segunda-feira, 9 de agosto de 2021

'Bolsonaro adota medidas do manual de Chávez': entenda semelhanças e diferenças entre Brasil e Venezuela

Em 18 de outubro de 2018, poucos dias antes do segundo turno da eleição presidencial que o confirmaria como o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro foi ao Twitter e se dirigiu aos brasileiros.

 "Sempre dissemos que não existe salvador da pátria, mas graças a união do brasileiro temos a chance real de não virarmos a próxima Venezuela. 

Juntos, daremos o pontapé para fazermos do Brasil uma das mais respeitáveis potências mundiais", escreveu o então candidato pelo PSL.

Tanto Bolsonaro quanto Chávez fizeram carreira militar e tiveram problemas disciplinares que os levaram a deixar as Forças Armadas

Ali, ele repetia um dos temas mais frequentes em sua campanha eleitoral: o medo dos brasileiros de que a crise política, econômica e social que assolou o país vizinho em decorrência das políticas do regime chavista pudessem se replicar no Brasil.

No imaginário da população brasileira, o colapso da Venezuela ganhava cores cada vez mais vivas com a chegada em massa de migrantes do país via Pacaraima, em Roraima, em fuga da fome. "Vamos vencer e quebrar a engrenagem que quer nos tornar uma Venezuela!", tuitou o candidato em 10 de outubro de 2018, em outro exemplo dentre as dezenas de mensagens sobre o assunto que ele disparou naquele ano.

Mais de dois anos e meio após a posse de Bolsonaro, no entanto, especialistas em política latino-americana ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o atual presidente brasileiro é o líder mais próximo ao estilo de Hugo Chávez que o Brasil já teve no período democrático recente. "Bolsonaro se cercou de militares, cria embate com outros poderes, desacredita o processo eleitoral e tenta calar a imprensa. Todas medidas tiradas do manual chavista", afirmou à BBC News Brasil Jorge Castañeda, ex-ministro de Relações Exteriores do México e professor da New York University.

As semelhanças entre ambos não se esgotam nas coincidências biográficas ou no modo como souberam explorar as redes sociais e a imagem de outsiders para conquistar os eleitores.

Com mais ou menos sucesso, ambos operaram avanços sobre as Supremas Cortes e apostaram nos embates com instituições democráticas, especialmente com a imprensa. Ambos ainda incentivaram ou promoveram o armamento da população civil e militarizaram o Estado ao mesmo tempo em que interferiam em órgãos investigativos, expurgavam servidores públicos não alinhados e tentavam levar os dados oficiais a apoiar narrativas de seus governos, nem sempre condizentes com a realidade.

Venezuela vive a maior crise de crise recente de migração da história da América Latina (Getty Images)

"Em 2018, baseado no meu trabalho sobre líderes populistas e militares na democracia na América Latina, eu já dizia que Bolsonaro era a figura que mais se parecia com Chávez no Brasil e isso se mantém", afirmou à BBC News Brasil Harold Trinkunas, especialista em política latino-americana da Universidade Stanford e da Brookings Institution.

Trinkunas explica: "Apesar de defenderem ideologias obviamente diferentes, os dois são líderes populistas. Os populistas alegam conhecer e defender a vontade do povo e argumentam que são as instituições e as elites os empecilhos para que eles as coloquem em prática. O viés antielites e anti-instituições em Bolsonaro é tão claro quanto era em Chávez".

O Coronel e o Capitão

Embora tenha adotado Chávez como um de seus antagonistas principais na eleição presidencial, Bolsonaro admitiu em 1999 beber da fonte chavista em sua formação política. Em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o então deputado federal afirmou que "Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil". Na ocasião, o deputado admitiu que pretendia ir ao país vizinho para tentar ser recebido em visita no Palácio Presidencial de Miraflores.

"Acho que ele [Chávez] vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui", analisou o então deputado federal Bolsonaro, filiado ao PPB, atual PP. Em 2020, já presidente, Bolsonaro repetiu, em uma live, que achou "maravilhoso" ver Chávez vencer as eleições. "Depois fez besteira, e virei opositor, como sou ao governo Maduro", disse.

Chávez reconhece ao vivo na TV que sua tentativa de golpe de Estado, em 1992, falhou (BBC)

Chávez e Bolsonaro têm origem parecida. Ambos nasceram em cidades pequenas e de interior de seus países, tiveram infância simples e ingressaram jovens em academias militares, onde fariam carreira. O primeiro chegou a coronel. O segundo, a capitão. E os dois incorreram em faltas disciplinares graves, o que os afastou da carreira nas Forças Armadas e os lançou definitivamente na política.

No caso de Chávez, em 1992, como tenente-coronel, ele comandou subordinados na tentativa de dar um golpe de Estado na Venezuela. O ato, mal-sucedido, o levou à prisão por dois anos. Posteriormente, Chávez acabaria anistiado.

Bolsonaro se manifestou publicamente por melhorias salariais para as Forças em 1986, uma tomada de posicionamento político público que lhe rendeu 15 dias de prisão. No ano seguinte, ainda em protesto, teria arquitetado um plano para explodir adutoras de abastecimento de água do Rio de Janeiro. Em 1988, foi julgado pelo Superior Tribunal Militar, que considerou não haver provas suficientes para condená-lo. Naquele mesmo ano, ele passou à reserva e se elegeu como vereador no Rio de Janeiro.


Quando estava no Exército, Bolsonaro já dizia que queria ser presidente (Reprodução)


Outsiders em terra arrasada

Depois de sua tentativa de golpe, Chávez levaria mais seis anos para se converter no "Comandante", como era chamado já na Presidência de seu país. Para Bolsonaro, o caminho foi mais longo: levou 30 anos até que ele se convertesse em "Mito" e passasse a ocupar o Palácio do Planalto. Há, no entanto, uma enorme coincidência de contextos que favoreceram as vitórias presidenciais de cada um deles.


"Ambos são políticos que chegam ao auge do poder em uma terra arrasada. Há um profundo sentimento de fim de festa nos dois países, uma aguda crise econômica, política e social que explica essa ascensão", afirma a cientista política Daniela Campello, da Fundação Getúlio Vargas.

Hugo Chávez governou a Venezuela durante 14 anos e chegou a sofrer uma tentativa de golpe (getty Images)

No fim dos anos 1990, a Venezuela já não era um dos países mais ricos do mundo, como fora entre 1950 e 1980, período que lhe rendeu o apelido de "Venezuela saudita". Nos anos 1970, graças às suas reservas petrolíferas, os venezuelanos tinham o maior poder de compra entre os países América Latina — quase três vezes maior que o dos brasileiros —, segundo um índice da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Tudo mudou na década de 1980, com a flutuação do preço do petróleo. Com menos dinheiro, problemas históricos ficaram evidentes: a falta de acesso à educação para a população de baixa renda, o aumento da pobreza em meio à escalada da inflação, a corrupção e o desvio de dinheiro público das elites políticas do país. Em 1989, o Exército é chamado a reprimir uma enorme manifestação popular em Caracas, o Caracaço. Uma multidão revoltada e faminta, que saqueava e depredava tudo o que havia, acabou massacrada pelos militares.

Chávez surge nesse contexto, como um outsider, alguém que propõe mudanças e lidera uma recém-criada agremiação, o Movimento Quinta República, com a qual se elege e derrota os dois partidos que polarizavam a eleição havia quatro décadas na Venezuela. Chávez só viria a formalizar um partido próprio em 2006, o Partido Socialista Unido da Venezuela.

Para um período de mais de duas décadas de vitórias presidenciais de PT e PSDB, cujas imagens sofreram fortes abalos após as investigações da Operação Lava Jato. Mas não era só: o país também enfrentava a pior recessão econômica desde 1948. E embora Bolsonaro fosse deputado por quase três décadas, jamais tivera expressão nacional e surgia como uma figura alternativa, à frente de um até então partido nanico, o PSL, cuja sigla os brasileiros mal conheciam.

Will Grant retoma histórico populista da América Latina, que perpassa Chávez e Bolsonaro

"Não estou dizendo nem vagamente que os dois são a mesma pessoa, mas não dá pra ignorar que existem traços claros de poder em Chávez que deságuam em Bolsonaro e que, em certa medida, superam esses dois personagens e remontam a toda uma tradição política latino-americana", afirma o correspondente da BBC na América Latina Will Grant, autor do recém-lançado Populista: the rise of Latin America's 21st Century Strongman, ou, em tradução livre, Populista: a chegada ao poder dos caudilhos da América Latina no século 21, em cuja capa Chávez e Bolsonaro se encaram.

Ataques à Suprema Corte e às instituições

"Sou apenas um homem, um soldado, um patriota". A frase, que pelo estilo e pelos valores que evoca facilmente caberia na boca de Bolsonaro, na verdade foi enunciada por Chávez. "O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde!" A afirmação poderia ser atribuída à Chávez, mas foi dita por Bolsonaro, em seu terceiro ano de mandato como presidente, em meio ao embate contra o Tribunal Superior Eleitoral sobre a impressão do voto.

"Uma vez no poder, tanto Bolsonaro quanto Chávez mantêm a retórica do maniqueísmo, do bem contra o mal, para surfar os sentimentos da população contra o establishment, e a estratégia de manter vivo o conflito institucional para tentar esticar os limites de seus poderes", afirma o cientista político Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard.

Um dos alvos centrais de ambos os presidentes em suas investidas contra as instituições são as Supremas Cortes de cada país.

Chávez acusava o Tribunal Constitucional venezuelana de golpismo e corrupção e dizia que os juízes da Corte atentavam contra os interesses nacionais. Em 2003, ele finalmente conseguiu fazer com que a Assembleia Nacional aprovasse, em plena madrugada, uma lei que permitia o aumento do tribunal de 20 para 32 ministros. Além de povoar a corte com aliados, Chávez conseguiu também que a nova lei permitisse o afastamento de outros ministros por decisão do governo em casos em que suas condutas ferissem "o interesse nacional". Na prática, a regra se tornou um salvo-conduto para que Chávez e, posteriormente, seu sucessor Nicolás Maduro tirassem juízes que tomassem medidas que os desagradassem.

Bolsonaro prometeu para 'live bomba' a apresentação de provas de fraudes nas eleições — mas não apresentou. ( Facebook)

Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a defender o aumento no número dos juízes, dos 11 atuais para 21. "É uma maneira de você colocar dez isentos lá dentro porque, da forma como eles têm decidido as questões nacionais, nós realmente não podemos sequer sonhar em mudar o destino do Brasil", disse Bolsonaro em entrevista, em julho de 2018, à TV Cidade, de Fortaleza. Já no governo, em 2020, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a dizer em uma reunião ministerial que ministros do STF deveriam ser presos.

O próprio presidente colecionou duros embates com diversos ministros da Corte. O mais recente deles tem sido com o ministro Barroso, a quem já chamou de idiota e mentiroso, e com Alexandre de Moraes, a quem qualificou como "ditatorial" e alertou que "a hora dele vai chegar".

Bolsonaro não ficou só em ataques verbais. Em seu primeiro ano de governo, tentou emplacar na Reforma da Previdência uma regra que retirava a especificação de idade-limite para a aposentadoria dos integrantes do STF. A ideia seria determinar uma nova idade, menor do que a atual, via lei complementar. Assim, ele abriria uma grande quantidade de vagas para nomear nomes alinhados aos seus interesses.

A manobra, no entanto, foi detectada pelo Congresso, que a desmontou. Esse ano, conforme a previsão legal, Bolsonaro deverá nomear seu segundo ministro (o primeiro foi Kássio Nunes Marques), em substituição a Marco Aurélio Mello. O indicado é André Mendonça, ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça sob Bolsonaro.

Interferência em órgãos de investigação

Em outra frente, Bolsonaro desfez regras tácitas sobre a definição dos comandos de órgãos de investigação e controle. Ele ignorou a lista tríplice do Ministério Público Federal, na qual os procuradores indicam três lideranças da carreira aptas a assumir o posto de Procurador-Geral, e nomeou para o posto um aliado, Augusto Aras. Embora seja uma prerrogativa do presidente, uma intervenção como essa no órgão de investigação não acontecia desde o início do governo de Lula, em 2003, e foi recebida como um golpe sobre a autonomia investigativa do órgão.

Em imagens da reunião, o então ministro Sergio Moro aparece com o semblante carregado (Marcos Correa / PR)

Do mesmo modo, o então ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, se demitiu acusando o presidente de tentar interferir na autonomia investigativa da Polícia Federal. De acordo com Moro, Bolsonaro queria trocar a chefia nacional e o comando de superintendências estaduais da PF, como a do Rio de Janeiro, sem apresentar uma justificativa plausível para isso. O presidente reiterou que a mudança era uma prerrogativa de seu cargo.

Desde a posse de Bolsonaro, já houve quatro nomeações para chefes da PF, além de afastamentos locais, como o do delegado Alexandre Saraiva, ex-superintendente do Amazonas, retirado do cargo um dia após pedir que o STF investigasse o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, um dos mais fiéis aliados ao presidente.

Bolsonaro, no entanto, não inventou a estratégia. Em 2000, Chávez conseguiu aprovar na Assembleia Nacional seu então vice-presidente, Isaías Rodriguez, para o posto equivalente ao de procurador-geral, desalojando da cadeira um servidor que questionara a legalidade de algumas ações de seu governo.

De acordo com a oposição ao regime chavista, os órgãos de investigação passaram a se comportar de maneira totalmente comprometida com os interesses do mandatário. A nova procuradoria sob Chávez passou a considerar críticas ao governo como atentados aos interesses nacionais.

No Brasil de Bolsonaro, algo semelhante aconteceu. O então ministro da Justiça, André Mendonça, pediu à Polícia Federal investigação de críticos do governo sob a alegação de que feriam a Lei de Segurança Nacional. Um dos alvos foi o ex-ministro Ciro Gomes, investigado por ter dito que "Bolsonaro para mim é um boçal, irresponsável e criminoso. E ladrão". Inquéritos semelhantes também surgiram por iniciativa de polícias locais. A Polícia Civil do Rio chegou a abrir apuração contra o youtuber Felipe Neto por ele ter chamado Bolsonaro de "genocida".

Bolsonaro é um entusiasta do armamento da população (YouTube)

"O melhor exército que pode existir para conseguir a liberdade é o povo armado. Eu não quero ditadura no Brasil, quero liberdade", disse Bolsonaro, durante reunião ministerial, em 2020. E seguiu: "Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!"

Desde o início do governo, Bolsonaro tem editado decretos que facilitam o acesso da população civil ao armamento. Boa parte deles têm sido barradas no STF. Ainda assim, o número de armas entre civis no Brasil bate recorde. Nos dois primeiros anos do governo do governo Bolsonaro, 274 mil novas armas de fogo foram registradas, um aumento de 183% em relação ao total de novos registros no biênio anterior e o maior patamar da série histórica, medida desde 2009.

As justificativas dadas por Bolsonaro para expandir o acesso ao armamento à população civil — a necessidade de defender a liberdade do povo e a soberania do país — ressoam àquelas dadas por Chávez, em 2006, quando deliberadamente iniciou a formação de uma milícia, que hoje conta com quase 1 milhão de civis, como ele mesmo planejava.

"A Venezuela precisa ter 1 milhão de homens e mulheres bem equipados e bem armados", disse o líder venezuelano, após ter negociado a importação de 100 mil fuzis da Rússia e fechar acordo bilionário com a Espanha para a compra de equipamentos militares. "Peço permissão para comprar outro carregamento de armas, porque os gringos querem nos desarmar. Temos de defender nossa pátria", complementou Chávez.

A Milícia Bolivariana é formada por civis partidários do governo socialista armados e treinados (Getty Images)

A milícia de Chávez é uma espécie de exército paralelo e político e foi gestada depois da tentativa de golpe sofrida por ele em 2002, quando ficou claro que apenas o Exército poderia não ser o bastante para assegurá-lo no comando. Os alistados na milícia são pessoas comuns, que recebem um treinamento de 5 dias de tiro, disciplina militar e doutrina nacional. Na prática, funcionam também como olheiros do regime para qualquer sinal de sublevação social.

O governo Chávez também distribuiuarmas para os chamados coletivos, grupos paramilitares politicamente alinhados aos partidos e que já se envolveram em atos mais extremos.

"A comparação tem limites porque embora haja a flexibilização para acesso a armas no caso de Bolsonaro, não há um planejamento, uma organização hierárquica orientando o contingente de pessoas que compra essas armas. No caso de Chávez, não. Ele realmente preparou a população para a Guerra Civil", diz Rafael Ioris, cientista político da Universidade do Colorado.

A despeito do discurso favorável ao armamento de grupos específicos e aliados, Chávez lançou campanha de redução à circulação de armas entre a população em geral, restringindo o acesso a elas às Forças Armadas, às milícias e aos coletivos. A tentativa de desarmamento foi, aliás, uma das raras pautas em que chavistas e a oposição concordaram e trabalharam juntos.

Perseguição a funcionários públicos não alinhados

A gestão Chávez ficou marcada por perseguições a funcionários públicos não alinhados ao regime Bolsonaro. Em novembro de 2006, o canal televisivo RCTV chegou a transmitir imagens do então ministro da Energia de Chávez dizendo aos funcionários da empresa estatal de petróleo, a PDVSA, que eles deveriam se demitir se não apoiassem a agenda política do presidente.

O físico Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, foi demitido mesmo tendo um mandato (Arquivo Pessoal)

No Brasil, situações semelhantes têm acontecido. Uma das mais notórias foi a demissão, em 2019, do então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Ricardo Galvão. Embora tivesse um mandato, Galvão foi dispensado depois de divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia que desagradaram Bolsonaro.

Na ocasião, o presidente chegou a afirmar que Ricardo Galvão estava "agindo a serviço de uma ONG". "Com toda a devastação que vocês nos acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido", declarou Bolsonaro.

Em outro caso com paralelo na Venezuela sob Chávez, Bolsonaro tem descumprido uma regra tácita, que vigorava desde os anos 1990, de nomeação do reitor de universidades federais. Historicamente, o nomeado é eleito pelos professores, funcionários e alunos das instituições. Bolsonaro, no entanto, tem optado por exercer o direito de escolher seus nomes preferidos, eventualmente até mesmo fora da lista tríplice elaborada pelas universidades.

Segundo cálculo da Folha de S.Paulo, isso já aconteceu ao menos em um quarto das nomeações. Embora não haja uma explicação oficial para tais decisões, a leitura das universidades é de que há interferência política na gestão universitária. Em março de 2019, Bolsonaro deixou claro que agiria conforme suas possibilidades e se justificou: "O ambiente acadêmico com o passar do tempo vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda que divide para conquistar e enaltece o socialismo e tripudia o capitalismo. Neste contexto, a formação dos cidadãos é esquecida e prioriza-se a conquista dos militantes políticos".

Também em 2019, o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, obteve uma vitória no Tribunal Supremo do país para alterar as regras de votação de reitores de universidades nacionais e retirar o peso dos professores na escolha. O ambiente acadêmico venezuelano é considerado pelo governo como um dos últimos bastiões de oposição à chamada revolução bolivariana.

Polêmicas com estatísticas oficiais

Em maio de 2020, o governo de Nicolás Maduro anunciou o que foi tomado como um "absurdo" pela Universidade John Hopkins: a Venezuela teria tido, até então, apenas 10 mortos por covid-19. O líder venezuelano defendia que seu combate à pandemia — baseado em parte no uso da cloroquina, um medicamento cuja ineficácia foi comprovada e que também foi adotado por Bolsonaro como tratamento para covid-19 no Brasil — era um grande sucesso.

A médica da Universidade Jonh Hopkins Kathleen Page, que entrevistou equipes de saúde venezuelanas para o relatório da instituição sobre a pandemia, disse à AFP que se tratava de um dado falso. Em uma estimativa conservadora, segundo ela, o número de óbitos pelo vírus no país chegaria "em pelo menos 30 mil" naquele momento.

Maduro fala para militares em comemoração de revolta liderada por Chávez (Reuters)

Os dados sobre mortalidade da covid-19 se tornaram apenas o exemplo mais recente da falta de confiabilidade das estatísticas do governo Chávez-Maduro. O problema se acentuou conforme o país se aprofundava na crise. A Venezuela passou ao menos dois anos sem publicar dados sobre mortalidade infantil, por exemplo, para não dar munição aos que criticam o regime. Chávez chegou a expulsar do país integrantes de organismos internacionais, como a Human Rights Watch, que denunciavam os problemas nos dados, entre outras críticas ao governo venezuelano.

No caso brasileiro, o governo Bolsonaro foi duramente criticado quando, na gestão do ministro Eduardo Pazuello, tentou alterar o cálculo de vítimas da covid-19 no Brasil. Em junho de 2020, o governo deixou de divulgar os dados completos de mortalidade e o histórico de vítimas da pandemia, e manteve acessíveis apenas os dados sobre óbitos registrados nas 24h anteriores, o que reduzia drasticamente o dado. Alterou ainda o horário de divulgação dos boletins epidemiológicos, das 19h para as 22h. Ao comentar o assunto pela primeira vez, Bolsonaro afirmou: "Acabou matéria no Jornal Nacional."

Jornal britânico The Guardian disse que governo brasileiro foi acusado de `totalitarismo e censura` ao mudar metodologia de números de covid-19 (The Guardian)

Diante do apagão de dados, o site da Universidade John Hopkins chegou a tirar o Brasil de sua contagem. E órgãos de imprensa criaram um consórcio para apurar os números junto aos Estados. Os dados do Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (Conass) passaram a balizar as análises. Diante da pressão, o governo recuou.

Essa, no entanto, não foi a primeira vez que a gestão Bolsonaro se debateu com dados oficiais negativos. Como mostra o caso da demissão do diretor do Inpe, o governo federal tentou repetidas vezes alterar a forma de cálculo e divulgação dos dados sobre a devastação ambiental. Recentemente, chegou a anunciar que o monitoramento ficaria sob responsabilidade do Ministério da Agricultura. Diante das críticas — já que o desmatamento é impulsionado justamente por atividades de parcela do setor ruralista — o governo voltou atrás.

Há outros exemplos. No fim de julho, o ministro da Economia, Paulo Guedes, atacou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) diante da nova estatística de desemprego — que aponta 15 milhões de brasileiros sem emprego. Segundo Guedes, o IBGE "está na idade da pedra lascada" e seu dado não deveria ser considerado. O governo também não destinou recursos suficientes para realização do Censo populacional, atrasado em dois anos.

Militares no poder

"A chegada de Chávez e Bolsonaro à Presidência marca também o retorno, com força, dos militares à máquina do Estado. A verdade é que até esse momento, os militares já não faziam parte da política cotidiana nem no Brasil, nem na Venezuela", afirma Fernando Bizzarro, da Universidade Harvard.

Tanto Venezuela quanto Brasil viveram períodos de ditadura militar. Mas no caso venezuelano, o regime havia se encerrado em 1958, o que significa que os militares estavam fora do centro nervoso político há mais de 40 anos quando Chávez ascendeu.

Em um país marcado pela instabilidade política e escassez de bens básicos, militares controlam os mais diversos setores da economia (AFP)

O histórico brasileiro é mais complexo. A ditadura se encerrou em 1984, e o retorno dos militares a funções centrais no Estado é iniciado pela gestão de Michel Temer. Impopular e diante de uma crise econômica, Temer recria o GSI, um órgão de segurança nacional que controla a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) extinto em 2015. Para o comando da pasta, ele nomeou Sérgio Etchegoyen, que até então ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército e passou a ser uma das vozes mais influentes do círculo do presidente.

Esse teria sido o ponto de início de um processo que Bolsonaro aprofundaria de maneira que não encontra paralelos nem com a própria ditadura brasileira. Um levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2020 identificou 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo Bolsonaro. O número é mais que o dobro do que havia em 2018, na gestão Temer (2.765) e supera as cifras registradas durante os governos militares no período 1964-84.

Mais do que isso, em fevereiro de 2020 a BBC News Brasil mostrou que, naquele momento, o Brasil tinha mais militares na chefia de ministérios do que a própria Venezuela.

E embora esse número possa flutuar, o dado aponta o patamar de importância que as Forças Armadas adquiriram no governo de Jair Bolsonaro, já que a manutenção do regime chavista se fia hoje basicamente no apoio militar que ainda detém.

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, a presença de militares na gestão Chávez foi aumentando ao longo dos anos, como resposta a diferentes crises que o governo enfrentava: a tentativa de golpe contra Chávez ou uma greve geral na PDVSA (a estatal petrolífera venezuelana). Em contraponto, eles afirmam, Bolsonaro já iniciou a gestão cercado de militares. O resultado, no entanto, é bastante semelhante.

Assim como Bolsonaro, Chávez também investiu no aumento da educação militar no país, nomeou um general para o comando da petroleira estatal, do mesmo modo que Bolsonaro, em 2021, com a Petrobras, e alocou um militar até no Ministério da Saúde, o que Bolsonaro repetiria anos mais tarde com Eduardo Pazuello à frente da pasta.

"Ambos também foram operando expurgos nas Forças Armadas para deixar em melhor posição os seus aliados", afirma Daniela Campello, da FGV, citando o caso da demissão do então ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, e dos três chefes das forças em março de 2021. Para o lugar de Azevedo e Silva, Bolsonaro indicou o general Walter Braga Netto.

Com Bolsonaro, militares voltaram ao poder sem ruptura institucional (Getty Images)

Braga Netto se envolveu em ao menos dois episódios recentes vistos por parlamentares e analistas políticos como intromissão das Forças Armadas na política brasileira. O primeiro, quando admoestou o senador Omar Aziz, por nota, junto aos demais chefes das forças, por comentários do presidente da CPI acerca da "banda podre das Forças Armadas". A CPI investiga o possível envolvimento de militares que ocupavam cargos no Ministério da Saúde em esquemas fraudulentos de compras de vacina. O segundo quando se posicionou, também por nota, em favor do voto impresso, posição também apoiada pelos Clubes Militares.

Bolsonaro tem afirmado publicamente que se não houver voto impresso nas eleições de 2022, não haverá o pleito.

No caso da Venezuela, o preço do apoio dos quartéis a Chávez foi alto. Além do loteamento de cargos estatais, o chavismo franqueou aos comandantes aliados generosos espaços em diferentes setores da economia venezuelana.

O grupo de militares, chamado de "boliburguesia", a burguesia bolivariana, assumiu o controle da cadeia de produção petroleira, além da extração de outros minérios, incluindo ouro. Empresas vinculadas aberta ou sigilosamente a comandantes militares firmaram contratos públicos para atuar em ramos tão diversos quanto produção de alimentos e bens de consumo a serviços de coleta de lixo. Esses laços ajudariam a explicar porque o regime se mantém, a despeito da enorme crise. A oposição venezuelana tem acenado com anistia para que os militares troquem de lado.

No caso do Brasil, os militares como classe já experimentam benefícios bem palpáveis: foram excluídos da reforma da previdência, que impôs mais anos de trabalho e menor benefício à população brasileira, e são a única categoria que poderá receber reajuste salarial em 2021. Em meio à crise fiscal, o orçamento do Ministério da Defesa tem sido relativamente preservado e chegou a patamares semelhantes ao do Ministério da Educação, por exemplo.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam ser impossível saber o grau de compromisso das Forças Armadas com o projeto de poder de Bolsonaro e o quão dispostas estariam em bancar alguma eventual tentativa de ruptura democrática. "Acredito que isso não aconteceria. Mas, veja, só o fato de estarmos discutindo aqui o que querem as Forças Armadas do Brasil, que deveriam ser totalmente subordinadas aos civis, já é extremamente preocupante", aponta Trinkunas, da Universidade Stanford.

Braga Netto tem negado que haja uma politização das Forças Armadas.

Chávez costumava comandar um programa televisivo dominical batizado de Alô, Presidente

Enquanto Bolsonaro tem encontro direto com o eleitor toda quinta-feira, em lives de Facebook, Chávez costumava comandar um programa televisivo dominical batizado de Alô, Presidente. Em 2020, a equipe de comunicação de Bolsonaro chegou a lançar um piloto de programa no qual Bolsonaro responderia a perguntas de eleitores, batizado igualmente de Alô, Presidente. A revelação pela imprensa de que os supostos entrevistados nesse piloto na verdade não existiam, e que suas fotos eram imagens genéricas compradas de agência, aliada à comparação com o programa de Chávez, no entanto, fizeram com que a Secretaria de Comunicação abandonasse a ideia.

Nos programas de Chávez e Bolsonaro, o governo se faz ao vivo. O presidente venezuelano chegou a anunciar, em 2008, na TV que enviaria batalhões do Exército para a fronteira com a Colômbia, gerando uma crise diplomática séria com o país vizinho. Já Bolsonaro usa seus programas para endossar aliados fustigados por denúncias, fornecer interpretações sobre fatos políticos que possam ser usados como propaganda por sua militância ou defender medidas que quer adotar no governo.

No fim de julho, passou mais de duas horas em uma live em defesa do voto impresso, para a qual não conta com votos no Congresso nem respaldo no Supremo, e apelou até para notícias falsas para argumentar que o atual sistema eleitoral brasileiro não é seguro, Por causa do episódio, Bolsonaro está sob investigação no inquérito das Fake News no STF.

Além disso, como o evento foi retransmitido pela emissora estatal TV Brasil, Bolsonaro foi alvo de notícia-crime enviada ao STF por parlamentares petistas, que o acusam de a improbidade administrativa, propaganda eleitoral antecipada e abuso de poder político e econômico. A ministra Carmen Lúcia qualificou as acusações como "graves" e pediu parecer à Procuradoria-Geral da República.

Bolsonaro ao lado do humorista Carioca, que tentou distribuir bananas a jornalistas em frente ao Palácio da Alvorada (Reprodução / PR)

A comunicação direta com o eleitor não é só uma preferência dos dois líderes, mas também uma forma de driblar perguntas incômodas da imprensa, com quem Chávez e Bolsonaro acumularam embates. Em 2020, Bolsonaro chegou a pôr em dúvida a renovação da concessão pública da TV Globo, emissora mais vista do país. "Vocês vão renovar a concessão em 2022. Não vou persegui-los, mas o processo vai estar limpo. Se o processo não estiver limpo, legal, não tem renovação da concessão de vocês, e de TV nenhuma. Vocês apostaram em me derrubar no primeiro ano e não conseguiram", disse, acusando a cobertura de seu mandato de ser "porca"e uma "patifaria".

Chávez foi mais longe. "Não será renovada a concessão para este canal golpista de televisão que se chama Radio Caracas Televisión (RCTV)", anunciou em 2006, cumprindo ameaças que fazia não apenas porque o veículo trazia reiteradas denúncias contra seu governo como também porque não dava destaque às manifestações a favor de Chávez na cobertura. A emissora saiu do ar em 2007.

A RCTV chegou a ter alguma sobrevida como canal por assinatura, mas mesmo isso acabou em 2010. Uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou, em 2015, que a TV fosse reaberta, mas o regime chavista ignorou a decisão. O governo de Chávez também abriu investigações administrativas contra outros veículos de imprensa quando avaliava que a cobertura não lhe era favorável, segundo relatórios da ONG Human Rights Watch. Tais processos resultaram algumas vezes em sufocamento financeiro desses órgãos de imprensa. Em outras situações, o governo usou seu poder de financiamento por meio de compra de anúncios para obter a simpatia de veículos em sua cobertura.

Entre 2003 e 2019, ao menos 200 órgãos de imprensa, entre emissoras de rádio e televisão e jornais, tiveram seus trabalhos interrompidos. E, de acordo com o levantamento do Instituto Prensa y Sociedad, que monitora as condições de trabalho da imprensa no país, houve ao menos 213 violações ao trabalho jornalístico apenas no primeiro semestre de 2021, entre elas dez prisões arbitrárias de repórteres.

Pela primeira vez em 20 anos, o relatório da ONG Repórteres sem Fronteiras colocou o Brasil na zona vermelha, a mais restrita em termos de liberdade de imprensa, a mesma em que está a Venezuela. No relatório, no entanto, a ONG destaca que a situação venezuelana (em 148º lugar num ranking de 180 países) segue sendo pior do que a do Brasil (111ª posição). "O trabalho da imprensa brasileira tornou-se especialmente complexo desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente, em 2018. Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro", afirma o relatório de 2021 da organização.

As relações de Bolsonaro com a imprensa se revelam também por meio da maneira como o governo federal aloca seus recursos publicitários.

Um relatório do Tribunal de Contas da União de 2020 mostrou que, sem demonstrar os critérios para as decisões, a gestão Bolsonaro cortou em 60% a verba destinada à propaganda federal na TV Globo, líder de audiência. Por outro lado, os repasses para SBT e TV Record, cuja linha editorial é considerada menos crítica ao governo, aumentaram em cerca de 25% para cada uma delas.

Segundo investigadores, Tercio Arnaud Tomaz, funcionário do Planalto no chamado Gabinete do Ódio, passava vídeos do presidente para canais bolsonaristas no YouTube investigados (Facebook)

Além disso, investigações da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República sobre atos antidemocráticos apontaram que 12 canais no YouTube de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro receberam cerca de US$ 1,1 milhão em monetização dos vídeos. O valor, que vai de junho de 2018 a maio de 2020, corresponde a cerca de R$ 4,2 milhões em valores convertidos com o câmbio médio da época. Esses canais são conhecidos por disseminação de conteúdo falso e já sofreram diferentes sanções de plataformas como Youtube e Facebook.

Com todas essas semelhanças, o que impede o Brasil de 'virar uma Venezuela'?

Ao menos 3 aspectos são centrais para entender os limites do uso do manual chavista por Bolsonaro: a popularidade presidencial, a quantidade de recursos disponíveis e a força das instituições desafiadas.

"Quando Bolsonaro chega ao poder, chega com bem menos do que os mais de 60% dos votos que Chávez teve em sua primeira eleição. E também teve o caminho facilitado na vitória porque Lula foi impedido de concorrer. Então há, de saída, uma diferença no grau de popularidade deles", afirma Jorge Castañeda, da New York University.

Chávez aproveitou o embalo das urnas e a insatisfação popular no país para lançar uma Constituinte, na qual 9 em cada 10 membros eram aliados a ele. Era o início do que o cientista político Luis Vicente Léon chamou de um processo de "colonização das instituições". O próprio Léon, porém, observa que a forte popularidade de Chávez nos anos iniciais do regime dispensou a necessidade de qualquer tipo de fraude eleitoral para que ele vencesse as eleições presidenciais de 2000, 2006 e 2012 e os pleitos legislativos de 2000, 2005 e 2010. Sua única derrota aconteceu em 2007, quando ele tentou aprovar por referendo popular um terceiro mandato. Dois anos mais tarde, o presidente refez a consulta e venceu.

Mas, afinal, o que fez de Chávez um presidente tão popular a despeito de seus ataques a instituições democráticas?

Chávez reduziu significativamente a pobreza, que retornou forte quando o preço do barril de petróleo voltou a cair. (Reuters)

O período dele no poder coincide com uma alta histórica no preço do petróleo, base primordial da economia venezuelana e cuja receita se concentra na mão do Estado, já que o recurso é explorado por uma estatal. Chávez encaminhou a abundância de verba para a população mais pobre do país e de fato gerou impacto imediato na vida de milhões de pessoas.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas, em 1999, 20,1% dos venezuelanos viviam na extrema pobreza. Em 2007, o índice havia caído para 9,5%. Suas políticas, no entanto, não eram estruturantes e quando o preço do barril de petróleo voltou a cair, a pobreza retornou com mais força do que antes ao país.

De forma semelhante, Bolsonaro experimentou o incremento de popularidade que a transferência direta de renda pode trazer. O auxílio emergencial federal de R$ 600 durante a pandemia alavancou seus índices de popularidade a 37% em agosto, segundo o Datafolha (ante aos atuais 24%).

Seis vezes maior que a economia da Venezuela, a do Brasil é também muito mais diversa, dinâmica e muito menos atrelada ao Estado. "Além disso, o governo enfrenta uma crise fiscal, o que reduz muito as possibilidades de gastos do governo", afirma Daniela Campello, da FGV. Justamente o Orçamento apertado forçou a redução e interrupção do auxílio, que Bolsonaro tenta relançar até o fim do ano como um substituto ao programa Bolsa Família. Agora, o valor seria de R$ 400 (hoje é de R$ 190) e o nome do programa seria Auxílio Brasil.

Dada a falta de recurso público para fazer esse aumento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, sugeriu que o governo estuda formas de não cumprir os pagamentos dos precatórios, dívidas do Estado chanceladas judicialmente, para bancar o programa, o que causou alarme nos mercados e derrubou a bolsa na semana passada.

"É importante lembrar que Bolsonaro partiu de uma pauta bastante elitista, de austeridade fiscal, e chegou a ser contra o auxílio emergencial de R$ 500, até que se deu conta de que isso lhe trazia ganhos de popularidade. Ele tenta agora uma reedição disso, mas é muito difícil dada a situação da economia", afirma o cientista político Rafael Ioris, especialista em América Latina da Universidade do Colorado.

Ministro do STF Alexandre de Moraes incluiu presidente Bolsonaro como investigado no inquérito das Fake News (Rosinei Coutinho / STF)

Por fim, o Brasil possui instituições e uma oposição política consideradas mais sólidas do que as da Venezuela pelos especialistas. "Na Venezuela, o descrédito das instituições democráticas, da classe política, da elite empresarial entre 1999 e 2003 era muito maior do que hoje no Brasil. Logo, é mais difícil para Bolsonaro intervir nas regras do jogo", afirma Castañeda, para quem as tentativas de Bolsonaro de lançar descrédito sobre as urnas eletrônicas têm poucas chances de levar a algum resultado prático em 2022.

No início de agosto, a Proposta de Emenda Constitucional do voto impresso, encampada por Bolsonaro, foi derrotada na comissão especial da Câmara onde era analisada. Ainda assim, deve ser levada ao plenário da Câmara, onde também se espera uma derrota.

Will Grant, da BBC, também chama a atenção para a condição da oposição tanto no Brasil quanto na Venezuela. Em quase todo o período que esteve no poder, de 1999 a 2013, Chávez contou com maioria folgada na Assembleia Nacional, o equivalente ao Congresso brasileiro, e com controle sobre a Suprema Corte do país. O que não conseguiu fazer manipulando os outros dois Poderes, ele fez por meio de referendos.

Bolsonaro, apesar de ter sido o presidente que mais liberou recursos para emendas parlamentares, segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, foi também o presidente que menos aprovou seus projetos no Congresso nos últimos 18 anos. No STF, a interlocução com os ministros foi interrompida após os insultos que o presidente lançou contra alguns membros da Corte.

E enquanto na Venezuela, os partidos contrários a Chávez tiveram que lidar com a quase impossibilidade de se financiar, já que a maior parte dos recursos que a economia girava passavam diretamente pelo governo, no Brasil, essa questão não existe. O fundo eleitoral público de R$ 4 bilhões será distribuído entre os partidos para o pleito de 2022 e o principal beneficiário dos recursos é o PT, partido do principal adversário de Bolsonaro nas urnas, o ex-presidente Lula.

Em forma de protesto contra as condições de competição política, a oposição venezuelana optou por boicotar eleições-chave, como ao Legislativo em 2005, o que na prática apenas facilitou a permanência de Chávez no poder. "Na Venezuela, Chávez passou a ser o próprio Estado. Ou os políticos e grupos de oposição da sociedade civil encontravam espaço político para operar dentro da revolução bolivariana, ou não havia espaço real fora dali. No caso brasileiro é diferente, Bolsonaro não tem o domínio das instituições e tem como antagonista um personagem forte, Lula. Em última instância, isso o impede de realmente ser capaz de assumir as rédeas do poder no Brasil por mais de dois mandatos", afirma Grant.

Ioris, da Universidade do Colorado, vai mais longe. Para ele, a escalada de tensão do presidente brasileiro em relação às demais instituições por meio de ataques verborrágicos é um dos poucos recursos que sobram a Bolsonaro nesse momento. "Diferente de Chávez, o governo Bolsonaro sequer chega a ter uma agenda muito clara. Defende acabar com muitas coisas, mas não sabe bem o que colocar no lugar. Então escolhe questões pontuais pra defender. Devemos ver cada vez mais lives raivosas", aposta.

Elas, no entanto, podem ter um efeito negativo para o próprio presidente. A live de duas horas em que defendeu o voto impresso e disseminou informação falsa sobre o sistema eleitoral renderam a Bolsonaro a abertura de inquéritos tanto pelo Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal. Se o Judiciário concluir que houve abuso de poder econômico e político e crime eleitoral, Bolsonaro poderá até mesmo ser barrado da disputa presidencial em 2022.

"Há mais consciência dos perigos do populismo autoritário na América Latina, do que havia com Chávez, no começo dos anos 2000. Todos nós já vimos esse filme. Sabemos como isso termina. E essa consciência, tanto dentro quanto fora do Brasil, é certamente uma das diferenças mais importantes entre as situações dos países de Chávez e Bolsonaro", resume Jorge Castañeda, da New York University.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington, DC, para a BBC News Brasil, em 09.08.2021

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Reforma tributária concentra renda sem melhorar nada para os mais pobres

A proposta de reforma do Imposto de Renda, em discussão na Câmara dos Deputados, pode aumentar a concentração de renda no país e não apresenta nenhuma melhoria para a população mais pobre, cuja vulnerabilidade se tornou ainda mais evidente na pandemia. 

Essa é a avaliação de especialistas em tributação e desigualdade que têm acompanhado de perto o vai e vem das propostas de reforma tributária na gestão Jair Bolsonaro (sem partido).

Na Avenida Paulista, moradores de rua acampam em meio a grandes prédios comerciais, explicitando a desigualdade brasileira

Na quarta-feira (4/8), a Câmara aprovou regime de urgência para o projeto (PL 2337/21). Com isso, o texto poderá ser colocado em votação no plenário nos próximos dias, como já havia sinalizado o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Mas para o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), a votação agora é precipitada. "A proposta do Imposto de Renda não está madura e suficientemente debatida com a sociedade para ser votada na primeira semana [de volta do recesso]", disse ele na sexta-feira (30/7), durante evento virtual organizado pelo site Congresso em Foco.

Especialistas em tributação concordam com a avaliação do vice-presidente da Câmara e defendem que, da forma como está a proposta de reforma, após a apresentação de substitutivo pelo relator Celso Sabino (PSDB-PA), é melhor que ela não seja votada.

"Só dá para consertar [a atual proposta de reforma] se fizer uma mudança muito grande. Se for só para fazer ajuste paramétrico na proposta do governo ou colocar puxadinho, é melhor não votar", afirma Bernard Appy, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal).

"O texto substitutivo está totalmente desvirtuado e amplia a assimetria entre a tributação da renda do capital e do trabalho", considera Débora Freire, professora do Cedeplar da UFMG (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais).

Entenda qual era a proposta original de reforma do Imposto de Renda enviada pelo governo, como ela ficou após o substitutivo do relator e por que os economistas dizem que a reforma poderia ampliar a desigualdade no Brasil.

Antes da proposta do governo

Antes de o governo apresentar sua proposta de reforma tributária, duas outras propostas já tramitavam no Congresso Nacional: a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 45/2019, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na Câmara, e a PEC 110/2019 do Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).

As duas propostas tinham como objetivo unificar uma série de impostos de responsabilidade da União, de Estados e dos municípios, visando simplificar o sistema tributário brasileiro.

Apesar de ambos os modelos estarem em discussão no Congresso desde 2019, o governo optou por não encampar nenhum deles e, em julho de 2020, enviou aos parlamentares uma proposta de reforma tributária própria.

Essa proposta seria dividida em quatro etapas: a primeira seria uma modernização da tributação sobre bens e serviços, com a unificação de alguns impostos, mas apenas no âmbito da União — sem Estados e municípios, como nas propostas da Câmara e do Senado.

A segunda etapa seria a transformação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) num tributo seletivo; a terceira fase seria a revisão do Imposto de Renda; e a quarta etapa permitiria a regularização de impostos não recolhidos, uma espécie de "novo Refis" (sigla para Programa de Recuperação Fiscal).

Após a apresentação da primeira fase da reforma em julho de 2020, a proposta do governo recebeu uma série de críticas de setores que seriam afetados pela mudança.

Sem que houvesse qualquer avanço dessa primeira etapa no Congresso, a gestão Bolsonaro decidiu então mudar o foco e apresentar em junho deste ano sua proposta para a revisão do Imposto de Renda, de olho nas eleições de 2022.

'Benesses para a classe média em ano eleitoral'

Quando era candidato à Presidência, Jair Bolsonaro prometeu que aumentaria a isenção do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) para até cinco salários mínimos — valor equivalente a R$ 5,5 mil em 2021. Mas isso acabou não acontecendo.

"A um ano da próxima eleição, o governo propôs o reajuste do limite de isenção para R$ 2,5 mil, de R$ 1,9 mil atualmente", observa Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

'Você está entregando mais de R$ 20 bilhões para a classe média, para ela gastar em ano de eleição', diz Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea. (Reuters)

"Com isso, cerca de 6 milhões de brasileiros adultos que hoje recolhem um pouquinho de Imposto de Renda deixariam de recolher e passariam a ficar isentos", explica.

Além disso, a proposta prevê uma reajuste das faixas da tabela progressiva do IRPF, o que fará com que aqueles que recebem mais de R$ 2,5 mil de renda tributável também paguem menos imposto, representando mais de R$ 20 bilhões a menos em arrecadação.

"Há uma motivação claramente eleitoral, com consequência econômicas: você está entregando mais de R$ 20 bilhões para a classe média, para ela gastar em ano de eleição", diz Orair.

"É o que chamamos em economia de 'ciclo político-eleitoral': a ideia de que, às vésperas das eleições, se entrega benesses com um duplo efeito de beneficiar sua base eleitoral e também dar um estímulo à economia. Então esse é o carro-chefe da reforma, é a motivação prioritária do governo", avalia o economista.

Compensando a 'conta salgada'

Para compensar a "conta salgada" da perda estimada de mais de R$ 20 bilhões na arrecadação, o governo propôs uma mudança no modelo de desconto simplificado padrão do Imposto de Renda para Pessoas Físicas.

Atualmente, existem dois modelos de declaração do Imposto de Renda: a declaração completa e a simplificada. A completa é mais vantajosa para quem tem dependentes e muitas despesas dedutíveis com saúde e educação, pois esses itens reduzem a base de cálculo do imposto e a alíquota é então aplicada sobre essa base diminuída pelas deduções.

A simplificada é mais vantajosa para quem não tem dependentes, tem poucas despesas dedutíveis e somente uma fonte de renda. Nesse modelo, é aplicado um desconto padrão de 20% sobre a renda do contribuinte e a alíquota de imposto é aplicada sobre os 80% restantes.


Para compensar perda de arrecadação, governo propôs mudança no desconto simplificado padrão do IRPF (Marcelo Camargo / Ag. Brasil)

"Para compensar parte da desoneração da classe média, o governo propôs restringir o desconto simplificado, que deixaria de existir para quem tem renda tributável acima de R$ 40 mil por ano [cerca de R$ 3.300 por mês]", diz Orair.

Segundo ele, isso afetaria cerca de 7 milhões de pessoas. Mas, para parte delas, o reajuste das faixas da tabela do IR compensaria o fim do desconto simplificado.

Quem acabaria pagando mais imposto seriam cerca de 2 milhões de contribuintes, em geral assalariados, com renda acima de R$ 5,7 mil, que não têm deduções a declarar além das contribuições ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) descontadas em folha.

Mesmo com essa compensação, o efeito líquido das mudanças planejadas seria uma perda de arrecadação de R$ 14 bilhões, segundo o cálculo mais recente do relator.

Cobrando mais dos 2% mais ricos

"Até aqui, a reforma quase nada altera para 85% da população brasileira adulta, pois somos um país de renda média e muito desigual, então 85% da população adulta sequer recebe R$ 1,9 mil de rendimentos tributáveis [para ter que declarar Imposto de Renda]. Então é uma reforma que não afeta o grosso da população", destaca o economista do Ipea. "Você reduz imposto para quem está entre os 85% até 97%. Empata entre 97% e 98% e cobra mais imposto dos 2% mais ricos — em particular, do milésimo mais rico."

"Ou seja: na população como um todo, a reforma não afeta os mais pobres. Mas, entre os contribuintes, que são os 15% mais ricos do Brasil, a mudança é progressiva, pesando mais para o topo mais rico", afirma o analista.

Uma forma de aumentar a tributação sobre 2% mais ricos é a taxação dos dividendos (Getty Images)

A forma de aumentar a tributação sobre esses 2% mais ricos seria uma ampliação da taxação sobre a renda do capital na pessoa física, com a volta da tributação dos dividendos, que foram isentos no Brasil desde 1995, sob pretexto de estimular o investimento.

"Na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo apelidado de 'clube dos países ricos'], 34 dos 36 membros praticam a bitributação do lucro na empresa e dos dividendos na pessoa física. Só dois não fazem isso: Estônia e Letônia", cita Orair.

Ele observa que o movimento global por uma maior tributação do topo ganhou espaço no pós-crise de 2008 e se fortaleceu com a pandemia, que explicitou a fratura da sociedade e o fato de que diferentes parcelas da população estão suscetíveis a riscos muito distintos.

"Essa segunda parte da reforma, portanto, tinha problemas de calibração, mas estava muito alinhada com as tendências internacionais", considera Orair.

Mas então veio o substitutivo do relator.

Pressão dos lobbies e 'descontão' para as empresas

No papel, a carga tributária para a empresas no Brasil atualmente é de 34%, que é a soma de 25% de IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e 9% de CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) — mas o percentual total é na prática menor, devido a uma série de isenções.

A proposta de reforma do governo previa reduzir o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica de 25% para 20%, mas ao mesmo tempo acabar com uma série de benefícios fiscais em vigor atualmente. Assim, o resultado seria uma tributação menor, mas sobre uma base tributável mais ampla.

Em resumo: o governo abriria mão de arrecadação ao beneficiar a classe média e as empresas, mas compensaria essas perdas ao tributar dividendos a uma alíquota de 20% e acabar com a dedutibilidade do JCP (Juros sobre Capital Próprio), uma outra forma de remuneração dos acionistas pelas empresas.

Na proposta do governo, a reforma seria fiscalmente neutra, o que significaria que não haveria perda nem ganho de arrecadação, terminaria tudo no zero a zero.

Mas, uma vez enviada ao Congresso, a proposta gerou descontentamento naqueles que seriam afetados por uma maior tributação, como investidores do mercado financeiro.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a dizer então que a intenção do governo era apenas suscitar o debate. "Você dá aquela cutucada, balança a árvore, cai um pouco de coco", disse Guedes, durante evento virtual. Em outra ocasião, empresários se referiram à reforma com um pacote de "maldades" da Receita, recebendo a promessa de Guedes de mudanças.

"Uma vez que a proposta entra no Congresso, o ministro da Economia tira o pé, deixa a reforma órfã e o relator recebe pressão de todos os lados dos lobbies", avalia Orair. (José Cruz / Ag. Brasil)

Nesse cenário, o relator amplia em seu parecer a redução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, que na proposta do governo era de 5 pontos percentuais, de 25% para 20%, para 12,5 pontos percentuais, o que reduziria o Imposto de Renda das empresas a 12,5%.

Após fortes críticas, o relator criou algumas condicionantes para essa redução total de 12,5 pontos, que dependeria de aumentos da arrecadação neste e no próximo ano. Mas Orair avalia que esse ganho de arrecadação é quase certo, então a expectativa é de que a alíquota vá de fato a 12,5% até 2023.

Com isso, a perda de arrecadação de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, que na proposta do governo seria de R$ 40 bilhões, passaria a quase R$ 100 bilhões. O relator sugere então uma série de compensações para tapar esse buraco, mas algumas delas são um tanto questionáveis, como a projeção de que a reforma gere um crescimento adicional do PIB (Produto Interno Bruto), que levaria a um ganho de arrecadação de R$ 10 bilhões, por exemplo.

Uma reforma que aumenta a desigualdade

"Um projeto que antes era neutro do ponto de vista fiscal, agora passa a ser negativo, representando uma redução de carga tributária. Há uma dupla desoneração: para a classe média e para a renda do capital", observa Orair.

O pesquisador destaca que uma série de estudos realizados nos Estados Unidos, analisando a redução de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica durante o governo de Donald Trump, demonstram que a mudança não resultou em aumento significativo do investimento ou da geração de empregos naquele país.

Por outro lado, levou a um aumento da distribuição de dividendos e da recompra de ações pelas empresas, enriquecendo ainda mais os acionistas, o que amplia a desigualdade.

"A proposta apresentada pelo governo tinha problemas de calibragem, mas apontava na direção correta ao tributar dividendos, o que é bastante necessário, porque temos um sistema tributário muito regressivo", considera Débora Freire, da UFMG. Segundo a economista, isso acontece porque 50% da carga tributária brasileira incide sobre o consumo. E a tributação de renda, que deveria ajudar a corrigir essa disparidade, representa uma parcela muito pequena da nossa carga tributária.

Além disso, alguns integrantes do topo de maior renda chegam a ter 90% de seus rendimentos isentos de tributação, em grande medida, devido à isenção de dividendos. Essa isenção também incentiva a "pejotização" dos profissionais de maior renda, que se tornam pessoas jurídicas para fugir da tributação maior que incide sobre os salários da maioria dos trabalhadores.

A proposta do relator, no entanto, desvirtuou o caráter progressivo da reforma apresentada pelo governo, ao estabelecer uma redução muito grande do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, avalia a professora.

"Isso vai fazer com que a tributação sobre a renda do capital continue menor do que a tributação sobre a renda do trabalho", afirma. "O que resulta em que o sistema tributário concentre renda, porque quem detém renda do capital é o topo da pirâmide distributiva."

Uma solução que não entende o problema

Para Bernard Appy, do CCiF e um dos idealizadores da PEC 45, a reforma do Imposto de Renda está sendo feita sem uma compreensão adequada dos problemas do país.

Segundo ele, sob o modelo tributário atual, um empregado formal, um servidor público e um profissional "pejota" têm cargas tributárias muito distintas, de 40,1%, 27,5% e 13,6%, respectivamente. A proposta do relator aumentaria ainda mais essa distorção, ao reduzir a carga tributária para os "pejotas", que hoje já é muito mais baixa que as demais.

"Não se entendeu direito o problema que se está tentando resolver na tributação da renda do trabalho. Qualquer mudança boa deveria fazer convergir o máximo possível a tributação do empregado formal, do servidor público e do profissional liberal que é 'pejota'", afirma.

No caso da renda do capital, ela tem quatro formas: lucro, juro, aluguel e ganho de capital (que é o lucro obtido a partir da venda de um bem).

Segundo Appy, a proposta de reforma do governo aumentava a tributação sobre o lucro de forma descalibrada, mas a tentativa do relator de consertar o problema reduzindo muito o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica resulta em perda de arrecadação de Imposto de Renda, num país que tributa muito consumo e folha de pagamentos, mas pouco a renda.

"Não faz sentido fazer uma mudança da tributação no Brasil para reduzir a tributação da renda e ter de compensá-la parcialmente com um aumento da tributação do consumo", considera Appy.

"As pessoas ficam tentando resolver com puxadinho, em vez de fazer uma mudança estrutural que torne a tributação do Brasil mais homogênea, tanto para a renda do trabalho, como para renda do capital", acrescenta o especialista em tributação. "Se é para perder bilhões de arrecadação na tributação de Imposto de Renda, não faz sentido. Não num país como o Brasil. É preciso entender os problemas para saber como resolvê-los."

Thais Carrança, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 5 agosto 2021.

O Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados

O Brasil enfrenta uma crise sanitária, social e econômica de grandes proporções. Milhares de brasileiros perderam suas vidas para a pandemia e milhões perderam seus empregos.
 
Apesar do momento difícil, acreditamos no Brasil. Nossos mais de 200 milhões de habitantes têm sonhos, aspirações e capacidades para transformar nossa sociedade e construir um futuro mais próspero e justo.
 
Esse futuro só será possível com base na estabilidade democrática. O princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos. A Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Confiamos nela e no atual sistema de votação eletrônico. A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias.
 
O Brasil terá eleições e seus resultados serão respeitados.

Manifesto lançado em São Paulo, subscrito por milhões de brasileiros de todo o País.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

O veneno da reeleição e a agenda 2022 de combate à corrupção

É essencial que o futuro presidente dê prioridade a uma vigorosa política pública anticorrupção

 Há quase um ano, o cientista político, professor e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso reconheceu publicamente a nocividade da reeleição no Executivo para o País, 20 anos depois de sua aprovação, ainda que se tenha beneficiado dela quando esteve no poder.

Penso nunca ter ficado tão escancarado quão desastrosa a reeleição é para o Brasil como hoje, pela absoluta negação do princípio constitucional da supremacia do interesse público. Ela é desafiada todos os minutos, entre nós, por uma cultura clientelista de compadrio político, alimentada diariamente pela moeda bruta dos cargos de confiança.

O presidente deixa claro que exerce o poder visando exclusivamente a nele se manter, mesmo sem eleições, como ele mesmo e seus ministros já fizeram questão de destacar. Demonstra apego ao cargo, declarando sem constrangimento que apenas Deus pode retirá-lo da cadeira presidencial, como se não existisse a hipótese de que o povo faça outra escolha em 2022.

Quem teria a coragem republicana de lutar pelo fim da reeleição? E de sustentar a limitação máxima de dois mandatos consecutivos no Legislativo no mesmo cargo para evitar o pernicioso e indesejável enraizamento no poder, negador da essência republicana?

É momento fundamental para o STF fazer valer o Pacto de San José, do qual o Brasil é signatário – regra incorporada à Constituição –, admitindo as candidaturas independentes, para ampliar o leque de opções da sociedade, obrigando partidos a sair da zona de conforto buscando compliance, transparência e democracia. Ou seja, efetiva integridade partidária.

Mais fácil fingir ser democrata, defendendo o suposto direito de quem teve bom desempenho de permanecer no poder, “esquecendo-se” de que no Brasil se pratica sem punição, de maneira naturalizada, o caixa 2 eleitoral. Ele é alavanca poderosa para a compra de votos, ainda mais turbinado pelo maior fundo eleitoral do mundo, aumentado pelo Congresso em 185%, para R$ 5,7 bilhões, além do Fundo Partidário – outro bilhão anual, como se essas fossem nossas mais relevantes prioridades sociais.

É mais confortável esquecer que há parlamentares há seis, oito ou dez mandatos seguidos no mesmo cargo, como se não existisse alternância no poder. Que aqueles que assediam sexualmente suas colegas no próprio Parlamento e outros apanhados com mais de R$ 30 mil nas nádegas e cuecas não são cassados. Até mesmo quem mata o marido é dificílimo ter o mandato cassado.

Prefere-se, em vez de corrigir distorções, aprovar Lei de Abuso de Autoridade para enquadrar apenas juízes e promotores, desbotar a Lei da Ficha Limpa, permitindo candidaturas de quem não prestou contas como deveria, fortalecendo o caixa 2 eleitoral e a compra de votos. A matéria foi aprovada na Câmara e está no Senado, assim como a nova Lei de Improbidade, que a esmaga, permitindo nepotismo, consagrando prescrição retroativa e dando seis meses para o Ministério Público investigar qualquer caso, mesmo com dezenas de suspeitos e provas complexas a produzir.

Nesse cenário, as atitudes do presidente continuam desafiando o combate à corrupção e causando preocupações cada vez maiores sobre a prioridade que o tema terá na campanha do próximo ano. A imposição do sigilo de cem anos sobre informações relacionadas aos acessos dos filhos dos presidentes ao Palácio do Planalto é só o mais recente episódio. Sabemos que sem transparência é impossível lutar contra a corrupção.

A aposta all in contra a urna eletrônica insufla o povo, como se assistiu neste domingo, mesmo sendo o sistema utilizado em quase 50 países do mundo e avalizado por organismos internacionais e por todos os ex-procuradores-gerais eleitorais responsáveis pela fiscalização das eleições das últimas décadas. Vem com ameaça caso não se use o sistema auditável que o presidente quer, mais dois motivos de grande preocupação. A questão essencial não é a defesa da fiscalização dos votos, isso é disfarce para criar álibi a ser usado em caso de derrota neste duelo político. A aprovação hipotética quebraria sigilo de votos e eternizaria discussões judiciais sobre as eleições.

Vejo o combate à corrupção como meio de prevenir a erosão do sistema democrático no País, como se debateu exaustivamente ao longo da última semana no 6.º Seminário Caminhos Contra a Corrupção, realizado pelo Instituto Não Aceito Corrupção, cuja carta de conclusões será encaminhada aos presidenciáveis, como contribuição para a formatação da política pública anticorrupção de cada um, com os pontos que consideramos mais importantes para o combate à corrupção no País, debatidos no seminário.

A questão não é ser “lavajatista” ou não, gostar ou não de tal promotor ou tal juiz: é dar prioridade à agenda anticorrupção como política pública vital e transversal. Preocupação com prevenção, punição, transparência e dados abertos. Isso precisa ser explicitado, pois é essencial que o futuro presidente tenha política vigorosa de enfrentamento da corrupção e compromisso prioritário com essa agenda.

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça em São Paulo. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado originalente n'O Estado de São Paulo, em 04 de agosto de 2021.

Nêumanne: Bolsonaro a real fraude nas urnas eletrônicas


Presidente insiste na ideia da eleição fraudada porque sabe que ele próprio a encarna

Só um débil mental ou um idiota total se submeteria ao vexame que o presidente da República protagonizou em sua live de 29 de julho sem ter certeza absoluta do que tinha a dizer. Mas ele não cumpriu a garantia de relatar provas de fraude nas urnas eletrônicas. E tentou disfarçar duas mentiras dizendo: “Não tem como comprovar que as eleições foram ou não fraudadas. Um crime se revela com vários indícios”. Nenhum sistema penal do mundo civilizado condena um réu sem culpa comprovada. A milenar presunção de inocência é expressa em latim in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu). Mesmo considerando sua crassa ignorância, nada o autoriza a substituir prova por indício, que não são sinônimos em língua alguma.

A falácia patética, se não fosse patológica, foi cometida em flagrante delito de uso do espaço público (o palácio) e divulgada por rede oficial de televisão e rádio, cujo funcionamento revela estelionato do chefe do Executivo na conquista do eleitorado. A ex-TV Lula, tornada TV Jair, foi jurada de extinção pelo candidato à Presidência no último pleito como uma das consequências de seu lema mais eficaz: “Mais Brasil e menos Brasília”. A mera transmissão comprova a falsa promessa eleitoral. Mas ninguém pode dizer que o chefe do desgoverno tenha economizado. Muitos outros crimes cometeu na stand up comedy por ele encenada, agora com o evidente objetivo de enganar mais eleitores na disputa de 2022.

Também não se pode dizer que tenha dispensado cúmplices. Desta vez um estreante entre os habituais coadjuvantes do show mambembe, chamado por ele de “analista Eduardo”, coronel de Artilharia (portanto, seu coleguinha na “modalidade de matar”, como define a arma) da reserva Eduardo Gomes da Silva, disse que “as urnas têm problemas e precisam de melhorias”. Fê-lo baseado na experiência que teve de espionar a fidelidade de parlamentares governistas em votações e redes sociais para informar ao seu chefe, o general Luiz Eduardo Ramos, se mereciam que fossem liberadas as emendas orçamentárias que eles exigiam.

“Sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleição. (…) Nós exigimos juntos, pois vocês são de fato o meu exército”, proclamou o próprio Jair Bolsonaro no vídeo para a chamada das manifestações convocadas para domingo 1.º de agosto, em apoio ao voto impresso. Por isso, no 6.º Seminário Caminhos Contra a Corrupção, do Instituto Não Aceito Corrupção, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior lhe atribuiu “a prática de homicídios comissivos em série”, ou seja por ação direta, não por omissão. O presidente da República, aliás, cometeu também o mais grave dos crimes de não fazer o que deveria. De acordo com o filósofo e sociólogo José Augusto Guilhon de Albuquerque, em entrevista publicada no Blog do Nêumanne no portal do Estadão, mesmo tendo sido eleito para isso, não governa. Dever também não cumprido pelos aliados do Centrão, que, segundo o entrevistado, só saqueiam o erário.

A narrativa mentirosa com a falsa reivindicação do voto impresso (de interesse exclusivo de milícias) é pretexto para autogolpe similar ao ensaiado por Donald Trump nos Estados Unidos para impedir a posse do vitorioso na eleição presidencial. E faz parte de um projeto mais amplo de extermínio de instituições democráticas e conquistas da civilização, objetivos do neonazismo e do neofascismo, expostos em sua pose gaiata ao lado de Beatrix Storch, neta de um ex-ministro de Adolf Hitler no 3.º Reich.

Segundo o Instituto Socioambiental, em dois anos e meio de seu desgoverno a devastação da Amazônia Legal aumentou 48,31%, com unidades de conservação e terras indígenas afetadas. Ele resistiu a demitir o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, flagrado em participação em furto de madeira nobre do bioma. A demolição da instrução pública, iniciada pelo bancário Abraham Weintraub e completada pelo pastor Milton Ribeiro, tem o mesmo objetivo de volta à barbárie. Assim como a negativa de impedir o incêndio do depósito da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, se tivesse entregado a gestão da instituição cultural ao Estado de São Paulo. O pior de sua obra de exterminador da vida e do bem é a sabotagem criminosa às medidas restritivas do contágio da pandemia (isolamento e uso de máscara), à imunização salvadora, e a prescrição de charlatão de remédios ineficazes para reduzir a mortandade.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos, tem razão ao escrever no Twitter: “Já passou da hora do STF, Câmara e Senado colocarem um limite a postura golpista e conspiratória do Presidente da República. Se não fizeram isso agora, quando decidirem fazer, será tarde demais. Todos que se acham protegidos hoje podem ser as próximas vítimas”.

De fato, a hora é já. E, por enquanto, só a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, no Senado, e o Tribunal de Contas da União parecem ter atentado para a gravidade desta hora. Bolsonaro tem razão: a democracia e a civilização são ameaçadas pela real fraude eleitoral, que ele encarna, ao trair os cidadãos que o sufragaram pelo fim da corrupção.

José Nêumanne, o autor deste artigo, é Jornalista, poeta e escritor. Piublicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 04 de agosto de 2021.

Da palavra à ação

O Tribunal Superior Eleitoral finalmente reagiu ao liberticida Jair Bolsonaro e de ofício, sem esperar pela iniciativa do Ministério Público Eleitoral.

Primeiro, aprovou por unanimidade a abertura de inquérito administrativo contra o presidente, que reiteradamente tem atacado a legitimidade das eleições do ano que vem e a lisura da Justiça Eleitoral, sem apresentar provas de suas acusações. Se constatado que Bolsonaro praticou “abuso de poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea”, como está citado na resolução do TSE, o presidente pode ser impedido de concorrer à reeleição.

Na mesma sessão, o TSE, também por unanimidade, decidiu encaminhar ao Supremo Tribunal Federal (STF) notícia-crime contra Bolsonaro para apurar “possível conduta criminosa” do presidente no âmbito das investigações sobre a disseminação de notícias fraudulentas para prejudicar o STF. À petição, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, anexou o pronunciamento que Bolsonaro fez na quinta-feira passada, no qual reiterou mentiras sobre o sistema de votação e colocou em dúvida a honestidade da Justiça Eleitoral.

Nos dois casos, o TSE agiu de ofício, ou seja, não esperou que a iniciativa partisse do Ministério Público Eleitoral. Afinal, o procurador-geral eleitoral e da República, Augusto Aras, já mostrou que não está interessado em fazer o presidente responder por suas agressões à democracia, embora a função constitucional da Procuradoria-Geral da República seja justamente a de defender a ordem jurídica e o regime democrático.

Há um longo caminho até uma eventual punição concreta de Bolsonaro, mas o que importa, neste momento, é que afinal se passou da palavra à ação: depois de inúmeras notas de protesto, mensagens indignadas e declarações escandalizadas de ministros das Cortes superiores, o Judiciário afinal cumpriu seu papel institucional intrínseco, ao chamar o presidente à sua responsabilidade.

Mas as palavras, necessárias, também não faltaram. No momento em que se anunciavam os inquéritos contra Bolsonaro, o ministro Barroso, na condição de presidente do TSE, deixou claro que a ameaça à realização de eleições, como as que o presidente da República tem feito, “é uma conduta antidemocrática”. E acrescentou: “Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática”. Além dos votos de todos os colegas de TSE, o ministro Barroso estava respaldado por uma nota conjunta de todos os seus antecessores desde 1988, na qual reiteraram que “jamais se documentou qualquer episódio de fraude nas eleições” desde a adoção da votação eletrônica.

Um pouco antes, na reabertura dos trabalhos do Supremo, o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, destacou que “harmonia e independência entre os Poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições” e que ataques aos ministros das Cortes superiores, como os que Bolsonaro faz, “corroem sorrateiramente os valores democráticos”.

Mesmo diante dessa robusta manifestação institucional contra seus atentados à democracia, o presidente não recuou. Ao contrário: reafirmou suas ofensas ao ministro Barroso e suas ameaças às eleições. Disse que o ministro Barroso – a quem Bolsonaro já chamou de “idiota” e “imbecil” – “presta um desserviço à nação brasileira”. Acrescentou que está pessoalmente numa “briga” com o magistrado porque este estaria “querendo impor sua vontade”. E declarou: “Jurei dar minha vida pela pátria, não aceitarei intimidações”.

Bolsonaro segue assim a cartilha tradicional dos candidatos a ditador: escolhe um inimigo, a quem atribui todo o mal, e se apresenta como vítima de perseguição de forças ocultas. Reivindica ter seu próprio “exército” – se não as Forças Armadas, que seja o punhado de camisas pardas que o adulam – e ameaça desestabilizar o País se não lhe fizerem suas vontades e as de sua família. Tem tudo para ser apenas bravata, mas, pelo sim, pelo não, Bolsonaro deve saber que esta República, ao contrário do que ele gostaria, não é uma terra sem lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de agosto de 2021 

Ministro do STF inclui Bolsonaro no inquérito das ‘fake news’, em terceira investigação contra o presidente

Alexandre de Moraes aceita notícia-crime enviada pelo TSE após presidente apresentar informações mentirosas sobre o voto eletrônico e atacar Barroso. Bolsonaro reage com nova alegação contra o tribunal

O presidente Jair Bolsonaro retira máscara durante cerimônia de posse de Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil, nesta quarta. (ADRIANO MACHADO / REUTERS)

Presidente do STF em resposta a Bolsonaro: “Estamos atentos a ataques que corroem valores democráticos”

Bolsonaro não tem provas sobre fraude de urnas, mas insiste em ilação já desmentida por TSE

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), incluiu o presidente Jair Bolsonaro na lista de investigados no inquérito das fake news por alegações sem fundamento contra o sistema de voto eletrônico no Brasil e ameaças à realização das eleições de 2022. Moraes, que é relator da investigação, aceitou a notícia-crime apresentada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, e aprovada por unanimidade pela corte eleitoral na sessão da última segunda-feira. Essa se torna, assim, a terceira investigação no âmbito do STF contra o presidente, consolidando o conflito entre o Executivo e o Judiciário no país.

Bolsonaro já é alvo de um inquérito que apura a suspeita de interferência política no comando da Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro, em abril do ano passado. Além disso, o mandatário é investigado por determinação da corte sob suspeita de prevaricação —um crime contra a administração pública, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal— nas negociações sobre a compra da vacina indiana Covaxin. Segundo relatado na CPI da Pandemia pelo deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, servidor do Ministério da Saúde, Bolsonaro foi informado de pressão atípica para aprovar a compra do imunizante contra a covid-19, e o inquérito apura se o mandatário tomou providências para investigar o caso —após o depoimento dos irmãos Miranda à CPI, o contrato com a fabricante da vacina foi cancelado.

A notícia-crime aceita nesta quarta-feira é uma das duas frentes de apuração abertas pelo TSE após a realização de uma live nas redes sociais em que o presidente repetiu suspeitas baseadas em vídeos da internet, já desmentidas por diversos órgãos, para apontar a existência de fraude na apuração dos votos nas eleições de 2014, vencidas pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) contra o atual deputado Aécio Neves (PSDB). No pronunciamento, Bolsonaro fez ataques ao ministro Barroso e afirmou, admitindo não ter provas do que relatava, que o presidente do tribunal eleitoral “interfere” para que não haja transparência nas eleições. “Por que o Presidente do TSE quer manter a suspeição sobre as eleições? Quem ele é? Por que ele continua interferindo por aí? Com que poder? Não quero acusá-lo de nada, mas algo de muito esquisito acontece”, declarou Bolsonaro durante a transmissão no último dia 29.

O inquérito das fake news foi aberto em 2019 por determinação do então presidente do STF Dias Toffoli, para apurar a disseminação de notícias falsas, denunciações caluniosas e ameaças contra os ministros da corte. Para Moraes, a live “se revelou como mais uma das ocasiões em que o mandatário se posicionou de forma, em tese, criminosa e atentatória às instituições”, em especial o STF e o TSE, “imputando aos seus ministros a intenção de fraudar as eleições para favorecer eventual candidato” e “sustentando, sem quaisquer indícios, que o voto eletrônico é fraudado e não auditável”.

“Nesse contexto, não há dúvidas de que as condutas do presidente da República insinuaram a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, utilizando-se do modus operandi de esquemas de divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do poder judiciário, o Estado de direito e a democracia”, declarou Moraes em sua decisão.

Ao acolher a notícia-crime apresentada por Barroso, o relator determinou a convocação como testemunha do ministro da Justiça, Anderson Torres, e de outras quatro pessoas que participaram da transmissão. Entre elas está Eduardo Gomes da Silva, coronel reformado de Artilharia do Exército que foi apresentado por Bolsonaro como “analista de inteligência” que alertou sobre os indícios, já descartados, de fraude. Moraes também pede a transcrição oficial, pela Polícia Federal, do vídeo da live.

Em outra frente de investigação, também aprovada por unanimidade na segunda-feira, o TSE decidiu abrir um inquérito administrativo contra o presidente para investigar suspeita de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, abuso do poder político ou uso indevido dos meios de comunicação social, uso da máquina administrativa e propaganda eleitoral antecipada.

A ofensiva do judiciário ocorre na semana em que uma comissão especial da Câmara deve votar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019. O texto estabelece a implantação de um tipo de urna eletrônica que permita a impressão do registro do voto —ou seja, uma cédula em papel que seria depositada em uma urna para eventual conferência pelo eleitor. Especialistas e o próprio TSE afirmam que a medida pode tornar a votação vulnerável a compra de votos e fraude na contagem. Além disso, a ideia parte de uma premissa errônea de que o voto eletrônico não seria “auditável” —na verdade, o sistema passa por diversos estágios de checagem, e após cada votação é impresso um boletim de urna, que ajuda na comprovação da credibilidade e da transparência do aparelho.

A discussão da versão do relator, o deputado governista Filipe Barros (PSL-PR), deve ocorrer nesta quinta-feira, 5. A autora da proposta é a deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). No domingo, defensores do voto impresso saíram às ruas e receberam endosso de Bolsonaro, que voltou a ameaçar a realização das eleições caso a proposta não seja aprovada. “Sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleição”, disse. “Nós mais que exigimos, podem ter certeza, juntos porque vocês são de fato meu Exército —o nosso Exército— que a vontade popular seja expressada na contagem pública dos votos”, afirmou em videochamada aos manifestantes, segundo reportado pela Folha de S.Paulo.

Nesta quarta-feira, Bolsonaro dobrou a aposta durante entrevista ao lado do deputado Filipe Barros. Segundo eles, o TSE teria omitido da Polícia Federal informações sobre a invasão de um hacker no sistema do tribunal, invasão que demonstraria a alegada vulnerabilidade do sistema. Os dados sobre a invasão, que teria durado seis meses, foram apagados, alegaram os dois. “Está comprovável pelo próprio TSE que ela [a urna] é penetrável”, disse Bolsonaro, que também criticou Alexandre do Moraes por abrir o inquérito das fake news. “Ele abre o inquérito, não é adequado abrir isso: ele investiga, ele pune e ele prende”, disse durante entrevista ao programa Pingos nos Is, da rádio Jovem Pan.

DANIELA MERCIER, de São Paulo  para O EL PAÍS, em 04 AGO 2021 

Brasil supera a marca de 20 milhões de casos de covid-19

Autoridades registram ainda 1.175 novas mortes pelo coronavírus. Com 2,7% da população mundial, país tem 10% dos casos e 13,1% dos óbitos pela doença no globo.

Estudos estimam que de 10% a 38% dos infectados sofrem efeitos meses após o vírus ter deixado o organismo

O Brasil registrou oficialmente nesta quarta-feira (04/08) 1.175 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), o que eleva o número de óbitos pelo coronavírus a 559.607.

Também foram confirmados 40.716 novos casos da doença. Com isso, o número de infecções reportadas no país supera a marca dos 20 milhões, totalizando 20.026.533.

Nesta quarta, o mundo também superou uma marca, a dos 200 milhões de casos confirmados de covid-19 desde o início da pandemia, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. Em todo o globo, são 200.031.896 casos e 4.252.958 mortes oficialmente associadas à doença.

Com 2,7% da população mundial, o Brasil registra até o momento 10% dos casos e 13,1% das mortes pela covid-19 no mundo.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 614 mil óbitos, mas têm uma população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (35,2 milhões) e Índia (31,7 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 266,3 no Brasil, a 5ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

O Conass não divulga o número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 18.749.865 pacientes no Brasil haviam se recuperado da doença até esta terça.

No entanto, o governo não especifica quantos desses recuperados ficaram com sequelas ou outros efeitos de longo prazo. A forma como o governo propagandeia o número de "recuperados" já foi criticada por cientistas, que classificaram o número como enganador ao sugerir que os infectados estão completamente curados da doença após a fase aguda ou alta hospitalar.

Estudos no exterior estimaram que entre 10% e 38% dos infectados sofrem efeitos da "covid longa" meses após o vírus ter deixado o organismo. Um estudo alemão apontou que sequelas podem surgir até mesmo meses depois da fase aguda da doença. Já uma pesquisa da University College London em pacientes de 56 países listou mais de 200 sintomas observados em pacientes com sequelas pós-covid.

Deutsche Welle Brasil, em 04.08.2021

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Filho de Bruno Covas diz que Bolsonaro ‘nunca entenderá’ o que é o amor

Presidente se referiu ao ex-prefeito como 'o outro, que morreu’, para atacar ações de gestores durante a pandemia

Tomás Covas, de 15 anos, filho do ex-prefeito Bruno Covas. Foto: Alex Silva / Estadão

O filho do ex-prefeito Bruno Covas (PSDB), Tomás Covas, reagiu nesta terça-feira, 3, à declaração de Jair Bolsonaro contra medidas de restrição à pandemia de covid-19 em São Paulo, na qual o presidente fez referência ao seu pai, falecido em maio. “Não é certo atacar quem não está mais aqui para se defender”, escreveu Tomás, em nota divulgada pelo governador João Doria (PSDB), no Twitter.

“Meu pai sempre foi um homem sério. Fez questão de me levar ao Maracanã no fim da sua vida para curtirmos seus últimos momentos juntos. Isso é amor! Bolsonaro nunca entenderá esse sentimento”, afirmou Tomás. 

Doria classifica como ‘desumanidade’ fala de Bolsonaro sobre Bruno Covas

Bolsonaro se referiu ao ex-prefeito de São Paulo como “o outro, que morreu”, ao conversar com apoiadores no Palácio da Alvorada na manhã de segunda-feira, 2. “Um fecha São Paulo e vai para Miami. O outro, que morreu, fecha São Paulo e vai ver Palmeiras e Santos no Maracanã”, disse o presidente, em ataque a Doria e a Covas.

O governador de São Paulo e o PSDB também reagiram à declaração. Doria definiu a fala como “desumanidade” de Bolsonaro, e o partido parafraseou Bruno Covas em imagem publicada no Twitter: “É possível fazer política sem ódio, fazer política falando a verdade”. 

Torcedor do Santos, Bruno Covas assistiu, em janeiro, à final da Copa Libertadores disputada entre Palmeiras e Santos no Maracanã ao lado do filho.

Ele morreu no dia 16 de maio, por complicações de um câncer. O prefeito lutou contra a doença por um ano e meio, inclusive durante a campanha eleitoral de 2020, quando foi eleito para mais um mandato no Executivo municipal da capital paulista. 

Levy Teles, O Estado de S.Paulo, em 03 de agosto de 2021 | 17h53, Atualizado 03 de agosto de 2021 | 20h09

A ‘cupinização’ da democracia

Sob Bolsonaro, políticas públicas são concebidas como se vivêssemos sob estado de exceção

O presidente Jair Bolsonaro mobilizou sua militância aloprada para protestar contra as urnas eletrônicas, responsáveis, segundo os bolsonaristas, por grossas fraudes nas eleições de 2014 e 2018. Embora Bolsonaro não tenha provado nenhuma das irregularidades que alardeia há três anos, seus camisas pardas se animaram a ir às ruas para denunciar o atual sistema de votação.

Não eram muitos os manifestantes, é verdade, mas, para Bolsonaro, isso não tem a menor importância: em seu discurso, meia dúzia de gatos pingados se torna uma “multidão”. E a essa “multidão” o presidente reiterou suas ameaças de golpe. Depois de dizer que “sem eleições limpas e democráticas não haverá eleições”, Bolsonaro conclamou seus seguidores, a quem ele chamou de “meu exército”, para “fazer com que a vontade popular seja expressada na contagem pública dos votos”.

Que não haja dúvidas: embora a afluência às manifestações tenha sido baixa, é certo que há bolsonaristas celerados o bastante para atender ao chamamento irresponsável do presidente e causar tumultos na época da eleição – em especial se o resultado for desfavorável a Bolsonaro.

Ainda que cause justificada apreensão no País, esse investimento presidencial na confusão e nas ameaças se presta menos a prenunciar uma efetiva tentativa de golpe e mais a tirar a atenção de uma forma bem mais sutil de deterioração da democracia que está sendo levada adiante por Bolsonaro.

Conforme reportagem publicada pelo Estado no domingo, em menos de três anos de mandato o presidente Bolsonaro e seus assessores já editaram 88 decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou resoluções, além de patrocinarem projetos que visam a corroer o Estado ou a atentar contra liberdades civis e direitos constitucionais.

A estratégia não é nova. Regimes autoritários da primeira metade do século passado criaram detalhada legislação para conferir verniz de legitimidade ao arbítrio. A diferença é que nos países em que isso ocorreu a democracia já havia sido esmagada. Hoje, as instituições democráticas continuam existindo, mas estão sendo emasculadas por uma legislação criada para dar ao governante a capacidade de moldá-las a seus propósitos.

No Brasil de Bolsonaro, o exemplo é a Venezuela ou a Polônia, países em que candidatos a ditadores foram arruinando aos poucos o sistema de freios e contrapesos. Não por acaso, ambos começaram pela Suprema Corte, que existe para zelar pelo respeito à Constituição.

Como mostra a reportagem, Bolsonaro prometeu desde a campanha ampliar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, para “pôr juízes isentos lá dentro”. Com Bolsonaro eleito, o governo tentou contrabandear na reforma da Previdência um artigo que permitiria modificar a idade-limite para a aposentadoria de ministros do Supremo por meio de lei complementar. Se vingasse, o dispositivo daria a Bolsonaro o poder de renovar o Supremo como bem entendesse.

O bolsonarismo ataca de maneira semelhante nas áreas de educação, cultura, ambiente, segurança pública e saúde. Em vários casos, o padrão é o mesmo: redução da participação da sociedade civil, afrouxamento da legislação para permitir o arbítrio e distorção de princípios constitucionais.

Na feliz definição de Celso Lafer, professor emérito da USP e ex-chanceler, trata-se de um processo de “cupinização” das regras do direito e das instituições democráticas. É essa degradação que transforma exceção em regra, dando ao governante autoritário o poder de definir essa exceção. “No fundo, o que Bolsonaro quer é ter o poder soberano de declarar a exceção”, disse Lafer.

Nesse processo, como afirma Luís Manuel Fonseca Pires, professor de direito na PUC-SP, as políticas públicas são concebidas como se vivêssemos sob estado permanente de exceção. Com tal característica, essas políticas perdem seu caráter público e se destinam a punir inimigos – e, por extensão, a favorecer amigos do regime.

Assim, enquanto entretém o País com seu discurso golpista, Bolsonaro avança sobre os pilares da mediação de vontades típicas de uma democracia – o direito e a política – para impor suas veleidades na marra.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de agosto de 2021 | 03h00

Desprezo pelas instituições

Ao criticar o IBGE, ministro da Economia perde credibilidade e se desmoraliza

Irritado porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou na última sexta-feira que a taxa de desemprego no segundo trimestre deste ano foi de 14,6%, o que, a seu ver, prejudica não apenas a imagem do governo num ano pré-eleitoral, mas, também, a de sua própria gestão à frente do Ministério da Economia, o ministro Paulo Guedes voltou a entrar em rota de colisão com esse órgão. Agora, ele o acusou de “estar na idade da pedra lascada”. 

Esse tipo de desqualificação e a motivação que o levou a recorrer a ela dão a dimensão de como o ministro não tem o menor apreço pelas instituições. Criado em 1938, o IBGE foi originariamente concebido como um órgão encarregado de coordenar a produção estatística do País, integrando dados estatísticos e informações coletadas pelas prefeituras, pelos Estados e pela União. Com o tempo, ele mesmo passou a promover pesquisas, das quais a mais importante é o Censo Demográfico. Por seu alcance, capilaridade e capacidade de captar informações em todas as regiões de um país com dimensões continentais, ele faz levantamentos e pesquisas que a iniciativa privada não tem condições técnicas e logísticas de promover e que são decisivas para o planejamento de seus projetos de expansão e criação de novos negócios. 

Desde que assumiu o Ministério da Economia, Guedes não esconde sua antipatia por essa instituição. Alegou que ela custa caro, criticou seu corpo técnico, defendeu a contratação de trabalhadores temporários e negou recursos orçamentários para a realização do Censo Demográfico de 2020. O que o levou a entrar em novo confronto com o IBGE, na semana passada, foi uma divergência sobre números do emprego entre a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, feita pelo órgão, e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que trabalha com dados oficiais das empresas. Segundo Guedes, embora o governo venha “gerando praticamente 1 milhão de empregos a cada três meses e meio”, a Pnad Contínua estaria atrasada na coleta desses números, entre outros motivos, por usar entrevistas por telefone para calcular a taxa de desemprego. 

O que o ministro despreza por conveniência política é que as bases de dados dessas duas pesquisas são distintas, motivo pelo qual seus números não podem ser comparados. Seguindo padrões internacionais, a Pnad Contínua capta modalidades de trabalho – como o informal, por exemplo – que não aparecem nos números do Caged. O que Guedes também oculta é que as pesquisas do IBGE sobre emprego sempre foram presenciais. Elas só passaram a ser realizadas por telefone por causa da pandemia e agora, com o avanço da vacinação, as entrevistas presenciais estão sendo gradativamente retomadas. 

Como era inevitável, as críticas de Guedes foram mal recebidas pela comunidade científica. Presidente do IBGE entre 2017 e 2019, o engenheiro Roberto Olinto afirmou que o ministro da Economia foi duplamente “leviano”. De um lado, por revelar um total desconhecimento técnico sobre pesquisas sobre desemprego. E, de outro, por ter criticado o sistema de entrevista telefônica do IBGE apenas com o objetivo de desviar a discussão da questão essencial, “que é o elevado desemprego detectado pela Pnad Contínua”. Não menos contundentes foram as críticas do sociólogo Simon Schwartzman, que presidiu o IBGE entre 1994 e 1998. “Se Guedes acha que o órgão está na idade da pedra lascada, o que está fazendo para melhorar? Ele é o responsável pelo IBGE e fala como se não fosse. Além de dizer bobagem, se o IBGE tem dificuldades é porque o ministro não sabe cuidar dele.” 

Ao seguir assim a triste sina do governo do qual faz parte, e que prima por tentar reiteradamente desqualificar ou afrontar as instituições, Paulo Guedes acabou cometendo um grave equívoco político. Ele se esqueceu de que, quanto mais tenta desacreditar órgãos públicos que se negam a manipular estatísticas e informações que permitam maquiar a imagem de um governo inepto e desastroso, mais ele perde credibilidade e se desmoraliza. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de agosto de 2021 | 03h00

Falta um pacote de governo

Ações de improviso, concebidas para um objetivo pessoal, a busca da reeleição em 2022, adiam a proposta de um rumo para o País

Enquanto repete a ameaça golpista às eleições, o presidente Jair Bolsonaro, por via das dúvidas, tenta montar um pacote eleitoral de bondades. Em busca de votos, o governo estuda um aumento do Bolsa Família, isenção mais alta para o Imposto de Renda (IR), redução da alíquota para empresas e outras medidas de alcance variado. São, na maior parte, ações de improviso, concebidas para um objetivo pessoal, a busca da reeleição em 2022. Não servem sequer como esboço de um cenário prospectivo nem chegam a compor um compromisso de longo alcance. Completados mais de dois anos e meio de mandato, Bolsonaro e seus auxiliares, incluído o ministro da Economia, Paulo Guedes, continuam devendo o pacote mais importante, o de governo, com a proposta de um rumo para o País.

Nem sequer o pacotinho eleitoreiro é bem fechado. As bondades, se concretizadas, envolverão novos gastos e redução de receitas. Falta explicar, entre outros pontos, como as mudanças serão acomodadas nas contas públicas. Não se trata apenas de saber como certos limites serão respeitados. A inflação muito alta abrirá espaço no Orçamento do próximo ano. Alguma solução será encontrada para o problema do teto de gastos, talvez com a abertura de alguma exceção. As questões mais importantes são outras. Falta explicar de onde sairá dinheiro para cobrir as novas despesas e, se for o caso, para compensar a perda de receitas.

No caso de gastos permanentes, como o Bolsa Família, é preciso pensar em fontes permanentes de arrecadação. Também é recomendável identificar compensações permanentes para renúncias fiscais duradouras. Não tem sentido contar com receitas de privatização e, além disso, vender estatais, assim como criar estatais deve ser parte de um plano. Vender por vender, só para simplificar a gestão? Decisões tão importantes deveriam sempre estar vinculadas a um plano de governo – mais precisamente, a um plano de modernização e de crescimento, algo jamais apresentado pelo atual presidente ou pela equipe econômica.

Contar simplesmente com o crescimento da arrecadação, como se fosse algo assegurado, é sinal de irresponsabilidade. Se crescer 5,5% neste ano, a economia ficará pouco acima do nível de 2019, um ano muito ruim. Além disso, nada aponta aceleração nos próximos anos. No mercado, a mediana das projeções indica expansão de 2,10% em 2022 e de 2,50% nos anos seguintes. É impossível prever números melhores quando faltam investimentos em máquinas, equipamentos, infraestrutura, obras particulares, formação de capital humano e tecnologia. Que formação de capital humano pode haver sob um governo inimigo da educação, da cultura e da ciência? (Ver abaixo o editorial Desprezo pelas instituições.)

Mas o pacotinho inclui um arremedo de programa de emprego e de qualificação para jovens, com pagamento parcial de custos pelo governo. Na prática, é mais uma tentativa de apenas baratear a mão de obra, como se isso pudesse substituir uma política séria de crescimento e de criação de empregos.

Não se pode acreditar num jogo desse tipo, especialmente quando o governo tenta arrebatar dinheiro do Sistema S – respeitado pela formação de mão de obra de alta qualidade – para finalidades nada claras. Líderes empresariais têm resistido a essa investida, já condenada por um conhecido especialista em política de mão de obra, o professor José Pastore, da Universidade de São Paulo. “O governo quer o dinheiro, não a expertise” do Sistema, escreveu ele em artigo recente no Estado.

Parte do pacotinho contém a promessa de regularização tributária. Ao elevar para a pessoa física a faixa de isenção do IR, o governo apenas atenua um velho problema, a falta de correção com base na evolução dos preços. Com a constante desatualização das faixas, o contribuinte tem sido, há muito tempo, supertributado.

Enquanto estuda essas bondades, o governo prepara o projeto de Orçamento de 2022, sob controle mais aberto do Centrão, instalado oficialmente no Palácio do Planalto. Pelo menos o Centrão tem um plano claro e bem conhecido: ganhar com qualquer governo, enquanto o governo durar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de agosto de 2021 | 03h00

Horizonte de investigação do TSE é amplo e pode inviabilizar reeleição de Bolsonaro

Caso o corregedor produza provas de crimes ou abusos na esfera eleitoral, caberá ao MP Eleitoral iniciar processo, agora ou no período eleitoral de 2022. Michael Mohallem, Professor de Direito e Advogado especialista em Direito Público analisa a decisão do TSE.

A investigação aberta pela Justiça Eleitoral contra Bolsonaro é uma novidade importante. O inquérito administrativo no TSE abre novo flanco de enfrentamento jurídico em instituição que pode inviabilizar sua tentativa de reeleição.

Se a via da PGR para investigar crimes comuns parece estar obstruída pela fidelidade do Procurador-Geral e a via da Câmara dos Deputados para apurar crimes de responsabilidade sempre mais improvável com a adesão completa do PP ao governo Bolsonaro, o caminho da Justiça Eleitoral pode se tornar oportuno para assuntos de sua competência.

O inquérito no TSE se assemelha ao inquérito das fake news no STF – a fundamentação jurídica de abertura é, inclusive, a mesma. Ambas são investigações atípicas por serem abertas de ofício e dependerão de outros atores para produzirem resultados jurídicos definitivos. Os inquéritos, porém, têm escopos bastante amplos e podem revelar fatos ou produzir provas robustas que constranjam a ação até mesmo do PGR, sabidamente aliado do presidente. Os inquéritos podem conter o presidente enquanto estão abertos, mas também podem oferecer provas para processos judiciais que deles derivem.

O horizonte de investigação do TSE é amplo. Buscará evidências que vão do abuso do poder político até corrupção, sem deixar de avaliar se o presidente fez uso indevido dos meios de comunicação. E para isso poderá realizar perícias, ouvir autoridades e quebrar sigilos dentre outras medidas. Mas cada evidência produzida só terá utilidade no seu respectivo foro. Caso o corregedor do TSE produza provas de crimes ou abusos na esfera eleitoral, caberá ao MP Eleitoral iniciar processo, agora ou no período eleitoral de 2022, cujo resultado poderá ser a inelegibilidade de Bolsonaro. É possível que até seus maiores aliados políticos hoje vejam com bons olhos essa medida que abriria caminho definitivo para uma nova força eleitoral do campo conservador.

Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 03.08.2021


Ações adotadas pelo TSE podem tirar Bolsonaro da eleição de 2022, afirmam juristas

Especialistas ouvidos pelo Estadão dizem que investigações têm potencial para tornar Bolsonaro inelegível

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão       

As medidas tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra as reiteradas acusações do presidente Jair Bolsonaro à eficácia da urna eletrônica, condicionando as eleições de 2022 ao voto impresso, podem atrapalhar seus planos políticos. Juristas ouvidos pelo Estadão dizem que o inquérito administrativo e a notícia-crime apresentados nesta segunda-feira pelo TSE, pedindo ao Supremo Tribunal Federal a inclusão de Bolsonaro na investigação das fake news, têm potencial para torná-lo  inelegível se ele for responsabilizado criminalmente. A depender do desfecho do caso, uma eventual candidatura de Bolsonaro a novo mandato tem chance de ser contestada na Justiça Eleitoral.

Para o ex-presidente do TSE Carlos Velloso, o tribunal agiu de forma unânime para fazer o que lhe cabia. “Tudo isso constitui uma reação justa e natural aos ataques injustos ao sistema eleitoral e à própria Justiça Eleitoral”, disse Velloso, ministro que comandou o processo de criação da urna eletrônica. “Se há notícias falsas, há práticas de crime. É muito importante o inquérito administrativo e tudo pode ocorrer nesse processo, inclusive ações de inelegibilidade. Será necessário apresentar as provas da alegada ocorrência de fraude no sistema de votação eletrônico”.

Bolsonaro reage ao TSE, diz que não aceitará ‘intimidações’ e que sua ‘luta’ é contra Barroso

Na avaliação de Isabel Veloso, professora da FGV-Direito (Rio), ações como essas podem, de fato, penalizar Bolsonaro, em particular a viabilidade de sua reeleição. A professora observou, porém, que pode não haver tempo hábil para isso.  “Por ora, é possível que funcionem tão somente como ‘enforcement’ para que Bolsonaro pare de propagar fake news, o que já seria positivo para o processo democrático”.

Ao apresentar notícia-crime contra Bolsonaro, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, pediu que ele seja investigado por “possível conduta criminosa” relacionada ao inquérito das fake news, conduzido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. O Estadão apurou que Moraes deve aceitar o pedido, ainda nesta terça-feira, incluindo o presidente como investigado.

Barroso citou como justificativa para o inquérito a transmissão ao vivo pelas redes sociais, realizada por Bolsonaro na última quinta-feira, 30, na qual ele admitiu não ter provas de fraudes no sistema eleitoral, como vinha acusando desde março do ano passado. Mesmo assim, o presidente usou a live e a estrutura do Palácio da Alvorada para exibir uma série de vídeos antigos e informações falsas contra as urnas eletrônicas, alegando que o sistema é fraudável. A transmissão ao vivo também foi divulgada pela TV Brasil, uma emissora pública.

O uso do aparato estatal na cruzada contra o modelo de eleições é um dos pilares do inquérito administrativo aberto a pedido do corregedor-geral da Justiça Eleitoral,  Luiz Felipe Salomão, que tem o objetivo de investigar ações do presidente de “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, abuso do poder político ou uso indevido dos meios de comunicação social, uso da máquina administrativa e, ainda, propaganda antecipada”.

No diagnóstico do professor de Direito Constitucional da FGV-Direito (Rio), Wallace Corbo, o TSE tem os meios necessários para cassar o registro da candidatura de Bolsonaro e remeter a ação ao Ministério Público Federal para instauração de processo disciplinar ou ação penal, caso sejam constatadas ações de abuso de poder político e econômico. As punições ao presidente são detalhadas em lei complementar de 1990.

“A Justiça Eleitoral é a responsável por assegurar a realização de eleições limpas e por apurar infrações ao processo eleitoral. Para isso, o tribunal vai investigar se houve abuso de poder político e econômico do presidente. Se ficar constatado que houve isso, pode implicar em inelegibilidade do presidente da por oito anos”, afirmou Corbo.

O TSE, atendendo ao direito de ampla defesa e contraditório, poderá, ao fim do processo, aplicar outras penalidades cabíveis a Bolsonaro. Além da cassação do registro de candidatura, o inquérito administrativo pode provocar multas ao presidente, na Justiça Eleitoral. É justamente aí que a candidatura de Bolsonaro pode sofrer constestação.

“Em curto prazo, algum interessado pode propor uma ação cautelar para que Bolsonaro pare de fazer alegações contra a credibilidade das eleições. Caso o inquérito avance e consiga reunir provas, pode gerar subsídios para denúncias de quebra da normalidade das eleições, algo que pode culminar na cassação da candidatura”, destacou Isabel Velloso.

Ao ser incluído no rol dos investigados por disseminação de notícias falsas e vínculo com milícias digitais nas redes sociais, como se prevê, Bolsonaro também responderá por ataques às eleições. Caso as investigações em andamento reúnam provas, os planos de reeleição do presidente, que abriu o cofre e se aliou ao Centrão em busca de apoio, ficam ameaçados.

Ao fim do inquérito das fake news, uma denúncia poderá ser apresentada contra ele na esfera penal, mas, antes, precisa ser aprovada pelo Congresso. Como trataria de indiciamento por crime comum cometido pelo presidente, o Supremo é o responsável por julgar a ação.

Até agora, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progresssistas-AL), tem dito que os parlamentares não estão dispostos a abrir um processo de impeachment contra Bolsonaro. Além disso, há um obstáculo na Procuradoria-Geral da República (PGR), comandada por Augusto Aras, homem de confiança de Bolsonaro e postulante à recondução ao cargo. Será Aras  que terá o papel de apresentar a denúncia contra o presidente. Há dúvidas de que ele faça isso, pois quer ser indicado para uma vaga no Supremo, em 2023. Ao procurador-geral da República interessa a reeleição de Bolsonaro.

O Supremo decidiu, em novembro de 2016, que réus não podem fazer parte da linha sucessória da Presidência. Para Rubens Beçak, professor-associado de Direito Constitucional na Universidade de São Paulo (USP), o eventual indiciamento de Bolsonaro confirmaria esse entendimento. “O presidente fica impedido de disputar as eleições por não reunir sequer as condições morais para tal. Essa é uma possibilidade clara tendo em vista o que se passou desde ontem”, afirmou Beçak. “Se o inquérito das fake news se tornar uma ação penal, o presidente se torna um dos réus. Nesse caso, seria o caso de chancelar a inelegibilidade em 2022. Há também o rito padrão em que ele é condenado e fica impedido de concorrer”.

Entenda as ações do TSE

Inquérito administrativo:

Passo 1: O pedido de inquérito é apresentado pelo corregedor-geral da Justiça Eleitoral e aprovado em sessão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Passo 2: Investigação vai apurar se o presidente da República cometeu abuso de poder político econômico, propaganda eleitoral extemporânea, uso indevido dos meios de comunicação social, fraude e corrupção O processo correrá em caráter sigiloso. Serão deferidas medidas cautelares para colheita de provas, com oitivas de pessoas e autoridades, inclusão de documentos e realização de perícia. O presidente pode eventualmente ser convocado para depor em respeito ao direito de defesa (tempo indeterminado).

Passo 3: Em caso de reunião provas que constatem crime do presidente da República contra o sistema eleitoral, por conseguinte à Justiça Eleitoral, um julgamento será realizado para definir a pena. O TSE poderá tornar o presidente inelegível por 8 anos, como manda a Lei Complementar n°64 de 1990, além de serem passíveis a aplicação de multas ou outras medidas mais brandas. Caso os elementos necessários para provar que Bolsonaro cometeu crime não sejam coletados, o inquérito é arquivado (tempo indeterminado).

Passo 4: Ao tornar o presidente inelegível, o TSE pode optar por encaminhar os autos do processo ao Ministério Público Federal (MPF) para que Bolsonaro seja investigado também na esfera criminal (tempo indeterminado).

Notícia-crime/Inquérito das Fake News

Passo 1: A notícia-crime é atendida pelo relator do inquérito das fake news, ministro Alexandre de Moraes, e o presidente Jair Bolsonaro passa a ser investigado por disseminação de notícias falsas (previsão para esta terça-feira, 03/08).

Passo 2: Tem início a coleta de provas para apurar se o presidente cometeu crime ao realizar a transmissão ao vivo na quinta-feira, 30, em que prometia apresentar provas de fraude nas eleições de 2014 e 2018 (tempo indeterminado).

Passo 3: Em caso de constatação de crime do presidente da República, o relatório é encaminhado ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que terá o papel de apresentar uma denúncia formal contra Bolsonaro a ser aprovada pela Câmara dos Deputados (tempo indeterminado).

Passo 4: Em caso de aprovação da denúncia pela Câmara, o presidente passará a responder na esfera criminal e será julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Audiências serão realizadas até que os ministros tomem uma decisão (tempo indeterminado).

Passo 5: Caso os ministros julguem Bolsonaro culpado, o presidente será destituído de suas funções na Presidência da República e ficará inelegível por 8 anos, além da possibilidade de poder ter outras penas aprovadas após a condenação penal (tempo indeterminado).

Weslley Galzo para O Estado de S.Paulo, em 03 de agosto de 2021 | 16h58


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

'Ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática', diz Barroso

Bolsonaro tem dito que, sem voto impresso, pode não haver eleição em 2022. Em discurso, presidente do TSE disse que impressão não é 'contenção adequada para o golpismo'.

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), afirmou nesta segunda-feira (2) que ameaçar a realização de eleições é uma "conduta antidemocrática".

Barroso deu a declaração ao discursar na sessão de abertura do semestre no TSE. Disse também que "há coisas erradas acontecendo no país" e que as instituições e a sociedade precisam estar "bem alertas".

O presidente Jair Bolsonaro costuma criticar as urnas eletrônicas e afirmar que houve fraudes nas eleições de 2018, mas nunca apresentou provas. Bolsonaro também passou a dizer que, sem a adoção do voto impresso, pode não haver eleições em 2022. A impressão do voto, contudo, já foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

"As democracias contemporâneas são feitas de votos, são feitas do respeito aos direitos fundamentais e são feitas de debate público de qualidade. A ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática. Suprimir direitos fundamentais, incluindo os de natureza ambiental, é uma conduta antidemocrática. Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática", afirmou Barroso.

Em seguida, o presidente do TSE emendou:

"Há coisas erradas acontecendo no país. E todos nós precisamos estar atentos. Precisamos das instituições e precisamos da sociedade civil, ambas bem alertas. Nós já superamos os ciclos do atraso institucional, mas há retardatários que gostariam de voltar ao passado. Parte dessas estratégias inclui o ataque às instituições."

Na sequência do discurso, Barroso afirmou que uma das manifestações do autoritarismo no mundo contemporâneo é o "ataque às instituições, inclusive às instituições eleitorais."

Após o discurso do presidente do TSE, o tribunal decidiu pedir ao STF que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado no inquérito que apura a disseminação de fake news. O pedido foi aprovado em plenário por unanimidade (veja no vídeo abaixo).

'Contenção' para o golpismo

Ainda durante o discurso desta segunda-feira, Barroso também disse que a adoção do voto impresso "não é contenção adequada para o golpismo".

Ao se dirigir aos demais ministros do tribunal, o presidente da Corte afirmou ser um "equívoco" e uma "fantasia" afirmar que há fraudes no sistema eleitoral.

"Nos Estados Unidos, por exemplo, insuflados pelo presidente derrotado, 50% dos republicanos acreditam que a inequívoca vitória do presidente Biden foi fraudada. Essas narrativas, fundadas na mentira e em teorias conspiratórias, destinam-se precisamente a pavimentar o caminho da quebra da legalidade constitucional.

"Nos Estados Unidos, isso resultou na dramática invasão do Capitólio, com muitas mortes ocorridas por extremistas, conduzido de maneira irracional por líderes irresponsáveis. Assim, e para que ninguém se iluda, nos Estados Unidos há voto impresso ou em cédula. Voto impresso não é contenção adequada para o golpismo", acrescentou.

Por Fernanda Vivas e Márcio Falcão, TV Globo — Brasília, em 02 de agosto de 2021