segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Cantanhede: Bolsonaro quer o 7/09 para dizer que o ‘povo’ está com ele, mas 2/3 são contra

No sábado, uma semana atrás, o presidente da Câmara, Arthur Lira, surpreendeu seus aliados no pequeno e pobre município de Lagoa da Canoa, em seu Estado, Alagoas, ao ligar para o presidente Jair Bolsonaro pelo celular, ser atendido e abrir a conversa pelo viva voz: “Olha aqui, é o nosso presidente!” Foi uma festa.

É assim que Bolsonaro governa, ou melhor, não governa. Faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez, que corrói as instituições, cria um clima de guerra – inclusive entre Câmara e Senado – e vai transformar o 7 de Setembro numa grande fake news, de defesa do nada e ataque à democracia, às instituições e à realidade.

Há os que, como Lira, se movem por interesses pessoais, políticos e eleitorais. Outros são os crentes, que tapam olhos, bocas, ouvidos – e narizes – para não enxergar e não entender o que está bem na sua cara. Caem em qualquer lorota e atacam quem tenta trazer luz e racionalidade ao País.

Eliane Cantanhêde: '(Bolsonaro) faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez'.  Foto: Marcos Correa/Presidência da República

O fato é que Jair Bolsonaro, que há pouco esfumaçou a Praça dos Três Poderes com tanques obsoletos e sem graça, tirou da população a festa e a alegria de saudar a Pátria, curtir o desfile militar e as manobras da Força Aérea para se concentrar numa única coisa: ele próprio.

Está prevista uma presença recorde em Brasília, Rio, São Paulo e várias capitais. Essa gigante massa de manobra será usada por Bolsonaro para mais uma fake news: a de que “o povo” está com ele. Segundo todas as pesquisas, porém, ele tem menos de um terço da população. Os outros dois terços observam, indiferentes ou perplexos, ou se desesperam, temendo que vá das palavras aos atos contra instituições, eleições e a democracia.

Tipos como Roberto Jefferson, Sérgio Reis, Ottoni de Paula, Daniel Silveira, Wellington Macedo, Zé Trovão e aquela outra que sumiu, depois de se fantasiar de Ku Klux Klan diante do Supremo, fazem da violência e do “quebro e arrebento” a sua bandeira. Esse é o seu lado, leitor?

Outros usam instrumentos da democracia como armas letais. A deputada Bia Kicis ameaça (sim, é uma ameaça) com um projeto para acabar com o TSE, a Justiça Eleitoral, que tem tantos serviços prestados. O deputado, ex-líder do governo e ex-major Vitor Hugo lança um projeto para tirar o comando dos governadores sobre as PMs e transferi-lo para Bolsonaro, transformando as polícias em milícias bolsonaristas, novamente a la Chávez.

E há os que transitam entre o incompreensível, o patético e a insanidade, como o negro Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, que, anteontem, levou ao delírio uma tal conferência conservadora (o Foro de São Paulo da extrema direita) ao chamar os movimentos negros de “afromimizentos, negrada vitimista, pretos com coleiras”. A escravidão, para ele, foi o maior barato.

Misturam-se a essa gente os ex-ministros Ricardo Salles, da destruição da Amazônia, e Ernesto Araújo, da implosão da política externa, além de Onyx Lorenzoni, que pula de ministério em ministério em nome de Deus, da família e da moral. Como o Taleban.

Arthur Lira faz o jogo e outros fazem gol contra, como Pedro Guimarães, da CEF, que transformou um traque numa bomba: um texto anódino da Fiesp e da Febraban, que seria nada, acabou fazendo emergir a resistência entre empresários, banqueiros, executivos e agronegócio. Instabilidade afeta desenvolvimento, investimentos e o futuro.

O mais triste é como um presidente que não governa, não tem programa, erra tudo na pandemia, não dá a mínima para a crise hídrica e só destrói, sem construir, consegue surrupiar a bandeira nacional, o verde e amarelo e a racionalidade de tantos inocentes úteis para atacar o Supremo, pilar da democracia, e endeusar a ele próprio, líder da desordem, do caos, da violência, da enganação.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da RádioJornal (PE) e do Tele-Jornal "Em Pauta", da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 05 de setembro de 2021 | 03h00

J.R. Guzzo: Golpe exige força – e o único que tem força, o Exército, não vai se meter nisso

É possível que as manifestações de rua deste Sete de Setembro, que têm sido a obsessão do mundo político brasileiro nas últimas semanas, acabem sendo uma coisa rala, muito abaixo do que esperam os admiradores do presidente Jair Bolsonaro – e abaixo, ao mesmo tempo, do que causa tanto pavor junto aos seus inimigos. Podem, ao contrário, reunir gente que não acaba mais e receberem a classificação de movimento de massa de primeira grandeza. Tanto num como no outro caso, não muda o verdadeiro problema que envenena a política brasileira no momento: o que fazer com o presidente da República, hoje e principalmente no futuro? É um nó de marinheiro – e daqueles difíceis de desmanchar.

J. R. Guzzo: 'Aconteça o que acontecer na rua no dia 7 de setembro, não vai haver golpe militar nenhum'.  Foto: Gabriela Biló/Estadão

As manifestações pró-Bolsonaro têm sido vistas pelo Supremo Tribunal Federal, pelas elites pensantes, pela mídia, pela oposição em peso, pelas classes intelectuais e até mesmo pelos banqueiros – imaginem aonde chegamos – como uma ameaça direta à democracia. O presidente, por este modo de ver as coisas, está querendo usar a rua (se conseguir mesmo encher a rua de gente) para desmoralizar as “instituições”, romper com as leis e dar um golpe de Estado. Mesmo que não seja quebrada nem uma vidraça, como vem sendo a regra nesse tipo de protesto público, os manifestantes vão com certeza falar o diabo – e isso, hoje em dia, é considerado infração gravíssima. (Grave a ponto de o STF, como medida de resistência aos golpistas, ter decretado ponto facultativo no dia 6 – uma bela “ponte” que vai render quatro dias seguidos de feriadão, do sábado à quarta-feira, dia 8.)

Vastas emoções, portanto – mas com pensamentos imperfeitos. Aconteça o que acontecer na rua no dia 7 de setembro, não vai haver golpe militar nenhum. O motivo disso é muito simples. Golpe militar tem de ser dado por militar, e o militar brasileiro não quer dar golpe – não quer, não pode, não tem planos para isso, não tem liderança, não tem recursos, não obedece a carro de som nem à barulheira em rede social. Golpe exige força – e o único que tem força, o Exército Brasileiro, não vai se meter nisso. Em compensação, os inimigos do presidente continuam com o mesmíssimo problema que têm agora: o risco de que ele permaneça no governo até o fim do mandato, coisa que acham intolerável – ou, muito pior ainda, que fique por quatro anos além disso, se for reeleito. Aí já seria o fim do mundo.

Teoricamente não deveria haver problema nenhum com nada disso. Se Bolsonaro é mesmo o pior presidente que o Brasil já teve em toda a sua história, e se ainda por cima é genocida, ladrão de vacina e culpado por todas as desgraças que o País tem hoje, ele vai ser derrotado por qualquer outro candidato nas eleições de 2022, não é mesmo? Que risco pode haver se o presidente é realmente o monstro que aparece todos os dias no noticiário? Os institutos que pesquisam “intenção de voto”, aliás, dizem que o grande nome da oposição, o ex-presidente Lula, já está com mais de 50% dos votos no papo; mais um pouco, na toada em que está indo, chega aos 100%. Como um desgraçado da vida como Bolsonaro poderia ganhar dele, ou de outro qualquer?

Acontece que não é assim, claro – ou ninguém acredita mesmo que esteja sendo assim. Na vida real da política o Datafolha é uma coisa e a eleição é outra; eleição, na prática, é voto na urna, e não no jornal ou nas notícias do horário nobre. O panorama visto de hoje, pelo estado de excitação nervosa extrema que foi montado em torno do presidente da República, dá a entender que existe a possibilidade real de Bolsonaro ganhar a eleição. E aí? Há cada vez mais gente, no Brasil que manda, dizendo que “não dá para esperar”. Como fica, então?

O Jornalista José Roberto Guzzo escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País. Publicado originalmente n'O Estado de São Pulo, em 06.09.2021.

Presidenciáveis já dão contornos à pré-campanha

Ritmo de viagens de pré-candidatos aumenta nos últimos 3 meses; Nordeste vira foco de Doria e Lula; Bolsonaro amplia giro pelo País

O presidente Jair Bolsonaro tira fotos com apoiadores em Tanhaçu (BA); o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em Caruaru (PE); e o ex-presidente Lula (PT) durante viagem a Fortaleza (CE). Foto: Marcos Correa/PR; Reprodução/Instagram/eduardoleite45; Ricardo Stuckert/Divulgação.

Num clima de acirramento político, os principais pré-candidatos à Presidência intensificaram o ritmo de viagens pelo País nos últimos três meses, a mais de um ano da eleição.

Respaldados pelo avanço da vacinação, os governadores tucanos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT) têm cumprido agendas típicas de pré-campanha como visitas a feiras populares e encontros com líderes culturais e religiosos, além de conversas reservadas com a classe política e outros setores da sociedade. Também em ritmo eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro passou a viajar mais – foram 12 Estados desde o início de junho.

Considerado a peça mais importante do tabuleiro eleitoral do Rio, o prefeito carioca Eduardo Paes (PSD) se encontrou com todos os citados, à exceção de Mandetta. No início de junho, almoçou com Lula no mesmo dia em que jantou com Pacheco, dando início à sequência de reuniões com os presidenciáveis. O senador já foi convidado para disputar o Planalto pelo PSD, mas, até agora, é o que menos tem se movimentado.

Com as prévias do PSDB marcadas para novembro, Doria e Leite mantêm uma rotina acelerada de encontros políticos. O governador paulista já esteve em oito Estados, enquanto o gaúcho visitou um a mais nos últimos três meses. Ao Estadão, Leite disse que as viagens têm servido para expandir os horizontes e compartilhar vivências e experiências. “Faço questão de visitar projetos sociais e conhecer a periferia das cidades”, afirmou.

Assim como Leite, Doria tem usado as viagens para trocar experiências com tucanos de outros Estados e se aproximar das demandas locais. O governador paulista citou problemas locais nos discursos que fez e “vendeu” bandeiras de sua gestão, como a Coronavac, a vacina do Butantan que o permitiu iniciar a imunização contra a covid-19 antes em São Paulo, e o programa Vale Gás, que oferece auxílio de R$ 300, em três parcelas, para a compra de três botijões.

Ao lado da prefeita de Caruaru (PE), Raquel Lyra (PSDB), Doria visitou no fim de agosto a famosa feira de artesanato da cidade, onde tomou café com aliados. No dia anterior participou de um encontro político em Natal no qual defendeu a retomada da ferrovia Transnordestina. “Cada região tem suas características, problemas e vocações. Tudo isso vamos incorporar na formulação de um projeto econômico e social denominado pacto pelo Brasil”, disse Doria, que tem agendadas viagens a outros seis Estados e ao Distrito Federal.

Lula encerrou no dia 27 um roteiro de 11 dias por seis dos nove Estados do Nordeste. O petista visitou uma comunidade indígena, um assentamento, unidades de saúde e o complexo portuário do Ceará, entre outras agendas. Por onde passou, Lula ainda assinou fichas de filiação ao PT e se encontrou com políticos de outros partidos, como os senadores Tasso Jereissati (PSDB) e Cid Gomes (PDT); o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB); e o ex-presidente do Senado Eunício Oliveira (MDB). O próximo destino deve ser Minas.

Terceiro colocado em 2018 e dono da mesma posição nas atuais pesquisas de intenção de voto, Ciro Gomes tem se dedicado mais a gravar vídeos e participar de debates remotos do que viajar pelo País. Segundo relatos publicados nas redes sociais, o ex-ministro esteve no Rio, em São Paulo e na Bahia.

Em queda nas pesquisas de popularidade e intenção de voto para 2022, o presidente Jair Bolsonaro ampliou suas viagens pelo País. Nos últimos três meses, foram 12 Estados visitados, sendo alguns deles mais de uma vez. Liderou também ao menos nove motociatas no período.

Antes de junho, o presidente já havia preparado uma rodada intensa de viagens. Em maio, o Estadão mostrou como Bolsonaro estava circulando por cidades dos grotões do País para inaugurar obras iniciadas em governos anteriores ou “reinaugurar” projetos que já estavam em funcionamento. A maioria se deu no Nordeste, região em que o presidente tem maior rejeição, segundo pesquisas.

Adriana Ferraz e Caio Sartori, O Estado de S.Paulo, em 06.09.2021

A democracia no mundo

Em 2020, deterioração da liberdade global foi inaudita, segundo a Freedom House

Não bastasse a mortandade de mais de 4 milhões de vidas e a devastação econômica, o vírus pressionou ainda mais a balança global em favor da tirania contra a democracia.

Segundo o relatório anual Liberdade no Mundo da Freedom House, 2020 foi o 15.º ano consecutivo de declínio na liberdade global. Em 2005, a organização identificava 89 países considerados “livres”; hoje são 82. Os países “não livres” passaram de 45 para 54. Menos de 20% da população mundial vive em um país livre. Mas a deterioração em 2020 foi inaudita: 3 em 4 pessoas vivem em um país que experimentou declínio. A “diferença democrática” – o número de países que melhoraram menos o de países que declinaram – foi a maior da série iniciada em 1995: 45.

Da Venezuela ao Camboja, os déspotas aproveitaram a crise sanitária para esmagar oponentes, enquanto o fechamento das fronteiras dificultou o apoio internacional a ativistas democratas. A pandemia deu a autocracias como China e Rússia a oportunidade de acusar a inferioridade “inerente” da democracia, ao mesmo tempo que ampliam sua influência internacional.

“A influência maligna do regime na China, a ditadura mais populosa do mundo, foi especialmente profunda em 2020”, seja pela campanha global de desinformação e censura, seja pela extensão transnacional dos abusos cometidos no país, como na demolição das liberdades e da autonomia de Hong Kong. Ao mesmo tempo, o regime comunista aumentou seu peso em instituições multilaterais como o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os regimes democráticos adotaram recorrentemente medidas excessivas de vigilância e restrições discriminatórias à liberdade de movimento e reunião, enquanto ondas de desinformação – muitas vezes propagadas pelas próprias autoridades, como no Brasil – obliteraram a disseminação de informação confiável ao preço de incontáveis vidas.

A democracia mais populosa do mundo, a Índia, caiu do status de “livre” para “parcialmente livre”. O regime de Narendra Modi continuou a reprimir seus críticos e utilizou o combate à covid-19 como pretexto para deslocar milhões de migrantes domésticos, enquanto as hostes nacionalistas hindus culparam desproporcionalmente as comunidades muçulmanas pela disseminação do vírus, materializando essa hostilidade em surtos populares de violência.

A crise da democracia norte-americana atingiu seu apogeu com a invasão do Capitólio. Embora o presidente Joe Biden tenha iniciado seu mandato prometendo restaurar a unidade da Nação, nada indica que a chamada guerra civil cultural – seja entre os partidos Republicano e Democrata, seja, no interior de cada partido, entre extremistas e moderados – arrefecerá num futuro próximo. Isso dificultará ainda mais aos EUA resgatar sua credibilidade mundial e liderar uma coalização democrática.

A pandemia também serviu de pretexto para reprimir a onda de protestos populares que eclodiu em 2019 em nome de mais transparência e melhor governança. Se protestos bem-sucedidos no Chile ou Sudão levaram a aprimoramentos democráticos, os regimes despóticos aproveitaram a distração mundial para esmagar movimentos de resistência: quase duas dúzias de países que experimentaram grandes protestos em 2019 sofreram declínio nas liberdades em 2020.

O caso de Taiwan é exemplar tanto do vigor da democracia como das ameaças a ela. Valendo-se de sua experiência com a Sars e apostando em métodos científicos, o país foi extraordinariamente eficaz em combater o vírus sem agressões às liberdades civis. Mas Taiwan enfrenta a contínua hostilidade da China, a cada dia mais próxima de uma ofensiva militar.

“A liderança e a solidariedade global dos estados democráticos é urgentemente necessária”, conclui a Freedom House. “Os governos que compreendem o valor da democracia, incluindo a nova administração em Washington, têm a responsabilidade de se reunirem para entregar seus benefícios, combater seus adversários e apoiar seus defensores.” Empenhar-se nessa missão não é tarefa fácil, mas também não é uma opção: é questão de vida ou morte da liberdade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de setembro de 2021

O vírus do autoritarismo

Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo

Há um processo de erosão das instituições democráticas no Brasil? Nossa democracia está em risco? Ao fim e ao cabo, vai ter golpe? Para enfrentar essas perguntas cada vez mais presentes – das redes sociais à academia, da imprensa às salas de jantar –, a Fundação FHC e o Estado promoveram um debate com diversos cientistas políticos.

Como em todo bom debate, prevaleceu a dialética. E, como reza a boa dialética, as disputas foram travadas sobre uma base de consenso. O consenso é de que há uma crise global da democracia caracterizada pela ascensão dos populismos e tremendamente agravada no Brasil pelo autoritarismo desabrido do presidente da República. Os dissensos versaram sobre o grau de resiliência das instituições.

Há risco de ruptura? Carlos Pereira foi categórico: “Não”. O Judiciário vem dando “sinais coerentes e consistentes”. Contrastando com a cisão entre garantistas e punitivistas à época da Lava Jato, as ameaças de Jair Bolsonaro “unificaram o Supremo”. No Legislativo, as Comissões de Inquérito cumprem o papel de fiscalizar e constranger o presidente. A imprensa, como com todos os governos na redemocratização, dispara diuturnamente suas críticas. Nossa democracia é “incerta, vibrante e competitiva”, disse Pereira, “e isso lhe dá vitalidade”.

Jairo Nicolau falou em um “dilema” entre um “otimismo estrutural” e um “pessimismo conjuntural”. A crise de representatividade, as dificuldades de renovação partidária e o desgaste diário provocado por Bolsonaro evidenciam um “mal-estar”. Mas não há precedentes históricos para uma “quebra institucional” das democracias contemporâneas; as estruturas constitucionais brasileiras não permitem uma distorção tão extrema; e, embora haja um amplo contingente conservador na população, as evidências mostram que a extrema direita é só uma minoria, estridente, mas marginal. Eleitores conservadores que elegeram Bolsonaro não endossariam aventuras golpistas e podem migrar para um candidato competitivo de centro-direita.

Mas, mesmo que as estruturas políticas e civis sejam resistentes a rupturas, a “tensão máxima” a que estão submetidas turva o foco nos problemas reais da sociedade, aumentando “o custo de operação da democracia”, advertiu Magna Inácio. Alguns cidadãos se radicalizam, outros se distanciam, geram-se incentivos à “desmobilização dos mecanismos de controle”, e os corporativismos correm soltos. Mesmo não sendo um choque abrupto, essa degradação leva a uma democracia atrofiada e ineficiente para sanar distorções estruturais como a desigualdade social.

O tom mais pessimista do debate foi dado por Sergio Fausto. “A ideia de que as instituições estão rodando conforme a sua concepção original é uma cegueira.” O presidente da República anuncia que as eleições serão fraudadas a menos que ele vença; blinda seus crimes de responsabilidade traficando emendas parlamentares; e incita a população à luta armada. Uma coisa é a sociedade desconfiar das instituições e seus representantes, outra é “uma força política organizada querendo romper com o sistema, dizendo-o claramente, insuflando quartéis”.

Se o desfecho parece inconclusivo, não é pela fraqueza do debate, mas pela força de seu objeto. A democracia é por natureza dramática. “Otimismo” e “pessimismo” são simplificações convenientes para descrever emoções, mas inadequadas para orientar escolhas. A democracia não está nem pode estar predestinada a um futuro “ótimo” ou “péssimo”. A cada dia ela traz novas oportunidades de conflito, mas também de conciliação. O ônus dessa liberdade é uma espécie de risco permanente. Mas, pago o seu preço – a eterna vigilância –, o seu bônus são reservas inesgotáveis de energia cívica.

Como um organismo invadido por um vírus, a democracia brasileira pode adoecer – e mesmo morrer –, mas a Constituição deu boa compleição ao seu corpo (o Estado) e vigor aos seus órgãos (as instituições). Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo e emergir mais forte e imune às suas variantes.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de setembro de 2021

Ex-presidentes e políticos de 26 países fazem alerta sobre insurreição de Bolsonaro

Ex-presidentes, parlamentares e ministros assinam carta chamando a atenção sobre a intimidação promovida pelo mandatário brasileiro com a marcha marcada para esta terça-feira. Presidente fala em “paz e harmonia”, enquanto seguidores elevam provocações nas redes


Bolsonaro no Palácio do Planalto nesta quinta. ( EFE/ Joedson Alves)

Uma carta assinada por ex-presidentes, parlamentares e ministros de 26 países mostra que a preocupação com as manifestações deste 7 de setembro já ultrapassou as fronteiras do Brasil. Insufladas pelo presidente Jair Bolsonaro, as manifestações, que devem ocorrer principalmente em Brasília e São Paulo, são vistas como mais um gesto de “insurreição” que coloca em perigo a democracia do Brasil. “Neste momento, o presidente Bolsonaro e seus aliados — incluindo grupos supremacistas brancos, policiais militares e agentes oficiais de todos os níveis do Governo —estão preparando uma marcha nacional contra a Suprema Corte e o Congresso, gerando medo de um golpe contra a terceira maior democracia do mundo”, diz a carta, assinada por nomes como o ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper, o ex-presidente da Espanha, José Luis Zapatero, além dos ex-mandatários do Paraguai, Fernando Lugo, e do Equador, Rafael Correa.


“O presidente Bolsonaro aumentou a escalada de ataques às instituições democráticas do Brasil nas últimas semanas”, diz a carta assinada também por nomes com o Nobel da Paz argentino de 1980 Adolfo Esquivel, o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, e o filósofo Noam Chomski. O grupo cita o alerta de alguns membros do Congresso brasileiro sobre a tentativa de modelar este 7 de setembro para ser uma insurreição similar à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, no último 6 de janeiro, por seguidores do presidente derrotado Donald Trump.

A carta chega ao mesmo tempo em que o presidente Jair Bolsonaro publicou uma mensagem falando em “paz e harmonia” durante as manifestações insufladas por ele para esta terça. O recado do presidente chegou antes das 7 da manhã desta segunda, em meio às preocupações crescentes com a agressividade que possa vir a se instalar nas manifestações que estão mobilizando as redes bolsonaristas. “Na próxima terça-feira, comemoraremos o nosso 199° aniversário da independência do Brasil. Independência está associada à LIBERDADE. Assim sendo, também no escopo dos incisivos XV e XVI, do artigo 5° da nossa CF [Constituição Federal], a população brasileira tem o direito, caso queira, de ir às ruas e participar dessa nossa data magna EM PAZ e HARMONIA”.

A mensagem de Bolsonaro foi dada depois que seguidores do presidente soltaram vídeos entusiasmados, alguns interpretados como uma provocação para estabelecer conflitos, especialmente em Brasília, um dos pontos centrais do encontro. Neste domingo, o bolsonarista Jackson Vilar gravou um vídeo sugerindo que “o pau vai cantar em Brasília”, lembrando que indígenas estão acampados na capital para acompanhar o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF). “O povo da direita, tenho falado com alguns líderes aí, os caras tão acesos. Tá igual pólvora. Se riscar um pavio, se um índio desse se meter a besta, Brasília vai ‘desindializar’”, ironizou, falando em ‘derramamento de sangue’.

O vídeo provocou reações e Vilar gravou outro neste domingo para negar o que dissera antes. “Eu não falei que era para ir para Brasília para derramar sangue de indígena não”, disse Vilar, que admitiu “que os ânimos estão nervosos”. Outros seguidores replicam imagens de Bolsonaro a cavalo em vestes similares a de Dom Pedro I quando declarou independência do Brasil de Portugal, em 1822. Também Zé Trovão, o caminhoneiro que vem estimulando as manifestações contra o Supremo, gravou vídeo avisando que “o povo brasileiro” inicia neste dia 7 o movimento em prol da sua liberdade. “Começa no dia 7 mas só tem por fim quando houver o impeachment dos 11 ministros do STF e a contagem pública dos votos. Caso isso não ocorra o Brasil inteiro ficará parado o tempo que for necessário”, diz Trovão, que teve a prisão solicitada pela Procuradoria Geral da República, e acatada pelo ministro Alexandre de Moraes, no âmbito de uma investigação sobre a organização de manifestações violentas durante os atos do dia 7.

De camiseta e chapéu de cowboy, o caminhoneiro sugere no vídeo que os policiais federais não cumpram a medida de prisão determinada pelo ministro da Corte. “Cruze seus braços para que mostremos a força do povo brasileiro. Entregue a nós o trabalho que vocês se propuseram a fazer”, diz ele.

Há a expectativa sobre a participação de policiais militares que apoiam o presidente durante as marchas convocadas para esta terça. O papel dos PMs tem mobilizado os ministros da Corte e governadores, que prometem atuar para desarmar essa bomba relógio. A única certeza até o momento é que não há certeza de nada para o evento deste dia 7.

A tensão cresce enquanto a credibilidade do Governo evapora junto ao mercado financeiro. Nesta terça, a pesquisa Focus do Banco Central, que reúne as projeções de indicadores econômicos de mais de 100 instituições financeiras, aponta para uma revisão para baixo do PIB deste ano – de 5,22% para 5,15% — e de 2022 — de 2%, para 1,93%. A inflação também é outro indicador revisto, assim como o câmbio, ambos para cima. A projeção do Focus é de um IPCA de 7,58% para este ano, contra 7,27% na semana passada. O dólar, por sua vez, passou de 5,15 reais há uma semana para 5,17 reais.

As turbulências na política têm contaminado cada vez mais a economia, especialmente com as repercussões no exterior. Representantes diplomáticos da Europa e Estados Unidos ouvidos pelo EL PAÍS não escondem a intranquilidade com os ataques à democracia promovidos pelo Governo Bolsonaro e suas consequências para os assuntos mais importantes que o país deveria estar focando neste momento.

CARLA JIMÉNEZ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 06 SET 2021 - 08:40 BRT

sábado, 4 de setembro de 2021

Estabilidade e terceira via

Cumpre exigir dos presidenciáveis um só caminho do centro, em prol do Brasil

No início do mês passado foi publicado manifesto assinado por figuras importantes da nossa sociedade como intelectuais, economistas, empresários, banqueiros, líderes religiosos. Desse documento destaco: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”.

Em meados de agosto, o presidente da República enviou ao Senado Federal pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Em documento enviado ao presidente do Senado por ex-ministros da Justiça e da Defesa, propunha-se o arquivamento imediato do pedido como “caminho que evite constrangimento indevido e conduza ao apaziguamento dos ânimos e à reafirmação do respeito e da confiança no Poder Judiciário e no Estado de Direito”.

A Febraban, com apoio de 300 entidades, organizou manifesto a ser publicado pela Fiesp, que à última hora, constrangedoramente, recuou de dá-lo a público. Mas a Febraban e as demais entidades reafirmam esse texto, em nada agressivo ao governo, pois sua tônica é a defesa da democracia, como se pode ver no parágrafo a seguir.

“As entidades da sociedade civil que assinam este manifesto veem com grande preocupação a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas. O momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional.”

Setor fundamental da economia brasileira, que tem mantido as exportações e o crescimento do PIB nacional, o agronegócio, por intermédio de seis entidades, a começar pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em posição firme, ao contrário da pusilanimidade da Fiesp, deu publicidade a documento incisivo acerca do instante movediço vivido no País. E enfatizou “sua preocupação com os atuais desafios à harmonia político-institucional e como consequência à estabilidade econômica e social em nosso país. As amplas cadeias produtivas que representamos precisam de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”.

A sociedade brasileira, que assistia atônita às representações diárias de irracionalidade do sr. presidente, muitas vezes verbalizadas de forma chula, percebeu os riscos da criação artificial de confrontos promovida pelo mandatário. Esses antagonismos deixaram de ser em face de partidos e de pessoas, e passaram a ser em vista de instituições da democracia, criando um clima de grande insegurança.

Os agentes econômicos dos mais diversos setores expressam agora o sentimento principal que preside o nosso cotidiano: a sociedade brasileira está cansada de guerras inventadas que sinalizam a necessidade falsa da adoção de medidas totalitárias, pois se quer, antes de tudo, estabilidade.

Por isso, a tônica das manifestações está na extrema preocupação com a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas, clamando-se pelo apaziguamento dos ânimos, pelo diálogo, pela pacificação política.

A democracia deve defender a si mesma, para que a liberdade não seja usada para destruir a liberdade de todos. Numa democracia militante defende-se não incrementar conflitos, principalmente de modo artificial, confundindo maliciosamente a liberdade de expressão com a liberdade de agressão, como agora pretende Bolsonaro ao convocar para os atos de 7 de setembro.

Esses manifestos das forças econômicas proclamam: precisamos “de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”. Ao mesmo tempo reafirmam seu compromisso com o Estado de Direito, declarando: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”. É demonstração veemente de estarmos numa democracia militante, a tal ponto que a própria sociedade se apresenta como asseguradora da ordem constitucional.

Certamente não será a argumentação melíflua do presidente da Câmara dos Deputados aos ouvidos solícitos do presidente da Fiesp que vai desfazer a realidade tão bem desenhada no manifesto da Febraban, ou seja: o risco contínuo de instabilidade com Bolsonaro no poder.

A intensa preocupação atual dos agentes econômicos e o pavor dos desempregados mostram como é temível a reeleição de Bolsonaro. Impõe-se, então, pensar com maior determinação numa terceira via que responda a esses anseios de paz, de estabilidade e de visualização do futuro.

Os subscritores dos recentes manifestos em prol do Estado de Direito devem se pôr em campo para exigir que os presidenciáveis do centro, após a legítima apresentação de sua ambição de ocupar a Presidência, venham a encontrar, dentre eles, alguém que aglutine e constitua governo conjunto, em torno de um só nome, como se fez na eleição de 1985, quando Ulysses e Montoro abdicaram da condição natural de candidatos em favor de Tancredo, o qual teria, mais que eles, condição de compor diversos setores políticos a seu favor.

Há tempo, mas cumpre a todos se debruçarem nessa tarefa de exigir dos presidenciáveis a criação de um só caminho do centro democrático, em prol do Brasil.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 04.09.21

Lula, o PT e a segunda via

São eles os verdadeiros adversários a ser batidos, como tem sido há mais de 30 anos

Nunca se falou tanto numa terceira via eleitoral capaz de ultrapassar a polarização entre o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), provavelmente Lula da Silva, e o atual presidente, Jair Bolsonaro. Lula pela esquerda e Bolsonaro pela direita representariam caminhos deletérios para o futuro do País. Como afirmou Luís Stuhlberger, conhecido gestor de fundos de investimento, em entrevista a este periódico em 28 de março deste ano, “os empresários estão literalmente apavorados com a hipótese de ter de escolher num segundo turno entre Bolsonaro e Lula”.

A ideia de uma terceira via é boa. Falta apenas um detalhe: votos. Alguns atores políticos e analistas falam do assunto como se a alternativa, quando se materializar num nome, atrairá automaticamente os votos dos insatisfeitos com o PT e com Bolsonaro. Esse nome precisaria ser único, para não dispersar os votos desses insatisfeitos, de modo a colocar o candidato centrista no segundo turno. Então, qualquer que seja o adversário, Lula ou Bolsonaro, esse candidato se beneficiaria da rejeição a ambos e teria condições objetivas de vitória. Essa é a tese.

Seria assim se fosse assim. De todas as eleições desde a redemocratização, o segundo colocado no primeiro turno só teve menos votos do que todos os outros candidatos em 1989 e 2002. Em 1989, na eleição mais fragmentada da História recente, Lula obteve 16,7% dos votos contra 50,8% da soma de todos os outros candidatos menos Fernando Collor. E em 2002 José Serra recebeu 23,2% dos votos, contra 30,4% da soma dos outros candidatos menos Lula, principalmente Ciro Gomes e Anthony Garotinho. Tirando a primeira eleição, completamente diferente de todas as demais, será que podemos afirmar que se Ciro ou Garotinho tivessem renunciado um dos dois iria para o segundo turno? Pouco provável.

Portanto, o que a História recente nos mostra é que não existe terceira via eleitoralmente viável no Brasil. O que existe é uma segunda via contra o PT. Em todas as eleições pós-redemocratização, o PT chegou pelo menos em segundo lugar. Esse fato nos leva à conclusão de que não basta que um tertius se torne eleitoralmente viável a ponto de chegar ao segundo turno. É preciso que esse candidato seja capaz de vencer Lula no segundo turno, pois o PT estará lá, como sempre esteve. É neste ponto que a figura de Lula precisa ser mais bem analisada.

Lula foi a figura onipresente em todas as campanhas eleitorais desde 1989. Em 2018, mesmo preso, foi candidato (!) e conseguiu transferir seus votos para Fernando Haddad. Portanto, é somente natural que apareça bem colocado em qualquer sondagem eleitoral. Por exemplo, na última pesquisa patrocinada pela CNT, feita no início de julho, Lula aparecia com 28% das menções espontâneas de voto, contra 22% do atual presidente. Para quem está espantado, não custa lembrar que Lula, em pesquisa patrocinada pela mesma CNT em agosto de 2018, aparecia com 20% das intenções espontâneas de voto, mesmo sendo hóspede da carceragem da Polícia Federal em Curitiba desde abril daquele ano.

Não se deve menosprezar esse fenômeno. Se é difícil entender como um político periférico como Bolsonaro conseguiu eleger-se presidente da República, o mesmo espanto deveria aplicar-se ao fato de que, mesmo encarcerado, Lula tenha tido tamanha influência nas eleições de 2018. E esse fenômeno ganha ainda mais cores quando consideramos que nas eleições de 2016 o PT foi quase varrido do mapa eleitoral, ao perder 60% das prefeituras que detinha. Pode-se até questionar se o PT tem um futuro além de Lula, mas essa é uma questão, por enquanto, acadêmica. Na prática, Lula será, mais uma vez, o candidato do PT nas próximas eleições, e esse é o problema concreto dos outros candidatos.

Sendo assim, a alternância de poder deve ser construída tendo o PT em mente. E isso não se faz para uma eleição. Trata-se de uma construção. Lula perdeu três eleições presidenciais antes de vencer a primeira. Soube construir um posicionamento ao longo dos anos. Quem quiser fazer face a isso precisará construir uma agenda de oposição. O PSDB teve a chance de fazê-lo, mas jogou-a pela janela ao não defender a herança do governo Fernando Henrique Cardoso. Nem o próprio FHC a defendeu. O famoso “colete das estatais”, ostentado por Geraldo Alckmin na campanha de 2006, foi o ápice dessa vergonhosa retirada de campo.

Bolsonaro, ainda que tenha vencido as eleições também com o voto de protesto antiestablishment, entendeu igualmente que só existe chance eleitoral em nível nacional para quem confronta Lula e o PT construindo uma agenda alternativa com convicção. Para um aspirante ao Palácio do Planalto, bater em Bolsonaro é perda de tempo. Essa tática só faz sentido para Lula. Os verdadeiros adversários a ser batidos são Lula e o PT, como tem sido nos últimos mais de 30 anos.

O Brasil precisa de uma segunda via alternativa ao PT que não seja Bolsonaro. Caso os partidos que tentam construir uma “terceira via” não entendam isso, estarão pavimentando o caminho do atual presidente como essa alternativa e ficarão de fora do segundo turno em 2022.

Marcelo Guterman, o autor deste artigo, é engenheiro. Publicado originalmente n' O Estado de S.Paulo em 04 de setembro de 2021 | 03h00

Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa

Paralisia do programa habitacional é reflexo de um governo que não tem planos para o País

Um presidente da República não deveria assumir o poder com a predisposição de descontinuar políticas públicas implementadas por seus antecessores apenas por deles divergir no campo ideológico. O cargo exige altivez do governante de turno para analisar quais dessas políticas devem ser mantidas como estão, quais devem ser aprimoradas e, eventualmente, quais devem ser encerradas, sempre à luz do melhor interesse público.

A descontinuidade administrativa motivada por interesses mesquinhos provoca enormes prejuízos financeiros, retarda o desenvolvimento do País e, principalmente, deixa desamparados os cidadãos que mais precisam do Estado para terem supridas suas necessidades mais básicas. Moradia digna é uma delas.

A fim de substituir o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), fortemente vinculado aos governos do PT, o presidente Jair Bolsonaro decidiu criar um programa habitacional para chamar de seu, o Casa Verde e Amarela. É compreensível que um presidente queira deixar a própria marca, um traço que o diferencie dos demais. O então presidente Lula da Silva, quando lançou o MCMV, em 2009, também não partiu do zero. Dilma Rousseff, que expandiu o programa, também não.

A mera troca de nome de uma política habitacional, no entanto, de nada serve se não vier acompanhada por ajustes que devem ser feitos no modelo anterior e alterações visando à expansão do público atendido, meta primordial de uma política de financiamento habitacional voltada para a população de baixa renda em um país como o Brasil. De acordo com a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no País saltou de 5,657 milhões de moradias em 2016 para 5,877 milhões de moradias em 2019, ano da mais recente aferição. O problema deve ser tratado com muita seriedade. Uma política habitacional não pode se prestar a ser mero estandarte eleitoral.

Pouco mais de um ano após o lançamento, o programa Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa. Não há recursos previstos no Orçamento para execução das obras e expansão dos subsídios. Em 2021, faltando apenas quatro meses para o fim do ano, o governo federal entregou cerca de 20 mil unidades do antigo MCMV voltadas à faixa 1 do programa, que atende famílias com renda mensal de até R$ 1 mil. O número é muito abaixo da média mensal registrada desde o lançamento do programa, há 12 anos: 1,49 milhão de moradias, de acordo com a Controladoria-Geral da União. A apuração do Estado revelou que a conclusão das obras em andamento está ameaçada por falta de recursos. Novos projetos abarcados pelo programa repaginado, então, não passam de uma quimera nesta dramática quadra da história.

O governo federal argumenta que a entrega de novas moradias não será mais a única ação da política habitacional no âmbito federal. Fala-se em regularização de terrenos ocupados e reformas de habitações existentes. De fato, quando se fala em déficit habitacional, está-se falando não apenas de falta de moradia construída, mas de domicílios improvisados, cômodos utilizados por famílias inteiras, habitações em condições sub-humanas, etc. Porém, até o momento nenhuma moradia foi regularizada ou reformada.

A paralisia do programa Casa Verde e Amarela é mais um desdobramento de um governo que não tem um projeto para o Brasil. A própria incapacidade de Bolsonaro para diagnosticar os reais problemas do País, por óbvio, compromete a boa concepção de políticas públicas para resolvê-los, que dirá a execução. Desde seu lançamento, o programa habitacional de Bolsonaro tem sido criticado tanto pela falta de detalhamento, por ter sido feito de afogadilho para atingir objetivos estritamente eleitoreiros, como pela falta de empenho do governo para priorizar o programa. “É a falta de vontade política para botar dinheiro nesse assunto. É obra contratada, em andamento, e você tem que passar o pires como se estivesse pedindo um favor”, disse ao Estado José Carlos Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria de Construção (Cbic).

Em vez de inventar crises e criar políticas públicas de papel, Bolsonaro deveria trabalhar para valer a fim de garantir que os brasileiros tenham, no mínimo, a esperança de uma vida melhor.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de setembro de 2021 | 03h00


Reforma ruim e na hora errada

Tributação envolve questões múltiplas e complicadas. Paulo Guedes insiste em promover um arremedo de reforma. E na hora errada

Atolado em dívida, pressionado para gastar e com muita dificuldade para cumprir suas obrigações, o governo federal ainda poderá perder cerca de R$ 21,8 bilhões de receita, se a reforma do Imposto de Renda (IR) aprovada na Câmara for transformada em lei. Os senadores ainda poderão barrar ou modificar a proposta, evitando ou atenuando o desastre. Sancionado na forma atual, o projeto causará uma perda de arrecadação de R$ 41,1 bilhões à União, aos Estados e aos municípios. Para os governos subnacionais a sangria deverá chegar a R$ 19,3 bilhões. Os cálculos foram solicitados ao economista Sérgio Gobetti pelo Comitê Nacional de Secretários Estaduais da Fazenda.

Numa votação apressada e baseada em acordos coordenados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), deputados aprovaram um texto qualificado como “projeto secreto” pelo tributarista Luiz Bichara, citado pelo Estado. O documento final apresentado pelo relator, Celso Sabino (PSDB-PA), nem sequer foi protocolado. Não houve tempo para análise e mais uma vez funcionou o famigerado rolo compressor.

O atropelo na votação de um texto mal conhecido foi apenas mais um capítulo numa longa história de erros. O ministro da Economia, Paulo Guedes, errou ao tentar mexer no IR neste momento. Não é hora de pensar em mudanças complicadas.

O País mal saiu de uma recessão. A economia cresceu 1,2% no primeiro trimestre e encolheu 0,1% no segundo. Mais de 14 milhões estão desempregados, os preços aumentam em disparada, há muita incerteza sobre as contas públicas e a insegurança é evidente em todos os mercados. A proposta orçamentária enviada há poucos dias ao Congresso poderá ser amplamente deturpada.

É hora de proteger o projeto de Orçamento, de cuidar dos mais vulneráveis, de favorecer o consumo, de eliminar entraves burocráticos, de facilitar a exportação, de tranquilizar os mercados, de aumentar a confiança na solvência do Tesouro e de administrar a crise hídrica. Um ministro da Economia comprometido com seu papel deveria também estar empenhado em conter os impulsos populistas e eleitoreiros do presidente da República.

Mas o ministro começou a errar muito antes, desde suas primeiras manobras para mexer no sistema tributário. Gastou tempo e energia tentando ressuscitar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), uma bem conhecida aberração. Depois, apresentou propostas de mudanças de alguns tributos federais, sem jamais se ocupar de uma efetiva reforma do sistema.

Agiu sempre como se fosse possível cuidar do assunto sem levar em conta Estados e municípios e sem pensar, portanto, no conjunto da tributação e em seus enormes problemas. Sempre desprezou projetos já disponíveis no Parlamento e elaborados por pessoas de conhecida competência. Tampouco recorreu a profissionais experientes e conhecedores do tema para discutir uma reforma de verdade.

O ministro da Economia nem deveria ter mandado ao Congresso seus ensaios medíocres de mudança tributária. Nem deveria ter imaginado – outro erro considerável – a hipótese de cuidar do tema sem uma séria discussão. A última grande reforma, em vigor a partir de 1967, já era debatida antes da implantação do regime militar. Não foi estudada só a partir de 1964 e ninguém poderia descrevê-la como improvisada.

Tributação envolve questões múltiplas e complicadas, como o equilíbrio das contas públicas, o bom funcionamento dos negócios, a competição, o crescimento econômico e a distribuição dos encargos entre pessoas com diferentes níveis de renda. O sistema brasileiro é complexo, trabalhoso para as empresas, oneroso para a produção, injusto na distribuição e nocivo à competitividade internacional. A dependência excessiva da tributação do consumo joga um peso desproporcional sobre as famílias de renda média e renda baixa. Não se pode pensar numa reforma verdadeira, é preciso insistir, sem considerar esses pontos. O ministro da Economia insiste em ignorá-los e em promover um arremedo de reforma – e na hora errada. O País perde.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de setembro de 2021 | 03h00

Novas denúncias de ex-funcionário sobre esquema das ‘rachadinhas’ sacodem a família Bolsonaro

“Ela ficava com 80% do meu salário”, afirma ex-assessor de Flávio Bolsonaro, sobre a ex-mulher do presidente, Ana Cristina Valle, apontada como a comandante do esquema

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) atrás de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, em uma imagem de janeiro de 2021.UESLEI MARCELINO / REUTERS

A família Bolsonaro voltou ao centro do noticiário brasileiro nesta semana, em um novo escândalo revelado por mais um ex-assessor do clã. Desta vez, Marcelo Luiz Nogueira de Santos, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), e que se diz muito próximo à família, denunciou e detalhou um esquema chefiado pela advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). De acordo com ele, Ana Cristina era quem comandava, nos gabinetes do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), todo o esquema das rachadinhas, que consiste em contratar funcionários fantasmas pelos gabinetes e reter tudo, ou a maior parte, de seus salários.

“Ela ficava com 80% do meu salário”, denunciou Nogueira ao portal Metrópoles. De acordo com ele, o esquema teria sido realizado ao longo de anos, e Ana Cristina ficava até mesmo com uma parcela do 13º salário, das férias e até da restituição do imposto de renda. “[Ela] tirava o proporcional que a gente recebia. O 13º, férias, essas coisas todas”, disse o ex-funcionário ao UOL. O enredo narrado por Nogueira aos jornalistas envolve detalhes pessoais da família, expõe a intimidade dos Bolsonaro e dá mais informações sobre um caso que já está nas mãos da Justiça.

Tanto Flávio quanto Carlos Bolsonaro são alvos de inquéritos que apuram, separadamente, a contratação de funcionários fantasmas em seus gabinetes. Nesta semana, tornou-se pública a determinação da Justiça do Rio de Janeiro de quebrar os sigilos bancários e fiscal de Carlos, de Ana Cristina Valle e de outras 25 pessoas e sete empresas. O Ministério Público do Rio de Janeiro, que abriu as investigações em julho de 2019 sobre as contratações de Carlos Bolsonaro, afirma ter indícios de que vários assessores não cumpriam expediente na casa. Assim, Carlos pode se somar ao irmão, Flávio, que, em outubro do ano passado, foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no caso das rachadinhas.

Os filhos do presidente teriam passado a comandar eles mesmos o esquema depois que Bolsonaro pai descobriu que Ana Cristina o traía com um segurança da família. Segundo Nogueira, o presidente pediu o divórcio em 2007 e teria autorizado que Carlos e Flávio comandassem o recolhimento dos pagamentos de seus supostos funcionários.

Nogueira conta que começou a trabalhar para a família quando ingressou no gabinete de Flávio Bolsonaro. Ali, ele diz que prestou serviços de atendimento ao público e correspondências de 2003 a 2007, e depois disso acabou se tornando uma espécie de assessor direto de Ana Cristina. No total, trabalhou por 14 anos com a família, chegando até a cuidar de Jair Renan Bolsonaro, o filho mais novo do presidente. “Era sozinho, ninguém tinha tempo para ele”, disse. Ele diz não ter como provar todas as denúncias que está fazendo. Mas a proximidade com a família é atestada pelas redes sociais. Há cerca de dois meses, Jair Renan publicou uma foto no Instagram ao lado de Nogueira, para fazer uma homenagem de aniversário. Na legenda, o caçula chama Nogueira de “grande amigo” e afirma que ele “ensinou muito, especialmente a como me tornar uma pessoa boa”.

De acordo com as acusações públicas, até mesmo a mansão onde Ana Cristina vive hoje com o filho, Jair Renan, no Lago Sul, em Brasília, teria sido comprada por meio de um esquema. O imóvel estaria registrado em nome de laranjas “para evitar escândalo”, segundo ele.

O ex-funcionário é o segundo ex-assessor de Flávio Bolsonaro que denuncia o esquema de devolução de salários. Em novembro do ano passado Luiza Souza Paes confirmou ao Ministério Público do Rio de Janeiro que repassava mais de 90% do seu salário a Fabrício Queiroz. Luiza apresentou extratos bancários para comprovar que, de 2011 a 2017, repassou 160.000 reais a Queiroz. Apontado como o operador das rachadinhas, Queiroz chegou a ser preso no ano passado, mas está em liberdade desde março deste ano.

“Fiel e apaixonado”

As denúncias que recaem sobre os Bolsonaro e sua ex-mulher surgem às vésperas da manifestação do 7 de setembro, para quando o presidente convocou seus aliados para irem às ruas em seu apoio. Carolina de Paula, cientista política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj, avalia que dificilmente as declarações de Luiz Nogueira causarão algum impacto nos atos da próxima terça-feira.

Em maio, ela e outros pesquisadores realizaram um levantamento com os eleitores que votaram no presidente em 2018, para o Data Iesp. “O que vimos é que a questão das rachadinhas para o público mais fiel ao presidente, que é composto de pessoas mais velhas e associadas à religião, não cola”, afirmou. “Eles não veem as rachadinhas como uma prática de corrupção, dizem ser algo ligado à cultura brasileira e não acham que Bolsonaro é responsável pelo ato dos filhos”, explica. E é esse público que estará nas ruas no próximo dia 7, segundo ela. “Por isso, [as denúncias de agora] não vão ter impacto no 7 de setembro”, afirma. “A não ser que ocorra algo muito forte com Bolsonaro. Mas ainda assim, depende do que for, porque é um público muito fiel e apaixonado”.

Por outro lado, existe um público decepcionado com o presidente que pode ser mais impactado por essas novas denúncias. “São pessoas que votaram nele por causa do discurso da Lava Jato e agora estão arrependidas”, explica Carolina. “Dentro desse grupo, que faz críticas a Bolsonaro, embora ainda o apoie, essas novas denúncias vão repercutir, porque elas solidificam as dúvidas que eles já estavam levantando”. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP, concorda com ela. “Bolsonaro tem um discurso moralista em relação à corrupção e isso [a denúncia das rachadinhas] o desgasta diante de uma parte do eleitorado dele, que é muito cioso diante das questões de corrupção”, afirma.

No entanto, Serrano esclarece que, no âmbito jurídico, não há implicações para o presidente até o momento. “Só se houver alguma forma de participação dele no crime”, diz. “O que se pode cogitar é que ele pode ter tido o poder de interromper a conduta, ter tido ciência da conduta, e não a interrompeu, mas para isso é preciso investigar”. Para Leonardo Yarochewsky, advogado criminalista e doutor em ciências penais pela UFMG, não é por que os filhos cometem crime que os pais serão responsabilizados. “Não há uma implicação direta pelo crime praticado pelos filhos”, diz. “Agora, se Bolsonaro cometer outros crimes em decorrência disso, como, por exemplo, obstrução da justiça, ou seja, impedir que a investigação ocorra, aí sim ele pode responder por isso”.

A reportagem tentou contato com o senador Flavio Bolsonaro, mas não recebeu retorno do recado deixado em seu gabinete. No gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, ninguém atendeu. A reportagem não conseguiu contato com Ana Cristina Valle.

MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, 03 SET 2021 

Bolsonaristas desafiam o STF em busca de recursos e apoio para as manifestações do 7 de Setembro

Militantes projetam 500.000 pessoas em Brasília no feriado da terça-feira. Eles mudaram a chave Pix bloqueada por Alexandre de Moraes, que mandou prender um dos organizadores dos atos nesta sexta

O presidente Bolsonaro durante evento no dia 2, em Brasília.ADRIANO MACHADO / REUTERS

Emulando o presidente Jair Bolsonaro, militantes que o apoiam cegamente têm se unido nas críticas do mandatário ao Supremo Tribunal Federal (STF) para promover os atos do próximo dia 7 de Setembro, quando se celebra a Independência do Brasil. Alguns deles até descumprem decisões judiciais para incentivar os apoiadores a seguirem para Brasília e São Paulo em uma manifestação de apoio a Bolsonaro e que defende a destituição dos 11 ministros do STF, assim como a recriação do voto impresso, ainda que a medida tenha sido rejeitada pela Câmara dos Deputados. E a reação do STF levou um dos promotores dos atos à prisão.

Nesta sexta-feira, o presidente repetiu seu discurso autoritário e afirmou, sem citar nomes, que os atos servirão como um ultimato a um ou dois ministros do Supremo. O recado foi dado a Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que atualmente também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Nós não criticamos instituições ou Poderes. Somos pontuais. Não podemos admitir que uma ou duas pessoas que, usando da força do poder, queiram dar novo rumo ao nosso país”, afirmou durante evento em Tanhaçu (BA).

Neste mesmo dia, o jornalista Wellington Macedo, que havia sido proibido de usar as redes sociais para falar sobre a manifestação, acabou preso em Brasília. No último domingo, juntamente com outro investigado, Macedo participou de uma transmissão ao vivo em que reforçou as críticas ao Judiciário, em um material que servia como propaganda para os atos pró-Governo.

Também estava no encontro virtual o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, que nas redes é conhecido como “Zé Trovão, a voz das estradas”. Ambos são apontados como organizadores dos atos antidemocráticos. Entre grupos bolsonaristas, havia a informação de que Trovão também foi preso, o que não foi confirmado pelo STF ou pela Polícia Federal. Quem promoveu a reunião foi o blogueiro governista Oswaldo Eustáquio, que já foi detido no âmbito do inquérito das fake news, mas acabou libertado.

As provocações do caminhoneiro foram duras. Sem provas, ele acusou ministros de venderem sentenças. “Já que eu tô lascado, eu vou falar. Estão só que vendem os habeas corpus”, disse. E completou: “Quer me prender, me prenda no meio do povo, não na minha casa”. As provocações se amplificaram nos dias 30 e 31 de agosto. Ele enviou vídeos a outros blogueiros e youtubers da extrema direita, convocando para o protesto, e ainda concedeu entrevista à emissora de rádio Jovem Pan News, que é alinhada a Bolsonaro.

A proibição de que esses bolsonaristas usassem as redes foi decidida por Alexandre de Moraes, um dos dois ministros do STF com quem Bolsonaro comprou briga e de quem pediu o impeachment —pleito já rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Desde o dia 20 de agosto, Moraes proibiu que fossem feitas doações financeiras para o movimento do qual Trovão e Macedo fazem parte. Ainda assim, o grupo driblou a decisão e mudou a chave Pix —o código de acesso bancário— para receber as doações. Antes, os valores eram creditados ao site bolsonarista Brasil Livre. Agora, elas caem na conta de Luiz Antonio Mozzini, que usa o codinome de Luís Mussini, e é produtor musical de diversos artistas sertanejos, como Sérgio Reis, outro dos investigados por esses atos antidemocráticos.

Doações

Procurado pelo EL PAÍS, Mussini alegou desconhecer a proibição e disse que as doações vinham de todo o Brasil. “Quem doa são brasileiros que querem o bem do país. É uma movimentação que não é partidária”, alegou. Os recursos, segundo anúncio feito pelo grupo no YouTube, seriam usados para bancar um acampamento que pretende reunir até 50.000 pessoas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. “Vamos dar um processo de limpeza geral no Brasil. E com isso precisamos de sua doação”, diz o enunciado.

Indagado sobre os custos do espaço e sobre qual valor já teria sido arrecadado, Mussini não respondeu. Entre os bolsonaristas, ele é apontado como uma das pessoas mais próximas do cantor Sérgio Reis, que anunciou atos radicais durante o protesto, como o fechamento de estradas por até três dias, mas voltou atrás depois de virar alvo da mesma operação da Polícia Federal que envolveu o jornalista Macedo e o caminhoneiro Zé Trovão.

Durante a mesma live do domingo passado, Mussini admitiu que estava fora de casa, em Florianópolis (SC), havia dias. A preocupação era de que, assim como dez dos investigados, a Polícia Federal cumprisse um mandado de busca e apreensão na casa deles. “Não é por medo. A pessoa se preserva. Para preservar o celular e o computador que uso para o trabalho. A gente acaba sendo tratado como bandido, mas a gente não é bandido. Estamos lutando pelo bem do nosso país, para que possamos ter liberdade de expressão”, disse na ocasião.

Outro que participa da coordenação dos atos bolsonaristas é o militar da reserva Amarildo dos Santos, que se identifica como investigador particular e criador do movimento Brasil Verde e Amarelo. À reportagem, ele disse esperar 500.000 pessoas em Brasília para demonstrar apoio ao presidente, boa parte delas vindas em 150 ônibus fretados com recursos próprios. “Estávamos arrecadando dinheiro para trazer mais gente, mas o Alexandre de Moraes bloqueou”, disse. Em um dos vídeos que publicou, Santos diz que quem precisasse de recursos para viajar até a cidade poderia procurá-lo. Ao EL PAÍS, contudo, alegou que estava bancando apenas os próprios custos de sua viagem.

O caminhoneiro Zé Trovão e o jornalista Wellington Macedo, durante transmissão no YouTube no dia 29 de agosto. Eles haviam sido proibidos de usar as redes (REPRODUÇÃO)

Enquanto os coordenadores tentam angariar apoios financeiros, nos grupos no WhatsApp e no Telegram há dezenas de pessoas oferecendo vagas em caravanas para participar dos atos. Os preços variam desde 30 reais, entre o interior de São Paulo e a capital paulista, até de 500 reais, entre estados da região Sul e do Nordeste para Brasília —estas com direito a hospedagem. Na visão de Santos, os atos da próxima terça-feira não representam nenhum risco à democracia. “Não dá para agradar todo mundo. Nem Jesus conseguiu. Nós estamos lutando por liberdade de expressão”, alegou. Do ato, estarão de fora as críticas ao combate à pandemia de covid-19, que já vitimou quase 600.000 brasileiros; à crise energética; às rachadinhas da família Bolsonaro; à inflação, de quase 9%; ao alto preço da gasolina, de quase 7 reais, ou ao dólar a 5,2 reais.

A base de apoio ao presidente que vai às ruas nos próximos dias se escora, principalmente, em militares da reserva, evangélicos, caminhoneiros e produtores rurais. Este último grupo promete transportar centenas de pessoas em cerca de cinquenta ônibus provenientes do Mato Grosso, segundo relatou o deputado estadual bolsonarista Gilberto Cattani (PSL). Em princípio, a Associação de Produtores de Soja era uma das financiadoras extraoficiais do ato. Porém, depois que o seu presidente nacional, Antonio Galvan, passou a ser investigado no mesmo inquérito que Sérgio Reis, Zé Trovão e Macedo, a instituição desistiu de agir. Mas ele não se absteve de pressionar as instituições. Quando foi intimado a depor no âmbito desse inquérito, Galvan chegou à sede da Polícia Federal em Sinop (MT) acompanhado por um tratoraço. Dezenas de tratores se enfileiraram para “escoltar” o fazendeiro.

Quem ainda se apresenta à frente das manifestações no momento é a Associação Nacional de Defesa dos Agricultores, Pecuaristas e Produtores da Terra (Andaterra). Um de seus representantes, o diretor Jeferson da Rocha, foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos contatos. Entre os evangélicos, os maiores incentivadores dos atos são os pastores Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e Claudio Duarte, da Igreja Batista. Não há indícios de que eles estejam arrecadando recursos, ou fazendo mais do que discursar em favor do presidente.

AFONSO BENITES, de Brasília, em - 03 SET 2021 para o EL PAÍS. 

Bolsonaro acena para base radical e veta punição a fake news em projeto sobre crimes contra a República

Projeto aprovado pelo Congresso substitui a Lei de Segurança Nacional e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito. Bolsonaro também vetou aumento de pena para militares golpistas

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de entrega da Medalha do Mérito Desportivo Militar, no Rio de Janeiro, em 1º de setembro.ANDRE COELHO / EFE

Em um aceno à sua base eleitoral mais radical —inclusive a que está dentro dos quartéis— o presidente Jair Bolsonaro vetou na quarta-feira parte do projeto aprovado no Congresso que tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito. Este texto substitui a Lei de Segurança Nacional (LSN), chamada de “entulho da ditadura” pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski em referência ao fato de a legislação ter sido criada durante os anos de chumbo. O Governo vinha usando a LSN para perseguir opositores nos últimos anos. No total, o mandatário barrou cinco pontos da nova lei, sendo que dois deles podem ter impacto direto para seus apoiadores extremistas: a punição para atos de “comunicação enganosa em massa”, as chamadas fake news, e o aumento da pena por crimes contra o Estado de Direito quando cometidos por funcionários públicos —dentre eles militares e policiais. Cabe ao Congresso agora analisar os vetos do presidente, o que não tem prazo para ocorrer.

Caso sejam mantidos, estes vetos podem ter um impacto relevante nas eleições de 2022, e também têm potencial para inflamar ainda mais o discurso golpista de Bolsonaro que ganha força dentro dos quartéis. Nos últimos meses, o presidente tem frequentemente colocado em xeque a realização do pleito do ano que vem caso não haja voto impresso (proposta que já foi derrotada na Câmara). Ele e vários de seus apoiadores são alvos de um inquérito no Supremo Tribunal Federal que investiga a disseminação de fake news, e em agosto a Corte incluiu no processo a apuração dos ataques feitos sem provas pelo mandatário contra o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.

Desde a campanha eleitoral que o levou ao Planalto em 2018, o principal núcleo político e familiar de Bolsonaro tem sido criticado pelo uso indiscriminado de notícias falsas nas redes sociais, o que, segundo especialistas, tem potencial para influenciar os rumos da próxima eleição presidencial. Carlos Bolsonaro, por exemplo, é apontado como o cabeça do gabinete do ódio, uma espécie de central de fake news que operaria de dentro do Planalto.

Os ataques do presidente contra o sistema eleitoral ganharam força este ano em meio ao derretimento da popularidade do mandatário, e fizeram com que o Tribunal Superior Eleitoral adotasse uma postura mais ativa para rebater as acusações infundadas. Isso colocou o presidente da corte, ministro Luis Roberto Barroso, em rota de colisão com Bolsonaro. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o magistrado afirmou que irá atrás dos “profissionais” de fake news nas eleições. “Nós pretendemos ir atrás mesmo, com Polícia Federal e o que seja necessário para impedir esse tipo de atuação”, disse.

Ao vetar o artigo que previa punição para quem espalha “comunicação enganosa em massa” o Governo alegou que este trecho iria contra o interesse da população ao não definir claramente quem seria alvo da punição: quem compartilhou ou quem gerou o conteúdo replicado. “A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões”, diz Bolsonaro na justificativa do veto enviada ao Senado. Ainda segundo o Planalto, o texto aprovado pelo Congresso “enseja dúvida se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível”.

Aceno aos militares golpistas

Já o veto ao aumento da pena por crimes contra o Estado de Direito cometidos por militares pode acirrar ainda mais os ânimos de setores golpistas dentro das Forças Armadas e das polícias. O presidente alegou que o artigo aprovado pelo Congresso seria “uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores”. Mas a decisão tem como pano de fundo a participação de membros destas corporações na política nacional, que ficou sob os holofotes desde que Bolsonaro levou militares da ativa para dentro do Governo. A questão se acirrou ainda mais no último mês, após o mandatário convocar uma série de atos para o dia sete de setembro que devem contar com reivindicações golpistas e contra o poder Judiciário e Legislativo. Integrantes das forças de segurança simpatizantes ao presidente sinalizaram que devem aderir aos protestos, aumentando ainda mais o temor de uma ruptura institucional e a associação da tropa com bandeiras antidemocráticas.

No final de agosto o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), rival político do presidente, afastou o coronel da Polícia Militar paulista Aleksander Lacerda, então comandante de Policiamento do Interior da região de Sorocaba, que estava usando suas redes sociais para convocar policiais para o ato no dia da Independência, bem como atacando presidentes de outros poderes da Republica. O regulamento interno da corporação veda a participação de seus integrantes em atos político-partidários. Para evitar a adesão ilegal de policiais aos atos, a Corregedoria da PM de São Paulo determinou que todo o efetivo da força terá que trabalhar durante os protestos para reforçar o “patrulhamento disciplinar”.

GIL ALESSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em  02 SET 2021 

Blogueiro bolsonarista é preso por ordem de Moraes

Wellington Macedo já havia sido alvo de busca e apreensão em agosto e estaria organizando atos violentos contra a democracia no dia 7 de setembro, segundo PGR. Caminhoneiro youtuber está foragido.

Moraes é relator do inquérito contra Macedo, que também investiga o cantor Sérgio Reis e o deputado Otoni de Paula

A Polícia Federal prendeu nesta sexta-feira (03/09) o blogueiro bolsonarista Wellington Macedo, que é investigado em um inquérito aberto em agosto no Supremo Tribunal Federal sobre a organização de atos contra a democracia e o Estado de direito.

A prisão preventiva de Macedo foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do inquérito, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ele já havia sido alvo de busca e apreensão em 20 de agosto ao lado de outros bolsonaristas, como o cantor Sérgio Reis e o deputado federal Otoni de Paula (PSC-RJ).

Macedo se apresenta como coordenador nacional da "Marcha da Família" e estaria organizando protestos no feriado de 7 de setembro para pressionar o Senado a destituir os ministros do Supremo. Segundo a PGR, o ato organizado por Macedo era "violento e antidemocrático".

A Polícia Federal, que executou a prisão, confirmou a ação, mas não deu maiores detalhes sobre o caso.

A investigação contra Macedo e outros bolsonaristas se soma a outros dois inquéritos no Supremo sob a relatoria de Moraes que tratam de temas semelhantes: o inquérito sobre fake news e atos democráticos, arquivado em julho e substituído pelo inquérito sobre as milícias digitais, que resultou na prisão do ex-deputado Roberto Jefferson, denunciado pela PGR por incitação ao crime, homofobia e calúnia.

O inquérito contra Macedo e os demais apoiadores do presidente foi aberto a pedido do Ministério Público. Os outros dois inquéritos foram instaurados de ofício pelo Supremo, o que vinha sendo alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro e de uma ação da Advocacia-Geral da União.

Caminhoneiro youtuber foragido

Moraes também determinou a prisão do caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, conhecido como Zé Trovão, outro bolsonarista alvo do mesmo inquérito contra Macedo.

Responsável pelo canal de Youtube "Zé Trovão a voz das estradas", ele é acusado de incitar atos violentos contra o Congresso e o Supremo e descumpriu ordens cautelares que haviam sido determinadas por Moraes.

O ministro do Supremo havia ordenado o bloqueio de uma chave Pix que vinha recebendo doações para organizar atos no dia 7 de setembro, mas na quarta-feira Zé Trovão anunciou uma nova chave Pix com o mesmo objetivo.

O advogado de Zé Trovão, Levi de Andrade, afirmou ao portal UOL que ele não se entregará à Polícia Federal pelo menos até o dia 7 de setembro. Ele diz que seu cliente não cometeu nenhum crime e que o mandado de prisão contra Zé Trovão seria inconstitucional.

Atos no dia 7 de setembro

A prisão de Macedo e a ordem de prisão contra Zé Trovão integram uma iniciativa judicial da PGR, com aval do Supremo, para reprimir e desarticular organizadores de atos contra a democracia e o Estado de direito.

Jair Bolsonaro e seu círculo próximo vêm estimulando seus apoiadores a irem às ruas no dia 7 de setembro com o objetivo de fortalecer as investidas do presidente contra o Supremo e as urnas eletrônicas. Há receio em diversos estados que policiais militares também atendam à convocação.

Na sexta-feira, o presidente afirmou que os atos de 7 de setembro seriam um "ultimato" para dois ministros do Supremo – ele não mencionou nomes, mas, além de Moraes, que foi alvo de um pedido de impeachment apresentado por Bolsonaro já arquivado pelo presidente do Senado, Luis Roberto Barroso, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral, é alvo de frequentes ataques dos bolsonaristas.

Protestos contra o presidente também estão previstos em diversas capitais no dia 7 de setembro.

Deutsche Welle Brasil, em 03.09.21

STF se prepara para risco de ataques ao prédio e 'todos os cenários possíveis no 7 de setembro

Preocupado com o potencial de os protestos de 7 de setembro serem violentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu planos para "todos os cenários possíveis"- de manifestação pacífica a tentativas de depredação e invasão do edifício.

A BBC News Brasil apurou que a maioria dos ministros pretende evitar tomar decisões com alto impacto no governo federal até as manifestações (Reuters)

Enquanto isso, conforme apurou a BBC News Brasil, a maioria dos ministros do STF decidiu colocar o pé no freio, até a próxima terça (7/9), em decisões que tenham impacto direto no governo federal, como as referentes ao pagamento de precatórios que possam significar gastos aos cofres públicos.

O objetivo seria evitar "colocar lenha na fogueira" às vésperas dos atos convocados para o Dia da Independência, em defesa do governo do presidente Jair Bolsonaro. Ainda assim, o clima entre os ministros é de preocupação e atenção à adesão de policiais militares aos protestos e à reação de Bolsonaro caso haja violência ou ataques ao Congresso ou Supremo.

Todo o efetivo de segurança do STF vai estar presente, como costuma ocorrer quando há protestos na Esplanada dos Ministérios. Mas dessa vez houve intensa interlocução com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal para garantir reforço das forças de segurança do DF, como PM, Detran e Polícia Civil.

Segundo fontes do Supremo, os ministros vão observar atentamente a prevalência e força, durante os protestos, de mensagens antidemocráticas, como cartazes e gritos de ordem em defesa do fechamento do STF e do Congresso.

A quantidade de pessoas nas ruas também servirá como termômetro para eles avaliarem os reais riscos de tentativas futuras de quebra democrática.

7 de setembro: ministros do STF estarão atentos à reação de Bolsonaro caso haja violência ou ataques ao Congresso ou Supremo (Reuters)

Em pronunciamento nesta quinta, na retomada do julgamento sobre o marco temporal das terras indígenas, o presidente do STF defendeu "respeito à integridade das instituições democráticas e seus membros" durante as manifestações.

"Num ambiente democrático, manifestações públicas são pacíficas. Por sua vez, a liberdade de expressão não comporta violências e ameaças", disse.

Revista e manifestantes longe da Praça dos Três Poderes

Para tentar mitigar riscos de manifestantes tentarem invadir o Congresso e o Supremo, ou até jogar bombas caseiras nos edifícios, o Governo do DF decidiu restringir os atos à Esplanada dos Ministérios.

Isso significa que os manifestantes não poderão "descer" a avenida em direção à Praça dos Três Poderes, onde ficam Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal.

A decisão foi vista por integrantes do Congresso e do STF como indicativo de que existe, na Secretaria de Segurança do DF, a expectativa de manifestantes tentarem depredar os prédios públicos.

Em Brasília, há temor de que manifestações no 7 de setembro cheguem à depredação de prédios públicos (Reuters)

Segundo o governo do DF, pelo menos 13 grupos pró-bolsonaro e três de esquerda devem promover manifestações no dia 7 de setembro.

Além de bloquear a passagem para a Praça dos Três Poderes, as forças de segurança vão fazer revistas para tentar interceptar armas brancas, armas de fogo, bombas caseiras, garrafas de vidro e outros objetos que possam ameaçar a segurança.

Nas comunicações com a equipe de segurança do Supremo e do Congresso, o governo do DF tem tentado tranquilizá-los sobre temores de que a própria PM em operação no dia possa agir com menos comprometimento no controle dos protestos.

À BBC News Brasil, a Polícia Militar do Distrito Federal informou que "as ações da PMDF são pautadas na observância dos direitos humanos e nos princípios constitucionais" e que vai atuar "para garantir a segurança dos manifestantes e a integridade do patrimônio público ou privado''.

Pela legislação brasileira, nenhum policial da ativa pode participar de atos políticos com símbolos que remetam às instituições onde eles atuam. Só podem participar de manifestações se estiverem à paisana, como cidadãos comuns, desarmados.

Se descumprirem essa regra, podem ser enquadrados no Código Penal Militar pelos crimes de motim ou revolta (quando há dois ou mais envolvidos). E as penas podem chegar a 20 anos de prisão em regime fechado.

Mas há expectativa de que número significativo de policiais da reserva ou de folga no dia compareçam aos protestos.

Nathalia Passarinho, de Londres para a BBC News Brasil em Londres, em 03.09.21

Como líderes evangélicos usam redes para apoiar ato pró-Bolsonaro

 "Todo esse movimento tem por finalidade ameaçar as instituições do nosso país. Essas pessoas defendem o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal), essas pessoas defendem o fechamento do Congresso Nacional. 

Logo, essas pessoas agem contra a democracia, contra o estado democrático de direito", declara o pastor Rodrigo Coelho, do Rio de Janeiro, em um vídeo compartilhado nas redes sociais.

"Dia sete de setembro só devem ficar em casa as pessoas que estão enfermas, que têm comorbidades sérias ou aqueles que querem ser escravizados vivendo sem liberdade", afirma o pastor Samuel Munguba Júnior em um vídeo compartilhado em suas redes sociais no início deste semana.

Ele declara que as pessoas devem ir às ruas na próxima terça-feira (07/09) para lutar a favor do país, da família e dos princípios de Deus. Discursos semelhantes têm sido adotados por outros líderes evangélicos nas redes sociais para convocar os fiéis para a manifestação pró-Bolsonaro.

Um dos principais representantes do segmento é o pastor Silas Malafaia. Em 23 de agosto, ele compartilhou um vídeo no qual líderes evangélicos convocam os fiéis para o ato na Avenida Paulista.

"Eu estou capitaneando, sim. Estou na frente disso, chamando tudo que é líder. E nunca, na história desse país, os evangélicos se mobilizaram para um ato como esse", diz Malafaia à BBC News Brasil. Segundo ele, evangélicos de todo o país estão se organizando para participar de manifestações em suas cidades.

Os evangélicos, que segundo pesquisas recentes compõem cerca de 30% da população brasileira, representam um grupo significativo para Bolsonaro. Uma pesquisa Datafolha de maio deste ano apontou que 24% da população em geral considera o governo ótimo ou bom. Já apenas entre a população evangélica, esse número corresponde a 33%.

Em 2018, a pesquisa Datafolha na véspera do segundo turno projetou que sete em cada 10 eleitores evangélicos votariam em Bolsonaro contra o petista Fernando Haddad.

Em maio deste ano, a pesquisa Datafolha ilustrou um cenário diferente de 2018 entre o bolsonarismo e as igrejas evangélicas. O levantamento mostrou que 35% dos evangélicos escolheriam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um primeiro turno. Já Bolsonaro teria 34% dessa população. Conforme a pesquisa, cada candidato tem 45% das intenções de voto desses religiosos em um eventual segundo turno entre os dois.

"Existe um desembarque das forças em torno do bolsonarismo. Cada vez mais, o Bolsonaro está restrito ao que chamamos de bolsonarismo raiz, grupo do qual os evangélicos fazem parte", aponta Vinícius do Valle, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP).

"Mas os evangélicos representam um grupo muito heterogêneo no Brasil. Nas eleições de 2018, o Bolsonaro conseguiu certa hegemonia entre os evangélicos e manteve isso por muito tempo, mas hoje está em crise. Hoje a gente não vê a quantidade de pastores defendendo o Bolsonaro como antes da pandemia", acrescenta Valle, que há uma década estuda a relação entre política e as igrejas evangélicas.

No meio evangélico, há pastores que se manifestaram contra a presença de fiéis na manifestação de sete de setembro.

"Todo esse movimento tem por finalidade ameaçar as instituições do nosso país. Essas pessoas defendem o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal), essas pessoas defendem o fechamento do Congresso Nacional. Logo, essas pessoas agem contra a democracia, contra o estado democrático de direito", declara o pastor Rodrigo Coelho, do Rio de Janeiro, em um vídeo compartilhado nas redes sociais.

'Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua'

Os líderes religiosos estão organizando, segundo o pastor Malafaia, meios de transporte para os fiéis, bandeira e faixas para participarem de atos em São Paulo, Brasília ou em outras cidades pelo país.

"Isso vai ser em todo o Brasil. Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua. Não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vai ter caravana de tudo quanto é jeito no Brasil", afirma Malafaia.

"Aqui no Rio de Janeiro, estamos colocando um trio elétrico gigante. Mas isso não tem nome de igreja, porque igreja é acima disso. Nós, cidadãos, é que somos evangélicos, então não vai ter nome de igreja nenhuma", completa o pastor.

Malafaia argumenta que a convocação dos fiéis para os atos é fundamental porque, segundo ele, atualmente a liberdade de expressão está em jogo no país.

"Estamos vendo o STF rasgar a Constituição, uma das coisas mais vergonhosas, e com a conivência da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e de grande parte da mídia", declara.

O "ataque à Constituição Federal" ao qual Malafaia e outros líderes evangélicos utilizam como argumento para a convocação aos atos é referente a decisões recentes do STF, que incomodaram Bolsonaro e seus aliados.

Entre essas decisões estão medidas como uma determinação do ministro do STF Alexandre Moraes, no início de agosto, para incluir o presidente Jair Bolsonaro entre os investigados no inquérito sobre divulgação de informações falsas.

Outro ponto criticado por religiosos bolsonaristas são as investigações da Polícia Federal sobre ataques de "milícias digitais". Segundo as apurações, são atos feitos para desestabilizar instituições como o STF e atentar contra a democracia. Em meados de agosto, o ex-deputado Roberto Jefferson foi preso após as investigações apontarem que ele é parte do núcleo político desse grupo.

Apesar de muitos pastores não citarem o presidente nas convocações dos fiéis nas redes sociais para os atos, o discurso desses líderes religiosos é totalmente alinhado ao de Bolsonaro. Outra pauta que eles defendem, a favor do presidente, é o voto impresso, derrotado na Câmara dos Deputados.

"Claro que sabemos que também é (ato) de apoio ao presidente. É evidente", afirma Malafaia.

"A igreja não apoia ninguém. Nós, evangélicos, apoiamos. Nós, evangélicos, não vamos participar de ato de partido político. Mas (ato) de apoio ao presidente, vamos participar. Não tenha dúvida nenhuma", acrescenta o pastor.

Malafaia destaca que uma das maiores movimentações entre evangélicos em sete de setembro deve ocorrer em Manaus (AM). O pastor afirma que os evangélicos da região esperam que 500 mil pessoas saiam às ruas da capital amazonense na manifestação pró-Bolsonaro.

O pastor Renê Terra Nova, de Manaus, também tem feito diversas publicações em suas redes sociais para convocar os fiéis para o ato na terça-feira.

Terra Nova afirma que está apoiando o Brasil, mas diz que no atual contexto isso significa que precisa estar ao lado de Bolsonaro.

"No atual cenário, o governo Bolsonaro está lutando pelo país, e esse é o sonho de qualquer cidadão sério. O Governo Bolsonaro está com nosso apoio, mas não estamos indo às ruas por causa de uma pessoa, mas por causa da plataforma que defendemos - Deus, Pátria e Família, e a nossa liberdade", diz Terra Nova à BBC News Brasil.

Para convencer os fiéis, o discurso dos líderes costuma ser extremo, como o de Munguba Júnior que afirma que aqueles que não participarem do ato querem ser escravizados.

"Quando falo sobre uma possível escravidão, estamos defendendo a liberdade do povo. Vamos fazer oração no local (do ato) pedindo para que Deus nos livre do comunismo. Se o comunismo for implantado, seguramente a liberdade vai embora", diz Munguba à BBC News Brasil.

A "ameaça comunista", segundo o pastor, se tornará real se um partido de esquerda como o PT for eleito para governar o país. Esse argumento é utilizado por religiosos bolsonaristas para reforçar a ideia de que a participação nos atos é uma espécie de "luta do bem contra o mal".

Munguba, que é de Fortaleza (CE), afirma que o vídeo que publicou para convocar para os atos vale para todo o país, pois argumenta que sua igreja, Seven Church, é acompanhada por fiéis de diferentes regiões do Brasil.

'Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem'

As convocações de Malafaia e seus aliados incomodaram pastores que compõem o Movimento Resistência Reformada, um grupo de lideranças evangélicas que se opõe às medidas de Bolsonaro.

"Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem, por isso nos posicionamos. Não queremos, de forma alguma, que o Brasil se torne uma teocracia, que é o que essas lideranças almejam. Isso tudo é lamentável", declara o pastor Rodrigo Coelho, líder do Resistência Reformada.

Pastor Rodrigo Coelho divulgou vídeo para pedir que fiéis não participem de atos pró-Bolsonaro

Quando notaram o crescente apelo de líderes como Malafaia para que os fiéis participassem das manifestações, os membros do movimento, cerca de 100 líderes religiosos no Brasil e alguns do exterior, publicaram um vídeo contrário a isso.

"Você, nesse lugar, é tão somente massa de manobra, tão somente uma pessoa sendo manipulada (por pastores bolsonaristas) para que essas pessoas possam permanecer no poder e permanecer com os seus privilégios. Não se permita isso. Não se permita ser cooptado por essa gente", diz Coelho, em trecho de vídeo compartilhado por ele nas redes sociais.

O pastor argumenta que o principal objetivo do movimento é defender os direitos humanos e se posicionar contra os "desmandos do Bolsonaro" e de seus aliados.

"O movimento nasce no contexto do governo Bolsonaro, mas vai além dele, porque a gente crê que o governo Bolsonaro vai passar. Decidimos nos posicionar (contra o ato de sete de setembro) porque é um absurdo o que acontece no Brasil, sobretudo o apoio de parte da igreja evangélica", declara Coelho.

"O Silas já apoiou toda a classe política, de direita ou esquerda, e me parece fazer qualquer coisa para estar no poder e ter privilégios de quem transita no Palácio (do Planalto). Mas na verdade, a gente entende que lugar de profeta é fora do Palácio, denunciando quem faz coisa errada", completa.

Os vídeos de religiosos convocando para os atos alcançaram mais de um milhão de visualizações nas diferentes redes sociais. Coelho não tem dados exatos sobre o alcance do vídeo feito por ele contra os chamados para esses atos, mas admite que a visualização foi muito menor.

"A gente faz isso de forma orgânica, enquanto esse pessoal (como Malafaia) patrocina os posts. Esse pessoal está desesperado porque o governo, a cada dia mais, enfrenta momentos ruins", declara.

"Porém, estamos satisfeitos em saber que chegamos em vários lugares com o nosso vídeo. Várias pessoas do Brasil têm entrado em contato para manifestar apoio. Isso prova que nas igrejas evangélicas há pessoas que não estão alinhadas a essas lideranças religiosas e a esse governo", completa o pastor.

Evangélicos e Bolsonaro

O racha entre evangélicos sobre o apoio a Bolsonaro não abala aqueles que têm convocado os atos a favor do presidente.

Pesquisas apontam queda no apoio de evangélicos a Bolsonaro (Getty Images)

Pastores ligados ao presidente afirmam que o apoio ao governo segue em alta entre esses religiosos. Malafaia diz, apenas com base em experiência própria, que cerca de 80% dos evangélicos apoiam Bolsonaro.

"Conheço o mundo evangélico. Isso é uma piada (as pesquisas que indicam queda no apoio ao presidente entre os evangélicos). Tenho acompanhado o Bolsonaro em vários lugares. No mínimo, uns 50% das pessoas que estão em aeroportos e nos lugares em que o presidente está são evangélicos", declara Malafaia.

Especialistas ressaltam que a retórica de Bolsonaro de ser perseguido injustamente enquanto tenta combater um mal maior, que seria a esquerda ou uma "constante ameaça comunista", vai no sentido do que as igrejas evangélicas pregam entre os fiéis da luta do bem contra o mal.

No atual cenário, segundo o cientista político Vinícius do Valle, o presidente tenta resgatar o discurso de que se trata do bem contra o mal no Brasil para tentar reunir o maior número de apoiadores. "Ele diz que os bolsonaristas podem salvar o presidente do mal se forem contra o STF", diz o especialista.

"Os evangélicos surgem como uma das poucas forças que permanecem fiéis ao presidente, como os militares e muitos ruralistas, ainda que de forma reduzida atualmente", acrescenta Valle.

O especialista ressalta que as inúmeras convocações de líderes religiosos não significam a garantia de presença massiva dos evangélicos nos atos de sete de setembro.

"Os evangélicos não seguem à risca os posicionamentos dos pastores. Além disso, dentro da própria igreja há diferentes lideranças, que nem sempre seguem o mesmo posicionamento. O pastor que fala diretamente com o público nem sempre tem o mesmo discurso do pastor que é presidente da igreja", afirma Valle.

Além disso, fatores como a alta do desemprego, a crise econômica e o aumento dos preços de itens básicos têm feito, conforme os especialistas, com que muitos evangélicos abandonem o bolsonarismo.

O cientista Felipe Nunes, da Quaest, empresa de inteligência de dados, afirma que o eleitor brasileiro é mais pragmático do que ideológico. "O brasileiro avalia o seu bem-estar. No atual momento, com a qualidade de vida caindo, com o aumento da inflação, falta de crescimento econômico e a percepção de que as coisas não vão melhorar, isso tudo recai sobre a imagem do presidente", diz à BBC News Brasil.

Em razão disso, segundo ele, uma parcela dos mais pobres entre os evangélicos começou a se afastar do presidente. "Um resultado econômico ruim leva os evangélicos mais pobres a sofrer na carne com tudo o que está acontecendo e colocam na conta do presidente", explica Nunes.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 03.09.21