terça-feira, 19 de outubro de 2021

"É preciso afastar Bolsonaro já para parar a matança"

Após 70 anos de ação política, Chico Whitaker diz não poder ignorar o que ocorre no Brasil sob Bolsonaro, cuja "missão é destruir". A esperança do ativista é que o presidente seja afastado por crimes na pandemia.

"A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites", diz Chico Whitaker

A um mês de completar 90 anos, o ativista político Francisco Whitaker, precursor da luta que permitiu a apresentação de projetos de lei por meio de iniciativa popular – como a Lei da Ficha Limpa, que teve 1,6 milhão de assinaturas –, procura desesperadamente por uma porta aberta para que se possa retirar Jair Bolsonaro da presidência do Brasil.

Descrente do impeachment, apontando ser difícil que este passe na Câmara, e de uma cassação da chapa de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Chico Whitaker vê como único caminho possível a responsabilização criminal do presidente por crimes comuns e omissões da administração federal no combate à pandemia de covid-19.

Já foram enviadas ao menos quatro representações de entidades da sociedade civil à Procuradoria-Geral da República (PGR), pedindo que Bolsonaro seja julgado por crimes diversos que cometeu. Se a PGR acatar os pedidos e denunciar Bolsonaro, o presidente só poderia ser processado com aval da Câmara dos Deputados, sendo afastado do cargo imediatamente por 180 dias. O ativismo político por mais de sete décadas, porém, faz com que Whitaker mantenha os pés no chão.

"O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. É difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados", afirmou à DW Brasil.

Chico Whitaker: "É triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada"

Afastado de qualquer atividade político-partidária desde o início dos anos 2000, Whitaker diz que vai continuar militando na sociedade civil "até morrer". O exílio que viveu por 15 anos, no período da ditadura, após pertencer ao governo de João Goulart, a experiência da Constituinte e tantas outras lutas o alimentaram, sustenta.

"Desde que Bolsonaro foi empossado, que sua missão é destruir", diz. "É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais."

DW Brasil: Após décadas de ativismo contra a corrupção eleitoral e por transparência na política, qual sua avaliação sobre os movimentos do Congresso para se alterar o sistema político brasileiro e retroceder em várias legislações?

Francisco Whitaker: Esse Congresso foi composto na mesma onda de eleição do Bolsonaro. Ele conseguiu uma quantidade expressiva de aliados no Congresso e construiu uma maioria que, objetivamente, bloqueia tudo o que seja contrário a ele, como é o caso do impeachment, diante da impossibilidade de haver 342 votos para aprovação. De outro lado, está na estratégia de Bolsonaro, desde que empossado, que sua missão é destruir.

Tudo o que foi avanço civilizatório no Brasil após a ditadura, com introdução de mecanismos de controle da sociedade sobre a vida política e econômica em geral, está sendo progressivamente destruído por iniciativa de Bolsonaro, através de medidas provisórias e leis. E todas passaram pelo crivo do Congresso, que é o que é. Tudo o que foi feito de positivo e construído após a ditadura, o objetivo é destruir.

A palavra boiada foi muito expressiva – houve uma reunião do governo gravada e divulgada em que um dos ministros [Ricardo Salles] falou que precisava aproveitar a sociedade preocupada com a pandemia para passar a boiada. A boiada, no caso, é a desregulamentação de tudo quanto é controle social.

Há quatro meses é que começou a haver maior resistência. Mas Bolsonaro adotou uma estratégia de multiplicar frentes. A cada dia, a cada semana, ele lança uma nova. O que os seus asseclas vão inventando, o Bolsonaro vai assinando. E deixa a oposição totalmente zonza. E a sociedade, em si – e esse é um outro enorme problema – tem uma tendência de naturalizar as coisas. E está se acostumando, agora, até ao morticínio. Bolsonaro age para criar o caos. Desde o começo negou a virulência da covid-19, depois a necessidade de vacina, agora nega a importância de máscara. Tudo o que seja para estancar o vírus ele tenta interromper.

Grande parte dos deputados não é constituída por gente que foi para lá trabalhar pelo bem comum, mas sim de oportunistas que estão lá para ganhar dinheiro. Estão tirando tudo o que podem. Reforma eleitoral, fundo eleitoral, tudo isso é aprovado por essa maioria destruidora. O quadro é bastante preocupante. Até onde irá isso? Até onde ele poderá chegar? A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites. Sobra para a militância da sociedade civil tentar fazer alguma coisa.

Mas o poder de reação social não está muito limitado?

Muito limitado. Porque ultimamente é: a Câmara decidiu, está decidido. O que a gente pode fazer objetivamente? Encher as ruas não dá para encher. Com a pandemia, pior ainda. Estamos vivendo uma situação em que é difícil a ação. E qual ação possível se não protestar? Seria resistir às mudanças. O Senado tem tido um pouco esse papel. Como a sua composição é um pouco diferente da da Câmara, tem mais gente com capacidade de resistência – e a própria CPI da Covid tem demonstrado isso. O Senado tem segurado alguma coisa. Agora a gente tem que torcer para que, quando aprovem na Câmara, não aprovem no Senado.

O novo Código Eleitoral com quase mil artigos, por exemplo, aprovado na Câmara sem muita transparência, não foi votado pelo Senado, ou seja, não poderá vigorar em 2022.

São os pequenos respiros que estão nos sobrando. O Senado é um deles. Veja, a Procuradoria-Geral da República (PGR) é uma instituição importantíssima na defesa da sociedade, porque é independente, não é Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário. O procurador-geral é o fiscal dos interesses difusos da sociedade. Tradicionalmente, em outros tempos, o procurador sempre foi muito ativo e enfrentava. Inclusive, pode agir de ofício. Nisso nós estamos totalmente bloqueados. Agora estamos tentando abrir essa porta na estratégia da sociedade civil, que ainda não foi cassada. Existem representações importantes na PGR em torno dos crimes de Bolsonaro cometidos na pandemia. A CPI [da Covid] está mostrando a quantidade de crimes. O que tentamos agora é esperar inclusive que a CPI venha com mais denúncias de crimes. É um modo diferente de afastar Bolsonaro, que não pelo impeachment: afastá-lo pela quantidade inominável de crimes.

Sua expectativa então é que haja um afastamento de Bolsonaro da Presidência não pelo impeachment, mas pela responsabilização de crimes, entre eles crimes contra a humanidade e de responsabilidade?

Mais do que isso: se a Câmara autorizar o Supremo Tribunal Federal a julgar Bolsonaro por esses crimes ele é imediatamente afastado. Nossa esperança, agora, é usar esse instrumento. A dificuldade qual é: fazer com que as lideranças políticas esqueçam 2022 e tratem de tirar Bolsonaro já. Temos que parar a matança. Com ele lá, continua a agir. Foi para a ONU e, nessa altura dos acontecimentos, voltou a falar do chamado tratamento precoce contra a covid-19. O que é isso, meu Deus? Ele é totalmente fora do tempo e das coisas. Nossa esperança é acordar setores da sociedade civil, que não têm preocupação eleitoral, e acordar as lideranças políticas pela necessidade de usar o processo criminal para afastar Bolsonaro imediatamente. Já temos 600 mil mortos.

Se o impeachment não passa, pelo cenário de hoje, e há os interesses eleitorais das lideranças políticas, por que acreditar que seria possível um afastamento para investigar Bolsonaro, a partir de pedido do STF?

O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. E isso vai criar brechas dentro da maioria. E aí a sociedade vai ter pelo que pressionar, pressionar a Câmara a afastar o Bolsonaro por 180 dias. E difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados.

Durante toda a sua vida você atuou politicamente, sobretudo como representante da sociedade civil. Qual é sua sensação, aos 90 anos, vendo boa parte dessas lutas sendo desconstruídas no Brasil atual?

É de muita tristeza, mas ao mesmo tempo é uma alfinetada para a gente não parar. Eu tenho, literalmente, 70 anos de ação política. Vou chegar aos 90 mês que vem e comecei tudo isso aos 18 anos, quando entrei na universidade e comecei a acordar para a questão política. Tive até que pagar o preço do exílio: estive por 15 anos fora do Brasil, exilado. Era diretor de planejamento de reforma agrária no governo João Goulart, então estava num setor muito "quente". Acabei me tornando uma persona non grata na ditadura. Fiquei 15 anos fora, parte na França e parte no Chile. No Chile, vivi toda a experiência de [Salvador] Allende, estava lá na hora do golpe. Ou seja, para mim foi tudo muito duro e difícil.

Ao longo desse processo, sempre se abrem portas e possibilidades, a gente se junta a outras pessoas, ganha coragem e vai dando as contribuições que podemos dar. Minha vida foi marcada por uma militância permanente. Sou arquiteto, minha mulher é psicóloga. Até o Chile, exercíamos as nossas profissões. Na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), eu trabalhava com desenvolvimento regional. Quando houve o golpe do Chile, foi tão violento e sangrento que tomamos a decisão de deixar a profissão e trabalhar na ação política. Não dava para continuar vivendo como se tudo fosse normal.

A ação política apareceu para nós como primordial e prioritária, e por causa da desigualdade social abissal no Brasil. Tive a oportunidade, desde então, de participar de muitas atividades, nas quais aprendi muito. Na França trabalhei em um projeto da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), "Por uma sociedade superando as dominações”. Esse projeto me abriu perspectivas muito grandes. Quando voltei ao Brasil fui trabalhar diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns. A participação popular na Constituinte foi um trabalho muito bonito. Virei vereador e aprendi pra burro na Câmara Municipal [de SP] o que é efetivamente o Legislativo, que é composto fundamentalmente por oportunistas e não por pessoas voltadas ao bem comum.

Cada etapa da minha vida foi um aprendizado e até certo ponto uma vitória. A primeira delas foi contra a compra de votos, outra doença brasileira. Depois a outra, mais conhecida, a lei de iniciativa popular. Ou seja, tudo isso foi me alimentando. Agora, estamos numa etapa negativa. Nos dois últimos anos, depois da vitória de Bolsonaro, enfrentamos um desafio cavalar. É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo, e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Eu estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais.

Você acompanhou a Lei da Ficha Limpa florescer no Brasil. Vê riscos de retrocessos também nessa legislação?

Eles estão tentando, se não derrubar, pelo menos amenizar tudo quanto é lei que aumenta o controle social. Para nós foi muito impressionante na Constituinte, mas era outro momento. Houve o plenário pró-participação popular, que tinha frase muito significativa: Constituinte sem povo, não cria nada de novo. Foi uma fase de grande entusiasmo construtivo no Brasil. Uma das ideias que surgiu nessa luta foi permitir que o povo apresentasse emendas ao texto da Constituição. Foram apresentadas 120 emendas populares. A primeira iniciativa popular foi contra a compra de votos, dez anos depois da Constituinte, e exigiam a assinatura de 1% do eleitorado. Vinte anos depois, fazíamos a segunda iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, com 1,5 milhão de assinaturas. São coisas que passaram na Câmara com um enorme trabalho junto aos parlamentares. É um aprendizado lento, com perdas e ganhos. Agora o momento é de retrocesso muito grande. É mais do que um retrocesso, porque a cabeça do Bolsonaro é doentia.

Em 2006 você se desfiliou do PT. Atualmente você está ligado a algum partido ou o seu ativismo político não tem cor partidária?

Saí do PT em 2005, no auge de todas as complicações que surgiram com o mensalão. Antes eu já tinha deixado a vida partidária. Cumpri dois mandatos na Câmara Municipal de São Paulo [como vereador, pelo PT]. Cheguei à conclusão de que nenhum parlamentar deveria ficar por mais de dois mandatos no Legislativo. No primeiro ele aprende, no segundo ele faz as coisas sem se preocupar com a reeleição. Depois de 2005 me afastei também do partido. A vida partidária está muito distorcida por causa da burocratização geral da militância. Não pretendo entrar em partido nenhum. Vou continuar, até morrer, na sociedade civil.

Deutsche Welle Brasil, em 19.10.21

Avanço do mar saliniza rio Amazonas e deixa comunidades em estado de emergência

Há algumas semanas, comunidades que ficam à beira do maior rio do mundo estão sem água para beber.

O avanço do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da água doce do planeta, salinizou as águas que banham as comunidades do arquipélago do Bailique, no Amapá.

Prefeitura de Macapá decretou emergência por conta da salinização no arquipélago do Bailique (Gov. do Amapá)

O fenômeno sempre ocorreu nesta época do ano, mas vem se intensificando nos últimos anos e passou a atingir comunidades que antes não eram impactadas, segundo os moradores.

Como consequência, a prefeitura de Macapá, que responde pelo arquipélago, decretou estado de emergência na última quinta-feira (14/10) e passou a entregar água potável e cestas básicas às comunidades.

Marcador mostra o arquipélago do Bailique, na foz do rio Amazonas (Google)

Para um pesquisador que estuda o tema, o avanço da salinização pode estar ligado ao aumento global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas.

Ele diz que a região da foz do Amazonas tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Um exemplo foi a drástica mudança no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.

Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atlântico e virou um afluente do Amazonas, alteração que pode ter ampliado a salinização no arquipélago do Bailique e é associada à criação de búfalos e à construção de hidrelétricas (leia mais abaixo).

Casas de ribeirinhos no arquipélago do Bailique, na foz do rio Amazonas (Gov. do Amapá)

Mais peixes de água salgada

O arquipélago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quilômetros da sede de Macapá. Só é possível acessar a região por barco.

As principais atividades econômicas do arquipélago são a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de açaí.

Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de açaí, diz à BBC News Brasil que sempre houve salinização na região entre os meses de setembro e novembro. Nessa época, em que chove menos, as águas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avanço da maré.

Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce.

Alves diz que, no passado, essa salinização sazonal costumava afetar só cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquipélago. De alguns anos para cá, porém, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.

A principal consequência, diz o morador, é a falta de água potável para beber e cozinhar, já que o rio é a principal fonte hídrica das famílias. "São comunidades carentes, que não conseguem comprar água mineral", afirma. Segundo Alves, um galão de 20 litros de água hoje custa até R$ 25 no arquipélago. As comunidades não têm acesso a água encanada.

Outro efeito da salinização tem sido sentido por pescadores. "Percebemos uma presença grande de peixes de água salgada, e o afastamento de peixes de água doce e camarão", afirma Alves.

Essa mudança, porém, não tem causado prejuízos aos pescadores, já que peixes de água salgada são valorizados e têm sido capturados em abundância. "Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)", afirma.

Já no cultivo do açaí ainda não foram notadas mudanças, diz ele, pois os frutos são colhidos no período chuvoso, quando a água já voltou a ser doce.

"Mas ainda não sabemos se o solo vai ter algum prejuízo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produção", afirma.

Criação de búfalos pode ter contribuído com a morte da foz do Araguari e favorecido a salinização do Amazonas (Batalhão Ambiental do Amapá)

A morte da foz do rio Araguari

Ele diz que muitos moradores do arquipélago atribuem a crescente salinização no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controvérsia na região e uma das maiores transformações na paisagem do Brasil nas últimas décadas.

Com cerca de 500 quilômetros de extensão, o Araguari é o maior rio a correr exclusivamente no Amapá. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, até 2013, desaguava no Atlântico ao norte do arquipélago do Bailique, a poucos quilômetros da foz do Amazonas, ao sul.

Desde 2011, porém, formou-se - espontaneamente, mas provavelmente em consequência da ação humana - um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando até que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.

Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e não mais no Atlântico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegetação desde então.

Em 2006, o canal Urucurituba era pequeno, e o rio Araguari desaguava no mar. Isso começa a mudar... (Google)

...em 2011, quando a expansão do Urucurituba passa a conectar o Araguari ao Amazonas. Com o tempo... (Google)

...praticamente todo o fluxo do Araguari passa a desaguar no Amazonas, e não mais no oceano. Em 2020, a vegetação já havia ocupado a antiga foz do Araguari. (Google).

Por causa dessa mudança, o fenômeno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré, gerando uma onda que avança continente adentro.

Como não há mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.

Outra consequência da mudança no curso do Araguari foi a acelerada erosão nas áreas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fenômeno é conhecido localmente como "terras caídas" e já provocou a destruição de centenas de casas no Bailique.

Menor resistência frente ao mar

Geová Alves diz que a salinização no arquipélago se tornou mais intensa a partir da mudança no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari "ajudava o Amazonas a empurrar a água salgada para longe" da costa.

"Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da força, e o mar invadiu onde não havia resistência", ele afirma.

Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a tese faz sentido.

Pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas terrestres e aquáticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da região desde 2004.

Em artigo em 2018 para o periódico científico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudança no curso do Araguari.

Pororoca em rio no Amapá; fenômeno deixou de ocorrer no rio Araguari (Gov. do Amapá)

Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba - que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas - pode estar relacionado a três fatores:

1 - Dinâmicas naturais no estuário do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das águas tanto em direção ao oceano quanto no sentido contrário, alterando o curso do rios;

2 - A implantação de usinas hidrelétricas no alto curso do Araguari.

A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a dinâmica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;

3 - A criação de búfalos nas margens do rio.

Introduzidos na região no século 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba - que, com a força das águas, foi se expandindo até alcançar o Amazonas.

Estima-se que haja 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que a população humana local.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a água salgada longe da costa.

Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente salinização no Bailique, ambas associadas às mudanças climáticas.

A primeira é o aumento global no nível do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (agência espacial americana), o nível médio do mar subiu cerca de 20 centímetros entre 1901 e 2018.

Cunha explica que, em todos os estuários (pontos onde o rio se encontra com o mar), há um jogo de forças entre o fluxo dos rios e as marés. Quando a maré sobe e o fluxo do rio diminui, a água salgada consegue avançar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a maré baixa e o fluxo do rio aumenta.

Por isso, diz Cunha, o aumento do nível dos oceanos tende a alterar esse equilíbrio em favor do mar, fazendo com que a água salgada avance mais facilmente pelos rios.

É o que já pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.


Fenômeno das "terras caídas" no arquipélago do Bailique (Gov. do Amapá)

Outra possível explicação para o aumento da salinização no arquipélago do Bailique, segundo ele, é a elevação das temperaturas na região, outro efeito das mudanças climáticas.

O calor mais forte amplia a evaporação, o que por sua vez acelera a circulação de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.

Cunha afirma que as mudanças em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avanço no nível do mar. Segundo ele, a região é extremamente sensível a alterações - e como seus rios e lagos estão conectados, uma mudança num ponto qualquer pode provocar consequências a vários quilômetros dali.

Até o fim deste século, prevê-se que o nível médio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em relação aos padrões pré-industriais a depender do ritmo das emissões de gases causadores do efeito estufa.

As transformações no arquipélago do Bailique jogam luz sobre uma das possíveis consequências das mudanças climáticas para populações costeiras. Sabe-se que a elevação do nível do mar tende a inundar muitas regiões litorâneas, forçando suas populações a migrar.

Para muitas comunidades em estuários, porém, escapar das inundações talvez não seja suficiente, pois pode faltar água doce para abastecê-las.

João Fellet - @joaofellet, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 18 outubro 2021

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

João Doria e Eduardo Leite travam disputa acirrada nas prévias do PSDB

Esta que é a primeira vez em que o PSDB escolhe candidato a presidente com prévias. Tudo indicava que o pleito seria um rito protocolar para a nomeação de Doria como presidenciável, mas a disputa se acirrou. Nas últimas semanas, Eduardo Leite tem colecionado apoios.

Lá vem ele, lá vem ele! O pai da vacina, o governador de São Paulo, o próximo presidente do Brasil. Vem, João!"

João Doria aparece nos fundos de um clube de São José dos Campos (SP). Cerca de 500 apoiadores levantam-se da cadeira, balançando bandeirinhas do Brasil. O governador de São Paulo atravessa o salão. Enquanto o mestre de cerimônia grita ao microfone, a caixa de som toca "Love Generation", música de Bob Sinclar que abria o "Caldeirão do Huck".

Como o apresentador abriu mão de ser a terceira via para dominar as tardes de domingo da Globo, o governador paulista tenta ser o nome do PSDB para preencher esse posto. Mas, para virar candidato, Doria precisa vencer o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, nas prévias do partido. O governador gaúcho esteve em São Paulo neste domingo (16).

Assim que Leite entrou na sala de reuniões do hotel Holiday Inn, no Parque Anhembi, todos se levantaram. Quando passou pelas cerca de 300 pessoas, parecia que haveria um abraço coletivo. Chegou ao palco depois de muitos cumprimentos e falou o que os tucanos paulistas queriam ouvir. Elogiou Mário Covas, Geraldo Alckmin e alfinetou Doria. "O PSDB não é business, é sentimento." Discurso de candidato, comportamento de candidato.

Oficialmente, o período de campanha começa nesta segunda-feira (18). Na terça (19), um debate entre os pré-candidatos do partido será realizado no Rio.

Ambos estão viajando o Brasil há semanas. Suas redes sociais têm vídeos típicos de campanha presidencial: imagens da bacia do rio Amazonas, máquinas industriais e campos verdejantes são exibidas enquanto um político fala com voz de estadista.

Desde o início do processo, Leite arrebanha mais diretórios estaduais, e nesta semana ampliou vantagem com a adesão do Rio, além de ter avançado em Goiás.

O ex-ministro e ex-senador Arthur Virgílio também disputa as prévias, mas suas chances são consideradas remotas.

As cores do Brasil projetadas no teto equanto Doria fala à militância em São José dos Campos

Armas e fraquezas de Doria

O governador de São Paulo começou sua busca pela indicação em 10 de julho, já posicionado sobre algo relevante. Qualquer pretensão política nacional passa por como se encara o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Doria é crítico ferrenho do governo federal. O homem que se elegeu governador pregando "BolsoDoria" rompeu com o Planalto no primeiro semestre de 2020, no início da pandemia, e passou a desferir ataques frequentes e contundentes.

Também sobra munição para atacar Lula. Nos eventos de Doria nas prévias tucanas, cada assento abriga folhetos com fotos suas em poses amistosas. Estes santinhos vitaminados contêm três menções negativas ao PT. Em São José dos Campos, Doria ressaltou que venceu Fernando Haddad no primeiro turno na eleição para a prefeitura de São Paulo, em 2016

Para apresentar sucesso na agenda econômica, usa a projeção de crescimento de 7,5% no PIB estadual — significativamente maior que a nacional.

Doria também aposta no peso do tucanato paulista. O estado conta 26% dos filiados ao partido, 41% dos prefeitos, 28% dos vice-prefeitos e 27% dos vereadores.

Os defensores de Leite fazem ressalvas ao seu estilo. Enumeram atritos com o deputado federal Aécio Neves (MG), com o presidente do partido, Bruno Araújo, e a briga com o ex-governador Geraldo Alckmin. Tentam colar nele a imagem de político que desagrega.

Eduardo Leite em São Paulo durante evento de campanha das prévias do PSDB  (Felipe Pereira)

Armas e fraquezas de Leite

O governador do Rio Grande do Sul declarou voto em Bolsonaro, mas não subiu em palanque com ele. Por isso, pode se dar ao luxo de ser menos enfático nas críticas.

Ainda que tenha comparecido ao protesto em Porto Alegre contra Bolsonaro, em 12 de outubro, Leite preserva a imagem de conciliador.

Na cúpula do PSDB, fala-se que uma vitória de Leite atrairia o União Brasil (partido resultante da fusão de DEM e PSL). Caso Doria vença as prévias, o MDB é que estaria mais perto de fechar aliança.

Mas o entorno de Leite pondera que ele pode construir uma aliança maior. Seus apoiadores citam a sustentação de diferentes partidos na Assembleia Legislativa. Também são ressaltados os projetos do governo aprovados com votos da oposição.

Leite pegou o Rio Grande do Sul atolado em dívidas — servidores como policiais e professores ficaram 57 meses sem receber em dia. O governador usa o episódio da arrumação das contas para pregar o discurso de ter sanado as dívidas com reformas administrativas.

Tucanos que apoiam Doria apontam o dedo para o perfil conciliador de Leite. Na avaliação deles, é preciso marcar posição para romper com a polarização Bolsonaro x Lula. A postura menos combativa do gaúcho não serviria para o atual momento político.

Além disso, Leite declarou-se gay em 1º de julho. Apesar de acenar para pautas progressistas, o gesto também tem implicações negativas no universo político.

A deputada federal Geovania de Sá (PSDB-SC) manifestou apoio ao governador gaúcho. Um pastor da Assembleia de Deus, igreja que sempre esteve ao lado da deputada, reagiu na mesma hora, pedindo para os evangélicos não votarem nem nela, nem em Leite.

Em busca da identidade

As prévias do PSDB não pretendem resolver apenas essa questão. Coordenador do pleito, o ex-deputado federal Marcus Pestana não esconde as dificuldades enfrentadas, desde que Alckmin terminou o pleito de2018 com 4,76% dos votos. "Vivenciamos uma crise existencial, a dificuldade de posicionamento com o governo Bolsonaro."

Prova da falta de rumo é que o partido é oposição ao presidente, mas 14 deputados federais votaram a favor do voto impresso, uma das bandeiras de Bolsonaro. Bruno Araújo disse que, terminadas as prévias, vai negociar a saída dos filiados com cargo eletivo que não querem trabalhar pelo candidato escolhido.

O perfil do vencedor da prévia vai ter papel determinante no que o PSDB deseja se tornar. Durante participação no UOL Entrevista na quinta-feira (14), Araújo classificou Doria como "pai da vacina" e competente em organização e trabalho. Ele avaliou Leite como um político associado a novos ares de esperança, o que estimula parte relevante do partido.

O PSDB construiu uma reputação de tomar decisões reunindo caciques em restaurantes de São Paulo para jantares regados a vinho. Pestana afirma que essa fórmula não daria certo dessa vez por falta de um nome natural. Chamar vereadores e deputados estaduais a participar gera engajamento e evita traições, como os apoios a Fernando Collor, Jair Bolsonaro e até Lula.

Traições em curso

O que vai acontecer quando o PSDB enfrentar outros partidos será conhecido em 2022. Por enquanto, é troca-troca interno. Leite tem ganhado apoio entre grupos que haviam se comprometido com Doria. O governador de São Paulo tem recuperado espaço no Nordeste. Os dois casos apontam para um partido fragmentado.

Na semana passada, o PSDB do Paraná declarou apoio "total e irrestrito" a Leite. Próximo do ex-governador Beto Richa, Doria contava com o diretório paranaense, mesmo que alguns deputados se juntassem ao gaúcho.

Doria também sofreu invertidas em São Paulo. Alguns diretórios municipais, como o de Ribeirão Pires, têm liberado filiados para apoiar quem quiserem.

Há, ainda, a oposição interna de Alckmin, que não esconde o descontentamento por Doria ter lançado o vice-governador, Rodrigo Garcia (PSDB), como seu sucessor. A consequência é trabalhar por Leite nos bastidores. Ontem, no evento de Leite, aliados de Alckmin contavam que ficarão no partido até as prévias e depois seguirão com o ex-governador para o partido que ele escolher.

Por causa de situações como esta, Leite tem visitado São Paulo cada vez mais, puxado pelo prefeito Paulinho Serra, de Santo André. Em Minas, Aécio tem trabalhado contra Doria. Presidente do PSDB em São Paulo, Marco Vinholi disse que Aécio faz pressão para que tucanos mineiros não declarem apoio ao governador de São Paulo. "Essa pressão absurda é para inibir que as pessoas se manifestem."

Segundo interlocutores, o ex-governador mineiro é um dos que não vê com maus olhos que o PSDB retire uma candidatura a presidente para apoiar um candidato único da terceira via.

No contra-ataque, Doria conseguiu apoio da ex-governadora Yeda Crusius (RS). Em Minas, conquistou o deputado Domingos Savio (PSDB-MG).

Apesar da disputa apertada, Pestana refuta o discurso que o PSDB vai rachar, mas espera que a guerra fraterna não se torne fratricida. Por enquanto, Leite e Doria se elogiam.

Felipe Pereira e Lucas Borges Teixeira, do TAB / Repórteres na Rua em busca da realidade. Publicado originalmente por UOL em 18.10.21

A lei penal muito mal aplicada

Severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno

É frequente e generalizada a crítica à impunidade. Haveria no País uma baixíssima aplicação da lei penal, o que diminuiria – ou mesmo eliminaria – seu efeito dissuasivo. A quase certeza da impunidade seria um dos fatores para os altos índices de criminalidade. Não há dúvida de que, por diversas razões, muitos crimes ficam impunes, o que reduz a finalidade preventiva da lei penal.

No entanto, há também muitos casos de uma aplicação exagerada da lei, em que o braço penal do Estado recai, sem nenhuma proporcionalidade, contra determinados cidadãos – quase sempre, pobres e pretos. Essa desmedida severidade é resultado de uma específica interpretação da legislação penal e processual penal, que, a rigor, não tem nada de técnica ou mesmo jurídica, pois trata os fatos – e, não raro, a própria lei – com incrível superficialidade.

Recentemente, a prisão de uma mãe de cinco crianças chocou o País. Vivendo em situação de rua em São Paulo há mais de dez anos, a mulher foi presa em flagrante pelo furto de dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó – produtos avaliados em R$ 21,69. No momento da prisão, ela disse aos policiais que pegou os alimentos porque estava com fome.

A juíza responsável pelo caso converteu a prisão da mulher em preventiva, para “garantia da ordem pública”. Segundo a magistrada, a conduta expressava “acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar crime patrimonial”.

A possibilidade de prisão domiciliar foi negada. “Não há indicação precisa de endereço residencial fixo que garanta a vinculação ao distrito da culpa, salientando-se que a autuada declarou estar em situação de rua, denotando que a cautela é necessária para a conveniência da instrução criminal e de eventual aplicação da lei penal, nem de atividade laboral remunerada, de modo que as atividades ilícitas porventura sejam fonte ao menos alternativa de renda (modelo de vida), pelo que a recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento”, disse a juíza na decisão.

Submetida ao exame do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a decisão de primeira instância foi mantida. O órgão de controle entendeu que a lei foi corretamente aplicada no caso. “Embora triste a situação, impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente”, disse o relator, desembargador Farto Salles.

Ao indeferir por unanimidade o habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, a 6.ª Câmara de Direito Criminal do TJSP entendeu que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado ao furto de R$ 21,69, em razão da reincidência. Em outro processo, a mulher tinha sido condenada pelo furto de desodorantes.

Duas semanas depois da prisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento do inquérito policial e revogou a medida restritiva de liberdade. Segundo o ministro Joel Ilan Paciornik, a “lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial”. Além disso, um furto de alimentos, naquele valor, não preenchia os requisitos mínimos para ser enquadrado como crime.

Oxalá essa história absurda – duas instâncias da Justiça consideram que o furto de alimentos no valor de R$ 21,69 é motivo suficiente para levar uma mãe à prisão – fosse exceção. Infelizmente não o é, especialmente no Estado de São Paulo. Com contumaz reincidência, o TJSP aplica a lei penal e processual penal à revelia da jurisprudência das Cortes Superiores, com um entendimento desarticulado do Direito e uma apreciação muito peculiar dos fatos.

O mesmo tribunal que manteve a prisão da mãe que furtou comida foi o que extinguiu a condenação pelo júri popular dos 74 policiais envolvidos no massacre do Carandiru. Depois, o STJ restaurou a condenação. Pode parecer paradoxal, mas severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno: o da lei que se curva à vontade, em vez de a vontade se submeter à lei.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021 

Desesperança

Cresce o número de brasileiros desesperançados que buscam uma vida digna em outros países

A imigração é uma faceta indissociável da identidade nacional. No século 19, à matriz de indígenas e descendentes de africanos e portugueses juntaram-se outras comunidades europeias, como alemães e italianos, acrescidas, no século 20, de imigrantes de partes mais distantes do mundo, como Síria, Líbano ou Japão. A partir da década de 60, o País deixou de ser um vasto celeiro de imigrantes e passou a exportar trabalhadores. Mas, então, a população ainda era jovem e as taxas de natalidade eram altas. As projeções para o século 21 são de que ela envelhecerá e encolherá. Mais do que nunca, seria o momento de implementar políticas para reter os brasileiros e estimular a imigração. Mas o que se vê é o contrário: o Brasil não só é cada vez menos atraente aos estrangeiros, como a fuga de brasileiros está se acentuando a níveis dramáticos.

Segundo o Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros morando no exterior cresceu 35% na última década. Em 2010, eram 3,1 milhões. Em 2020, 4,2 milhões. O levantamento revela que o crescimento se concentrou nos últimos anos da década. Entre 2018 e 2020, a população de brasileiros morando fora do País teve acréscimo de 625 mil pessoas.

Em junho, o estudo Atlas das Juventudes, coordenado por várias entidades em parceria com a FGV Social, diagnosticou que, entre os jovens de 15 a 29 anos, 47% desejavam sair do Brasil, caso tivessem oportunidade. Segundo a pesquisa Broken-System Sentiment in 2021, realizada pela consultoria Ipsos em 25 países, a sociedade brasileira está no topo do ranking mundial de desalento. Para 69% dos brasileiros entrevistados, o Brasil é um país “em declínio”.

A desesperança parece se espraiar por todas as faixas etárias e sociais. É cada vez mais comum brasileiros de classe média e alta fugindo da violência para países como Portugal. A “fuga de cérebros” também se acentuou em meados da década. Só em 2020, os vistos de permanência nos EUA aos chamados “profissionais excepcionais” brasileiros cresceram 36% – enquanto os demais vistos caíram 48%.

A pandemia agravou o mal-estar. Entre outubro de 2020 e agosto de 2021, 47 mil migrantes brasileiros foram detidos na fronteira dos Estados Unidos com o México. É mais do que a soma dos 14 anos anteriores, quando 41 mil tentaram cruzar a fronteira. Isso mesmo com todas as dificuldades impostas pela pandemia. Historicamente, 90% dos brasileiros sem documentação ingressavam nos EUA com visto de turista e ficavam no país. Sem o recurso do visto de turista, os brasileiros passaram a enfrentar os riscos mortais das rotas ilegais, combinando vias terrestres, aéreas e marítimas. E isso a um custo muito mais alto.

Como mostrou reportagem do Estado, na rede mineira de “coiotes” – os criminosos que vendem a possibilidade de entrada ilegal nos EUA –, por exemplo, cobra-se R$ 40 mil por pessoa na modalidade “sem seguro” e R$ 80 mil “com seguro”. Com seguro, o migrante dá um valor de entrada e, se não conseguir ficar nos EUA, não paga mais nada. Sem seguro, seja qual for o resultado, fica-se com a dívida.

Por outro lado, as recentes ondas de imigrantes recebidas pelo Brasil decorrem muito menos da esperança de criar uma família e desenvolver uma carreira no Brasil do que do desespero em relação aos seus países. É ele que motiva as dezenas de milhares de bolivianos, venezuelanos e haitianos que vêm buscando refúgio no Brasil.

Esses dados mostram uma triste reversão. O Brasil – em que pese as cicatrizes de seu passado escravocrata – é uma das maiores democracias multiétnicas do mundo, só comparável aos EUA em diversidade. Mas o seu grau de miscigenação é incomparável. Na era da globalização, esse deveria ser um ativo para atrair cada vez mais estrangeiros, ampliando continuamente a riqueza da pluralidade. Mas, longe de ser um País acolhedor aos estrangeiros, o Brasil gera cada vez mais desesperança em seus próprios cidadãos. Às vésperas de novas eleições nacionais, esse mal-estar deveria motivar um profundo exame de consciência por parte de todos os brasileiros, em especial daqueles que se propõem a liderar o País. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021 

Extrema-direita no Brasil já não precisa de Bolsonaro para se mobilizar, revela pesquisa

Estudo mostra o legado radical de 18 meses de manifestações de rua pelo País; para Isabela Kalil, que coordena o trabalho, presidente pode moderar a performance e o tom sem que os atos sejam desmobilizados

       Manifestação em São Paulo pró-Bolsonaro; pesquisa analisou 45 atos no Brasil e nos Estados Unidos. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 7/9/2021

Os atos e manifestações do bolsonarismo não precisam mais da presença de Jair Bolsonaro para acontecer. Dezoito meses de mobilização das ruas deixaram como herança uma extrema-direita rapidamente mobilizada em torno de pautas que vão do combate às medidas de isolamento social à defesa do voto impresso e à guerra contra instituições.

É o que mostra pesquisa inédita coordenada pela antropóloga Isabela Kalil, Democracia Sitiada e Extremismo no Brasil: 18 meses de manifestações bolsonaristas, do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (NEU-FESPSP). Ao todo foram mapeadas 45 manifestações entre março de 2020 e setembro deste ano, em que o bolsonarismo atuou por meio do que os pesquisadores classificaram como “extremismo estratégico”.

Mas o que seria esse extremismo e por que essa história não acaba com a declaração à nação feita por Bolsonaro para recuar dos ataques aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) na manifestação de 7 de Setembro? Para Kalil, apesar de ser impossível saber se o presidente continuará a participar desses eventos após o recuo, é certo que os atos não precisam mais de Bolsonaro para ocorrer. “Há vários exemplos na pesquisa. Bolsonaro pode moderar o tom e mudar a performance sem que os atos sejam desmobilizados.”

Como exemplo, a antropóloga citou as ações recentes de caminhoneiros e grupos como o 300 do Brasil. “Nas manifestações, sua base cobra mais radicalismo e diz: ‘eu autorizo o que for necessário’. Mas institucionalmente não aconteceu nada.” Ao não poder entregar o radicalismo esperado pelos extremistas, Bolsonaro “entrega a performance”. É assim, segundo ela, que se explica o desfile de carros de combate da Marinha em Brasília, no dia da votação da PEC do voto impresso, rejeitada pelo Congresso.

Para o cientista político José Álvaro Moisés, a história das manifestações é marcada pelo crescimento do que chamou de “expressões mais radicais do bolsonarismo”. O professor da USP alerta, no entanto, que os fracassos do governo desativaram a força do bolsonarismo radical para se impor ao País. “A declaração à nação de Bolsonaro foi um recuo tático. É preciso ainda entender seu impacto sobre o movimento.”

A resposta para isso tem relação com as táticas e a estratégia do movimento até as eleições de 2022. Moisés acredita que Bolsonaro deve adotar a visão escatológica, da luta final contra o petismo e o comunismo, como forma de mobilizar sua base, ainda mais do que o discurso antissistema que alimentou o extremismo estratégico nos 18 meses de atos de rua.

A pesquisa do NEU-FESPSP mostra que a formação desse extremismo é indissociável da covid-19. De acordo com ela, a pandemia se transformou em uma oportunidade para mobilizar os apoiadores do presidente. A maioria dos atos em 2020 trazia como pauta a defesa do tratamento precoce e o ataque a governadores e prefeitos que defendiam medidas de isolamento social, como o fechamento do comércio.

A pesquisa também detectou uma mudança da retórica bolsonarista. Antes da pandemia, os alvos prioritários eram os políticos e partidos tradicionais. Depois, passaram a ser instituições, como o Congresso e o STF. O deslocamento das pautas dos protestos é acompanhado pelo aumento do radicalismo, incluindo “atos de insurgência”. Um exemplo foi a tentativa de invasão do Congresso, em 13 de junho de 2020, quando o grupo 300 do Brasil subiu na cúpula do prédio após ter seu acampamento desmontado em Brasília.

Os pesquisadores identificaram ainda a presença cada vez maior de símbolos militares e de novos tipos de protestos, como os encontros de motociclistas – as motociatas –, que predominaram nos atos em 2021. Onze delas contaram com a participação presidencial – Bolsonaro esteve presente em 25 dos 45 eventos estudados.

Trump

As motociatas, segundo a pesquisa, atraem pessoas que se comunicam por grupos fechados, no Instagram e no Telegram. “Elas parecem se dar de forma espontânea, mas não são. Uma motociata anuncia a data da outra. Algumas são anunciadas na live do presidente”, diz Kalil.

Foi só no 22.º evento analisado que nasceu esse tipo de ato. A data que marca o começo foi 7 de maio deste ano, quando o empresário Luciano Hang andou na garupa de Bolsonaro durante a inauguração de uma ponte em Rondônia. Dias depois, ocorreria a primeira motociata oficial, em Brasília.

Esse tipo de evento seria inspirado no tradicional encontro de motocicletas de Sturgis, na Dakota do Sul, que atrai um público antissistema. “(Donald) Trump foi muito hábil para falar com esse público e associar sua imagem ao Rally de Sturgis, um encontro que aconteceu mesmo durante a pandemia”, afirma Kalil. Como em outras áreas, aqui também a inspiração do bolsonarismo seria a extrema-direita americana, ancorada no trumpismo.

Repetidas 19 vezes em 2021, as motociatas foram interiorizadas e viraram um modelo bem-sucedido de mobilização. “É importante notar que Eduardo Bolsonaro participou de uma motociata, em Miami, depois de se reunir com Steve Bannon (ex-estrategista de Trump), na Dakota do Sul.” O evento na Flórida aconteceu dias depois do encontro de Sturgis.

No dia em manifestações em SP e no DF atacaram o STF e pediram intervenção militar, Bolsonaro fez sobrevoo e depois foi a ato a cavalo. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 31/5/2020

Escalada

Os passeios de motocicleta compuseram a escalada até o ato de 7 de Setembro, visto pelos pesquisadores como “parte de uma ação de insurgência”, que se desenvolveu de forma “gradativa, com planejamento, tática e objetivos definidos”. Essa estratégia recorreu a determinados temas, pautas e agendas, que formaram o chamado “extremismo estratégico”. Em dez eventos, a pauta principal foi a defesa do voto impresso. Em cinco deles, foi a “intervenção militar”.

Mas nem só o público radical compareceu aos atos. As maiores manifestações incluíram um público mais amplo, envolvendo conservadores e suas famílias que dão apoio ao presidente e às pautas ligadas aos costumes. “Há duas manifestações que aconteceram dessa forma: a do 1.º de maio e a do 7 de Setembro”, conta Kalil.

Para a pesquisa, durante os atos, os manifestantes comuns foram estimulados a experimentar tipos de conduta extrema. Líderes do movimento, como o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, geraram situações em que foram investigados e presos e, assim, se transformaram em “vítimas do sistema”, levando a apoiadores o sentimento de que a democracia e as liberdades foram vilipendiadas.

“Esses acontecimentos servem de argumento para os apoiadores de que a insurgência é a única alternativa possível para a política.” Assim era até o 7 de Setembro. Os pesquisadores vão continuar o trabalho até janeiro de 2023. Querem verificar a futura estratégia do bolsonarismo e por quanto tempo e locais as táticas e dispositivos serão empregados e o que será bem-sucedido. O desafio é compreender os caminhos do movimento que cresceu além de seu líder e transformou as ruas em laboratório de ações em meio ao avanço global do extremismo contra a democracia.

Para Isabela Kalil, que coordena o trabalho, Bolsonaro pode moderar a performance e o tom sem que os atos sejam desmobilizados. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 15/10/2021

Militantes veem defesa de valores e patriotismo sem radicalização

A transformação da identidade do bolsonarista, deixando a ênfase no “cidadão de bem” para explorar a imagem do “patriota”, foi uma das constatações da pesquisa do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Esse itinerário se reflete no momento de maior abalo do movimento: a demissão do então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Quando Moro saiu, a gente pensou que ia desmoronar”, disse o advogado Luciano dos Santos, de 59 anos. Ele foi às ruas de Salvador apoiar o presidente. “Bolsonaro quis demonstrar que o povo dá autoridade e autonomia à gestão”. 

Luciano conheceu Bolsonaro pelas redes sociais e participou dos atos da campanha, em 2018. Para ele, o candidato representava o nome ideal contra o PT. “Se tiver que chamar as Forças Armadas para pôr ordem na casa, ele tem todo apoio.”

Ele destaca que a diversidade das pessoas foi o que mais chamou sua atenção no 7 de Setembro: manifestantes de diversas idades, evangélicos e pessoas de verde e amarelo. Em 2022, assegura que votará em Bolsonaro. E afirma que irá a um outro ato caso seja convocado.

Mobilização para novas manifestações não deve faltar. É o que diz o empresário Beto Okazaki, de 44 anos, de Ponta Grossa (PR). Além de organizar dois protestos na cidade a favor do “tratamento precoce” contra a covid-19 e do voto impresso, ele compareceu ao 7 de Setembro em Brasília. “Foram dois ônibus para Brasília e três para a Paulista.”

Okazaki disse respeitar as instituições que sustentam a democracia, mas critica a atuação do STF quando ele passa “dos seus limites”. “A gente vê um cerceamento da liberdade de expressão.” Para o empresário, “um cidadão de bem, geralmente, vai ser patriota”. “E geralmente um patriota é um cidadão de bem.”

O discurso é próximo daquele do general Roberto Peternelli, deputado federal pelo PSL. Peternelli esteve no ato do 7 de Setembro. “Foi uma manifestação da família por valores, pela Constituição e pela legalidade.” Para ele, as manifestações devem continuar. “Elas serão democráticas. Sem espaço para extremismos, conforme a carta que o presidente escreveu.” /

 LEVY TELES, CÁSSIA MIRANDA e MARCELO GODOY para O Estado de São Paulo, em 18.10.21.

Prostituição: por que governo socialista da Espanha quer criminalizar a prática

O presidente do governo da Espanha, Pedro Sánchez, se comprometeu, em um discurso no domingo (17/10), a criminalizar a prostituição no país.

Pesquisa de 2009 sugere que um em cada três homens espanhóis já pagou por sexo (Getty Images)

Em declarações a apoiadores no fim dos três dias de congresso do Partido Socialista em Valência, Sanchez disse que a prática "escraviza" as mulheres.

A prostituição foi descriminalizada na Espanha em 1995, e em 2016 a ONU estimou que a indústria do sexo no país valia 3,7 bilhões de euros (R$ 23,4 bilhões).

Uma pesquisa de 2009 sugere que um em cada três homens espanhóis já pagou por sexo. No entanto, outro relatório publicado em 2009 indica que esse percentual é maior (39%).

Em 2011, a ONU citou a Espanha como o terceiro maior centro de prostituição do mundo, atrás da Tailândia e de Porto Rico.

Pedro Sánchez fez promessa de criminalizar prostituição durante discurso na conferência do Partido Socialista em Valência (Getty Images).

A prostituição atualmente não é regulamentada na Espanha e não há punição para quem oferece serviços sexuais pagos por sua própria vontade, desde que isso não ocorra em espaços públicos. No entanto, proxenetismo (atuar como intermediário entre uma trabalhadora do sexo e um cliente potencial) é ilegal.

A indústria cresceu muito desde a sua descriminalização e estima-se que cerca de 300 mil mulheres trabalham como prostitutas na Espanha.

Em 2019, o partido de Sánchez publicou uma promessa em seu manifesto eleitoral para criminalizar a prostituição, o que foi visto como uma medida para atrair mais eleitoras mulheres.

O manifesto classificou a prostituição como "um dos aspectos mais cruéis da feminização da pobreza e uma das piores formas de violência contra as mulheres".

No entanto, dois anos após a eleição, nenhum projeto de lei foi apresentado.

Os defensores do atual sistema espanhol dizem que ele trouxe enormes benefícios para as mulheres que trabalham como prostitutas e tornou a vida delas mais segura.

No entanto, nos últimos anos, aumentaram as preocupações sobre o tráfico de mulheres para fim de exploração sexual.

Em 2017, a polícia espanhola identificou 13 mil mulheres nessa situação, afirmando que pelo menos 80% delas estavam sendo exploradas contra sua vontade por terceiros.

BBC News Brasil, em 18.10.21

Melvin Konner, neurocientista: “Estamos no começo do fim da supremacia masculina”

No livro ‘Women After All’, o pesquisador defende a superioridade biológica feminina e vislumbra um futuro em que no homem não será necessário para a reprodução

Melvin Konner, doutor em Medicina, antropólogo e neurocientista da Universidade Emory, em Atlanta (EUA).

Melvin Konner, doutor em Medicina, antropólogo e neurocientista, trabalha na Universidade Emory, em Atlanta (EUA), após ter sido aluno e professor de Harvard. Nasceu há 75 anos em Nova York e, nesta tardia etapa acadêmica, decidiu enfrentar críticas e ameaças para mergulhar na piscina da literatura científica com um livro provocador: Women After All. Konner, colaborador do The New York Times, da Newsweek e do Wall Street Journal, vislumbra o final da supremacia masculina, defende a superioridade biológica das mulheres e propõe um imaginário cenário futuro (“biofantasia”, como ele diz) em que seria possível a reprodução feminina sem a participação do homem.

É a supremacia masculina, segundo a pesquisadora Marta Cintas-Peña, da Universidade de Sevilla (Espanha), que encontrou no Neolítico vestígios da origem da desigualdade, “um processo social e cultural criado que consolidou um sistema injusto”. Leonardo García Sanjuán, professor de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Sevilla, afirma que são os excedentes que geraram os patrimônios familiares e a herança, que se transformaram “num assunto social e economicamente fundamental”. “Para que os homens tenham a segurança de que o legado passará aos seus próprios filhos biológicos, começa a surgir uma ideologia de controle das mulheres”, afirma.

Para Konner, esse processo, que inviabilizou durante mais de cinco milênios as vantagens de uma sociedade igualitária, menos violenta e mais cooperativa e colaborativa, é também um capítulo biológico sem sentido do qual a humanidade começa a sair. O neurocientista é pai de duas filhas e um filho de sua primeira esposa, a antropóloga Marjorie Shostak, que morreu de câncer em 1996. Tem outra filha de seu casamento com a psicóloga Ann Cale Kruger. A esperança de que eles vivam num mundo mais justo motivou esse professor, amante da língua e da literatura espanholas, a mergulhar na biologia, na mitologia, na história, no comportamento animal, na psicologia, na sexologia e na antropologia para escrever o livro.

Pergunta. As mulheres são biologicamente superiores aos homens?

Resposta. Antes de mais nada, quero dizer que, embora eu trate de alguns aspectos das pessoas não binárias, meu livro é principalmente sobre homens e mulheres. Entendo que existem pessoas difíceis de classificar, mas a maioria se reconhece a si mesma como mulheres ou homens. Tive problemas por dizer que as mulheres são superiores. Me acusaram de sexismo inverso, de estigmatizar um grupo de pessoas etc. Recebi e-mails de ódio de homens que obviamente se sentem ameaçados pela perda do privilégio masculino que está acontecendo diante dos nossos olhos. Inspirei-me num dos trabalhos da antropologia mais populares da história, A Superioridade Natural da Mulher, de Ashley Montagu. Ela afirmou que as mulheres vivem mais tempo que os homens, com uma mortalidade mais baixa em todas as idades, podem criar uma nova vida em seus corpos e, como dispõem de dois cromossomos X, têm taxas muito mais baixas de problemas genéticos como a hemofilia, o daltonismo e a síndrome do X frágil. Nós, homens, temos um X desprotegido que, às vezes, carrega genes ruins. Acrescento a esses fatos biológicos fundamentais certos aspectos comportamentais, alguns deles também baseados na biologia. Em especial, o de que em todos os países e culturas os homens cometem 90% da violência e 95% das agressões sexuais. Além disso, os homens reivindicaram uma superioridade sobre as mulheres durante tantos séculos que pensei que era hora de virar o jogo e mostrar as evidências do outro lado. Vamos, rapazes, tenham senso de humor!

P. Por que considera que a diferença cromossômica é tão relevante quanto o impacto da cultura e da educação?

R. Não é apenas a diferença cromossômica: são as diferenças hormonais e cerebrais dela resultantes. Mas fico satisfeito que sua pergunta inclua as palavras “tão relevante” em vez de “mais relevante”. À luz da ciência moderna, devemos aceitar que a cultura e a educação são poderosas, mas a biologia também. Há enormes aspectos do comportamento humano (inteligência geral, habilidade musical, engenhosidade na escrita e na pintura, entre muitos outros) em que não há diferenças sexuais influenciadas biologicamente. No entanto, os homens predominaram de maneira esmagadora ao longo da história. Agora sabemos que isto ocorreu porque os homens não deram às mulheres a oportunidade de se sobressair em todas essas coisas que elas poderiam ter feito muito bem. Ou porque impediram sua formação. Isto é cultura e educação. E a humanidade está saindo lentamente desse antigo erro. Mas existem alguns traços, especialmente a violência e a exploração sexual, em que encontramos diferenças tão grandes e consistentes, independentemente da cultura, que devemos considerar a biologia. Esses não são traços desejáveis, e temos cada vez mais evidências de que as diferenças hormonais, assim como certas formas em que os hormônios afetam o cérebro no início da vida, podem nos ajudar a responder à pergunta que tantas mulheres têm feito a si mesmas: “O que acontece com os homens!?” Claro que nem todos somos violentos ou exploradores sexuais. Más há suficientes para que todas as mulheres precisem ser cautelosas. Tenho três filhas e uma neta, e não poderia deixá-las neste mundo sem o conhecimento desses fatos.

P. Qual é a relevância do que o senhor chama de síndrome de deficiência do cromossomo X?

R. Isso é um pouco uma piada, e no entanto... Peço aos meus alunos que pensem, brevemente, na masculinidade como uma deficiência cromossômica. Nosso cromossomo Y parece um tanto insignificante ao lado do X, do qual as mulheres têm dois. Além disso, elas estão mais protegidas contra as doenças ligadas ao cromossomo X. O gene Y nos priva da capacidade de desenvolver nova vida dentro de nossos corpos. E, ao nos dar andrógenos, também promove os traços ruins —que estão muito mais presentes em nós. Às vezes levo essa piada, que não é apenas uma piada, ainda mais longe, e pergunto aos estudantes: o homem é como um vírus? Resposta: nenhum dos dois pode fazer nova vida sem tomar emprestado a maquinaria reprodutiva de outro organismo. Pode-se dizer que as mulheres não podem se reproduzir sem a pequena, mas importante, doação feita pelos homens. Mas devemos lembrar que a vida começou sem reprodução sexual —e existem espécies formadas somente por fêmeas! Nós, homens, somos mais ou menos uma ocorrência evolutiva tardia para aumentar a variação na vida, um objetivo digno.

P. E as mulheres não podem adotar atitudes masculinas, como a violência ou a competição não colaborativa às quais o senhor faz referência?

R. Isto ocorreu em alguns casos no passado, quando as mulheres governantes, como Isabel I, da Inglaterra, e Catarina, a Grande, da Rússia, foram empurradas ao topo das pirâmides masculinas de poder e só podiam sobreviver e governar imitando os homens. Inclusive nos tempos modernos, algumas mulheres se masculinizaram pelo poder. Mas, à medida que as mulheres líderes se tornam menos raras, acredito que têm a oportunidade de seguir suas próprias inclinações. Os países liderados por mulheres em geral se saíram melhor na pandemia que os dirigidos por homens. E alguns dos países que se saíram pior, como EUA, Reino Unido e Brasil, tinham líderes não apenas masculinos, mas hipermasculinos. Claro que essas não são diferenças em branco e preto. Nada em biologia ou comportamento é 100%. Mas parece que é mais fácil para as mulheres líderes tirar seus egos do caminho. Os sociólogos estudaram 120 prefeitos de cidades norte-americanas, 65 mulheres e 55 homens. As mulheres governaram de forma mais transparente e incluíram mais contribuições de pessoas abaixo delas na hierarquia.

P. Nossa evolução futura poderia nos levar apenas a conexões sexuais femininas, ou essa é uma “biofantasia”, como o senhor diz?

R. Digamos que é uma fantasia biológica com certa conexão com a realidade. Acredito que, cientificamente, misturar os genes de duas mulheres será muito mais fácil de conseguir do que fazer um embrião de dois homens e depois, de alguma maneira, concretizá-lo de forma segura com suportes totalmente artificiais. Mas, felizmente para nós, há muitas mulheres que gostam dos homens por este ou aquele motivo, então acredito que elas vão querer nos manter por perto. Todos temos muito a ganhar mantendo ambos os sexos ao redor, sem falar de todas as pessoas que não se encaixam simplesmente nas categorias masculinas e femininas, porque a variedade faz com que a vida seja interessante... Vive la différence! [Viva a diferença!, expressado em francês durante a entrevista]. Quanto à biofantasia, procuremos manter nosso senso de humor.

P. Estamos vivendo o fim da supremacia masculina?

R. Estamos no começo do fim da supremacia masculina, que poderia levar décadas, mas acho que estamos no processo. Minha neta Hannah, chamada assim por minha mãe, terá uma vida que será tão diferente da vida de sua xará, com muitas outras possibilidades, que minha mãe ficaria assombrada e a observaria com orgulho. Minhas avós não puderam votar até mais ou menos os 40 anos. Minha mãe precisou se impor para aprender a dirigir. Quando estava na universidade, cerca de 5% dos graduados das faculdades de Medicina, Direito e Negócios eram mulheres. Agora elas são cerca de 50%. Há um longo caminho pela frente, sobretudo nos níveis superiores de liderança. Mas as tendências são favoráveis em muitos países. Claro que em alguns isso é muito menos certo. No Afeganistão, provavelmente veremos o retrocesso de duas décadas de progresso para as mulheres. Mas as tendências em muitos outros lugares (Taiwan, Coreia do Sul, Europa ocidental, EUA) são positivas.

P. A vida seria muito mais segura com esse fim da supremacia masculina?

R. Sem dúvida, a vida será mais segura para as mulheres. Elas terão mais capacidade de fazer frente ao abuso, terão mais educação e oportunidades econômicas para proteger sua saúde e segurança, criarão coalizões entre elas que as tornarão menos vulneráveis a certos tipos de homens. Desde que saiu a versão norte-americana do meu livro, vimos o movimento #MeToo derrubar homens poderosos em muitos âmbitos da vida por assediar ou agredir as mulheres. Perguntei a muitas que conhecia se isso era uma mudança cultural real ou uma moda passageira. A maioria considera que isso marcará uma diferença no longo prazo. Vimos Andrew Cuomo, ex-governador de Nova York, tentar se esquivar da gravidade de seus maus-tratos e falta de respeito às mulheres. Ele perdeu no final, e pode apostar que a mulher que conseguiu isso não estará abusando dos homens. Além de minhas três filhas e minha neta, também tenho um filho e dois netos. Quero que eles tenham sucesso, uma boa vida. Mas acredito que o mundo será um lugar mais seguro para eles se as mulheres ganharem mais influência. Pode haver menos guerras. Isso não poderia acontecer sob uma única rainha Isabel ou Catarina. Mas, se imaginamos um mundo em que as mulheres estejam bastante representadas em altos cargos, acho que será menos provável que um choque de egos leve à violência.

P. Qual será o papel dos homens?

R. Parceiros. Colaboradores. Às vezes líderes, às vezes seguidores. Contribuirão com ideias e soluções que são diferentes das que as mulheres podem encontrar, não porque tenham melhores mentes, mas porque homens e mulheres, por muitas razões, pensam de forma um tanto diferente. Minha forte perspectiva evolutiva me leva a mencionar duas espécies que estão mais estreitamente relacionadas conosco: os chimpanzés e os bonobos. Se você não se sente confortável com a evolução, tome isso como uma parábola baseada na história natural. Os machos de chimpanzé são fortemente dominantes sobre as fêmeas, têm relações rápidas e superficiais e são muito violentos entre si. Os bonobos, igualmente relacionados conosco, têm coalizões femininas que praticamente controlam suas comunidades. Estas se baseiam, em parte, no sexo entre as fêmeas. As coalizões mantêm o controle sobre a conflitividade masculina. E os machos? Têm uma grande vida. Têm muito sexo lento e pausado com as fêmeas, à vezes cara a cara. Têm pouco a temer de outros machos, porque o nível de violência é muito baixo. Fazem o possível para se dar bem. Temos ambas as espécies em nós, mas durante muito tempo expressamos principalmente o lado dos chimpanzés de nossa natureza. Creio que poderíamos avançar rumo a uma bonobização da espécie humana, um mundo em que todos estariam mais seguros porque as clássicas “virtudes” masculinas do passado, baseadas em ter que enfrentar outros homens, seriam menos necessárias e teriam menos sentido. Houve um best-seller chamado Homens são de Marte, mulheres são de Vênus. Minha resposta a isso foi: “Os homens são de Marte, e as mulheres são da Terra.” As mulheres serão melhores protetoras da Terra, mas também acredito que melhores guardiãs da humanidade. Sim: sem nos deslocar ou dominar, elas podem nos ajudar a criar colaborações de homens e mulheres que inclusive poderiam, no final, proteger os homens dos piores aspectos de nós mesmos.

RAÚL LIMÓN para o EL PAÍS, em 17.10.21

Divergências adiam relatório final da CPI da Pandemia para que ela não acabe ‘em pizza’

Senadores opositores não concordaram com alguns termos de indiciamentos. Presidente e outras 59 pessoas eram apontadas como responsáveis por delitos no combate ao coronavírus

O presidente Bolsonaro no último dia 12, em Aparecida, SP. (Carla Carniel / Reuters)

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia adiará em pelo menos uma semana a leitura e votação de seu relatório final. A decisão foi comunicada neste domingo pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), ao grupo de sete senadores que fazem oposição ao Governo Jair Bolsonaro e deram o rumo das principais investigações do colegiado. Da maneira como fora redigido o relatório, corria-se o risco de ele não ser aprovado, já que havia uma falta de consenso entre os sete parlamentares que até agora votavam de maneira uniforme. Ou seja, ela poderia acabar ‘em pizza’, termo usado para definir apurações políticas que não chegam a lugar algum.

A informação sobre o adiamento foi confirmada ao EL PAÍS pela assessoria de imprensa do relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), e pelo senador Humberto Costa (PT-PE), um dos membros dela. Em princípio, o relatório seria lido na terça-feira, dia 19, e votado no dia seguinte. Parte dos senadores desse grupo, apelidado de G7, demonstrou descontentamento com trechos do relatório que estavam sendo divulgados pela imprensa nos últimos dois dias.

Havia a expectativa de que o relator discutisse detalhes do documento antes de repassar os dados à imprensa. Quando parlamentares notaram o vazamento iniciou-se uma discussão em um grupo de WhatsApp sobre alguns dos termos que estavam sendo utilizados. Houve quem demonstrasse descontentamento com indiciamentos de 60 pessoas – entre eles o do presidente Bolsonaro – e com a ausência de outros, segundo contou ao EL PAÍS o senador Humberto Costa, titular da comissão e um dos representantes do G7. O petista disse que não poderia detalhar quais foram as queixas de seus colegas, mas ressaltou que algumas das tipificações criminais dos indiciados descontentaram parte do grupo. “O que posso dizer é que tivermos algumas divergências maiores e outras menores. Agora, teremos de discutir como tudo será consertado”, disse.

Bolsonaro, por exemplo, estava sendo indiciado por 11 crimes, entre eles homicídio qualificado, epidemia, charlatanismo e incitação ao crime. O presidente postergou a compra de vacinas, fez campanha contra os imunizantes e promoveu medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento do coronavírus. Algo de possível rusga entre os parlamentares é o indiciamento de um de seus pares, o primogênito do presidente e membro suplente da CPI, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), por disseminação de fake News. Os outros dois filhos políticos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro também seriam indiciados pelo mesmo delito.

Conforme publicado neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo, o relatório previa que o Governo Bolsonaro teria agido com dolo na pandemia de covid-19. “O governo federal criou uma situação de risco não permitido, reprovável por qualquer cálculo de custo-benefício, expôs vidas a perigo concreto e não tomou medidas eficazes para minimizar o resultado, podendo fazê-lo. Aos olhos do direito, legitima-se a imputação do dolo (intenção de causar dano, por ação ou omissão)”, diz trecho do documento publicado pelo periódico.

Tribunal Penal Internacional

Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores titulares da CPI. Quatro deles são declaradamente bolsonaristas: Luiz Carlos Heinze (PP-RS), Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). O prazo limite para o funcionamento da CPI é 5 de novembro.

Dessa forma, a oposição seguiria com a maioria dos votos (7 entre 11). É com essa maioria que os opositores querem seguir contando para aprovar um relatório duro contra o presidente e seus aliados. Tipos penais não faltam. Alguns deles imprescritíveis e que poderiam acabar no Tribunal Penal Internacional, como o caso da acusação de genocídio. É uma espécie de cerco político-eleitoral e jurídico-criminal contra o presidente. Há desde grupos que disseminaram desinformação até ex-gestores e autoridades federais e estaduais que agiram contra as medidas de prevenção do coronavírus ou que atrapalharam a aquisição de vacinas.

No relatório preliminar de Calheiros, Bolsonaro estava sendo caracterizado como autor de genocídio de indígenas. “Fica nítido o nexo causal entre o anti-indigenismo do mandatário maior e os danos sofridos pelos povos originários, ainda que, como outros líderes acusados de genocídio, não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma”, diz trecho do documento, revelado pelo Estadão.

Em meados de setembro, um grupo de juristas elaborou um parecer a pedido da CPI que definiu uma lista seis possíveis crimes comuns cometidos pelo presidente: além do charlatanismo e do crime da epidemia, crime contra a humanidade, infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e prevaricação. Todos esses seriam investigados pelo Ministério Público Federal. Há ainda um possível crime de responsabilidade pela violação das garantias individuais, como o direito à vida e à saúde. Neste caso, caberia ao Congresso Nacional avaliar e a punição seria o impeachment e a cassação dos direitos políticos do presidente.

“O presidente da República deixa de cumprir com o dever que lhe incumbe, de assumir a coordenação do combate à pandemia, dizendo lhe ter sido proibida qualquer ação pelo Supremo Tribunal Federal, que, como ressaltado antes, o desmente, pois há competência comum, e devem União, Estados e Municípios atuar conjuntamente segundo a estrutura do Sistema Único de Saúde”, diz o parecer coordenado pelo jurista e ex-ministro Miguel Reale Jr, um dos signatários do pedido de impeachment que resultou na destituição de Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República.

Todos os dados que constam no relatório serão encaminhados ao Ministério Público Federal e para o equivalente de alguns Estados para que eles ajam. Uma primeira parte já chegou às mãos da força-tarefa do MP de São Paulo que apura os crimes da Prevent Senior.

O líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros, e a rede de fake news (Evaristo Sá / AFP)

Um dos capítulos do relatório abordará exatamente os grupos de bolsonaristas que espalhavam fake news e interferiram diretamente na disseminação de dados falsos sobre a pandemia. Nesse trecho do documento, serão citados os portais Terça Livre, Brasil Sem Medo e Crítica Nacional. Os responsáveis por esses sites e aliados deles também serão investigados, entre eles o blogueiro Allan dos Santos, o ex-secretário de Comunicação do Governo Fábio Wajngarten e o empresário Otávio Fakhoury.

Um outro trecho do relatório será dedicado ao líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Várias frentes da investigação o vinculam a uma série de irregularidades. Um cruzamento de quebras de sigilos bancários, fiscais e telefônicos analisadas pelos 25 assessores parlamentares e policiais que trabalham no relatório dão conta de que todos os fios se conectam ao deputado. “Todos os caminhos levam ao Barros”, disse uma fonte da CPI.

Barros tem vínculo, por exemplo, com diretores que negociaram propina para a compra de vacinas, com a assinatura de um contrato fraudulento para a compra de outro imunizante, é apontado como um dos fatores de pressão contra os denunciantes do esquema e é investigado em outro inquérito por pagar 20 milhões de reais para a empresa Global por medicamentos que nuca foram entregues, quando era ministro da Saúde de Michel Temer. Além disso, o próprio presidente Bolsonaro teria dito em uma conversa com um dos denunciantes das irregularidades, o deputado Luís Miranda (DEM-DF), de que Barros teria “esquemas” dentro do Ministério da Saúde.

Ainda que haja, até o momento, uma barreira de contenção a favor de Bolsonaro na Câmara e na Procuradoria Geral da República, a CPI deve causar ainda mais dano à já fragilizada imagem do presidente —sua popularidade chegou ao pior índice do mandato, 53% de ruim e péssimo em setembro, conforme o Datafolha. Os opositores contam com o tempo. Apesar da inação de parte dos atores que deveriam agir contra o presidente, alguns dos crimes que serão relatados são imprescritíveis e não dependem, necessariamente, de um juízo político. Ou seja, a possibilidade de punição dos responsáveis, ainda que tardia, permanece viva.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

Sob eco da Lava Jato, Câmara acelera projeto para minar poder do Ministério Público

Procuradores e promotores reclamam que manobra é mais uma no sentido de dificultar combate à corrupção. Jurista vê ato ilegítimo e professora diz que há exagero nas queixas

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão no dia 14. (Ag. Câmara)

A operação Lava Jato fez tremer a classe política e o mundo empresarial que negocia com o Governo. Levou um presidente de empresa, Marcelo Odebrecht, e um ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para a prisão, e mostrou-se firme no propósito de ‘limpar’ a política. A intenção era boa, conquistou o Brasil, mas o tempo mostrou um direcionamento político do Ministério Público e do então juiz Sergio Moro, que hoje cobra seu preço. 

A Câmara dos Deputados acelerou uma cruzada para aumentar o controle político de quem fiscaliza as autoridades públicas. Está prevista para esta terça-feira a votação da proposta de emenda constitucional número 5 de 2021, que trata da mudança na composição do Conselho Nacional do Ministério Público. Patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o texto é relatado pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e já tem apoio de parlamentares de várias legendas, do PT ao PSL, do PSB ao Cidadania. 

O tema foi debatido no plenário da Casa nas últimas duas semanas, atropelando discussões prévias em uma comissão especial e audiências públicas. O projeto tem enfrentado uma dura oposição de membros do MP, que entendem que sua aprovação deve ferir de morte a instituição.

Esta é a segunda tentativa de minar os poderes de procuradores e promotores em menos de um mês. A primeira ocorreu ainda entre setembro e outubro, quando as duas casas do Congresso Nacional aprovaram mudanças na lei da improbidade administrativa que afrouxam as regras para punir os gestores que cometerem esse crime. Nesse pacote está inclusa a permissão da prática de nepotismo.

As principais mudanças que preocuparam os especialistas foram o aumento dos conselheiros do CNMP que seriam indicados pelo Congresso Nacional — de dois para cinco entre 17 membros — e a obrigação de que o Legislativo indique o corregedor da instituição, que também exerceria o papel de vice-presidente. Ao corregedor cabe analisar todas as denúncias administrativas contra membros do Ministério Público que pudessem gerar qualquer punição. Um exemplo: a corregedoria do CNMP analisaria a conduta de qualquer procurador da Lava Jato que tivesse usado do cargo para punir irregularmente um político.

Representantes de cinco entidades de procuradores e promotores coordenados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) têm feito pressão para que a Câmara rejeite a PEC 5/2021. Mas sem sucesso, por enquanto. Em notas técnicas e comunicados à imprensa, os procuradores dizem que as propostas “interfere em garantias fundamentais para a independência da instituição”. Eles temem que, se o corregedor for indicado por políticos que podem ser alvos de investigações possa haver uma atuação direcionada contra os fiscais da lei.

Na mesma linha, segue a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Para ela, há a necessidade de melhorar o funcionamento do CNP, “o que inclui a necessária escuta do Poder Legislativo e grupos sociais”, com a revisão de “mecanismos de transparência e accountability”. Contudo, o texto em análise não aponta condições para a correção de erros cometidos pelos membros do Ministério Público, avalia a associação. “Ao contrário, politiza o conselho e subordina a agenda correcional a interesses ocasionais contra atuações do MP em temas de relevância nacional”.

Por essa razão, em Brasília, a proposta tem sido chamada de PEC da Vingança. Ainda assim, há a sensação de que mudanças precisariam ser feitas para que o MP fosse mais rígido com seus membros. “Hoje, nenhum membro do MP responde contra improbidade. É importante um conselho forte, com presença, para que tenhamos transparência”, ressaltou o padrinho da proposta, Arthur Lira em entrevista à rádio CNN.

O ex-chefe da Lava Jato Deltan Dallagnol, por exemplo, foi denunciado em 2016 pela defesa de Lula ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo uso do famoso powerpoint para acusar o ex-presidente Lula de corrupção. A projeção, apresentada numa coletiva de imprensa, colocava o nome do petista para colocá-lo como chefe de quadrilha de inúmeros crimes. O julgamento de Dallagnol foi adiado 42 vezes pelo Conselho até que a queixa prescreveu. O instrumento rudimentar já foi proibido no exterior, alega a defesa de Lula, por promover a induções genéricas.

Dallagnol, assim como o time de procuradores que integraram a Lava Jato, tiveram conversas vazadas pela série de reportagens da Vaza Jato, liderada pelo jornal The Intercept, e também na operação Spoofing, da Polícia Federal, que localizou os hackers que vazaram o conteúdo das conversas entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro no aplicativo Telegram. As comunicações revelaram como os procuradores agiram diversas vezes sob a orientação de Moro na busca de provas contra o ex-presidente Lula. A ida de Moro para o Governo Bolsonaro em 2019 só consolidou a leitura da atuação política de procuradores.

Há uma desinstitucionalização da democracia”,

Joaquim Falcão, jurista.

O Conselho Nacional do Ministério Público foi criado em 2004. Tem como função fazer a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do MP e de seus membros. Um dos que trabalharam para sua criação foi o jurista Joaquim Falcão, professor de direito da Fundação Getulio Vargas. Hoje, ao analisar a atual PEC ele diz que há uma tentativa da classe política de se blindar.

“É uma clara estratégia do populismo de direita de neutralizar e paralisar as instituições de controle”, disse Falcão ao EL PAÍS. O professor foi um árduo defensor a atuação da Lava Jato. Lira é um aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para Falcão, a mudança tem “uma aparência de legalidade, mas é ilegítima”. “Na ditadura militar tínhamos o Congresso funcionando, o Executivo funcionando e o Judiciário funcionando. Tudo parecia ser legal, mas não era. É o mesmo que estão tentando fazer agora com o Ministério Público. Há uma desinstitucionalização da democracia”.

Professora na Escola Brasileira de Direito e doutora em Direito de Estado, a advogada Telma Rocha Lisowski avalia que as mudanças são uma aparente reação à Lava Jato e aos seus desdobramentos. Em um primeiro momento, a Lava Jato – encerrada oficialmente em fevereiro deste ano após quase seis anos de apurações – cercou políticos de diversos espectros, mas especialmente do PT. A operação é tida como decisiva para a derrubada da presidente Dilma Rousseff e para tirar o ex-presidente Lula da disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro em 2018.

Contudo, Lisowski diz não ter uma visão catastrófica, como apresentaram as associações de procuradores e promotores. “Há um certo exagero sobre essa influência política”. Hoje, os procuradores gerais da República e dos Estados já são indicados pelo presidente e pelos governadores. Em alguns casos, como no do presidente Bolsonaro, o governante nem respeita uma lista tríplice votada pelos procuradores e acaba escolhendo alguém que seja mais alinhado com o seu Governo.

Na mesma linha, seguiu a doutoranda em direito pela Universidade de Salamanca e professora na Faculdade de Direito de Franca, Ana Cristina Gomes. “O que temos hoje é uma pseudo independência do Ministério Público”. Segundo ela, há um temor exacerbado por parte dos procuradores. “Por que no Brasil há um órgão que só ele tem o direito de se auto-avaliar e se autofiscalizar? Por que um cidadão com notório saber jurídico não pode fiscalizá-lo?”.

Na análise de Lisowski, a maior preocupação deveria ser, caso fosse mantida, a previsão que constava do relatório inicial e permitia que o CNMP revisasse medidas tomadas pelos seus membros, funcionando como uma segunda ou terceira instância judicial. “Seria como se o Conselho Nacional de Justiça pudesse cassar acórdãos, decisões, sentenças de juízes do Brasil inteiro”. Essa alteração foi retirada do relatório do deputado Paulo Magalhães, que cedeu à pressão dos procuradores.

Desde que chegou à Câmara, o texto já teve três versões distintas. Nesta terça-feira, será a sua prova de fogo. Seus apoiadores calculavam que ele tinha menos de 250 votos. Para uma PEC ser aprovada são necessários os votos de 308 dos 513 deputados federais.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

sábado, 16 de outubro de 2021

Ciro x Lula, a guerra prematura

Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro. Tema do comentário de Ascânio Seleme, n'O Globo hoje.

Todo mundo no PT sabia que seria difícil evitar um confronto com Ciro Gomes, mas também não se esperava que partissem do próprio PT as pedradas que desencadeariam a tormenta. O ideal era que o confronto ocorresse apenas na campanha, talvez nos debates, na propaganda de TV, nas entrevistas dos candidatos. Mas, não, os ataques que ajudam a desmontar a história alternativa que o partido pretendia contar sobre os seus quatro mandatos no governo do Brasil foram iniciados depois das agressões da militância petista a Ciro na manifestação do dia 2 de outubro. Era tudo o que ele precisava e queria. Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro.

A estratégia agora no PT, com o leite derramado prematuramente, é evitar danos maiores. A primeira ordem do comando, de não responder a eventuais ataques, caiu antes mesmo de ser implementada. A afirmação de que Lula contribuiu de maneira decisiva para o impeachment de Dilma, que passou anos falando mal dela e de seu governo, foi prontamente respondida por Dilma. E, mais grave, pelo próprio Lula, que mordeu a isca. Falou, de maneira inapropriada para um momento grave como este, que Ciro deve ter sequelas no cérebro em razão da Covid, mas não fez referência direta à acusação de que falava mal de Dilma. Talvez para não ser pego na mentira, vai que alguém gravou.

Os ataques de Ciro são de quem conhece muito bem Lula e o PT. Quando partem de Bolsonaro ou de seus aliados, as investidas têm muito menor eficiência do que quando disparadas por gente que já foi de dentro. Ciro foi da casa, sabe muito bem com quem está lidando, conhece concretamente os métodos petistas e percebe cada dissimulação, todas as tergiversações. Mais grave, Ciro sabe se expressar. Bolsonaro, não. E Ciro tem agora João Santana, outra fonte inesgotável de informações que podem complicar muito a candidatura petista até a eleição do longínquo outubro de 2022.

Aliás, o tempo é outro problema para o PT. Se serve para Lula viajar e negociar alianças ao centro e à direita, serve também para aos poucos ir manchando sua aura de político perseguido, desmanchando a imagem de um homem indefeso que foi fustigado, condenado e preso por um juiz politicamente comprometido e um Ministério Público corrupto e interesseiro. O manto de santo com que se vestiu Lula pode virar farrapos numa campanha tão longa.

Teoricamente, esta ainda era a hora para se pressionar com todas as forças democráticas pelo impeachment do presidente, denunciado por mais de 30 crimes de responsabilidade. Foi o PT que minou a causa ao abandoná-la. Logo o PT que pediu o impeachment de todos os presidentes não petistas desde a redemocratização. Ninguém escapou da saga petista, nem mesmo o acima de qualquer suspeita Itamar Franco. Contra todos se empenhou e mostrou seus dentes. Já com o Bolsonaro, apesar do discurso inicial, aquietou-se porque, por seus cálculos corretos, com ele no páreo fica mais fácil a eleição de Lula.

Lula foi chamado de corrupto, arrogante e egocêntrico. Dilma de incompetente. Sobre o PT, Ciro disse ver um grupo de fanfarrões e hipócritas neoliberais. Difícil dizer o que dói mais na alma petista, ser chamado de corrupto ou de neoliberal. Deixando à parte todos os conhecidos exageros retóricos de Ciro Gomes, o fato é que o PT ao longo dos anos foi se transformando de um partido socialista-marxista em um agrupamento de esquerda social democrática, o que não é ruim, absolutamente, até ser hoje de centro-esquerda, como ensinou o professor Fernando Haddad.

Falta um ano para eleição, tempo demais nos cálculos petistas para ficar vendo seu telhado ser ameaçado pela chuva de pedras que já começou a pingar. A ordem de não reagir a Ciro Gomes terá de ser atendida, sob pena de Lula perder a polarização que pretende exclusiva com Bolsonaro. De sua parte, Ciro sabe que é improvável tirar Lula do segundo turno. Seu objetivo é dividir a esquerda até onde conseguir e caminhar sobre os votos do centro para alijar Bolsonaro da disputa final. Também aí terá de ralar muito. De qualquer forma, a guerra prematura à esquerda está aberta e pode ser útil aos demais.

Comprando polêmica 1

A decisão do senador Davi Alcolumbre de não pautar a indicação de André Mendonça para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado faz parte do jogo político. A prerrogativa do presidente de indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal não significa que automaticamente sua indicação passará. Primeiro, tem que ser pautada pelo presidente da CCJ, depois aprovada pela Comissão e depois pelo plenário. Todas estas etapas são políticas e devem ser negociadas. Se a nomeação fosse automática, não precisava da avaliação do Senado. Alcolumbre tem razão e direito legal de sentar sobre a indicação da mesma forma que Arthur Lira senta sobre mais de cem pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, já que estamos tratando do terrivelmente evangélico Mendonça, Alcolumbre tem razão de sobra.

Comprando polêmica 2

Está bem que a pauta do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, é um horror. Seus métodos de ação são ainda mais escabrosos e obscuros. O homem inventa uma pauta de manhã e à tarde a coloca em votação. Essa prática vai acabar, junto com o fim do mandato de Bolsonaro. Mesmo assim, não dá para dizer que jogar um pouco mais de luz e mais controle sobre o Ministério Público é ruim. O que faltou foi oportunidade. E debate.

Comprando polêmica 3

A possibilidade de se criar federações de partidos pode ser útil à democracia brasileira. Reduzir o número de agremiações políticas ajuda a combater o partidarismo de aluguel. E, como força que a federação perdure quatro anos, permite ajustes, entendimentos e acordos para além das eleições. O que é muito bom.

Tolinho

O governo está soprando por aí que, pelos seus cálculos, a candidatura de André Mendonça ao STF será derrotada se chegar ao plenário do Senado. Tolinho. Fosse verdade, já teria trocado o nome para não passar vexame. Seu alvo é Alcolumbre, a quem a turma palaciana deve considerar um poço de ingenuidade.

Sem estratégia

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes provaram esta semana que, além da falta de apreço, não têm qualquer estratégia em relação à Petrobras. O presidente, reclamando que sobre ele caem todas as responsabilidades dos males do Brasil, disse que até quando a gasolina sobe a culpa é dele. E falou que isso cansa e já está até pensando em privatizar a companhia para se livrar do abacaxi. O ministro, por sua vez, propôs vender ações da Petrobras toda vez que o preço dos combustíveis subir e distribuir o dinheiro obtido entre os mais pobres. Vai ver que é isso mesmo o que ele quer. Até o fim do governo, diante das sucessivas desvalorizações do Real e dos consequentes aumentos da gasolina, Guedes privatizaria a estatal. Mas claro que não é assim que se toca assunto tão importante. Falar o que dá na telha, sem estudo, sem análise, com argumentos paupérrimos, apenas confirma o que já se sabe de ambos. São dois irresponsáveis contumazes.

Coreia bem piorada

Quantos brasileiros se inscreveriam no jogo proposto na série coreana “Round 6”? Para quem não sabe, trata-se do maior fenômeno de audiência da Netflix da temporada, onde 456 homens e mulheres desesperados, pobres e endividados, sem perspectivas, topam participar de um jogo de vida e morte para ganhar um mega prêmio em dinheiro. Na Coreia, 95% têm pelo menos o equivalente ao segundo grau completo. No Brasil, bom, por aqui, num jogo semelhante, as filas de inscrição dobrariam esquinas.

Pobre e velho

O motorista fechou o apressadinho que havia buzinado para ele, forçando que parasse o carro. Abriu então a janela e disparou: “Está com pressa? Da próxima vez passa por cima, seu velho”. “Você devia ter vergonha deste carro. Aposto que ganha 15 mil por mês, seu velho, pobre!”. O outro, incrédulo com o que ouvira, até em razão do conceito de pobreza do ofensor, respondeu: “Vai se vacinar, Bolsonaro”. Bastou para o “jovem” persegui-lo por três quadras, ameaçando bater, fechando o seu carro em manobras arriscadas e chamando-o seguidamente de velho e pobre. Mais bozo, impossível.

Ascânio Seleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.10.21