sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O que esperam de 2022 famílias brasileiras que vão passar o Natal nas ruas

Vestido de Papai Noel, com um rodinho numa mão e uma garrafa de produto de limpeza na outra, Gleidson Oliveira Lima limpa para-brisas e janelas de carros em troca de moedas no centro de São Paulo.

Auxílio Brasil, eleições, inflação, emprego e moradia estão entre as preocupações dos mais vulneráveis. Na foto, Gleidson Oliveira Lima em frente a sua barraca sob o Minhocão, em São Paulo (Thaís Carrança / BBC Brasil)

Aos 31 anos, o baiano vive com a esposa e a filha de 4 anos em uma barraca de camping coberta por uma lona embaixo do Elevado João Goulart, mais conhecido como Minhocão.

"Nunca roubei, nunca matei, nunca peguei nada de ninguém. Sou analfabeto, não sei ler nem escrever", conta Gleidson, que mora nas ruas do centro há cinco anos.

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"Vamos passar o Natal aqui mesmo. Infelizmente, nós que somos moradores de rua não temos para onde ir, mas muita gente ajuda a gente. Minha esposa vende bala no farol e, graças a Deus, não nos falta nada", diz o limpador de vidros.

Apesar de seu otimismo e gratidão pela ajuda que recebe, evidentemente faltam a Gleidson, sua esposa e filha muitas coisas.

A família dele é uma de milhares que devem passar este Natal e a virada do ano nas ruas ou em abrigos e ocupações precárias em todo o Brasil. O número é crescente, em meio ao desemprego elevado e perda de renda que, durante a pandemia de Covid-19, têm afetado principalmente a parcela mais pobre e informalizada da população.

Segundo pesquisa CNT/MDA divulgada em dezembro, 62% dos brasileiros dizem perceber um aumento do número de pedintes e de moradores de rua em suas cidades.

Conforme dados do Ministério da Cidadania, havia 142 mil famílias brasileiras em situação de rua registradas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal em setembro deste ano, 34 mil delas somente na capital paulista.

Em seu estudo mais recente sobre o tema, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estimou a população de rua brasileira em 222 mil pessoas em março de 2020. O instituto alertava, no entanto, que a tendência do número era de alta devido à crise econômica acentuada pela pandemia.

O padre Júlio Lancellotti, que atua há mais de 30 anos junto à população em situação de rua de São Paulo, relata haver um aumento das famílias vivendo nas ruas no período recente — normalmente, a população de rua é formada em sua maioria por homens sozinhos.

"Na convivência com a população de rua, a gente percebe claramente o aumento de grupos familiares, de mulheres com crianças e de jovens — pessoas que estão longe de seus grupos familiares buscando algum trabalho", diz o pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, localizada na Mooca, zona leste de São Paulo.

"Isso é resultado da crise econômica que estamos vivendo, agravada pela questão da pandemia, a inadimplência, o desemprego, a inflação alta, a impossibilidade de pagar aluguel. Todas essas questões que são estruturais e conjunturais do país", afirma o religioso.

'A gente não está na rua porque quer'

Foi a falta de oportunidades em Porto Alegre que fez a família de Marlene Amaral, de 36 anos, e José Eduardo, de 24, chegar a São Paulo com dois de seus três filhos.

Na cidade há uma semana e meia, a família atualmente divide um quarto em um hotel no centro da cidade. Mas, com dificuldades para pagar a diária de R$ 65, o casal espera conseguir em breve uma barraca. Com isso, a pequena família deve passar o fim de ano na rua.

'A gente não está na rua porque quer, é porque está difícil', diz o malabarista José Eduardo (Thaís Carrança / BBC Brasil)

"No Sul estava complicado, ele [José Eduardo] é malabarista e lá é ruim para trabalho. Aqui [em São Paulo] está sendo ruim também, por isso estamos trabalhando com venda de balas e paçocas, cada um com uma das crianças para podermos fazer um dinheiro. Está bem complicado", contou Marlene à BBC News Brasil, na Praça da República.

Vivendo apenas com o dinheiro dos doces e uma pensão a que Marlene tem direito por ser viúva de seu primeiro casamento, a família tem se alimentado com doações.

"Queremos comprar uma barraca para conseguir juntar um pouco mais de dinheiro para ir embora para Belo Horizonte", conta a gaúcha.

"A gente não está na rua porque quer, é porque está difícil. Estamos indo para BH porque lá a gente consegue uma moradia mais barato", diz José Eduardo.

Críticos a Bolsonaro, ele e Marlene dizem ter esperança de que as eleições de 2022 tragam mudanças.

"Se a inflação diminuir, se a gente puder ir ao mercado e as coisas estiverem mais baratas — porque a gente vai no mercado todo dia, a gente que não tem onde morar não compra coisa para o mês, se não estraga. Acho que, mudando o governo, isso aí vai mudar, pelo menos para a gente conseguir se alimentar, que é o básico", afirma o malabarista.

'Auxílio emergencial ajudou muita gente'

Jaqueline Rodrigues da Silva, de 27 anos e mãe de uma menina de 3 anos, com quem mora num hotel social da Prefeitura, vê com bons olhos o atual governo por um motivo principal: o auxílio emergencial que ela recebeu neste ano e no passado.

Com valor maior do que o Bolsa Família a que ela tem direito, Jaqueline afirma que o auxílio (que em 2020 variava de R$ 600 a R$ 1.200) fez uma diferença grande na sua vida.

'Esse auxílio ajudou bastante', diz Jaqueline, que atualmente mora com marido e filha em um hotel social da prefeitura (Thaís Carrança / BBC BRASIL)

"Esse auxílio ajudou bastante o pessoal, só não gostei que quem pegava o auxílio emergencial não pega esse Auxílio Brasil, só quem tem Bolsa Família. Podia dar para quem necessita também", sugere.

A crítica de Jaqueline tem base: segundo o governo, o novo Auxílio Brasil deve atender 17 milhões de pessoas, zerando a fila do Bolsa Família. O número, no entanto, é inferior aos 39 milhões de famílias que receberam o auxílio emergencial em 2021.

A paulista de Osasco diz que não votou em Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e agora ainda está decidindo em quem votar em 2022. Ela gostaria que o deputado federal André Janones (Avante-MG) — que foi bastante atuante na aprovação do auxílio emergencial e tem presença forte nas redes sociais — fosse candidato.

Jaqueline está no hotel social há 15 dias, antes, morou na rua. "Fui morar na rua por briga familiar, tem um mês. Eu não aguentei, saímos eu, meu marido e minha filha", conta.

De acordo com o Censo da População em Situação de Rua 2019, realizado pela Prefeitura de São Paulo, conflitos familiares são a principal razão para as pessoas irem parar nas ruas, apontada por 40,3% dos entrevistados, seguida por dependência química (33,3%), perda de trabalho (23,1%) e perda de moradia (12,9%).

Uma nova edição do Censo paulistano da população de rua estava prevista para 2023, mas foi antecipada devido à pandemia e está sendo realizada neste momento. A coleta de dados foi iniciada em outubro e os primeiros resultados devem ser divulgados ao final de janeiro de 2022, segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.

A edição de 2019 contabilizou 24,3 mil pessoas em situação de rua em São Paulo, sendo 12,6 mil vivendo em vias públicas e 11,7 mil em centros de acolhida.

'Ele tentou me matar, então saí da minha cidade'

Marcela*, de 25 anos, mãe de três filhos e grávida de 8 meses do quarto, mora há três meses numa ocupação precária na região central de São Paulo.

"Era uma garagem de ônibus, onde invadiram e fizeram os barracos de madeira, acho que ali vivem hoje umas 15 famílias, todas com crianças", contou à BBC News Brasil, enquanto vendia balas acompanhada dos filhos em uma grande avenida.

O nome dela foi trocado pois Marcela veio parar em São Paulo fugindo de um ex-companheiro que a agredia. "Ele não aceita a separação, eu vivi muita violência doméstica, ele tentou me matar, então eu resolvi sair da minha cidade por esse motivo", conta.

Após um período morando na rua, ela conseguiu um espaço na ocupação. Um cômodo, que ela divide com as três crianças, que em breve serão quatro.

"É um barraco, tem uma cama, uma cômoda e um sofá. E só, mais nada. Eu não cozinho porque não tenho fogão nem geladeira, então eu como na rua, de doação ou quando eu consigo, compro um marmitex", relata.

Déficit habitacional crescente

Apesar de não morar mais na rua, Marcela faz parte de um outro número crescente: o do déficit habitacional brasileiro.

Segundo a Fundação João Pinheiro, instituição de pesquisa ligada ao Governo de Minas Gerais, em 2019, o déficit habitacional no país era de 5,9 milhões de moradias.

Esse é o número mais recente disponível para o indicador, que tem como base a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Em 2019, o déficit habitacional no país era de 5,9 milhões de moradias, segundo a Fundação João Pinheiro (Thaís Carrança / BBC Brasil)

Desse total, 51,7% são domicílios com renda inferior a três salários mínimos que gastavam mais de 30% dela com aluguel; 25,2% são habitações precárias — aquelas improvisadas em carros, barcos, barracas ou casas sem parede de alvenaria — e 23,1% são domicílios com coabitação, quando duas ou mais famílias convivem juntas num mesmo ambiente.

O barraco de madeira na antiga garagem de ônibus onde vive atualmente Marcela se enquadra no segundo caso.

"São famílias que não conseguem ter uma moradia adequada, não conseguem ter acesso ao mercado imobiliário, porque não têm renda suficiente, não têm trabalho, não têm acesso a crédito", diz Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

"E sabemos que, nesses dois anos da pandemia, a história foi muito ruim. As famílias foram severamente afetadas, principalmente as de menor renda e as que já viviam na informalidade, então a possibilidade de termos esses números crescentes é real", afirma a professora, sobre a provável tendência de alta do déficit habitacional em 2020 e 2021.

Para Castelo e também para o padre Júlio Lancellotti, o problema da moradia é agravado pelo desmonte das políticas públicas para o setor, com praticamente nenhuma habitação entregue pelo governo nos últimos anos para a chamada Faixa 1 do antigo programa Minha Casa, Minha Vida, rebatizado pela gestão Jair Bolsonaro como Casa Verde e Amarela.

Destinada a famílias com renda de até R$ 1,8 mil, a Faixa 1 era financiada a partir de recursos do Tesouro, que se tornaram escassos diante da crise fiscal e do limite imposto pelo teto de gastos.

"As políticas existentes hoje são para pessoas que têm capacidade de endividamento, quem não tem essa capacidade, como a população de rua, não é atingida", diz Lancelotti.

"Estamos falando de uma parcela da população que vive num nível de vulnerabilidade muito grande. Hoje não há atendimento para esse público na política habitacional", avalia Castelo.

"A forma de atingir esse público é com aluguel social e renda mínima, pois são pessoas que não têm renda e, até se você der uma moradia, elas terão dificuldade de arcar com os custos. Então é preciso uma política social abrangente que dê conta dessa situação."

O Ministério do Desenvolvimento Regional informou à BBC News Brasil que, desde 2019, mais de 1,1 milhão de moradias foram entregues para pessoas de diversas faixa de renda.

Ainda segundo a pasta, desde o lançamento do Casa Verde e Amarela, em agosto de 2020, cerca de 45 mil unidades da Faixa 1 do programa foram entregues a famílias de baixa renda. O ministério diz ainda que a modalidade de locação social do programa, anunciada por ocasião de seu lançamento, continua "em estudo".

A Prefeitura de São Paulo, por sua vez, informou que acaba de lançar um projeto inédito de PPP (parceria público-privada) para oferta de moradia e acolhimento para população em situação de rua.

Segundo a prefeitura, o projeto prevê a implantação de 1.747 unidades, distribuídas em 15 empreendimentos, que beneficiarão mais de 3,7 mil pessoas.

A gestão municipal destacou também uma série de ações que tem realizado para o atendimento da população em situação de rua em meio à pandemia, como a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e limpeza, refeições prontas e água.

Eleições e sonhos para 2022

E o que Marcela espera desse Natal?

"Para ser bem sincera, eu não sei dizer, mas espero coisa boa, porque Deus nunca me abandonou. O importante para mim é não faltar o que comer, mas esse Natal vai ser diferente, por que eu não vou passar com meus parentes, com meus pais", lamenta ela.

Para o próximo ano, além da chegada do quarto filho, Marcela sonha com uma casa melhor.

"Se Deus quiser — e ele quer — eu vou conseguir um lugar melhor, porque ali [na ocupação] não é um lugar adequado para um bebê recém-nascido, tem muito rato. Primeiro de tudo é ter um lugar para viver com meus filhos em segurança e depois, quando meu bebê estiver um pouco mais crescido, arrumar um trabalho", deseja a mãe de família para o próximo ano.

Marcela diz que pretende com certeza votar nas eleições de 2022.

"O que a gente precisa mesmo é de educação, segurança, as pessoas precisam de um lugar para morar. Agora com Bolsonaro, a coisa melhorou quando aumentou o auxílio — nossa, ajudou muito!", diz ela, que recebeu em 2020 os R$ 1.200 destinados a mães chefes de família.

Com a redução do valor em 2021, no entanto, as coisas ficaram "bem piores", diz ela. Assim, Marcela ainda não sabe em quem vai votar no próximo ano. "Tem que ver as propostas, o que vão oferecer para a gente de melhor", afirma.

Gleidson Oliveira Lima, que limpa vidros vestido de Papai Noel, enquanto vive com a família embaixo do viaduto, diz que nunca votou. "Eu não tenho documento nenhum", explica.

Ainda assim, ele não poupa críticas à atual gestão federal.

"Depois que o Bolsonaro entrou, o Brasil mudou", afirma. Para melhor ou para pior? "Para pior, piorou para todo mundo. O Lula ajudou bastante a gente. Eu dou valor para o Lula."

*Nome fictício por se tratar de uma vítima de violência doméstica.

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo, em 24 dezembro 2021, 05:54 -03

O futuro é agora

Sistema eleitoral está no topo da lista de problemas perenes de nossa democracia,exigindo enfrentamento imediato

O Natal é depois de amanhã e o ano novo está próximo. Muitos aproveitam para um retrospecto ou para alinhar propósitos. Prefiro falar do futuro, um grande desafio, já que em nosso país nada é hoje previsível nem garantido, e no próximo ano passaremos por uma troca geral de poderes no Executivo e no Legislativo.

Tendo de enfrentar em nosso dia a dia uma sucessão de impasses, é impossível planejar bem o amanhã quando não se sabe como terminará o dia, seja do ponto de vista sanitário, de segurança jurídica ou de segurança econômica. E isto mesmo sobre questões consensuais, como a urgência de adotar um programa de renda básica ou de aumentar a qualidade, a eficiência e a honestidade do serviço público.

Incerteza sobre o futuro não justifica inação. Temos um conjunto de problemas permanentes que, enquanto não forem reconhecidos e bem debatidos, jamais serão enfrentados, negociados e compactuados. O contexto de uma campanha presidencial pode ser ocasião para essa reflexão que, infelizmente, não está sendo encarada pelas candidaturas já anunciadas.

Tenho salientado, neste espaço, a natureza multidimensional da crise que nos atinge – e que o povo brasileiro está enfrentando com coragem – diante da omissão de parte relevante de nossas instituições. O cerne da crise é de natureza política e a ela se sobrepõe uma crise de descontrole da política econômica, agravada pelos efeitos da pandemia de covid-19.

Os efeitos imediatos e a evolução da pandemia teriam sido mitigados, com alcance muito mais decisivo, se o combate à sua disseminação não fosse transformado em anátema e até mesmo demonizado pelo governo. O equilíbrio fiscal e a retomada do crescimento, herdados do governo Temer, não teriam sido tão negativamente afetados pela restrição forçada das atividades produtivas, se a conduta da política econômica não fosse tão equivocada.

Sem uma drástica retomada de rumo pelo governo, continuaremos a enfrentar inflação alta, juros elevados, endividamento sem controle, retrocesso do investimento, cujo somatório redunda em castigar o povo brasileiro, especialmente os setores mais vulneráveis. Sem uma reviravolta na interferência presidencial sobre o combate à pandemia que, ao fim e ao cabo, redunda em abrir as portas para a invasão de novas variantes de alto risco da covid-19, não reverteremos seus impactos negativos ascendentes sobre a atividade econômica e sobre as defesas imunológicas de cada um dos brasileiros.

Está, em primeiro lugar, nas mãos do governo federal voltar à política econômica para reorientá-la no rumo da estabilidade, da recuperação da confiança e do investimento. E isto não é viável, já que nossas instituições fundamentais têm-se orientado por agendas divergentes, e muitas vezes incompatíveis, que acabam se anulando reciprocamente.

Há quem aponte, como causa da crise política, um conflito de interesses de tal modo grave que se tornou impossível adotar as reformas consideradas essenciais, como a simplificação e a maior eficiência do regime tributário, a modernização dos serviços públicos ou a limitação ao estatismo.

Ao contrário, nosso Congresso tem aprovado um número alto de projetos de lei. As emendas constitucionais tornaram-se quase corriqueiras e efetuadas em poucos dias. Executivo e Legislativo nem sempre têm tido dificuldade em aprovar legislação apoiada pelo governo, por sua base parlamentar e pela oposição. Mas, como regra, poucas vezes coincidem com os interesses e necessidades vitais dos cidadãos.

Isto se tem manifestado em profunda insatisfação popular e em desconfiança do cidadão com respeito a sua representação política.

Já que uma democracia representativa se baseia no princípio de que a legitimidade das decisões de interesse coletivo devem ser tomadas por representantes eleitos pelos cidadãos, e refletir sua vontade, é necessário que algo de muito errado esteja ocorrendo na maneira como os representantes são escolhidos pelo eleitor. Simplesmente, o eleitor não sabe nem pode saber para quem vai seu voto, e o eleito não sabe bem de onde vêm o seus.

O sistema eleitoral – de voto proporcional em lista partidária aberta – constrói um muro intransponível entre o eleitor e seu representante, já que, segundo estimativas recentes, mais de 75% dos mandatários dependem dos votos de um número indeterminado de candidatos para se eleger. Em termos práticos, o cidadão não sabe a quem recorrer e seus representantes sentem-se livres para representar os interesses que bem lhes aprouver.

Se aceitarmos a premissa de que, com políticas governamentais adequadas nas dimensões econômica, sanitária e social, o impacto da pandemia sobre o sistema produtivo não teria fugido do controle, devemos convir que o sistema eleitoral está no topo da lista de problemas permanentes de nossa democracia, exigindo enfrentamento imediato. Temos, portanto, razões para demandar dos candidatos ao nosso voto uma definição clara a respeito do seu compromisso com a necessidade de reabrir o debate sobre representação proporcional ou majoritária.

Porque o futuro não espera.

José Serra, o autor deste artigo, é Senador (PSDB) pelo Estado de São Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de Sâo Paulo, em 23.12.21

Uma democracia cada vez menos democrática

Quanto mais cresce o financiamento público aos partidos, mais aumenta a sua distância em relação aos cidadãos

“A democracia tem um custo”, repetem os apologistas do financiamento público aos partidos. E ele só aumenta. O volume aprovado para 2022 não tem precedentes. O paradoxo é que quanto maior é o tal custo da democracia, pior é a sua qualidade – quanto mais recursos os partidos tomam aos cidadãos, mais aumenta a distância entre eles. Segundo o Datafolha, a atual legislatura quebrou um recorde de rejeição: apenas 10% dos entrevistados aprovam a atuação do Congresso.

Entre 1995 e 2018, os gastos anuais do Fundo Partidário saltaram 9.766%. O Fundo Eleitoral, criado em 2017 após o STF declarar inconstitucionais as doações por empresas, deveria ser transitório, até que os partidos reorganizassem seu financiamento. Mas ele só cresceu: de R$ 1,7 bilhão para quase R$ 5 bilhões. Em 2022, a soma dos Fundos Partidário e Eleitoral será de R$ 5,96 bilhões – 92,5% maior do que no último ano de eleições federais, 2018. Nesse período, nada houve que justificasse tal escalada. Ao contrário, houve uma pandemia que despejou milhões de brasileiros na miséria.

Enquanto o financiamento aos partidos cresce, o retorno à sociedade encolhe. Em 2022, os investimentos federais – em infraestrutura, escolas, postos de saúde, defesa, pavimentação, pesquisa –, que há dez anos chegaram a R$ 201 bilhões, serão de R$ 44 bilhões, o menor valor da história. Os partidos receberão mais do que os investimentos para Saúde (R$ 4,7 bilhões) ou Educação (R$ 3,7 bilhões), e quase seis vezes mais do que o saneamento básico.

Os partidos fabricaram para si um modelo extrativista em que sorvem bilhões dos contribuintes sem precisar cultivar apoiadores. É difícil imaginar um mecanismo mais bem talhado para produzir uma crise de representatividade permanente e crescente.

A subvenção é injusta, porque obriga o cidadão a sustentar legendas com as quais não raro antagoniza, e corrosiva, porque os políticos se habituam a aliciar eleitores nas eleições e depois lhes dão as costas para administrar seus feudos controlados por poucos caciques que, por sua vez, não são pressionados a prestar contas nem por seus filiados nem pelo Poder Público.

Segundo a Transparência Partidária, nos últimos dez anos o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de meros 24%. Entre 2018 e 2020, os partidos perderam 1 milhão de filiados. Dos que restam, apenas 0,1% faz contribuições frequentes e 8 em 10 contribuintes se concentram em duas legendas: PT e Novo.

Desde a redemocratização, o número de partidos só cresceu. Hoje são mais de 30 e cerca de 80 estão no forno. Não é a pluralidade ideológica que explica essa proliferação, e sim as oportunidades de negócios.

Nutrindo-se do Estado como parasitas, fechados em si, dispensados de cativar corações e mentes para seus programas de governo, os partidos não levam a sério a formulação desses programas. A maioria forma apenas um conglomerado de interesses clientelistas, patrimonialistas e corporativistas voltado a formar alianças, não pragmáticas e ideológicas, mas de conveniência, em geral para angariar sinecuras do governo de turno e satisfazer demandas paroquiais.

A política nacional está presa num círculo vicioso. A Constituição favoreceu a valorização dos direitos coletivos em detrimento dos direitos e deveres individuais. Os cidadãos atribuem enorme peso ao Estado como provedor de suas necessidades. Mas a distância que os separa de seus representantes é cada vez maior. A política é cada vez mais vista como uma atividade de oportunistas e corruptos. Nas eleições, ideias e programas são substituídos pelo marketing, e os eleitores oscilam entre a apatia e salvacionismos autoritários.

O fim do financiamento aos partidos seria só um expediente entre outros – como a substituição do sistema eleitoral proporcional pelo distrital ou cláusulas de barreira mais rigorosas – para moralizar e qualificar a representação democrática. Mas já seria um primeiro passo para reduzir o abismo entre a política e a sociedade civil e obrigar os eleitos a pôr os pés no chão rude e áspero que seus eleitores pisam todos os dias.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de dezembro de 2021 | 03h00

sábado, 4 de dezembro de 2021

STF abre inquérito contra Bolsonaro por associar vacina contra covid à aids

Decisão do ministro Alexandre de Moraes instaura o quinto procedimento de investigação contra Bolsonaro desde que ele assumiu o governo

Presidente Jair Bolsonaro na live em que associou a vacina contra a covid-19 ao vírus da Aids. Foto: Reprodução/Facebook/Jair Messias Bolsonar

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou nesta sexta-feira, 3, a abertura de mais um inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ). Desta vez, as investigações vão se concentrar nas declarações falsas do chefe do Executivo sobre a relação entre a vacina contra a covid-19 e a infecção pelo vírus da aids. Essa é a quinta ação de investigação instaurada contra Bolsonaro na corte desde que ele assumiu a presidência.

Em sua live semanal em 21 de outubro, exatamente um dia após a leitura do relatório da CPI da Covid no Senado, o presidente citou uma notícia falsa sobre pessoas que tomaram as duas doses da vacina contra o novo coronavírus no Reino Unido e passaram a desenvolver o vírus aids. Cientistas do mundo todo desmentiram as declarações. As redes sociais Instagram, Facebook e Youtube determinaram a remoção imediata do vídeo de todas as plataformas digitais. No dia anterior à transmissão, havia sido apresentado o pedido de indiciamento de Bolsonaro por 11 crimes relacionado a sua postura no enfrentamento à pandemia

“Não há dúvidas de que as condutas noticiadas do Presidente da República, no sentido de propagação de notícias fraudulentas acerca da vacinação contra o Covid-19 utilizam-se do modus operandi de esquemas de divulgação em massa nas redes sociais, revelando-se imprescindível a adoção de medidas que elucidem os fatos investigados, especialmente diante da existência de uma organização criminosa”, escreveu Moraes na decisão

O ministro associou as declarações de Bolsonaro à atuação da organização criminosa investigada no inquérito das fake news no Supremo, no qual o presidente também é alvo. A investigação foi instaurada a pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que encaminhou o requerimento à corte na reta final da CPI para que fossem averiguadas as declarações do presidente por, segundo ele, fazerem parte de um “contexto bastante mais amplo de sucessivas e reiteradas manifestações criminosas”.

Antes de ser convertida em inquérito, a ação no Supremo também analisava o pedido do presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), para instaurar uma investigação policial contra Bolsonaro, com o objetivo de avançar nas apurações dos crimes apontados pelo relatório final da comissão, assim como garantir a aplicação de medidas cautelares na esfera penal contra o chefe do Executivo e suspender suas redes sociais.

A medida foi acompanhada pela decisão de utilizar o último dia de trabalho da CPI no Senado para aprovar a quebra do sigilo telemático de Bolsonaro, com o propósito de reunir provas de eventuais crimes que ele tenha cometido contra a saúde pública. A manobra foi suspensa por Moraes no dia 22 de novembro, sob o argumento de que as ações adotadas pelos senadores “distanciaram-se do seu caráter instrumental”, porque acabou “por extrapolar os limites constitucionais investigatórios de que dotada a CPI ao aprovar requerimento de quebra e transmissão de sigilo telemático. A Constituição impede a investigação do chefe do Executivo por comissões parlamentares. Ao se manifestar nos autos, o presidente destacou os mesmos argumentos do ministro.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou contra os pedidos dos senadores por considerar que as exigências não seriam cabíveis com o fim da CPI e por fugir da alçada da investigação parlamentar. A PGR chegou a investigar de forma preliminar uma notícia-crime apresentada por PDT e PSOL sobre a live do presidente, mas descartou a abertura de inquérito.

Na decisão de hoje, Moraes afirmou que a comissão “tem legitimidade para pleitear a apuração”, e, em recado a Aras, que “é indispensável que sejam informados e apresentados no âmbito do procedimento que aqui (STF) tramita, documentos que apontem em quais circunstâncias as investigações estão sendo conduzidas, com a indicação das apurações preliminares e eventuais diligências que já foram e serão realizadas.

Weslley Galzo, originalmente, de Brasília para O Estado de São Paulo, em 03.12.21, às 19h21

Controle dos sistemas de interceptação telefônica opõe Secretarias de Segurança e Polícia Civil nos Estados

Operações recentes de combate à corrupção, como a que pegou o governador afastado do Tocantins, Mauro Carlesse, reacenderam debate sobre risco de uso político da estrutura no guarda-chuva das Secretarias de Segurança; Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil do Brasil defende aparato sob gestão das corporações.       

Controle dos sistemas de interceptação telefônica opõe Secretarias de Segurança e Polícia Civil nos Estados. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A Operação Éris, aberta em outubro contra o governador afastado do Tocantins, Mauro Carlesse (PSL), reacendeu a discussão sobre o controle dos sistemas de interceptação telefônica pelas Secretarias de Segurança Pública dos Estados.

Ao longo da investigação que atingiu Carlesse, a Polícia Federal identificou que o núcleo responsável pelas interceptações não fazia parte da estrutura administrativa da Polícia Civil do Tocantins. O departamento existia sob o guarda-chuva da chamada Diretoria de Inteligência e Estratégia, órgão vinculado à Secretaria de Segurança do Estado.

Na prática, todos os pedidos de interceptação telefônica formalizados pela Polícia Civil passavam pelo departamento, comandado por um diretor que, segundo o regimento interno, era responsável por assessorar o secretário de Segurança.

Em representação enviada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Polícia Federal disse que o modelo permite o ‘uso indiscriminado e arbitrário do aparato estatal’.

“O regimento interno da Secretaria de Segurança Pública do Tocantins busca conferir ares de legalidade à prática de interceptação telefônica por uma diretoria de inteligência, órgão de natureza claramente política, com ambiente propício a atuações de caráter não-republicano e ilegal”, diz um trecho do documento.

A PF também chamou atenção para o risco de instrumentalização da estrutura para ‘instauração de investigações, coleta de dados ou outras atuações ilegais ou com desvio de finalidade em face de adversários ou autoridades que investiguem o atual governo’.

O caso do Tocantins não é isolado. Um levantamento feito pelo Estadão mostra que ao menos dez outros Estados ainda replicam ou replicavam até recentemente modelos equivalentes, o que tem o potencial de facilitar o uso político dos meios de investigação.

É o caso da Bahia. A Polícia Federal acusou a apropriação dos sistemas de interceptação na esteira da Operação Faroeste, que investiga a venda de decisões judiciais no Tribunal de Justiça do Estado. Em dezembro do ano passado, as apurações atingiram o então secretário de Segurança Pública, o delegado federal Maurício Barbosa, posteriormente exonerado do cargo. Os policiais federais apontaram a ‘cooptação’ da pasta e trabalham com a hipótese da execução de grampos ilegais para chantagear e ‘neutralizar’ opositores do suposto esquema.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que, desde o início do ano, começou o processo de transferência da estrutura para a Polícia Civil.

“No que diz respeito à tecnologia utilizada nas interceptações telefônicas, a SSP ressalta que está em andamento a execução do plano de descentralização para a Polícia Civil, com a capacitação do efetivo, adequação das estruturas físicas e de tecnologia da informação”, diz o texto.

No Amazonas, as suspeitas de uso indevido do sistema de interceptação telefônica vieram a público a partir da Operação Garimpo Urbano. O aparato vinha sendo gerenciado pela Secretaria-Executiva Adjunta de Inteligência, subordinada à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Em setembro, a PF prendeu o ex-secretário adjunto de Inteligência Samir Freire e três policiais sob suspeita de uso indevido da estrutura para roubar ouro.

Após a operação, o Ministério Público do Amazonas emitiu uma recomendação ao governo sugerindo a transferência do sistema para a Polícia Civil. O objetivo, segundo o documento, é ‘coibir a ação de agentes públicos ligados a órgão de cúpula da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas, que utilizavam-se da estrutura de inteligência e possivelmente do sistema “Guardião” para fins supostamente ilícitos’. Procurada pela reportagem, a pasta disse que a orientação foi cumprida.

Sobretudo nos últimos dois anos, o Ministério Público Federal (MPF) e os Ministérios Públicos dos Estados têm apresentado recomendações, ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta para tentar coibir o uso indevido dos sistemas de interceptação.

No Piauí, a adequação foi iniciada após recomendação conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado. O documento, enviado em dezembro do ano passado, pediu a transferência de todos os equipamentos e estruturas tecnológicas de monitoramento de interceptações telefônicas que estavam no Núcleo de Inteligência da Secretaria de Segurança.

“A tramitação da medida cautelar de interceptação de comunicações telefônicas deve ocorrer exclusivamente entre o Poder Judiciário, a Polícia Judiciária e o Ministério Público, sem qualquer participação ordinária de outro órgão estatal, com vistas à preservação do sigilo das investigações realizadas e das informações disponibilizadas, de forma a garantir a efetividade da prova e da instrução processual”, alertou a recomendção.

Ao Estadão, a Secretaria de Segurança informou que ‘sempre tratou o serviço de inteligência de forma técnica e em prol do serviço público’. Também afirmou que o MP atestou não ter conhecimento de nenhum caso de uso indevido do sistema.

Alagoas foi um dos primeiros Estados a receber uma recomendação do Ministério Público Federal, em agosto de 2017, para transferir a estrutura de monitoramento. Há mais de dez anos, o Estado vem permitindo a operacionalização de interceptações telefônicas não só por meio da Secretaria de Segurança, através da Assessoria Integrada de Inteligência, como pela Polícia Militar.

A recomendação, no entanto, não foi atendida, o que levou o Ministério Público Federal a entrar com uma ação civil em 2019. O processo corre na Justiça Federal de Alagoas. Até o momento, não houve decisão sobre o mérito do pedido.

O quadro identificado em Alagoas é muito parecido com a realidade recente em Rondônia. O sistema de interceptação, alocado na Gerência de Estratégia e Inteligência da Secretaria de Segurança, também podia ser acessado por servidores da pasta e policiais militares. O Ministério Público do Estado notificou o governo em maio de 2019.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança informou que atendeu a recomendação e transferiu o sistema para a Polícia Civil em junho do ano passado.

“Independentemente do órgão que administre-o, o Sistema Guardião não permite a realização de interceptação telefônica sem autorização judicial”, disse a pasta em nota.

No Rio Grande do Norte, a investida do Ministério Público do Estado foi convertida em um Termo de Ajustamento de Conduta. Em outubro do ano passado, a Secretaria de Segurança se comprometeu a transferir a gestão da Central de Computação Digital, onde são operadas as interceptações, para a Delegacia-Geral da Polícia Civil. O acordo livra a pasta de responder a uma eventual ação civil pública pela conduta.

Desde a sua implantação, no início dos anos 2000, o sistema de interceptação telefônica do Espírito Santo foi mantido dentro da Subsecretaria de Inteligência, vinculada à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social. A gestão atual começou o que chamou de ‘transição gradativa’ da estrutura para a Polícia Civil.

“Foi detectada a necessidade de estruturação tecnológica robusta para que a Polícia Civil possa gerir a questão das interceptações telefônicas, estruturação essa que está em andamento, para que futuramente a ferramenta seja repassada à PCES”, diz em nota.

Há ainda três outros Estados que mantêm os sistemas de interceptação sob o guarda-chuva das respectivas Secretarias de Segurança: Ceará, Paraíba e Paraná. Eles não responderam aos sucessivos contatos da reportagem, por e-mail e telefone, questionando se têm planos para transferir a estrutura para a administração direta da Polícia Civil.

O tema também é espinhoso porque opõe Secretarias de Segurança e Polícia Civil. Embora a corporação tenha independência para conduzir as investigações, o governador tem a prerrogativa de indicar o diretor-geral.

O Estadão conversou com os delegados Nadine Anflour, chefe de Polícia Civil do Rio Grande do Sul, e Mário Dermeval Aravechia de Resende, delegado-geral do Mato Grosso. Eles são, respectivamente, presidente e vice-presidente do Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil do Brasil (CONCPC). A posição do colegiado é que os sistemas devem ser mantidos, física e administrativamente, sob gerência da Polícia Civil. O entendimento é compartilhado pelo delegado Juliano Carvalho, que preside o Comitê Nacional dos Chefes de Inteligência da Polícia Civil.

“É unânime a opinião de que os sistemas de interceptação são de gerência da Polícia Judiciária, e vamos além, todas as ferramentas de investigação e repressão criminal devem estar sob a governança delas, incluindo os laboratórios de combate à lavagem de dinheiro”, afirmam.

Controle dos sistemas de interceptação foi tema de reunião do Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil nesta semana. Foto: Reprodução/CONCPC

Segundo os delegados, a demanda entre os quadros da Polícia Civil dos Estados não é recente. “Muitos já avançaram e estão de posse nas suas sedes, dos equipamentos e ferramentas de investigação, mas infelizmente ainda temos alguns Estados que insistem com essa gestão equivocada de se fazer Segurança Pública”, avaliam.

Por lei, a Polícia Civil é responsável por conduzir investigações penais no âmbito estadual. Além disso, desde 1996, a lei de interceptação telefônica prevê, em seu artigo 6º, que a ‘autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização’.

“Em se tratando de ferramentas de investigação criminal, não se pode conceber que estejam vinculadas ou de posse da Secretaria de Segurança Pública, a quem cabe, apenas, traçar estratégias de combate ao crime e políticas públicas”, defendem Nadine e Resende.

Como revelaram na prática as operações Éris, Faroeste e Garimpo Urbano, um dos principais riscos da manutenção dos sistemas de interceptação na estrutura das Secretarias de Segurança continua sendo a chance de apropriação do aparato público para fins particulares e até ilegais.

“A partir do momento que pessoas ou entes estranhos se apossam dessas ferramentas, utilizando não o viés investigativo criminal, mas interesses escusos na sua finalidade ou mesmo no acesso de informações privilegiadas, outros serão os resultados. Além de prejudicar a investigação, poderão se utilizar desse conhecimento para informar parceiros políticos, grupos interessados, desviar a investigação, esconder provas, maquiar a ocorrência de crimes, e por que não dizer o fomento de atos de corrupção e venda de informações”, alertam os delegados.

Leia a íntegra das manifestações enviadas pelos Estados:

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO AMAZONAS

“A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) informa que adotou todos os procedimentos solicitados pelo MP e que encaminhou o processo para a Polícia Civil do Amazonas.”

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DA BAHIA

“A Secretaria da Segurança Pública da Bahia esclarece que, desde o início de 2021, foram iniciados os processos de transferências do Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) e dos equipamentos utilizados, em interceptações telefônicas, para a Polícia Civil. A pasta informa que, no início deste ano, o LAB-LD passou a ser coordenado pela PC. No que diz respeito à tecnologia utilizada nas interceptações telefônicas, a SSP ressalta que está em andamento a execução do plano de descentralização para a Polícia Civil, com a capacitação do efetivo, adequação das estruturas físicas e de tecnologia da informação. Por fim, acrescenta que nas cidades baianas de Feira de Santana, Eunápolis e Vitória da Conquista as interceptações já são coordenadas por policiais civis.”

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO ESPÍRITO SANTO

“A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo (Sesp) informa que desde que se implantou o sistema de interceptação telefônica no Estado, no início dos anos 2000, ele foi idealizado na estrutura da Sesp, dentro da Subsecretaria de Inteligência, que tem como gestor, atualmente, um delegado da Polícia Civil. A atual gestão, entendendo a necessidade de mudança nessa estrutura, já iniciou o processo de transição gradativa para a Polícia Civil. 

No ano de 2019, o laboratório de lavagem de dinheiro já foi integrado à PCES e em 2020 ocorreu a transferência do Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc), da Sesp para a Polícia Civil. Nesse ano foi criado o Centro de Inteligência e Análise Telemática (Ciat), na estrutura organizacional da PCES, ligado diretamente ao gabinete do delegado-geral. 

Em relação ao sistema da Plataforma de Comutação Digital foi detectada a necessidade de estruturação tecnológica robusta para que a Polícia Civil possa gerir a questão das interceptações telefônicas, estruturação essa que está em andamento, para que futuramente a ferramenta seja repassada à PCES. Porém, cabe ressaltar que para manter o nível de segurança exigido em uma atividade desta natureza, a Plataforma de Comutação Digital possui recursos que permitem completa compartimentação das informações, entre as unidades, de forma que apenas possuem acesso a determinada investigação os policiais que atuam naquele caso, de acordo com o previsto no mandado judicial.

São esses policiais que acompanham as interceptações telefônicas e produzem os relatórios circunstanciados exigidos pela Lei Nº 9.296/96, periodicamente remetidos ao Poder Judiciário, devidamente acompanhados das mídias (DVD) com o inteiro teor das ligações interceptadas. Ou seja, a função da Subsecretaria de Estado de Inteligência fica restrita à atividade meio (administrar a tecnologia disponível para essa atividade) e não inclui a atividade fim (acompanhamento das interceptações e investigação dos casos), que é de competência exclusiva das Autoridades Policiais que representaram judicialmente por essas medidas cautelares.

Cumpre salientar por fim, que nunca foi verificada qualquer ilegalidade praticada pela Subsecretaria de Estado de Inteligência. Também cabe destacar que, assim como o subsecretário, o gerente responsável pela operacionalização da plataforma é um Delegado da Polícia Civil do Espírito Santo. Além disso, todos os integrantes da Gerência de Inteligência são policiais dos quadros efetivos dos órgãos subordinados à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social.”

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DO PIAUÍ

“A Secretaria Estadual de Segurança Pública tem adotado medidas concretas para atender à recomendação conjunta do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual do Piauí, tendo iniciado o processo de mudanças administrativas, dentre elas, a recente regulamentação pela Delegacia Geral de Polícia Civil ampliando o âmbito de atuação da Gerência de Inteligência da Polícia Civil. 

A Secretaria de Segurança assim que recebeu a recomendação, solicitou ao Ministério Público Estadual que se manifestasse sobre o assunto, relatando ou apontando qualquer caso que tivesse ocorrido o uso indevido da atividade por parte do  Serviço de Inteligência. O MPE se manifestou atestando que não existe nenhum caso que retrate o uso indevido deste aparato que seja de conhecimento da instituição. A Secretaria de Segurança reforça que sempre tratou o serviço de inteligência de forma técnica e em prol do serviço público.”

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA DE RONDÔNIA

“O Estado de Rondônia atendeu a recomendação do Ministério Público, e transferiu a administração do Sistema Guardião da Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania para a Polícia Civil em 10.06.2020. Quanto ao questionamento sobre a possibilidade de uso indevido do sistema, destaco que, independentemente do órgão que administre-o, o Sistema Guardião não permite a realização de interceptação telefônica sem autorização judicial.”

Rayssa Motta, originalmente, para o blog do Fausto Macedo / O Estado de São Paulo, em 04.12.21

A aritmética de Hitler

A vingança, como se deu com o austríaco, tem-se dado nas ações repetidas da polícia no Brasil em operações marcadas por malvadeza.

Em 23 de março de 1944, na Rua Rosella, em Roma, ocupada por tropas alemãs, 32 soldados nazistas foram mortos em atentado preparado pela resistência italiana. Por ordem de Hitler, para cada alemão morto deveriam ser fuzilados dez italianos. Assim, aleatoriamente, 335 romanos foram levados às Fossas Ardeatinas, ao sul da cidade, e lá executados.

Conforme o oficial responsável pelo massacre, Priebke, condenado anos depois, na Itália, à prisão perpétua, a ordem de Hitler consistia em “represália ao atentado organizado pela resistência”.

O médico Attilio Ascarelli, autor da autópsia das vítimas do massacre, bem definiu: “Foi a cruel satisfação dum brutal espírito de vingança”.

A vingança, seja a calculadamente arquitetada, seja a de imediato aplicada, ao não ter proporção com o mal antes sofrido, visa apenas ao deleite do espírito perverso com a crueldade imposta.

Assim se deu com Hitler, assim se tem dado nas ações repetidas da polícia brasileira em operações-vingança, marcadas por malvadeza, acentuadas no governo Bolsonaro.

Essas operações-vingança atingem em geral pessoas pobres, negras e moradoras das favelas ou da periferia destituídas de cidadania, pois reputadas como “não sujeitos de direitos”, passíveis, por consequência, de ter violadas sua vida, sua integridade física e moral. Quem os ataca, com violência sanguinária, são soldados ou inspetores de origem também humilde, mas que pretendem ser alheios a esta categoria dos desprovidos de direitos, sobre os quais afirmam sua “autoridade e superioridade”.

Fiquemos em exemplos deste ano: no dia 6 de maio, em operação da Polícia Civil, 200 policiais a pé, quatro blindados, com apoio de helicópteros, entraram na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, para cumprir 21 mandados de prisão. Logo no início, deu-se o infausto homicídio de policial civil atingido por um tiro. A operação de cumprimento de mandado de prisão transformou-se em operação-vingança, resultando em 27 pessoas mortas.

Muitos, rendidos ou recolhidos em casa, foram executados a sangue frio. Atingiram-se aleatoriamente pessoas com ou sem antecedentes criminais (como se ter antecedente significasse a permissão para ser executada), e, dos 27 mortos, apenas 3 constavam dos mandados de prisão. Cenas horripilantes foram protagonizadas. A comunidade ficou entregue à agressividade destruidora.

De forma irresponsável, o presidente da República elogiou a operação e publicou nas redes este comentário: “Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo”. Na verdade, dos assassinados pela polícia, poucos tinham relação com o tráfico.

Para reafirmar a prevalência do direito e em apoio ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 20 de maio seis ex-ministros da Justiça, entre os quais eu, lançaram carta aberta: “Como ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos da necessidade de atuação do Supremo Tribunal Federal para garantir a força normativa da Constituição e limitar a ação estatal em segurança pública que não esteja pautada pelo respeito à vida e às ordens judiciais”. No dia seguinte, o STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em voto do relator, reafirmou a permissão para operação policial apenas em caso excepcional, com aviso prévio ao Ministério Público. Pouco adiantou!

Em 12 de junho de 2021, na cidade de Tabatinga (1.106 km de Manaus), bairro da Baixada, houve troca de tiros: atirador e sargento da PM, à paisana, morreram. Policiais militares entraram no bairro em busca de cúmplices e mataram sete pessoas, sendo três jogadas no lixão. Durante a invasão do bairro, um PM disse a familiares das vítimas: “Agora é a lei do Bolsonaro, bandido bom é bandido morto”.

No mês passado, como represália à morte do soldado Leandro da Silva, assassinado em patrulhamento, policiais militares, desconfiando estar o assassino no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, executaram aleatoriamente nove pessoas dessa comunidade, deixando os corpos no mangue. E o pior: instalado o terror, os policiais festejaram com churrasco e cerveja. 

Em 2017, o Brasil, por não se apurar o massacre na Favela Nova Brasília, foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nenhum efeito reeducativo: pouco se investigam massacres e muitos inquéritos são arquivados. A aritmética de Hitler continua impune.

O que resta fazer? Deve-se cobrar de governadores o ensino de direitos humanos na formação dos quadros das instituições policiais. A prevenção e repressão penal nada perdem, só ganham, se policiais respeitarem os direitos fundamentais: a polícia que se teme abre estrada para o crime organizado.

Medida eficaz está em ser o trabalho do policial monitorado por câmeras corporais, que revelam os fatos como eles são. De outra parte, entidades da sociedade podem promover a responsabilidade civil do Estado pela violação a preceitos fundamentais, visando, assim, a constranger o Tesouro estadual.

Quanto a Bolsonaro, este é um caso perdido.

Miguel Reale Junior, o autor deste artigo, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de São Paulo. Publoicado originalmente em 04.12.21.

A pena de morte do nosso dia a dia

Se não aprendermos que a natureza tem suas regras, mataremos os alertas da ciência, tal qual a polícia mata a esmo no Brasil.

O absurdo se uniu ao disparate e à insensatez e, agora, corremos o risco de pensar até que dessa perniciosa união possa surgir uma nova normalidade. Despreocupados, caminhamos rumo ao horror tal qual a menina do chapeuzinho vermelho saiu estrada afora, por um caminho deserto sem saber que o lobo estava ali por perto. Os doces para a vovozinha lhe tiravam a visão.

Não me refiro apenas aos bolsonarianos tempos iniciados em janeiro de 2019. O horror vem de muito antes e, passo a passo, instalou-se no aparelho estatal e daí passou à sociedade inteira. Tudo, inclusive a própria vida, vulgarizou-se ou se banalizou há tempos, crescendo e se acentuando no atual governo.

No Brasil não há pena de morte. Por mais terrível e brutal que seja o crime, um juiz não pode condenar o assassino à pena máxima, mesmo que a mais perversa crueldade esteja documentada em cada folha do processo. No entanto, a polícia mata abertamente e a esmo, como se usufruísse de um direito próprio e intransferível que deva aplicar por intuição, sem nem sequer investigar.

Sim, pois a grande maioria das vítimas não resulta de confrontos entre suspeitos e policiais militares. Na maioria das vezes, a polícia chega atirando e, assim, mata sem saber sequer se dispara contra o verdadeiro delinquente. É como se o tiro tivesse prioridade e obedecesse a um lema trágico e obsceno: “Primeiro se atira, depois se investiga”.

Parece tratar-se de um novo torneio Rio-São Paulo, em que as duas maiores cidades do País disputam, agora, a hegemonia, tal qual em tempos passados se enfrentavam no futebol. O antigo torneio Rio-São Paulo deu origem aos campeonatos nacionais de futebol de hoje. No dia a dia da insegurança das grandes cidades, a atual guerra civil encoberta se transforma em confrontação direta na qual não se confia sequer nos que deveriam proteger a sociedade inteira.

No Rio de Janeiro, as chamadas “milícias”, com membros recrutados na própria polícia, já têm, em várias regiões, mais poder que o Estado em si ou se substituem a ele. São Paulo não chegou a tal aberração, mas a truculência policial pode (pelo medo) abrir caminho para a implantação do poder das “milícias” apoiadas no narcotráfico.

Tão só no primeiro semestre de 2020, 3.148 pessoas foram mortas pela polícia no Brasil. No mesmo período, 176 policiais foram mortos. Não são os números díspares, porém, que marcam e definem o horror. O que se espera do assaltante ou do delinquente é que seja o nosso contrário, disposto a tudo para nos subjugar. O que se espera da polícia é que seja nosso defensor e aliado e que se dedique a reprimir o crime, não a matar.

No último domingo de novembro, o Fantástico, da TV Globo, mostrou indesmentíveis cenas do morticínio perpetrado pela polícia em São Paulo. Viu-se, inclusive, policiais desligando as câmeras presas ao uniforme e, assim, mudando armas de lugar para simular que haviam sido atacados e apenas “revidado” em “legítima defesa”.

Por outro lado, numa mostra do novo “torneio Rio-São Paulo”, apareceram cenas das oito pessoas mortas dias antes pela polícia fluminense num manguezal. O horror mostrado pelas imagens televisivas é indesmentível e vale mais do que qualquer descrição minuciosa.

Qual a causa dessa distorção das funções policiais? Será um vício comum à maioria do aparelho público estatal e que, por isso, deve-se analisar em defesa das corretas funções do próprio Estado?

É comum que não se busquem as origens do mal, seja ele qual for. Um exemplo a esmo (sem qualquer relação com o que dizemos da pena de morte aplicada pela polícia, mas que mostra o descaso geral) é o aparecimento de tubarões próximos a Ubatuba, no litoral paulista, por duas vezes em novembro, ferindo banhistas.

A remoção e dragagem da areia do mar foi a causa aparente da perigosa presença de tubarões. Mesmo assim, próximo dali, em Ilhabela, a prefeitura prepara-se para dragar e retirar areia do mar e alargar a praia. Procura, com isso, repor a erosão das faixas de areia provocadas pelas obras do Porto de São Sebastião e do terminal da Petrobras, que mudaram o fluxo d’água no entorno da ilha, estreitando as praias.

A falta de um planejamento amplo, que abarcasse toda a região marítima quando o porto e o terminal foram construídos, acabou impactando no conjunto das praias do litoral norte. Será que a expansão e o embelezamento ainda maior das praias de Ilhabela não perceberam que a natureza tem regras próprias e que nós, humanos, temos de respeitá-las e coabitar com elas?

Ou continuamos com a velha e carcomida ideia (ou concepção) de que o ser humano pode subjugar a natureza e fazê-la escrava das extravagâncias do nosso dia a dia?

Se assim for, nada teremos aprendido da reunião de Glasgow sobre as mudanças climáticas e estaremos matando os alertas da ciência, tal qual a polícia mata a esmo no Brasil, sem nem sequer investigar.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, Jornalista e escritor, multipremiado, é Professor Aposentado da UnB. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 04.12.21,

O escarcéu como método

Ausência de bolsonaristas nos testes da urna eletrônica prova que a bagunça provocada pelo presidente a respeito da confiabilidade do voto era só para distrair o País

A conclusão dos testes de integridade da urna eletrônica pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no fim de novembro comprovou a confiabilidade de um sistema moderno e do qual o Brasil pode se orgulhar. Por seis dias, as urnas ficaram à disposição de ataques de “hackers do bem”, um trabalho que teve como objetivo aprimorar a tecnologia para a disputa de 2022. Vinculados a universidades, empresas privadas e órgãos públicos, 26 investigadores se inscreveram para o desafio de procurar vulnerabilidades físicas e tecnológicas para invadir o sistema. Das 29 iniciativas, 24 falharam completamente e 5 apontaram apenas oportunidades de aperfeiçoamento. Nenhuma foi capaz de alterar o voto dos eleitores, explicou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso.

Chamou a atenção, no entanto, o desinteresse dos partidos políticos em participar do processo de fiscalização da urna eletrônica, principalmente dos apoiadores do presidente da República. Nem parece que há quatro meses o Brasil foi palco de um show de horrores liderado por Jair Bolsonaro, que contestava o sistema que o elegeu deputado federal por cinco vezes e que lhe conferiu o mais alto cargo do País em 2018. Sem apresentar nenhuma prova sequer sobre a vulnerabilidade das urnas, o presidente mobilizou as atenções dos cidadãos e das instituições, alimentando a hipótese – de resto não inteiramente afastada – de que não reconhecerá o resultado das eleições do ano que vem se ele não for o vencedor.

Os deputados rejeitaram o retorno da obrigatoriedade do voto impresso, mas apenas a apreciação do tema na Câmara já mostrou o ridículo da situação. É simbólico que ele tenha sido pauta depois de mais de 615 mil mortes em razão da pandemia de covid-19, crescimento da evasão escolar, desemprego elevado, inflação descontrolada e economia em recessão técnica. É bom lembrar que imprimir o voto, segundo estimativa do TSE, custaria ao Orçamento ao menos R$ 2,5 bilhões.

Em um simulacro do que Donald Trump promoveu ao incentivar a invasão do Capitólio nos Estados Unidos na véspera da posse de Joe Biden, Bolsonaro, durante meses, insuflou milhares de pessoas a ir às ruas para defender um evidente retrocesso. No dia da votação, em um sinal da captura das instituições pelo bolsonarismo, as Forças Armadas se prestaram ao papel de tentar intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) com um desfile de blindados na Esplanada dos Ministérios, ao custo de R$ 3,7 milhões dos cofres públicos. Antes, o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, mandou avisar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não haveria eleições no ano que vem caso não houvesse impressão dos votos e contagem pública dos resultados. A ameaça, revelada pelo Estado, é investigada pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Felizmente, a Câmara derrubou o voto impresso, mas ainda assim boa parte dos parlamentares deu apoio ao texto – que somente não passou por não ter conquistado os 308 votos necessários para uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Defendida nas manifestações antidemocráticas de 7 de Setembro, a principal bandeira bolsonarista, subitamente, deixou de ser prioridade. “Passamos a acreditar no voto eletrônico”, disse o presidente, no início de novembro. “Capítulo encerrado”, acrescentou.

Não é por acaso que nenhum partido do Centrão e nem mesmo um único político da base tenham ido testemunhar o sucesso da inspeção da urna eletrônica depois de meses de embates na Câmara. As Forças Armadas enviaram observadores e integraram uma comissão do TSE, mas não participaram dos testes. A ausência diz muito sobre todos aqueles que se mantêm no grupo de apoio do governo: o problema nunca foi a segurança da urna.

Erra quem avalia que a derrota teria afinal convencido Bolsonaro sobre a confiabilidade do sistema eleitoral. Não era o voto impresso em si que motivava o presidente, mas sim inventar argumentos para trazer instabilidade para o País e, assim, mobilizar a horda de fanáticos que o seguem. É no caos que o autoritarismo bolsonarista prospera.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de dezembro de 2021 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A habilidade de Moro

Como mostram também as pesquisas de opinião, há um grande contingente de eleitores que não compraram a narrativa de que houve injustiça contra o ex-presidente Lula e de que o então juiz Moro foi parcial nos julgamentos. 

Não há mais a menor dúvida de que o surgimento de Sergio Moro como pré-candidato à Presidência da República pelo Podemos provocou, no mínimo, um toque de alerta nos até agora favoritos, o ex- presidente Lula e o presidente Bolsonaro. Os dois se preparam para lutar entre si, cada um achando que o outro é o adversário mais fácil de ser derrotado.

Basta ver que tanto petistas quanto bolsonaristas escolheram Moro como alvo principal da campanha que finge não ter começado ainda, mas está a pleno vapor, comendo etapas num processo acelerado. O PT começou um movimento para garantir a eleição de Lula no primeiro turno, igualando Moro a Bolsonaro, e aí mora o perigo.

Moro virou herói de milhões de brasileiros ao lutar contra a corrupção institucionalizada, enfrentando os poderosos da época, leia-se Lula e o PT. Para esses, Moro como juiz construiu sua reputação e realizou sua grande obra, a Operação Lava-Jato. Com a publicação de seu livro e as várias entrevistas que tem dado, Moro já se mostrou disposto a encarar o grande desafio de enfrentar a campanha de desmoralização que foi armada contra ele, “com Supremo, com tudo”, como pregava o ex-líder de todos os governos Romero Jucá.

Como mostram também as pesquisas de opinião, há um grande contingente de eleitores que não compraram a narrativa de que houve injustiça contra o ex-presidente Lula e de que o então juiz Moro foi parcial nos julgamentos. A campanha se encarregará de relembrar os acontecimentos. Caberá a ele confirmar a fidelidade desses que empolgou como juiz e agora busca cativar como candidato. Há uma grande variedade, entretanto, nesse nicho em que Moro terá de buscar votos.

Há os que estão desenganados pela atuação de Bolsonaro, que recuou em todos os compromissos assumidos de combate à corrupção; há os que votaram contra o PT, e não a favor de Bolsonaro, e hoje estão abertos a uma alternativa que veste bem em Moro; há as viúvas do PSDB original, sem alternativa a esta altura, que levam em consideração até mesmo votar em Lula contra Bolsonaro; e há os que gostariam de ver em Moro um Bolsonaro 2.0, a versão original do justiceiro que elegeram em 2018 e depois se entregou ao Centrão.

Há ainda eleitores que sempre votaram no PSDB porque não havia alternativa eleitoralmente viável mais à direita, liberal-conservadora, e preferem votar em Bolsonaro a apoiar um candidato simpático a ideias que consideram de esquerda, como as políticas identitárias. Mas nunca confiaram realmente nos tucanos como adversários do petismo e, como o ministro Paulo Guedes diz, os consideram sociais-democratas da mesma linhagem dos petistas.

“Será que, como político, veremos a mesma coragem e coerência do juiz?”, perguntam-se alguns. Muitos não veem em Moro a capacidade política de enfrentar em vantagem Lula e o PT, ficam em dúvida ao constatar o que classificam de “timidez” diante daqueles que, no Supremo e na Procuradoria-Geral da República, trabalharam para desfazer sua obra e conspurcar sua biografia.

Para esse grupo, se o candidato Moro espera efetivamente conquistar um espaço político na centro-direita capaz de lhe alçar ao segundo turno, terá de demonstrar, com ênfase, sua indignação contra os que envergonharam a Justiça brasileira. As manifestações do 7 de Setembro, que acobertaram uma clara tentativa de golpe autoritário contra o Supremo, que se contrapunha à distribuição em massa de fake news e aos avanços de grupos autoritários sobre a democracia instigados por Bolsonaro, tinham como bandeiras principais, na definição desse nicho direitista, a defesa da liberdade de expressão e críticas a ações que consideravam eticamente vexaminosas e autoritárias do Supremo.

Se o candidato Moro se dispuser a vestir a fantasia de Bolsonaro 2.0, poderá tirar eleitores do presidente, mas pode também se confundir com os extremistas. Para avançar no campo da centro-direita, terá de se contrapor ao Bolsonaro de 2022 e reafirmar compromissos que foram abandonados por ele em 2018. Terá de trilhar esse caminho delicado com o cuidado de um equilibrista. Coisa de quem tira a meia sem tirar o sapato, como se diz de políticos hábeis.

Merval Pereira, Jornalista, originariamente para O Globo, em 03.12.21

PGR abriu seis apurações preliminares envolvendo Bolsonaro com base em relatório da CPI da Covid

Além do presidente, ministros e parlamentares são alvos de 10 apurações sigilosas da Procuradoria-Geral da República; veja a lista

Augusto Aras (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

Com base no relatório final produzido pela CPI da Covid, a Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu um conjunto de seis novas investigações preliminares envolvendo  o presidente Jair Bolsonaro junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e também ministros do governo e parlamentares. Os procedimentos estão sob sigilo, a pedido da PGR. No total, foram apresentadas dez petições ao STF na semana passada. Esses documentos relacionam 12 autoridades com foro privilegiado no STF — algumas delas aparecem em mais de um processo.

As petições estão sob análise dos seis ministros relatores que foram sorteados para cuidar dos casos. As informações foram confirmadas por integrantes do STF. A PGR dividiu as petições com base nos supostos crimes apontados pela CPI em seu relatório final. Todos os pedidos se baseiam nas informações apuradas pela comissão parlamentar ao longo dos seis meses de trabalho, sem nenhuma prova adicional produzida até o momento.

Trata-se ainda de um estágio anterior à abertura de inquérito, solicitado pela PGR para fazer uma análise prévia sobre os fatos e avaliar se há indícios suficientes de crimes que justifiquem a abertura de inquéritos. Nas petições, a PGR pediu a expedição de ofícios ao Senado para a obtenção de documentos complementares da CPI da Covid e também solicitou que os alvos sejam intimados para apresentarem esclarecimentos por meio de suas defesas.

Dentro dessas petições, também será analisada a conduta de ministros do governo e parlamentares bolsonaristas. Por exemplo: a petição do crime de epidemia cita a conduta do ministro da defesa Braga Netto e do ministro da Saúde Marcelo Queiroga, com base no relatório da CPI. A petição sobre incitação ao crime envolve a atuação de deputados bolsonaristas na divulgação de informações falsas sobre a Covid-19, como o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP) e Carlos Jordy (PSL-RJ), além de blogueiros bolsonaristas.

O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), é alvo de outras duas petições, para apurar crimes de advocacia administrativa e organização criminosa envolvendo tratativas de vacinas com o Ministério da Saúde.

Por último, o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, é alvo de uma petição que cita suspeita do crime de prevaricação na atuação da CGU para investigar a compra da vacina Covaxin. 

Aguirre Talento e Mariana Muniz, originalmenre, para O Globo, em 02.12.21

O credo do novo ministro do Supremo

Por quanto tempo André Mendonça será vinculado a Bolsonaro e aos critérios inconstitucionais que o levaram ao STF, só ele pode dizer

O Senado aprovou a indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF) por 47 votos a favor e 32 contra. Mendonça obteve apenas seis votos acima do mínimo necessário e chega à mais alta instância do Poder Judiciário com a menor aprovação parlamentar da história recente. Mas, a rigor, isso é apenas um reflexo dos obtusos critérios que pautaram a sua indicação pelo presidente Jair Bolsonaro. O placar já não tem a menor importância. Uma vez que o ex-advogado-geral da União seja empossado, seus votos como ministro do STF valerão rigorosamente a mesma coisa que os votos de seus dez colegas. E sobre Mendonça recairá a mesma e ingente obrigação dos demais ministros: garantir a ordem constitucional do País acima de tudo.

A partir de agora, portanto, os olhares devem estar voltados para o futuro, um longo futuro. Com 48 anos, André Mendonça poderá permanecer no STF por quase três décadas. Por um lado, isso inspira preocupação porque é tempo demais para que tenha assento na Corte Constitucional um ministro que, até o momento, só deu mostras nos cargos públicos que ocupou de que não hesita em rebaixar a Constituição quando estão em jogo valores da fé religiosa que professa ou os interesses de ocasião de seu padrinho político, o presidente Bolsonaro.

Evidente que toda indicação ao STF é política. A própria Corte é eminentemente política. Mendonça jogou o jogo para ser indicado e, depois, aprovado pelo Senado. Assim é o arranjo constitucional brasileiro no que concerne à composição do Supremo. O que merece atenção, no caso particular de Mendonça, é que Bolsonaro fez questão de enfatizar o tempo todo que só indicou o ex-advogado-geral da União ao cargo por ele ser o que chamou de “terrivelmente evangélico” e, em tese, leal a seus interesses. Bolsonaro é alguém que pensa o Estado e o exercício do poder sob a ótica do patrimonialismo. Basta lembrar que há pouco tempo o presidente da República afirmou ter “10% do STF”, e que só indicou o ministro Kassio Nunes Marques porque este “toma tubaína” com ele nos fins de semana. Se Bolsonaro passará a ter “20%” do STF, só André Mendonça pode dizer.

Por outro lado, o longo tempo que Mendonça tem pela frente no STF – muito além de mandatos presidenciais – servirá para que ele, que se diz “genuinamente evangélico”, mostre à sociedade que é, antes, genuinamente um ministro da Corte, que tem como norte apenas a Constituição. É o que se espera. Por quanto tempo o ministro calouro será identificado com Bolsonaro e com os critérios inconstitucionais que orientaram sua indicação depende exclusivamente dele.

Se a fé religiosa de Mendonça foi uma espécie de passaporte para sua entrada no STF, agora se converte em um fardo do qual o ministro precisa se livrar caso queira dissipar as suspeitas que pairam sobre sua atuação na Corte. Não foi por outra razão que Mendonça abriu sua fala na sabatina perante a Comissão de Constituição e Justiça do Senado afirmando que defende, antes de tudo, a democracia e o Estado de Direito – era só o que faltava dizer o contrário – e a laicidade do Estado. “Ainda que genuinamente evangélico, comprometo-me com o Estado laico. Entendo não haver espaço para manifestação pública ideológica durante sessões do Supremo”, disse Mendonça, negando um pedido de Bolsonaro para que, uma vez ministro, fizesse uma “oração semanal” no início das sessões do STF.

Durante a sabatina, na verdade uma encenação coletiva, Mendonça deu respostas sob medida – corretas e longamente treinadas – para delimitar seu comportamento como cidadão, pastor presbiteriano e ministro do STF. “Na vida, a Bíblia”, disse o sabatinado, “no Supremo, a Constituição.” Entretanto, já aprovado, Mendonça afirmou que sua entrada na Corte era “um passo para o homem, um salto para os evangélicos.”

Espera-se que a paráfrase da notória fala do astronauta americano Neil Armstrong tenha sido apenas uma espécie de prestação de contas às lideranças evangélicas que fizeram intenso lobby pela sua chegada ao STF, e não um sinal de como se portará o novo ministro daqui para a frente.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03.12.21


Com mais um recuo, o País mantém um dos piores desempenhos econômicos do mundo, longe da fantasia do ministro Paulo Guedes

Com dois tombos em dois trimestres, inflação disparada e desemprego muito alto, o Brasil mantém um desempenho econômico desastroso, muito longe da ficção sustentada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Sem nenhum grande avanço para celebrar, economistas discutem agora se o País voltou à recessão, com duas taxas trimestrais negativas, ou se está apenas estagnado, em contraste com a maior parte do mundo. A discussão pode ir longe, enquanto a economia mal se move. No período de julho a setembro o Produto Interno Bruto (PIB) foi 0,1% menor que nos meses de abril a junho, quando já havia diminuído 0,4% em relação ao volume dos primeiros três meses. Essa sequência, segundo analistas, caracteriza uma recessão técnica. Como as quedas foram pequenas, há quem prefira falar de “estabilidade”, mas isso em nada melhora o quadro.

Desmentindo o ministro Guedes e seus auxiliares, os dados internacionais mostram o Brasil em posição muito desvantajosa. O PIB cresceu nos três primeiros trimestres – 0,7%, 1,7% e 0,9% – no conjunto de países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Na União Europeia houve recuo de 0,1% nos primeiros três meses e avanços de 2% e 2,1% nos períodos seguintes. Na maior parte dos grandes emergentes os números também têm sido positivos. Além disso, o desemprego na OCDE já caiu para 5,8% e a inflação nos 12 meses até outubro ficou em média em 5,2%.

No Brasil, todos os principais indicadores são muito piores. Embora em queda, o desemprego ainda correspondeu no terceiro trimestre a 12,6% da força de trabalho, com 13,5 milhões de pessoas em busca de ocupação. A alta dos preços ao consumidor chegou a 10,73% nos 12 meses terminados em novembro, segundo a prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – 15 (IPCA-15). Enquanto os dados pioram no dia a dia, pioram também as projeções para o próximo ano e até para o seguinte, o primeiro do próximo período presidencial.

Não há surpresa, portanto, nos números muito ruins do terceiro trimestre, em parte já indicados pelas prévias do PIB publicadas mensalmente pelo Banco Central e pela Fundação Getúlio Vargas.

A maior parte da economia foi mal no período de julho a setembro. Só um dos três grandes setores produtivos, o de serviços, teve desempenho positivo no terceiro trimestre, com expansão real de 1,1%. A agropecuária produziu 8% menos que nos três meses anteriores, em parte por causa da base de comparação elevada, em parte por causa das más condições do tempo. O conjunto da indústria ficou estagnado, com variação zero. Isso é em parte atribuível a falhas no suprimento de insumos, um problema global e muito sério para a produção automobilística.

Mas a explicação geral tem de ser mais ampla, porque só um dos segmentos industriais, o da construção, teve resultado positivo, com avanço de 3,9%. Parte importante da resposta deve estar na demanda final. O consumo das famílias aumentou 0,9%, mas permaneceu muito contido, por causa do desemprego, da inflação e da perda de renda. Em quatro trimestres, o gasto com o consumo familiar aumentou só 2,1% enquanto o PIB cresceu 3,9%. O empobrecimento, um dado inegável, condena a maior parte da população a conter os gastos severamente, baixando os padrões de consumo e, em muitos casos, limitando as possibilidades de desenvolvimento dos filhos.

Desemprego, inflação, perda de renda, falhas nas ações anticíclicas e de ajuda emergencial mantêm o presente estagnado e o futuro incerto. A insegurança quanto aos próximos anos é agravada pelo risco de piora das contas públicas, ameaçadas pela irresponsabilidade presidencial e pelo rompimento com as boas normas de uso do dinheiro público, sujeito cada vez mais aos fins pessoais do presidente e ao apetite de seus apoiadores. Quase encerrado o ano, os sinais econômicos positivos permanecem escassos, enquanto as incertezas se acumulam, alimentadas também pelo temor de novas cepas de coronavírus, tanto mais perigosas quanto maior a carência de um governo sério e competente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03.12.21

Governo Bolsonaro já trocou ao menos 20 delegados de cargos de chefia na PF

Série de intervenções não encontra precedentes e é atribuída a divergências políticas com o governo e com a cúpula da corporação, ou de investigações que desagradaram ao Planalto      

Sede da PF em São Paulo; colegas afirmam que Dominique de Castro Oliveira era crítica à gestão do delegado-geral da organização, Paulo Maiurino. Foto: Divulgação

Com a saída da delegada Dominique de Castro Oliveira do escritório da Interpol, o governo Jair Bolsonaro já acumula ao menos duas dezenas de mudanças na Polícia Federal em razão de divergências políticas com o governo e com a cúpula da corporação, ou de investigações que desagradaram ao Planalto.

Para delegados ouvidos pelo Estadão, a série de intervenções não encontra precedentes, e levou à geladeira, ou “corredor” – termo usado na PF para quem está em estado de fritura pela direção – experientes quadros, com histórico de participação em importantes investigações. As mudanças continuam mesmo em meio a uma investigação que se arrasta há mais de um ano no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre suspeita de interferência política do presidente Jair Bolsonaro na corporação. 

“Fiz algum comentário que contrariou. Qual foi, quando, para quem, em que contexto e ambiente, não sei”, disse Dominique, em mensagem encaminhada aos colegas. “Há uma forte sensação de revolta e de estar sendo injustiçada”, escreveu. A delegada atuava há 16 meses na Interpol, cargo de indicação da direção. 

Internamente, colegas afirmam que ela era crítica à gestão do delegado-geral, Paulo Maiurino, e que assinou manifestação pública a favor do delegado Felipe Barros Leal, afastado do inquérito que investiga suposta interferência política de Bolsonaro na PF. Pelas mãos da delegada passou também o pedido de extradição do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos. Em nota, a cúpula da PF afirma que o episódio não teve relação com a saída da delegada, que teria atuado de maneira protocolar ao encaminhar o pedido, sem decidir nada a respeito. 

Dominique vai reforçar a Superintendência da PF no Distrito Federal, para onde já foram deslocados outros sete delegados desde que Maiurino assumiu o comando da corporação. Hoje, há 45 delegados naquela unidade.

O presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Félix de Paiva, afirmou que a entidade acompanha o caso. “Com as informações disponíveis até o momento, a associação não concorda que colegas sejam movimentados sem fundamentação clara e sem critérios.” Além deste, outros casos recentes que chamam atenção dos delegados.

A delegada Silvia Amelia da Fonseca, que deu andamento ao processo de extradição de Allan dos Santos, foi exonerada da diretoria do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Dias antes da extradição, o secretário Nacional de Justiça, Vicente Santini – homem de confiança da família Bolsonaro, que já ocupou diversos cargos no governo – havia pedido para ter acesso a processos de extradição ativa, aqueles em que o Brasil pede a outros países a entrega de alvos da Justiça.

Outro caso recente é de Thiago Delabarry, que chefiou a área de combate a corrupção e lavagem de dinheiro na cúpula da PF e deixou o cargo após Maiurino assumir a Diretoria-Geral. Em julho deste ano, a Superintendência da PF no Rio Grande do Sul indicou Delabarry para o comando da delegacia de combate a corrupção, em Porto Alegre. Em setembro, seu nome foi vetado por Maiurino. 

O veto é atribuído ao fato de que, sob sua gestão, o delegado Bernardo Guidale conduziu o acordo de delação premiada do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, que citou o ministro do STF Dias Toffoli e o presidente do STJ, Humberto Martins. Maiurino foi segurança de Toffoli e trabalhava para a Presidência do STJ antes de ser nomeado. Ele teria se surpreendido com o pedido de investigação do ministro do Supremo. Toffoli se aproximou de Bolsonaro ao longo do governo. 

Bernardo Guidali, que conduziu a delação de Cabral, também perdeu cargo no Serviço de Inquéritos Especiais (Sinq), responsável por investigar autoridades com foro privilegiado. 

Em nota, a PF afirmou que “as movimentações de servidores dentro da instituição é regular e faz parte dos mecanismos de gestão administrativa, não havendo outras razões que não a de ordem técnica para melhor atender as finalidades institucionais”. Diz ainda que “eventuais substituições de cargos de chefia um processo natural que não causa qualquer tipo de prejuízo aos serviços prestados”. O Estadão tentou contato com Maiurino, mas ele não se manifestou. O Palácio do Planalto não havia se manifestado até o momento.

Relembre outros episódios

Extradição de blogueiro

Delegada Dominique de Castro Oliveira foi transferida do escritório da Interpol e a delegada Silvia Amelia da Fonseca, que deu andamento ao processo, foi exonerada da diretoria do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional.

Mensagens hackeadas  

O delegado Felipe Leal foi tirado do Serviço de Inquéritos Especiais (Sinq) após elaborar relatório em que disse não ser possível “presumir” a autenticidade das mensagens hackeadas de integrantes da força-tarefa da Lava Jato.

Sérgio Cabral 

Bernardo Guidali, que conduziu a delação na qual o ex-governador do Rio Sérgio Cabral citou o ministro Dias Toffoli, do STF, perdeu cargo. 

Operação Akanduba

O delegado Franco Perazzoni, que conduziu a operação que mirou o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, teve seu nome barrado para assumir a chefia do combate ao crime organizado. 

Ricardo Salles 

O ex-superintendente da PF no Amazonas Alexandre Saraiva foi exonerado após acusar Salles de crime ambiental. 

Polícia Federal

Em nota, a PF afirmou que “as movimentações de servidores dentro da instituição é regular e faz parte dos mecanismos de gestão administrativa, não havendo outras razões que não a de ordem técnica para melhor atender as finalidades institucionais”.

Rayssa Motta, Luiz Vassallo e Davi Medeiros, originariamente, para O Estado de S.Paulo, em 03 de dezembro de 2021 | 05h00

Evangélica, Marina Silva critica frase de Mendonça após nomeação ao STF

A ex-ministra do Meio Ambiente retrucou a declaração de que a entrada do ex-advogado geral da União na Corte era "um salto para os evangélicos".

Ex-ministra do Meio Ambiente e uma das principais lideranças políticas da Rede Sustentabilidade, Marina Silva criticou uma declaração de André Mendonça, futuro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Após ter o nome aprovado no Senado na quarta-feira (1/12), Mendonça disse que a entrada dele na Corte era “um passo para o homem, mas um salto para os evangélicos".

Marina, que é evangélica, disse que Mendonça interpretou a aprovação para ser ministro como “um passo dele, mas significando avanço dos evangélicos”, e criticou o papel de “ministro evangélico”, empregado ao ex-advogado geral da União.

“O povo brasileiro espera que os ministros do STF sejam juízes impessoais e imparciais, com o devido saber jurídico para, em conformidade com nossas leis e a nossa Constituição, promoverem a justiça para todos os habitantes do país que ali recorram. Não se espera que ministros do STF sejam a representação de qualquer segmento da sociedade. O espaço da representação política é o parlamento”, escreveu em uma postagem no Instagram.

Em 2014, Marina foi candidata à presidência da república. Ela terminou em terceiro lugar, recebendo 22,1 milhões de votos.

Pedro Grigori, originalmente, para o Correio Braziliense, em 02.12.21.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A inflação corrói a renda dos brasileiros, mas ela é mais cruel com quem tem menos

Alta dos preços acumula 10,7% em 12 meses, mas o impacto nos menos favorecidos é dois pontos porcentuais maior do que para os privilegiados

 

Mulher observa produtos no mercado de Santo Amaro, em São Paulo, Brasil, em 25 de novembro de 2021 Crédito da foto: (Lela Beltrão).

É quinta-feira no fim da manhã e uma feira de produtos frescos em uma rua de Santo Amaro, região de classe média baixa de São Paulo, está quase deserta por culpa de um fenômeno que o Brasil não vivia há um quarto de século: uma inflação que chega aos dois dígitos, sobe a cada mês e ainda não foi contida. O aumento dos preços que percorre o mundo após a chegada da pandemia é sentido em cheio por aqui. Afasta a clientela, obriga a fechar barracas e, em um efeito perverso, aumenta a desigualdade que corrói o país. A inflação atinge com mais dureza o estômago dos brasileiros pobres do que o bolso dos ricos. Uma cliente aqui e outra ali compram um pouco de fruta ou verdura enquanto uma terceira mulher recolhe discretamente o que encontra de aproveitável entre os produtos descartados pelos feirantes.

Dayane Ferreira, de 38 anos, era analista financeira até que a pandemia a deixou sem trabalho, então ela entende um pouco de preços e de inflação. Depois de terminar a compra, apoiada no carrinho da filha, estima que nesta feira os preços de muitos produtos subiram entre 30 e 40%. Sua receita para equilibrar as contas inclui os seguintes ingredientes. Um, comprar menos quantidade dos produtos cujos preços dispararam. “Antes pagávamos entre 9 e 10 reais por meio quilo de café, agora custa 17; o preço do tomate dobrou”, detalha. Dois, procurar todo tipo de oferta e ir onde estiverem. Três, “não desperdiçamos nada. Só compramos o que vamos comer”. Ela está procurando trabalho, até agora sem sucesso. Portanto, nem pensar em viajar ou em qualquer outro luxo que antes podia pagar.

Com aumentos mensais nos últimos 12 meses, o Brasil acumula uma inflação de 10,7%, menor do que a inflação da Venezuela ou da Argentina, mas altíssimo para um país que manteve os preços notavelmente estáveis nas últimas duas décadas — é o dobro da meta do Banco Central. Além disso, esse número médio esconde o impacto muito desigual entre os mais privilegiados, os menos favorecidos e todos os que estão entre eles. Para os mais pobres (que ganham menos de 1.800 reais), a alta dos preços é de 11,39%, como detalha Maria Andreia Lameira no último relatório de conjuntura do Ipea. Por outro lado, para os que ganham mais de 17.000 reais por mês, a inflação é dois pontos porcentuais a menos, 9,32%.

Clientes no mercado de Santo Amaro, em São Paulo, Brasil. (Lela Beltrão)

Para os mais pobres, os aumentos nas contas de luz, gás, aluguel, e os preços da batata, café ou açúcar os atinge como um míssil supersônico, levando à insegurança alimentar. Todos os dias 19 milhões de brasileiros acordam sem saber como conseguirão ou se conseguirão a próxima refeição.

Em contraste, os aumentos nos produtos essenciais afetam pouco os orçamentos dos ricos. Os aumentos que mais os prejudicam são os da gasolina, das passagens aéreas (agora que voltam a planejar férias, festas de Ano Novo ou até Carnaval) e do transporte do tipo Uber, conforme o relatório do Ipea.

Quem conheceu os tempos da hiperinflação não os esquece. Rosa Lopes Masomoto, de 77 anos, que trabalhou em um banco até se aposentar, é uma delas. “Foram terríveis, piores do que hoje. O poder aquisitivo era pequeno, tínhamos de chegar à feira correndo, antes que mudassem os preços. Era uma loucura, os aumentos eram galopantes”, recorda enquanto procura verduras frescas. As generosas pensões que os brasileiros mais favorecidos da elite recebem amorteceram para eles um golpe que impacta, como sempre, de maneira desproporcional os milhões que ganham a vida no mercado informal. São aquelas senhoras idosas que ficam nas esquinas para vender doces caseiros.

Ou os protagonistas de uma das cenas que mais horrorizou os cidadãos deste país orgulhoso de ter saído do mapa mundial da fome há alguns anos. As pessoas das filas de ossos, aquelas que aguardam em fila para receber os descartes do açougue para matar a fome.

Para milhões de famílias, como a da empresária Jéssica Batista, de 30 anos, a pandemia e a consequente queda de renda obrigou a mudar a dieta alimentar. Ela conta que em sua casa consomem “mais carne branca e menos carne vermelha”, já que a pandemia reduziu a renda familiar à metade. Mais frango e mais porco.

Mercado de Santo Amaro, em São Paulo (Lela Beltrão)

Arnaldo Silva, de 59 anos e 40 como açougueiro, afirma que nunca na vida tinha visto um quilo de contrafilé a 178 reais. É o produto que mais subiu. Parte dos clientes passou a comprar cortes mais baratos, outros desapareceram. No meio da manhã, seu açougue está vazio. Ele diz que as entregas em domicílio são o que os manteve a salvo.

A feira de Santo Amaro está entrando em um círculo perigoso, explica o fruteiro Rogério Fernández, de 53 anos. Sem clientela, as barracas de carne e de peixe fecharam como uma das barracas de fruta, outra de banana, outra de pastéis... “São onze horas e veja como está”, diz, apontando para o vazio deixado pelos outros feirantes. “E daqui a pouco todo mundo vai almoçar e ninguém mais virá aqui”. Seu medo é que, à medida que a oferta diminua, a clientela pare de comprar lá e leve os que ainda sobrevivem à ruína.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, originalmente de São Paulo, para o EL PAÍS, em 02.12.21

Por que você é de esquerda?

Saber que a sociedade é um mosaico de personalidades políticas deveria nos ajudar a compreender que nenhuma ideologia é essencialmente superior. E que, portanto, pactuar com o outro é dialogar com a natureza humana

Pedro Sánchez responde a Pablo Casado em uma sessão de controle ao Governo no Congresso. (Crédito da foto: Eduardo Parra / Europa Press)

Ou de direita? Cada um tem suas razões: voto no mesmo partido que os meus pais (ou no partido adversário, para ser do contra), venho de um bairro operário, frequentei um colégio de freiras, escutava debates políticos em uma tenra idade, entre outras. Mas todos nós temos certeza de que foi um processo racional: escolhemos conscientemente a ideologia que melhor se ajusta à maneira como vemos o mundo.

No entanto, vários estudos científicos sugerem que nossa ideologia também é determinada por aspectos inconscientes. A estrutura neural das pessoas de esquerda e de direita é diferente. Os progressistas têm mais massa cinzenta no córtex cingulado anterior e os conservadores na amígdala direita. Diante de estímulos idênticos, as pessoas de direita franzem a testa e piscam mais. E embora as análises genéticas sejam difíceis, parece que também progressistas e conservadores se diferenciam em um gene receptor de dopamina.

O novo fascismo eterno

Segundo alguns especialistas, como John Hibbing, o que caracteriza as pessoas de direita é que são mais sensíveis às mudanças (de alimentação, população, costumes, seja o que for); principalmente aquelas percebidas como negativas ou incertas. Ao contrário, ali onde os conservadores veem uma ameaça, os progressistas adivinham uma oportunidade.

E isso torna nossas vidas ligeiramente diferentes. Os conservadores preferem a arte realista e os progressistas a abstrata; as casas de direita têm mais produtos de limpeza e calendários; as de esquerda, mais malas e livros. E também leva a diferentes atitudes políticas. As pessoas de direita, mais suscetíveis aos estímulos negativos, preferem políticas que reduzam as ameaças (como gastos com defesa ou tratamento duro aos criminosos) e promovam a conformidade social (cantar o hino na escola), a responsabilidade individual (oposição a ajudas públicas generosas) ou a tradição (religiosa e familiar).

Mas o fato de a ideologia estar parcialmente (cuidado, não totalmente) programada em nosso subconsciente não significa que esquerdistas e direitistas estejam condenados a se confrontar, muito pelo contrário. Saber que a sociedade é um mosaico de personalidades políticas deveria nos ajudar a compreender que nenhuma ideologia é essencialmente superior. E que, portanto, pactuar com o outro é dialogar com a natureza humana. @VictorLapuente

Victor Lapuente, originalmente para o EL PAÍS, em 02.12.21

No tabuleiro eleitoral, há opções para todos menos Bolsonaro

As peças estão se mexendo cada vez mais rápido para 2022. Em meio a várias possibilidades de alianças para fortalecer a esquerda de Lula ou uma terceira via no centro, Bolsonaro parece cada vez mais isolado.

"Alguém topa ser vice de Bolsonaro, além de algum sapo que se ache príncipe?", escreve o colunista Thomas MilzFoto: Evaristo Sa/AFP

Com João Doria definido como candidato do PSDB à Presidência do Brasil, abriram-se novas (ou velhas) possibilidades de chapas presidenciais para 2022.

Para começar, a vitória de Doria nas prévias tucanas resulta na saída de Geraldo Alckmin do PSDB. Haverá conversas sobre uma nova filiação do ex-governador de São Paulo e sobre uma possível chapa com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seria uma opção interessante para Lula entrar no eleitorado social-democrata, o "centrão bacana", e aumentar seu leque eleitoral para além da "esquerda pura"

Como Lula aparece nas pesquisas com um núcleo forte de 35% a 40% das intenções de votos, e com o presidente Jair Messias Bolsonaro na casa dos 20% a 25%, temos um eleitorado de aproximadamente 35% no centro.

É aí que a "terceira via" está pescando seus peixes. E há vários pescadores por aí, entre eles a senadora Simone Tebet (MDB) e Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Senado. Os dois têm, ao mesmo tempo, "cheiro" de uma possível chapa com Lula, caso a opção Alckmin falhe. Principalmente Tebet seria uma opção interessante para Lula, pois ela representaria as mulheres e os ruralistas do Centro-Oeste.

Haverá mais uma vez a "terceira via Ciro Gomes" ou, melhor dizendo, a "terceira via raivosa". Ciro parece ter um destino parecido ao de Marina Silva: começar forte nas pesquisas para depois terminar em terceiro e cair fora. Parece que seu temperamento lhe prejudica nos momentos cruciais. Será que ele continuará nunca chegando lá? Pode ser diferente agora em 2022? Seu orgulho lhe deixaria entrar numa aliança ampla da esquerda para apoiar Lula num eventual segundo turno?

E o que dizer de Sergio Moro e João Doria? Está pintando uma possível aliança entre os dois? Para Doria, seria uma quase continuação do seu discurso anti-PT de 2018, mas sem a casca de banana do bolsonarismo. Mas considerando que tanto Moro quanto Doria têm um ego forte, quem cederia para ser o vice? Ou poderia haver uma espécie de job sharing, para trocar de lugar em 2026? Moro deve estar tranquilo por enquanto, esperando as pesquisas de maio ou junho de 2022. Se aparecer forte, vai sozinho. Se aparecer fraco, poderia pegar carona numa outra candidatura, como a de Doria.

Por outro lado: Moro já sentiu como é ser apenas o "sub" de um ego grande no caso de Bolsonaro, que colocou Moro como seu ministro da Justiça para depois tirar os poderes dele. Moro entraria novamente numa fria dessas? E Doria, teria perfil de vice?

Quem já provou que tem perfil de vice é Hamilton Mourão, o atual vice-presidente. Ele poderia seguir o general Santos Cruz e se juntar ao Podemos, de Sergio Moro. Poderemos ter a ala militar, decepcionada com Bolsonaro, migrando para Moro.

Vocês perceberam algo importante? Estamos falando de várias opções para fortalecer a esquerda de Lula ou uma terceira via no centro. Todo mundo, aparentemente, tem opções. Menos o próprio Bolsonaro, que parece estar cada vez mais isolado.

Agora ele se filiou ao PL e está, portanto, de volta ao "verdadeiro centrão". Alguém topa ser vice dele, além de algum sapo que se ache príncipe? Olhando para as pesquisas atuais, tem de ser suicida político ou bem baixo clero para topar ser vice de Bolsonaro. Ele é tóxico até na esfera política. Ele é um escorpião, ninguém confia.

Mas tudo pode mudar de uma hora para a outra na política brasileira. E, até onde sei, ninguém tem bola de cristal.

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Thomas Milz, o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. / Publicado originalmente pela Dewtsche We

Waack: Os caciques e o efeito Moro

Candidatura do ex-juiz antecipou a corrida e as dúvidas sobre o presidencialismo brasileiro

Embalado pelo próprio 'efeito' inicial, Moro tem repetido que a aliança entre forças aparentemente antagônicas é a fórmula de sucesso que ele acha possível reeditar. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Os fatos se adiantaram aos cálculos dos operadores políticos e eles tiveram de correr devido ao “efeito Moro”. Previam a largada para as eleições do ano que vem apenas em abril. O “grid” estará completo, porém, ainda antes do Natal – quase meio ano de antecipação, uma enormidade de tempo na política.

O “efeito Moro” se define pela velocidade e abrangência com que um dos competidores alcançou projeção especialmente nos grupos de formadores de opinião. O alarme entre os concorrentes soou devido a um fato do qual já se fala há tempos, mas que esse “efeito” tornou ainda mais evidente.

Embalado pelo próprio 'efeito' inicial, Moro tem repetido que a aliança entre forças aparentemente antagônicas é a fórmula de sucesso que ele acha possível reeditar. Foto: Dida Sampaio/Estadão
É a existência ou não de uma mistura (a proporção de combustível e ar no mundo dos motores) pronta para ser incendiada. Trata-se do potencial de voto em busca de quem não seja Lula ou Bolsonaro. A presença dessa larga camada é sabida há meses, e o mérito do “efeito Moro” até aqui foi demonstrar que, aparentemente, essa mistura está mais próxima de reagir à faísca do que se pensava.

Os operadores de várias forças políticas reagiram rápido ao “efeito Moro”, fato que reconhecem em público, mas não acham que seja necessário alterar outro cálculo: o de que decisiva mesmo nas próximas eleições é a formação de grandes bancadas. É o que explica movimentos de fusão (como PSL e DEM) e a relativa facilidade com que o Legislativo driblou o STF e convergiu com o Planalto para aprovar matérias que garantem a irrigação de emendas, com transparência ou não, e fundos eleitorais. Grandes bancadas dependem de grandes verbas.

Essa postura das raposas da política é uma útil lição para se entender o fundamental dos cenários pós-eleições. Emendas do relator e orçamento secreto não são outra coisa senão a expressão do avanço do Legislativo em suas prerrogativas – leia-se poder de fato. Traduz um progressivo enfraquecimento da autoridade do presidente da República no uso de ferramentas como alocação de recursos via orçamento, iniciada com a incompetência política de Dilma Rousseff (competência que Temer demonstrou ao escapar de duas denúncias) e acelerada pela incompetência política de Bolsonaro.

Está longe ainda do grande público a ideia de que o presidente que for eleito no ano que vem terá menos poderes frente aos parlamentares do que o presidente eleito em 2018. Embalado pelo próprio “efeito” inicial, Moro tem repetido que a aliança entre forças aparentemente antagônicas (PSDB e PFL) nos idos de FHC é a fórmula de sucesso que ele acha possível reeditar. É bom lembrar que FHC mandava mais, e do lado de lá tinha só um grande cacique. 

William Waack, Jornalista e Apresentador do Jornal da CNN, originalmente, para O Estado de S.Paulo, em 02 de dezembro de 2021.