segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A democracia no mundo

Em 2020, deterioração da liberdade global foi inaudita, segundo a Freedom House

Não bastasse a mortandade de mais de 4 milhões de vidas e a devastação econômica, o vírus pressionou ainda mais a balança global em favor da tirania contra a democracia.

Segundo o relatório anual Liberdade no Mundo da Freedom House, 2020 foi o 15.º ano consecutivo de declínio na liberdade global. Em 2005, a organização identificava 89 países considerados “livres”; hoje são 82. Os países “não livres” passaram de 45 para 54. Menos de 20% da população mundial vive em um país livre. Mas a deterioração em 2020 foi inaudita: 3 em 4 pessoas vivem em um país que experimentou declínio. A “diferença democrática” – o número de países que melhoraram menos o de países que declinaram – foi a maior da série iniciada em 1995: 45.

Da Venezuela ao Camboja, os déspotas aproveitaram a crise sanitária para esmagar oponentes, enquanto o fechamento das fronteiras dificultou o apoio internacional a ativistas democratas. A pandemia deu a autocracias como China e Rússia a oportunidade de acusar a inferioridade “inerente” da democracia, ao mesmo tempo que ampliam sua influência internacional.

“A influência maligna do regime na China, a ditadura mais populosa do mundo, foi especialmente profunda em 2020”, seja pela campanha global de desinformação e censura, seja pela extensão transnacional dos abusos cometidos no país, como na demolição das liberdades e da autonomia de Hong Kong. Ao mesmo tempo, o regime comunista aumentou seu peso em instituições multilaterais como o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os regimes democráticos adotaram recorrentemente medidas excessivas de vigilância e restrições discriminatórias à liberdade de movimento e reunião, enquanto ondas de desinformação – muitas vezes propagadas pelas próprias autoridades, como no Brasil – obliteraram a disseminação de informação confiável ao preço de incontáveis vidas.

A democracia mais populosa do mundo, a Índia, caiu do status de “livre” para “parcialmente livre”. O regime de Narendra Modi continuou a reprimir seus críticos e utilizou o combate à covid-19 como pretexto para deslocar milhões de migrantes domésticos, enquanto as hostes nacionalistas hindus culparam desproporcionalmente as comunidades muçulmanas pela disseminação do vírus, materializando essa hostilidade em surtos populares de violência.

A crise da democracia norte-americana atingiu seu apogeu com a invasão do Capitólio. Embora o presidente Joe Biden tenha iniciado seu mandato prometendo restaurar a unidade da Nação, nada indica que a chamada guerra civil cultural – seja entre os partidos Republicano e Democrata, seja, no interior de cada partido, entre extremistas e moderados – arrefecerá num futuro próximo. Isso dificultará ainda mais aos EUA resgatar sua credibilidade mundial e liderar uma coalização democrática.

A pandemia também serviu de pretexto para reprimir a onda de protestos populares que eclodiu em 2019 em nome de mais transparência e melhor governança. Se protestos bem-sucedidos no Chile ou Sudão levaram a aprimoramentos democráticos, os regimes despóticos aproveitaram a distração mundial para esmagar movimentos de resistência: quase duas dúzias de países que experimentaram grandes protestos em 2019 sofreram declínio nas liberdades em 2020.

O caso de Taiwan é exemplar tanto do vigor da democracia como das ameaças a ela. Valendo-se de sua experiência com a Sars e apostando em métodos científicos, o país foi extraordinariamente eficaz em combater o vírus sem agressões às liberdades civis. Mas Taiwan enfrenta a contínua hostilidade da China, a cada dia mais próxima de uma ofensiva militar.

“A liderança e a solidariedade global dos estados democráticos é urgentemente necessária”, conclui a Freedom House. “Os governos que compreendem o valor da democracia, incluindo a nova administração em Washington, têm a responsabilidade de se reunirem para entregar seus benefícios, combater seus adversários e apoiar seus defensores.” Empenhar-se nessa missão não é tarefa fácil, mas também não é uma opção: é questão de vida ou morte da liberdade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de setembro de 2021

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