarização gera violência, divide comunidades, divide famílias: essa é a realidade que estamos vivendo hoje. As pessoas que têm papel de liderança preferem não tocar nesses temas. Só que as pessoas se alimentam por redes sociais, entram no YouTube do influencer não sei das quantas, circulam nesses grupos do Telegram, do WhatsApp. E isso se reflete no convívio das igrejas."

Bencke conta que muitos pastores preferem não tocar em temas considerados delicados para evitar cisões em suas comunidades.

Ideologias

Bencke explica que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais. (Arquivo Pessoal)

A pastora relata que missionários conservadores têm recorrido a ferramentas didáticas para incutir conceitos como "ideologia de gênero" e "ameaça comunista" na sociedade.

"Dizem: 'toma cuidado, querem que seu filho vire menina'. Claro, uma mãe que não está muito instruída e não está a par desses debates não vai querer isso. E eles (os missionários) manipulam muito e nisso têm muita força. Fazem cartilha, desenho animado, tudo para explicar. Usam metodologia da educação popular. Usam a linguagem popular e vão inflando o temor nas pessoas. Eu não responsabilizo a trabalhadora doméstica que pensa 'meu Deus, querem que a menina vire menino'", conta.

Bencke afirma que responsabiliza, sim, "quem, de maneira muito consciente, muito ideológica, promove esse tipo de insegurança e de medo na sociedade".

"A sociedade teve mudanças e esses temas estão no dia a dia. As pessoas têm de falar sobre eles. Temos de conversar sobre esses assuntos, mas esses grupos (conservadores) impedem aquilo que é o mais importante numa sociedade democrática: a gente poder falar, debater livremente sobre todos os temas. E eles impedem com muito autoritarismo e repressão que essa discussão aconteça", diz.

"A Frente Parlamentar Evangélica, quando o [presidente Jair] Bolsonaro ganhou, lançou um documento que era como se fosse uma proposta de governo. E o foco era a educação e a cultura. Que é bem o que a gente está vendo: eles estão fazendo todo o desmonte da educação e da cultura. São as pautas prioritárias deles e isso é pensado", comenta. "Não é ingênuo."

Política e fé

Bencke argumenta que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais, e não os representantes das igrejas neopentecostais.

"O ministro da Educação (Milton Ribeiro) é da IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil). André Mendonça (novo ministro do Supremo Tribunal Federal) também. Quer dizer: são do presbiterianismo histórico os que estão lá", diz. "A gente tende a responsabilizar Edir Macedo, Silas Malafaia — e não estou aqui defendendo esses líderes, são pessoas muito controversas."

Bencke define a IPB como uma igreja "bem conservadora mas muito intelectualizada". "Pode ser uma intelectualidade que a gente discorda, mas é intelectualizada. E classe média alta. Esse é o estilo da IPB. Já as igrejas pentecostais, elas servem mais como curral eleitoral, espaço para fazer propaganda política. Mas quem pensa e ocupa (o poder) é uma determinada elite de protestantes. Uma parcela masculina, branca, com dinheiro. É essa que pensa", afirma.

Em sua visão, o presidente Bolsonaro joga com as religiões, pois não se define entre católicos e evangélicos, é "um híbrido".

"Eu acho que o Bolsonaro é um baita de um esperto. Vem de uma tradição católica, daqueles católicos como tem muitos no Brasil que se dizem católicos mas não são frequentadores. Então se batizou nas águas do Rio Jordão (em cerimônia conduzida pelo político e pastor Everaldo, da Assembleia de Deus, em 2016, durante viagem a Israel) um pouquinho antes de se tornar candidato, como se tivesse recebido uma unção para isso", recorda a pastora.

"Mas olha só: quando um novo fiel pentecostal quer ser batizado, tem de renunciar ao seu batismo anterior para poder aceitar o novo, porque isso simboliza a conversão. Bolsonaro não fez isso. Ele manteve um pé no catolicismo e um pé no pentecostalismo. Com isso ele consegue jogar com as duas maiores vertentes do cristianismo no Brasil. Ele representa bem esse híbrido religioso do Brasil, um pouco disso, um pouco daquilo", reflete a pastora.

"E joga também com os grupos ultraconservadores da Igreja Católica Romana, tem adesão desses grupos. Isso garante a ele a popularidade, garante para ele um certo aspecto de que ele é popular. Quando vai aos cultos, diz que é evangélico, não é católico. Quando vai à Igreja Católica, diz que é católico, e não evangélico."

Ministro "terrivelmente evangélico"

Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) (Arquivo Pessoal)

Ainda sobre o avanço de grupos cristãos nas esferas de poder sob o governo Bolsonaro, ela diz que a escolha de André Mendonça como o "ministro terrivelmente evangélico" vai contra a exigência de competências técnicas e pré-requisitos constitucionais.

"Como seria se o presidente fosse candomblecista e dissesse que 'quero um ministro terrivelmente candomblecista'? Ou 'uma ministra terrivelmente feminista?' Não. A pessoa tem de estar preparada para exercer o cargo", comenta.

"Isso é muito complicado aqui no Brasil. A gente fala sobre laicidade do Estado, mas isso é um monstro que ninguém sabe o que é que significa", comenta.

Mulheres à frente das igrejas

Como a primeira mulher à frente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, Bencke afirma não sentir discriminação no dia a dia. Mas ressalta que "há contextos que precisam ser considerados".

Ela relata que assumiu o cargo em um cenário de crise institucional da entidade e acha que isso facilitou sua entrada. "Eu vejo que, no que diz respeito às igrejas, esses ambientes de crise são quando elas se abrem para a mulher. Quando está tudo bem, geralmente são os homens que ocupam os espaços", analisa.

Não porque esperam que só uma mulher pode resolver. "Mas se não resolver, é muito fácil dizer que 'a fulana afundou o projeto'. Que é de todos, né? Há uma visão bem patriarcal, bem machista sobre o papel das mulheres. Mas, no convívio do dia a dia, nunca me senti desrespeitada."

Na Campanha da Fraternidade lançada no início deste ano, a pastora se viu alvo de manifestações de ódio de grupos conservadores. Projeto anual da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), organismo católico, a campanha tem caráter ecumênico e teve Bencke como uma das articuladoras.

O texto-base da campanha trouxe a necessidade de defesa de minorias — pessoas LGBT, populações indígenas, violência contra mulheres, perseguição a defensores dos direitos humanos.

"Teve umas lives que foram feitas pelo Centro Dom Bosco (organização católica conhecida por posturas ultraconservadoras). Eles colocavam minha imagem e chamavam (os seguidores) para uma guerra, uma cruzada, a ideia de banir o inimigo — o inimigo era personalizado simbolicamente pela minha pessoa. Isso foi muito forte, muito impactante", recorda ela.

Meses depois, ela avalia o episódio como "um processo de aprendizagem", embora enfatize que as agressões — suscitadas pela exposição nas redes sociais — foram "bem violentas".

Procurado pela reportagem, o Centro Dom Bosco enviou uma nota assinada por Alvaro Mendes, vice-presidente da entidade e autor dos vídeos sobre a pastora. Segundo ele, "o Conic é uma organização revolucionária minúscula de extrema-esquerda e não representa nem os católicos nem os evangélicos".

"O texto-base foi elaborado com o intuito de difundir as ideologias da Teologia Ecofeminista da Libertação dentro das paróquias e ofendeu os católicos de todo o país. Nós só queremos que a Igreja seja respeitada e que a quaresma seja vivida de uma forma santa e não politizada", afirmou Mendes.

"Somos contra qualquer tipo de agressão. Ao mesmo tempo acreditamos que o argumento de 'agressões virtuais' soa como um vitimismo que deve ser desconsiderado. Trata-se de um recurso utilizado para tentar desqualificar qualquer argumento contrário. O foco do debate deve ser mantido dentro do campo argumentativo e nos causa estranheza o fato de a Romi Bencke nunca ter vindo a público para defender a sua versão do texto-base", completou.

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 25 dezembro 2021

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O que esperam de 2022 famílias brasileiras que vão passar o Natal nas ruas

Vestido de Papai Noel, com um rodinho numa mão e uma garrafa de produto de limpeza na outra, Gleidson Oliveira Lima limpa para-brisas e janelas de carros em troca de moedas no centro de São Paulo.

Auxílio Brasil, eleições, inflação, emprego e moradia estão entre as preocupações dos mais vulneráveis. Na foto, Gleidson Oliveira Lima em frente a sua barraca sob o Minhocão, em São Paulo (Thaís Carrança / BBC Brasil)

Aos 31 anos, o baiano vive com a esposa e a filha de 4 anos em uma barraca de camping coberta por uma lona embaixo do Elevado João Goulart, mais conhecido como Minhocão.

"Nunca roubei, nunca matei, nunca peguei nada de ninguém. Sou analfabeto, não sei ler nem escrever", conta Gleidson, que mora nas ruas do centro há cinco anos.

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Consumo de pé de galinha em alta e outros 5 dados que revelam retrato da fome no Brasil

"Vamos passar o Natal aqui mesmo. Infelizmente, nós que somos moradores de rua não temos para onde ir, mas muita gente ajuda a gente. Minha esposa vende bala no farol e, graças a Deus, não nos falta nada", diz o limpador de vidros.

Apesar de seu otimismo e gratidão pela ajuda que recebe, evidentemente faltam a Gleidson, sua esposa e filha muitas coisas.

A família dele é uma de milhares que devem passar este Natal e a virada do ano nas ruas ou em abrigos e ocupações precárias em todo o Brasil. O número é crescente, em meio ao desemprego elevado e perda de renda que, durante a pandemia de Covid-19, têm afetado principalmente a parcela mais pobre e informalizada da população.

Segundo pesquisa CNT/MDA divulgada em dezembro, 62% dos brasileiros dizem perceber um aumento do número de pedintes e de moradores de rua em suas cidades.

Conforme dados do Ministério da Cidadania, havia 142 mil famílias brasileiras em situação de rua registradas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal em setembro deste ano, 34 mil delas somente na capital paulista.

Em seu estudo mais recente sobre o tema, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estimou a população de rua brasileira em 222 mil pessoas em março de 2020. O instituto alertava, no entanto, que a tendência do número era de alta devido à crise econômica acentuada pela pandemia.

O padre Júlio Lancellotti, que atua há mais de 30 anos junto à população em situação de rua de São Paulo, relata haver um aumento das famílias vivendo nas ruas no período recente — normalmente, a população de rua é formada em sua maioria por homens sozinhos.

"Na convivência com a população de rua, a gente percebe claramente o aumento de grupos familiares, de mulheres com crianças e de jovens — pessoas que estão longe de seus grupos familiares buscando algum trabalho", diz o pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, localizada na Mooca, zona leste de São Paulo.

"Isso é resultado da crise econômica que estamos vivendo, agravada pela questão da pandemia, a inadimplência, o desemprego, a inflação alta, a impossibilidade de pagar aluguel. Todas essas questões que são estruturais e conjunturais do país", afirma o religioso.

'A gente não está na rua porque quer'

Foi a falta de oportunidades em Porto Alegre que fez a família de Marlene Amaral, de 36 anos, e José Eduardo, de 24, chegar a São Paulo com dois de seus três filhos.

Na cidade há uma semana e meia, a família atualmente divide um quarto em um hotel no centro da cidade. Mas, com dificuldades para pagar a diária de R$ 65, o casal espera conseguir em breve uma barraca. Com isso, a pequena família deve passar o fim de ano na rua.

'A gente não está na rua porque quer, é porque está difícil', diz o malabarista José Eduardo (Thaís Carrança / BBC Brasil)

"No Sul estava complicado, ele [José Eduardo] é malabarista e lá é ruim para trabalho. Aqui [em São Paulo] está sendo ruim também, por isso estamos trabalhando com venda de balas e paçocas, cada um com uma das crianças para podermos fazer um dinheiro. Está bem complicado", contou Marlene à BBC News Brasil, na Praça da República.

Vivendo apenas com o dinheiro dos doces e uma pensão a que Marlene tem direito por ser viúva de seu primeiro casamento, a família tem se alimentado com doações.

"Queremos comprar uma barraca para conseguir juntar um pouco mais de dinheiro para ir embora para Belo Horizonte", conta a gaúcha.

"A gente não está na rua porque quer, é porque está difícil. Estamos indo para BH porque lá a gente consegue uma moradia mais barato", diz José Eduardo.

Críticos a Bolsonaro, ele e Marlene dizem ter esperança de que as eleições de 2022 tragam mudanças.

"Se a inflação diminuir, se a gente puder ir ao mercado e as coisas estiverem mais baratas — porque a gente vai no mercado todo dia, a gente que não tem onde morar não compra coisa para o mês, se não estraga. Acho que, mudando o governo, isso aí vai mudar, pelo menos para a gente conseguir se alimentar, que é o básico", afirma o malabarista.

'Auxílio emergencial ajudou muita gente'

Jaqueline Rodrigues da Silva, de 27 anos e mãe de uma menina de 3 anos, com quem mora num hotel social da Prefeitura, vê com bons olhos o atual governo por um motivo principal: o auxílio emergencial que ela recebeu neste ano e no passado.

Com valor maior do que o Bolsa Família a que ela tem direito, Jaqueline afirma que o auxílio (que em 2020 variava de R$ 600 a R$ 1.200) fez uma diferença grande na sua vida.

'Esse auxílio ajudou bastante', diz Jaqueline, que atualmente mora com marido e filha em um hotel social da prefeitura (Thaís Carrança / BBC BRASIL)

"Esse auxílio ajudou bastante o pessoal, só não gostei que quem pegava o auxílio emergencial não pega esse Auxílio Brasil, só quem tem Bolsa Família. Podia dar para quem necessita também", sugere.

A crítica de Jaqueline tem base: segundo o governo, o novo Auxílio Brasil deve atender 17 milhões de pessoas, zerando a fila do Bolsa Família. O número, no entanto, é inferior aos 39 milhões de famílias que receberam o auxílio emergencial em 2021.

A paulista de Osasco diz que não votou em Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e agora ainda está decidindo em quem votar em 2022. Ela gostaria que o deputado federal André Janones (Avante-MG) — que foi bastante atuante na aprovação do auxílio emergencial e tem presença forte nas redes sociais — fosse candidato.

Jaqueline está no hotel social há 15 dias, antes, morou na rua. "Fui morar na rua por briga familiar, tem um mês. Eu não aguentei, saímos eu, meu marido e minha filha", conta.

De acordo com o Censo da População em Situação de Rua 2019, realizado pela Prefeitura de São Paulo, conflitos familiares são a principal razão para as pessoas irem parar nas ruas, apontada por 40,3% dos entrevistados, seguida por dependência química (33,3%), perda de trabalho (23,1%) e perda de moradia (12,9%).

Uma nova edição do Censo paulistano da população de rua estava prevista para 2023, mas foi antecipada devido à pandemia e está sendo realizada neste momento. A coleta de dados foi iniciada em outubro e os primeiros resultados devem ser divulgados ao final de janeiro de 2022, segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.

A edição de 2019 contabilizou 24,3 mil pessoas em situação de rua em São Paulo, sendo 12,6 mil vivendo em vias públicas e 11,7 mil em centros de acolhida.

'Ele tentou me matar, então saí da minha cidade'

Marcela*, de 25 anos, mãe de três filhos e grávida de 8 meses do quarto, mora há três meses numa ocupação precária na região central de São Paulo.

"Era uma garagem de ônibus, onde invadiram e fizeram os barracos de madeira, acho que ali vivem hoje umas 15 famílias, todas com crianças", contou à BBC News Brasil, enquanto vendia balas acompanhada dos filhos em uma grande avenida.

O nome dela foi trocado pois Marcela veio parar em São Paulo fugindo de um ex-companheiro que a agredia. "Ele não aceita a separação, eu vivi muita violência doméstica, ele tentou me matar, então eu resolvi sair da minha cidade por esse motivo", conta.

Após um período morando na rua, ela conseguiu um espaço na ocupação. Um cômodo, que ela divide com as três crianças, que em breve serão quatro.

"É um barraco, tem uma cama, uma cômoda e um sofá. E só, mais nada. Eu não cozinho porque não tenho fogão nem geladeira, então eu como na rua, de doação ou quando eu consigo, compro um marmitex", relata.

Déficit habitacional crescente

Apesar de não morar mais na rua, Marcela faz parte de um outro número crescente: o do déficit habitacional brasileiro.

Segundo a Fundação João Pinheiro, instituição de pesquisa ligada ao Governo de Minas Gerais, em 2019, o déficit habitacional no país era de 5,9 milhões de moradias.

Esse é o número mais recente disponível para o indicador, que tem como base a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Em 2019, o déficit habitacional no país era de 5,9 milhões de moradias, segundo a Fundação João Pinheiro (Thaís Carrança / BBC Brasil)

Desse total, 51,7% são domicílios com renda inferior a três salários mínimos que gastavam mais de 30% dela com aluguel; 25,2% são habitações precárias — aquelas improvisadas em carros, barcos, barracas ou casas sem parede de alvenaria — e 23,1% são domicílios com coabitação, quando duas ou mais famílias convivem juntas num mesmo ambiente.

O barraco de madeira na antiga garagem de ônibus onde vive atualmente Marcela se enquadra no segundo caso.

"São famílias que não conseguem ter uma moradia adequada, não conseguem ter acesso ao mercado imobiliário, porque não têm renda suficiente, não têm trabalho, não têm acesso a crédito", diz Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

"E sabemos que, nesses dois anos da pandemia, a história foi muito ruim. As famílias foram severamente afetadas, principalmente as de menor renda e as que já viviam na informalidade, então a possibilidade de termos esses números crescentes é real", afirma a professora, sobre a provável tendência de alta do déficit habitacional em 2020 e 2021.

Para Castelo e também para o padre Júlio Lancellotti, o problema da moradia é agravado pelo desmonte das políticas públicas para o setor, com praticamente nenhuma habitação entregue pelo governo nos últimos anos para a chamada Faixa 1 do antigo programa Minha Casa, Minha Vida, rebatizado pela gestão Jair Bolsonaro como Casa Verde e Amarela.

Destinada a famílias com renda de até R$ 1,8 mil, a Faixa 1 era financiada a partir de recursos do Tesouro, que se tornaram escassos diante da crise fiscal e do limite imposto pelo teto de gastos.

"As políticas existentes hoje são para pessoas que têm capacidade de endividamento, quem não tem essa capacidade, como a população de rua, não é atingida", diz Lancelotti.

"Estamos falando de uma parcela da população que vive num nível de vulnerabilidade muito grande. Hoje não há atendimento para esse público na política habitacional", avalia Castelo.

"A forma de atingir esse público é com aluguel social e renda mínima, pois são pessoas que não têm renda e, até se você der uma moradia, elas terão dificuldade de arcar com os custos. Então é preciso uma política social abrangente que dê conta dessa situação."

O Ministério do Desenvolvimento Regional informou à BBC News Brasil que, desde 2019, mais de 1,1 milhão de moradias foram entregues para pessoas de diversas faixa de renda.

Ainda segundo a pasta, desde o lançamento do Casa Verde e Amarela, em agosto de 2020, cerca de 45 mil unidades da Faixa 1 do programa foram entregues a famílias de baixa renda. O ministério diz ainda que a modalidade de locação social do programa, anunciada por ocasião de seu lançamento, continua "em estudo".

A Prefeitura de São Paulo, por sua vez, informou que acaba de lançar um projeto inédito de PPP (parceria público-privada) para oferta de moradia e acolhimento para população em situação de rua.

Segundo a prefeitura, o projeto prevê a implantação de 1.747 unidades, distribuídas em 15 empreendimentos, que beneficiarão mais de 3,7 mil pessoas.

A gestão municipal destacou também uma série de ações que tem realizado para o atendimento da população em situação de rua em meio à pandemia, como a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e limpeza, refeições prontas e água.

Eleições e sonhos para 2022

E o que Marcela espera desse Natal?

"Para ser bem sincera, eu não sei dizer, mas espero coisa boa, porque Deus nunca me abandonou. O importante para mim é não faltar o que comer, mas esse Natal vai ser diferente, por que eu não vou passar com meus parentes, com meus pais", lamenta ela.

Para o próximo ano, além da chegada do quarto filho, Marcela sonha com uma casa melhor.

"Se Deus quiser — e ele quer — eu vou conseguir um lugar melhor, porque ali [na ocupação] não é um lugar adequado para um bebê recém-nascido, tem muito rato. Primeiro de tudo é ter um lugar para viver com meus filhos em segurança e depois, quando meu bebê estiver um pouco mais crescido, arrumar um trabalho", deseja a mãe de família para o próximo ano.

Marcela diz que pretende com certeza votar nas eleições de 2022.

"O que a gente precisa mesmo é de educação, segurança, as pessoas precisam de um lugar para morar. Agora com Bolsonaro, a coisa melhorou quando aumentou o auxílio — nossa, ajudou muito!", diz ela, que recebeu em 2020 os R$ 1.200 destinados a mães chefes de família.

Com a redução do valor em 2021, no entanto, as coisas ficaram "bem piores", diz ela. Assim, Marcela ainda não sabe em quem vai votar no próximo ano. "Tem que ver as propostas, o que vão oferecer para a gente de melhor", afirma.

Gleidson Oliveira Lima, que limpa vidros vestido de Papai Noel, enquanto vive com a família embaixo do viaduto, diz que nunca votou. "Eu não tenho documento nenhum", explica.

Ainda assim, ele não poupa críticas à atual gestão federal.

"Depois que o Bolsonaro entrou, o Brasil mudou", afirma. Para melhor ou para pior? "Para pior, piorou para todo mundo. O Lula ajudou bastante a gente. Eu dou valor para o Lula."

*Nome fictício por se tratar de uma vítima de violência doméstica.

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo, em 24 dezembro 2021, 05:54 -03

O futuro é agora

Sistema eleitoral está no topo da lista de problemas perenes de nossa democracia,exigindo enfrentamento imediato

O Natal é depois de amanhã e o ano novo está próximo. Muitos aproveitam para um retrospecto ou para alinhar propósitos. Prefiro falar do futuro, um grande desafio, já que em nosso país nada é hoje previsível nem garantido, e no próximo ano passaremos por uma troca geral de poderes no Executivo e no Legislativo.

Tendo de enfrentar em nosso dia a dia uma sucessão de impasses, é impossível planejar bem o amanhã quando não se sabe como terminará o dia, seja do ponto de vista sanitário, de segurança jurídica ou de segurança econômica. E isto mesmo sobre questões consensuais, como a urgência de adotar um programa de renda básica ou de aumentar a qualidade, a eficiência e a honestidade do serviço público.

Incerteza sobre o futuro não justifica inação. Temos um conjunto de problemas permanentes que, enquanto não forem reconhecidos e bem debatidos, jamais serão enfrentados, negociados e compactuados. O contexto de uma campanha presidencial pode ser ocasião para essa reflexão que, infelizmente, não está sendo encarada pelas candidaturas já anunciadas.

Tenho salientado, neste espaço, a natureza multidimensional da crise que nos atinge – e que o povo brasileiro está enfrentando com coragem – diante da omissão de parte relevante de nossas instituições. O cerne da crise é de natureza política e a ela se sobrepõe uma crise de descontrole da política econômica, agravada pelos efeitos da pandemia de covid-19.

Os efeitos imediatos e a evolução da pandemia teriam sido mitigados, com alcance muito mais decisivo, se o combate à sua disseminação não fosse transformado em anátema e até mesmo demonizado pelo governo. O equilíbrio fiscal e a retomada do crescimento, herdados do governo Temer, não teriam sido tão negativamente afetados pela restrição forçada das atividades produtivas, se a conduta da política econômica não fosse tão equivocada.

Sem uma drástica retomada de rumo pelo governo, continuaremos a enfrentar inflação alta, juros elevados, endividamento sem controle, retrocesso do investimento, cujo somatório redunda em castigar o povo brasileiro, especialmente os setores mais vulneráveis. Sem uma reviravolta na interferência presidencial sobre o combate à pandemia que, ao fim e ao cabo, redunda em abrir as portas para a invasão de novas variantes de alto risco da covid-19, não reverteremos seus impactos negativos ascendentes sobre a atividade econômica e sobre as defesas imunológicas de cada um dos brasileiros.

Está, em primeiro lugar, nas mãos do governo federal voltar à política econômica para reorientá-la no rumo da estabilidade, da recuperação da confiança e do investimento. E isto não é viável, já que nossas instituições fundamentais têm-se orientado por agendas divergentes, e muitas vezes incompatíveis, que acabam se anulando reciprocamente.

Há quem aponte, como causa da crise política, um conflito de interesses de tal modo grave que se tornou impossível adotar as reformas consideradas essenciais, como a simplificação e a maior eficiência do regime tributário, a modernização dos serviços públicos ou a limitação ao estatismo.

Ao contrário, nosso Congresso tem aprovado um número alto de projetos de lei. As emendas constitucionais tornaram-se quase corriqueiras e efetuadas em poucos dias. Executivo e Legislativo nem sempre têm tido dificuldade em aprovar legislação apoiada pelo governo, por sua base parlamentar e pela oposição. Mas, como regra, poucas vezes coincidem com os interesses e necessidades vitais dos cidadãos.

Isto se tem manifestado em profunda insatisfação popular e em desconfiança do cidadão com respeito a sua representação política.

Já que uma democracia representativa se baseia no princípio de que a legitimidade das decisões de interesse coletivo devem ser tomadas por representantes eleitos pelos cidadãos, e refletir sua vontade, é necessário que algo de muito errado esteja ocorrendo na maneira como os representantes são escolhidos pelo eleitor. Simplesmente, o eleitor não sabe nem pode saber para quem vai seu voto, e o eleito não sabe bem de onde vêm o seus.

O sistema eleitoral – de voto proporcional em lista partidária aberta – constrói um muro intransponível entre o eleitor e seu representante, já que, segundo estimativas recentes, mais de 75% dos mandatários dependem dos votos de um número indeterminado de candidatos para se eleger. Em termos práticos, o cidadão não sabe a quem recorrer e seus representantes sentem-se livres para representar os interesses que bem lhes aprouver.

Se aceitarmos a premissa de que, com políticas governamentais adequadas nas dimensões econômica, sanitária e social, o impacto da pandemia sobre o sistema produtivo não teria fugido do controle, devemos convir que o sistema eleitoral está no topo da lista de problemas permanentes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato. Temos, portanto, razões para demandar dos candidatos ao nosso voto uma definição clara a respeito do seu compromisso com a necessidade de reabrir o debate sobre representação proporcional ou majoritária.

Porque o futuro não espera.

José Serra, o autor deste artigo, é Senador (PSDB) pelo Estado de São Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de Sâo Paulo, em 23.12.21

Uma democracia cada vez menos democrática

Quanto mais cresce o financiamento público aos partidos, mais aumenta a sua distância em relação aos cidadãos

“A democracia tem um custo”, repetem os apologistas do financiamento público aos partidos. E ele só aumenta. O volume aprovado para 2022 não tem precedentes. O paradoxo é que quanto maior é o tal custo da democracia, pior é a sua qualidade – quanto mais recursos os partidos tomam aos cidadãos, mais aumenta a distância entre eles. Segundo o Datafolha, a atual legislatura quebrou um recorde de rejeição: apenas 10% dos entrevistados aprovam a atuação do Congresso.

Entre 1995 e 2018, os gastos anuais do Fundo Partidário saltaram 9.766%. O Fundo Eleitoral, criado em 2017 após o STF declarar inconstitucionais as doações por empresas, deveria ser transitório, até que os partidos reorganizassem seu financiamento. Mas ele só cresceu: de R$ 1,7 bilhão para quase R$ 5 bilhões. Em 2022, a soma dos Fundos Partidário e Eleitoral será de R$ 5,96 bilhões – 92,5% maior do que no último ano de eleições federais, 2018. Nesse período, nada houve que justificasse tal escalada. Ao contrário, houve uma pandemia que despejou milhões de brasileiros na miséria.

Enquanto o financiamento aos partidos cresce, o retorno à sociedade encolhe. Em 2022, os investimentos federais – em infraestrutura, escolas, postos de saúde, defesa, pavimentação, pesquisa –, que há dez anos chegaram a R$ 201 bilhões, serão de R$ 44 bilhões, o menor valor da história. Os partidos receberão mais do que os investimentos para Saúde (R$ 4,7 bilhões) ou Educação (R$ 3,7 bilhões), e quase seis vezes mais do que o saneamento básico.

Os partidos fabricaram para si um modelo extrativista em que sorvem bilhões dos contribuintes sem precisar cultivar apoiadores. É difícil imaginar um mecanismo mais bem talhado para produzir uma crise de representatividade permanente e crescente.

A subvenção é injusta, porque obriga o cidadão a sustentar legendas com as quais não raro antagoniza, e corrosiva, porque os políticos se habituam a aliciar eleitores nas eleições e depois lhes dão as costas para administrar seus feudos controlados por poucos caciques que, por sua vez, não são pressionados a prestar contas nem por seus filiados nem pelo Poder Público.

Segundo a Transparência Partidária, nos últimos dez anos o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de meros 24%. Entre 2018 e 2020, os partidos perderam 1 milhão de filiados. Dos que restam, apenas 0,1% faz contribuições frequentes e 8 em 10 contribuintes se concentram em duas legendas: PT e Novo.

Desde a redemocratização, o número de partidos só cresceu. Hoje são mais de 30 e cerca de 80 estão no forno. Não é a pluralidade ideológica que explica essa proliferação, e sim as oportunidades de negócios.

Nutrindo-se do Estado como parasitas, fechados em si, dispensados de cativar corações e mentes para seus programas de governo, os partidos não levam a sério a formulação desses programas. A maioria forma apenas um conglomerado de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativistas voltado a formar alianças, não pragmáticas e ideológicas, mas de conveniência, em geral para angariar sinecuras do governo de turno e satisfazer demandas paroquiais.

A política nacional está presa num círculo vicioso. A Constituição favoreceu a valorização dos direitos coletivos em detrimento dos direitos e deveres individuais. Os cidadãos atribuem enorme peso ao Estado como provedor de suas necessidades. Mas a distância que os separa de seus representantes é cada vez maior. A política é cada vez mais vista como uma atividade de oportunistas e corruptos. Nas eleições, ideias e programas são substituídos pelo marketing, e os eleitores oscilam entre a apatia e salvacionismos autoritários.

O fim do financiamento aos partidos seria só um expediente entre outros – como a substituição do sistema eleitoral proporcional pelo distrital ou cláusulas de barreira mais rigorosas – para moralizar e qualificar a representação democrática. Mas já seria um primeiro passo para reduzir o abismo entre a política e a sociedade civil e obrigar os eleitos a pôr os pés no chão rude e áspero que seus eleitores pisam todos os dias.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de dezembro de 2021 | 03h00