segunda-feira, 2 de agosto de 2021

O mito de Cuba

É nessa ditadura que o PT e a esquerda desnorteada procuram se espelhar?

Cuba é uma amostra da desordem intelectual reinante na esquerda brasileira, em particular no PT, considerando que esse partido se coloca como alternativa democrática de poder. Desordem tanto mais preocupante porque ela expõe a natureza autoritária do partido e de seu líder, ambos não hesitando em defender e em elogiar um regime político carcomido, criador de miséria, de violação dos direitos humanos, incapaz de produzir vacinas contra a covid-19 para a população que diz encarnar. Regime policialesco que controla no detalhe a vida de seus cidadãos, súditos da ditadura comunista. É esse exemplo de democracia que Lula da Silva e o PT pretendem apresentar nas próximas eleições?

O ex-presidente chegou mesmo ao ápice do hilário ao declarar que, não fosse o embargo americano, Cuba seria a Holanda. Talvez não saiba que na Holanda vigora um regime capitalista, defensor da propriedade privada no campo e na cidade, fruto da tolerância religiosa e de um passado de importante país comercial, que até hoje permanece. Boa parte das exportações brasileiras do agronegócio entra na Europa através de seus portos. Tampouco deve ele saber que se trata de uma monarquia constitucional, assegurando aos seus cidadãos amplo direito de expressão, comunicação, circulação e participação política. É isso que Lula está querendo para Cuba? Pretende ele converter o regime comunista para o capitalismo e a democracia?

Cuba sofre o embargo americano. Diga-se de passagem que é uma medida burra, pois o próprio comércio seria um elemento de dinamização capitalista de sua economia, além de oferecer uma narrativa “anti-imperialista” para o Partido Comunista e para a esquerda mundial, que pensa representar alguma coisa. Dito isto, os americanos não cercaram a ilha com sua frota nem impediram o seu livre-comércio com outros países do mundo. O regime cubano, frise-se, pode comercializar com qualquer país do planeta, salvo os Estados Unidos. Poderia ter um profícuo intercâmbio comercial e tecnológico com a China (a exemplo do Brasil), com a Rússia, com a União Europeia, e assim por diante. Se não o faz é porque é ineficiente economicamente, incompetente no trato diplomático e fechado em si mesmo. Eis as condições de manutenção da ditadura comunista. Quanto menor abertura, melhor para ela.

Aliás, à luz da ideologia comunista, não dá para entender por que a esquerda reclama tanto dos Estados Unidos. Não é um postulado dessa doutrina que o socialismo é superior ao capitalismo? Ora, se o socialismo goza de tal superioridade, não poderia ele precisar de algo inferior e historicamente ultrapassado. Seria uma posição anacrônica reivindicar a liberdade de comércio com a maior potência capitalista do mundo. Deveria, ao contrário, apresentar todos os seus feitos na criação de um novo homem.

Também deveria poder explicar por que tantos cubanos procuraram e procuram escapar desse “paraíso” socialista em busca de uma vida melhor no capitalismo. E o fizeram, no passado, em embarcações improvisadas, com risco da própria vida. Melhor a ameaça da morte do que a felicidade comunista!

A perpetuação do regime castrista pelas últimas décadas, além do férreo controle policial da população, acompanhada de uma narrativa comunista avessa a qualquer crítica, deve-se, primeiro, ao apoio da ex-União Soviética e, depois, ao petróleo do regime chavista, da Venezuela. Os comunistas soviéticos armaram os cubanos, deram alimentos e outros produtos, seguindo o seu próprio projeto ideológico e geopolítico de confrontação com os Estados Unidos. Os chavistas, por sua vez, forneceram o petróleo de que o país tanto necessita, até mesmo em quantidades superiores às suas necessidades básicas. Instaurou-se o socialismo da mesada. Na falta desta, está ruindo!

O que Cuba foi capaz de exportar para a Venezuela, em retribuição? Policiais e soldados para controlarem as Forças Armadas e a população deste país: os comissários do “povo” para reprimirem o verdadeiro povo! Os cubanos tornaram-se pilares da ditadura chavista, que destruiu a economia, eliminou a divisão democrática dos Poderes, assenhorou-se do Legislativo, sufocou totalmente as liberdades e submeteu o seu povo à fome e à servidão. Convém lembrar que o mesmo Lula chegou a caracterizar a Venezuela como um exemplo de democracia para o mundo e o Brasil. É nessa ditadura que o PT e a esquerda desnorteada procuram se espelhar?

O passado e, no caso, o presente são plenos de ensinamentos. Dentre eles, considerar um embuste a vocação democrática lulopetista. Se assim não fosse, eles deveriam cessar de defender e elogiar esses regimes liberticidas. É bem verdade que o Brasil se confronta hoje com duas posições autoritárias, uma de extrema direita e outra dessa esquerda, ambas disputando e se alimentando reciprocamente.

Se o País realmente almeja a democracia e o bem-estar de sua população, não pode compactuar com duas alternativas claramente não democráticas. Não se pode acreditar em artimanhas ideológicas. Disso depende nosso futuro!

Denis Lerrer Rosenfiel, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02 se agosto de 2021.

Recordes sinistros

Desemprego, inflação e endividamento batem recordes no Brasil, tornando mais inseguro o dia a dia de famílias ainda sujeitas a uma pandemia mortífera

Desemprego, inflação e endividamento batem recordes no Brasil, tornando mais inseguro o dia a dia de famílias ainda sujeitas a uma pandemia mortífera, num país com vacinação atrasada e governo concentrado em arranjos políticos e objetivos eleitorais. As projeções da inflação ao consumidor já se aproximam de 7% em 2021, superando de longe o teto da meta, mas nenhum sinal de trégua aparece no mercado. Novos aumentos são prenunciados pela alta dos custos de produção, turbinados pelas cotações internacionais de matérias-primas, pelo encarecimento da energia e pela taxa de câmbio. Nem tudo chegará ao comprador final, mas algum repasse ocorrerá, como tem ocorrido, e assim o dinheiro já escasso ficará ainda mais curto.

O surto inflacionário hoje enfrentado pelos brasileiros é um dos legados da grande crise sanitária de 2020. Parte dos problemas é atribuível a desarranjos no sistema produtivo. A oferta de certos insumos e componentes industriais foi prejudicada e nem todos os desajustes foram corrigidos. Pelo menos as pressões daí derivadas devem ser temporárias. Mas, apesar desse adjetivo, a duração desses efeitos ainda é desconhecida. De toda forma, o aumento de custos continua intenso e dificulta qualquer previsão otimista.

Em junho, o Índice de Preços ao Produtor (IPP) foi 1,31% maior que no mês anterior. Em maio havia subido 0,99%. A alta acumulada no ano chegou a 19,11%. Em 12 meses atingiu 36,1%. Esses custos, também conhecidos como preços em porta de fábrica, são contabilizados apenas na indústria, sem impostos e sem frete. Na indústria de transformação esses preços aumentaram 0,76% em junho. A alta chegou a 8,76% na indústria extrativa. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As duas taxas acumuladas, no ano e em 12 meses, são recordes da série iniciada em 2014.

Também os preços por atacado (IPA) medidos pela Fundação Getulio Vargas (FGV) subiram muito, desde o segundo semestre de 2020, e em 12 meses aumentaram 47,53%, segundo o Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) de junho. Esse indicador inclui também matérias-primas minerais e agropecuárias.

Só uma parcela dos aumentos mostrados pelo IPP e pelo IPA chega ao varejo de bens e serviços. Ainda assim, as altas de preços no atacado acabam atingindo o consumidor e corroendo seu orçamento, já muito precário no caso da maior parte dos brasileiros. Segundo a prévia da inflação oficial, os preços ao consumidor, no período de 15 de junho a 13 de julho, foram 0,72% maiores que no intervalo mensal imediatamente anterior. Essa foi a maior variação para esse período desde 2004 – mais um recorde sinistro. Os dados são do IPCA-15 de julho, divulgado no dia 23.

Essa onda inflacionária ocorre numa fase marcada por dois outros recordes negativos. O pior deles é o desemprego. No trimestre móvel encerrado em abril os desocupados eram 14,8 milhões, 14,7% da força de trabalho. Essa porcentagem, alcançada já no trimestre de janeiro a março, foi a mais alta da série iniciada em 2012.

Esse quadro se completa com o nível de endividamento familiar. Em abril, as famílias deviam ao sistema financeiro 58,5% de sua renda anual, uma taxa recorde no período a partir de janeiro de 2005. Excluídas as dívidas imobiliárias, sobrariam débitos equivalentes a 36% da renda – também um recorde nesse tipo de sequência. Em abril de 2020, a dívida total das famílias com os bancos estava em 49,2% de sua renda. Com a pandemia, as dificuldades aumentaram e os brasileiros buscaram empréstimos para sobreviver ou para pagar outros compromissos. O quadro seria muito diferente se tivessem tomado financiamentos para melhorar de vida, como em tempos de prosperidade. As informações são do Banco Central.

Os dois últimos recordes infernais – do IPP e do endividamento – foram divulgados na quarta-feira. No dia anterior, o presidente Jair Bolsonaro, distante dessa realidade, havia completado o acerto com o senador Ciro Nogueira, convidado para chefiar a Casa Civil e tomar conta do governo em nome do Centrão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 02 de agosto de 2021 

TSE vai investigar fake news de Bolsonaro e manda ao STF notícia crime contra presidente

Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impuseram duas derrotas ao presidente Jair Bolsonaro na noite desta segunda-feira, 2. Por unanimidade, os magistrados aprovaram a instauração de notícia-crime e inquérito administrativo contra Bolsonaro pelas ameaças ao sistema eleitoral e possível conduta criminosa no âmbito do inquérito das fake news, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A investigação administrativa pode acarretar em impugnação da candidatura de Bolsonaro nas eleições de 2022.

A notícia-crime foi apresentada pelo presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, que se tornou o alvo preferencial dos ataques de Bolsonaro. Barroso se baseou em transmissão ao vivo pelas redes sociais realizada por Bolsonaro, na quinta-feira, 30, para pedir a “apuração de possível conduta criminosa” relacionada ao inquérito das fake news. Na live, Bolsonaro recuou do discurso encampado desde 2018 de que apresentaria provas de fraudes eleitorais e disse ter somente “indícios”, que se resumiam a notícias falsas, vídeos fora de contexto e análises enviesadas do processo de auditagem das urnas. O relator do inquérito, Alexandre de Moraes  poderá decidir sozinho se acata o pedido, ou se leva para julgamento no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na outra frente de contenção das ameaças golpistas do presidente, o corregedor-geral da Justiça Federal, Luis Felipe Salomão, justificou ser necessária a instalação do inquérito administrativo na corte eleitoral para  “tomar as providências cabíveis para sanar ou evitar abusos e irregularidades”. Salomão pede para que Bolsonaro seja investigado por abuso de poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação social, corrupção, fraude, propaganda eleitoral antecipada e ataques ao sistema eleitoral que venham a comprometer as eleições de 2022.  As apurações tramitarão em caráter sigiloso.

“O inquérito administrativo compreenderá ampla dilação probatória, promovendo-se medidas cautelares para colheita de provas, com oitivas de pessoas e autoridades, juntada de documentos, realização de perícias e outras providências que se fizerem necessárias para a adequada elucidação dos fatos”, escreveu Salomão. “Considerando que a preservação do Estado Democrático de Direito e a realização de eleições transparentes, justas e equânimes demandam pronta apuração e reprimenda de fatos que possam caracterizar abuso”.

O TSE, personificado na figura de seu presidente, se tornou o maior inimigo de Bolsonaro e seus apoiadores na cruzada pela aprovação do voto impresso. O tribunal eleitoral, que abriga ministros do Supremo, é alvo constante dos ataques do governo federal. A crise entre o Judiciário e o Executivo foi impulsionada pela intensificação da onda de ameaças do Palácio do Planalto à Corte eleitoral frente à reunião de ministros do Supremo com dirigentes de partidos para reverter a tendência de aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do voto impresso pelo Congresso.

Após a ameaça de Braga Netto ao sistema eleitoral, com insinuações de golpe das Forças Armadas, caso não seja aprovado o voto impresso, houve reação pública de três magistrados — Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso –, e se chegou a considerar uma nota conjunta a respeito. A medida foi descartada, mas abriu espaço para reações individuais enfáticas dos líderes do Judiciário ao modo intransigente e beligerante com que as autoridades do Executivo têm tratado as questões eleitorais.

Na manhã desta segunda-feira, 2, Barroso assinou uma nota conjunta com todos os ex-presidentes da Corte desde a redemocratização, em 1988, em que defendem a urna eletrônica e rechaçam o voto impresso. O documento também contou com as assinaturas do vice-presidente do TSE, Edson Fachin, e de Alexandre de Moraes, que presidirá a instituição na reta final das eleições de 2022. À tarde, o texto foi seguido de um duro discurso do presidente do STF, Luiz Fux, na sessão de retomada dos trabalhos na Corte após o recesso do Judiciário.

Em um movimento coordenado, o presidente do Supremo disse, horas antes, que “os juízes precisam vislumbrar o momento adequado para erguer a voz diante de eventuais ameaças”. Foi ainda mais direto: “Harmonia e independência entre os poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições.”

À noite, Barroso encerrou a vigorosa onda de recados ao Planalto. Antes de apresentar a notícia-crime que pode culminar em responsabilização criminal do presidente, o ministro discursou de forma veemente defendendo que “ameaça à eleição é uma conduta antidemocrática”.

“Suprimir direitos fundamentais, incluindo os de natureza ambiental, é uma conduta antidemocrática. Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática. Há coisas erradas acontecendo no País, e nós todos precisamos estar atentos”, afirmou Barroso. “Nós já superamos os ciclos do atraso institucional, mas há retardatários que gostariam de voltar ao passado. E parte dessas estratégias incluem o ataque às instituições.”

Barroso disse que líderes populistas, autoritários e extremistas, embora eleitos pelo povo, agem contra o estado de direito. Afirmou, ainda, que o Brasil está à beira da “erosão da democracia”. “Uma das manifestações do autoritarismo no mundo contemporâneo é precisamente o ataque às instituições, inclusive às instituições eleitorais que garantem um processo legítimo de condução aos mais elevados cargos da República”, argumentou o presidente do TSE.

O silêncio diante dos sucessivos insultos de Bolsonaro ao Supremo e ao TSE foi rompido nesta segunda-feira, 2,  com declarações claras de que aventuras golpistas e tentativas de ruptura institucional não serão toleradas pelo Judiciário.
       
Weslley Galzo, de BRASÍLIA para O Estado de São Paulo, em 02 de agosto de 2021 

‘Ameaça à eleição é uma conduta antidemocrática’, diz Barroso em resposta a Bolsonaro

Em um dia marcado por duros recados do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, na direção do Palácio do Planalto, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, subiu ainda mais o tom e disse que a “ameaça à realização de eleição é uma conduta antidemocrática”.


Foto: Reprodução

“Nós já superamos os ciclos de atraso institucional, mas há retardatários que querem voltar ao passado”, afirmou Barroso, na abertura da primeira sessão do TSE no segundo semestre. Sem citar Bolsonaro, o ministro disse que ‘voto impresso não é contenção adequada para o golpismo’.

“A ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática. Suprimir direitos fundamentais incluindo de natureza ambiental é uma conduta antidemocrática. Usurpar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é uma conduta antidemocrática. Há coisas erradas acontecendo no país e nós todos precisamos estar atentos, precisamos das instituições e da sociedade civil alertas”, afirmou. O ministro afirmou que os movimentos reacionários passam, necessariamente, pelos ataques às instituições.

“Uma das manifestações do autoritarismo no mundo contemporâneo é o ataque às instituições e inclusive às instituições eleitorais que garantem um processo legítimo de condução aos mais elevados cargos da República”, disse. Ao falar sobre os avanços autoritários, o ministro destacou que os líderes que correm a democracia foram eleitos pelo povo e gozam de legitimidade, que, no entanto, não os impede de uma vez no poder desconstruir os pilares da democracia “concentrando os poderes no Executivo, procurando demonizar a imprensa e colonizar os tribunais constitucionais que atuam com independência”. Barroso frisou que a receita é conhecida em diferentes partes do mundo.

O presidente do TSE se tornou o alvo preferencial do presidente da República por se opor ao Projeto de Emenda à Constituição (PEC), de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que tem o objetivo de instituir o voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. Atualmente, o sistema eleitoral brasileiro dispõe de nove etapas de auditagem dos votos. Bolsonaro já chamou o presidente do TSE de “imbecil” e “idiota” e insinuou que ele estaria tentando manipular o curso das eleições.

O discurso na sessão desta segunda-feira foi mais um capítulo do movimento coordenado de reação dos representantes das mais altas cúpulas da Justiça Federal diante das ameaças golpistas que partem do Planalto e até da Esplanada em relação à realização de eleições no ano que vem.

A crise entre o Judiciário e o Executivo se intensificou depois que ministros do Supremo se reuniram com dirigentes de partidos para reverter a tendência de aprovação do voto impresso pelo Congresso. Após a ameaça de Braga Netto ao sistema eleitoral, com insinuações de golpe das Forças Armadas, caso não seja aprovado o voto impresso, houve reação pública de três magistrados — Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso –, e se chegou a considerar uma nota conjunta a respeito.

Na arde desta segunda-feira, Bolsonaro voltou a pregar a adoção do voto impresso como condição para “eleições limpas” e, mais uma vez, atacou Barroso. Os ataques do presidente à mais alta Corte da Justiça Eleitoral ocorreram momentos após o presidente do STF discursar em defesa da estabilidade democrática e sinalizar ao Palácio do Planalto que a “harmonia e independência entre os poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições”.

Em resposta velada à possibilidade de punição aventada por Fux, o presidente da República se queixou de que “não se pode falar a verdade” no Brasil, sob pena de sofrer processo “até de impeachment”, como é o seu caso. “Queremos uma farsa no ano que vem ou uma eleição marcada por suspeição?”, perguntou Bolsonaro, em cerimônia no Planalto. “Se nos calarmos, nos curvarmos ao politicamente correto para atender às velhas práticas, (…) nós todos sucumbiremos”, afirmou. Para o presidente, as alianças estratégicas com políticos do Centrão para se manter no cargo não se enquadram no escopo de velhas práticas da política nacional.

Ao mesmo tempo em que se enfraquece politicamente com o avanço das investigações da CPI da Covid e a queda crescente de popularidade, Bolsonaro eleva o tom contra as instituições do Judiciário.

No último domingo, 1, em discurso a apoiadores durante manifestação a favor do voto impresso, Bolsonaro se amparou no apoio de sua base eleitoral para tensionar a relação com os Poderes e exigir a aprovação do projeto. Como resposta aos acenos antidemocráticos de políticos do alto escalão do governo federal, o ministro Barroso assinou nesta segunda-feira uma nota conjunta com os ex-presidentes do TSE em que defendem a urna eletrônica e rechaçam a possibilidade de contagem manual dos votos. O documento contou, ainda, com a assinatura do atual vice-presidente do TSE, Edson Fachin, e do ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o tribunal durante as eleições de 2022.

“Em demonstração de coesão, todos os ex-presidentes do TSE, desde 88, assinaram nota em defesa do sistema eletrônico de votação. E todos concordam: contar publicamente 150 milhões de votos significará a volta das fraudes, superadas com a urna eletrônica”, escreveu Barroso nas redes sociais.

Weslley Galzo, de BRASÍLIA para O Estado de São Paulo, em 02 de agosto de 2021 

TSE vai investigar fake news de Bolsonaro e manda ao STF notícia crime contra presidente

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou na noite desta segunda-feira, 2, por unanimidade, duas medidas contra o presidente Jair Bolsonaro por conta das declarações infundadas de fraude no sistema eleitoral e das ameaças à realização das eleições de 2022. 

Presidente Jair Bolsonaro. (FOTO: JOEDSON ALVES/EFE)

Os ministros decidiram abrir um inquérito administrativo e, ainda, pedir a inclusão do presidente no chamado “inquérito das fake news” que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

O inquérito administrativo, proposto pela Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral, vai apurar se ao promover uma série de ataques sem provas contra a Justiça Eleitoral e o sistema eletrônicos de votações, o presidente praticou “abuso do poder econômico e político, uso indevido dos meios de comunicação, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea”. O inquérito eleitoral, segundo técnicos do TSE, pode acarretar em impugnação de registo da candidatura de Bolsonaro ou inelegibilidade do presidente.

A apuração foi aprovada à unanimidade pelos ministros da Corte. Na última quinta-feira, 29, o presidente usou uma transmissão pelas redes sociais para lançar uma série de vídeos antigos e informações falsas contra as urnas eletrônicas para alegar que o sistema é fraudável. Na live, o presidente admitiu não ter provas das fraudes, mas, por mais de duas horas, apelou para informações falsas e descontextualizadas contra a Justiça Eleitoral.

As medidas foram aprovadas pelo TSE na sessão que marcou a abertura dos trabalhos no segundo semestre. O presidente da Corte Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, fez duro discurso contra as ameaças à democracia.

O TSE também aprovou o envio de notícia-crime ao STF para que Jair Bolsonaro seja incluído como investigado no inquérito das fake news. A investigação, que tramita aos cuidados do ministro Alexandre de Moraes, já relaciona uma rede de aliados do presidente em ações para desacreditar adversários e instituições.

Weslley Galzo, de BRASÍLIA para O Estado de São Paulo, em 02 de agosto de 2021 | 20h37

Ministros do STF e ex-presidentes do TSE defendem urna eletrônica

Contra Bolsonaro, juristas divulgam carta afirmando que sistema usado há 25 anos é seguro e que adotar voto impresso seria retornar a um passado de "fraudes generalizadas".

"Urnas eletrônicas são auditáveis em todas as etapas do processo", afirmam os juristas

Nove ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e nove ex-ministros que presidiram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) divulgaram uma nota nesta segunda-feira (02/08) na qual defendem o atual sistema de votação eletrônica e rebatem as acusações de fraude feitas pelo presidente Jair Bolsonaro.

Os ministros e ex-presidentes do TSE também se posicionam contrariamente à adoção do voto impresso, como defendem Bolsonaro e seus apoiadores, que realizaram atos neste domingo em várias capitais do país sobre o tema.

O voto impresso é uma das principais bandeiras atuais de Bolsonaro, que afirmou diversas vezes, sem apresentar provas, que o sistema eleitoral brasileiro é vulnerável e que houve fraude em eleições anteriores. Neste domingo, em videochamadas transmitidas nos atos, o presidente voltou a ameaçar o pleito de 2022 se não for adotado o voto impresso – ao qual ele se refere como auditável, apesar de a urna eletrônica já ser auditável.

Críticos apontam que Bolsonaro – assim como fez o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump – semeia dúvidas sobre o processo eleitoral para abrir caminho para não aceitar o resultado das eleições de 2022 caso seja derrotado.

Há uma Proposta de Emenda à Constituição tramitando na Câmara dos Deputados que estabelece a adoção do voto impresso, que pode ser votada nesta quinta (05/08) pela comissão especial que analisa o tema. O presidente da Câmara, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro, afirmou na última sexta que essa discussão é "perda de tempo" e que levantar dúvidas sobre a lisura das eleições "é ruim para o país".

O único ministro da atual composição do Supremo que não assinou o manifesto divulgado nesta segunda é Kassio Nunes Marques, indicado à Corte por Bolsonaro. Os demais nove ministros da Corte são signatários, incluindo o atual presidente do TSE, Luís Roberto Barroso.

Todos os ministros que presidiram o tribunal eleitoral desde a Constituição de 1988 também assinam a carta. São eles: Marco Aurélio Mello, Carlos Ayres Britto, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence, Nelson Jobim, Ilmar Galvão, Sydney Sanches, Francisco Rezek e Néri da Silveira.

Voto impresso é "menos seguro"

A carta afirma que, desde 1996, quando o sistema de votação eletrônica foi implantado, "jamais se documentou qualquer episódio de fraude nas eleições" e que, nesses 25 anos, "a urna eletrônica passou por sucessivos processos de modernização e aprimoramento, contando com diversas camadas de segurança".

"As urnas eletrônicas são auditáveis em todas as etapas do processo, antes, durante e depois das eleições. Todos os passos, da elaboração do programa à divulgação dos resultados, podem ser acompanhados", diz a carta.

Os juristas também afirmam que o sistema eletrônico conseguiu "eliminar um passado de fraudes eleitorais que marcaram a história do Brasil, no Império e na República", e que adotar o voto impresso, como deseja Bolsonaro, abrirá espaço para o retorno desse cenário de fraudes.

"Voto impresso não é um mecanismo adequado de auditoria a se somar aos já existentes por ser menos seguro do que o voto eletrônico, em razão dos riscos decorrentes da manipulação humana e da quebra de sigilo. (...) A contagem pública manual de cerca de 150 milhões de votos significará a volta ao tempo das mesas apuradoras, cenário das fraudes generalizadas que marcaram a história do Brasil", afirmam.

Deutsche Welle Brasil, em 02.08.2021

Presidente do STF em resposta a Bolsonaro: “Estamos atentos a ataques que corroem valores democráticos”

Fux critica no retorno da corte atitudes que “deslegitimam veladamente as instituições do país”. Ex-ministros do TSE assinam carta que defende segurança das eleições, atacada por Bolsonaro e aliados

O presidente do STF, Luiz Fux, em audiência em março deste ano.(FELLIPE SAMPAIO/STF)

Bolsonaro confessa que sem os corruptos do Congresso não poderia governar

O Supremo Tribunal Federal (STF) respondeu aos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao sistema eleitoral brasileiro, que subiram de tom nos últimos dias. Sem citar nomes, o presidente do STF, Luiz Fux deu uma advertência ao Governo federal durante a reabertura dos trabalhos do segundo semestre da corte mais alta do país. “Numa sociedade democrática, momentos de crise nos convidam a fortalecer —e não deslegitimar— a confiança da sociedade nas instituições. Afinal, no contexto atual, após 30 anos de consolidação democrática, o povo brasileiro jamais aceitaria que qualquer crise, por mais severa, fosse solucionada mediante mecanismos fora dos limites da Constituição”, afirmou Fux.

“Democracia é o exercício da liberdade com responsabilidade”, continuou o presidente do tribunal, ao defender que a independência entre os poderes não implica impunidades. “O regime democrático necessita ser reiteradamente cultivado e reforçado, com civilidade, respeito às instituições e àqueles que se dedicam à causa pública. Ausentes essas deferências constitucionais, as democracias tendem a ruir.”

Fux disse que o Supremo está atento “aos ataques de inverdades à honra dos cidadãos que se dedicam à causa pública”, em atitudes que “deslegitimam veladamente as instituições do país” e “corroem sorrateiramente os valores democráticos consolidados ao longo de séculos pelo suor e pelo sangue dos brasileiros que viveram em prol da construção da democracia de nosso país”. O ministro lembrou que a história ensina que a democracia “nos liberta do obscurantismo, da intolerância e da inverdade, permitindo que possamos exercer em plenitude a nossa dignidade e as nossas capacidades humanas”.

A reação do Supremo acontece num momento em que Bolsonaro instiga sua base contra o sistema eleitoral do país e, sem constrangimento algum, ameaça as eleições presidenciais de 2022. “Sem eleições limpas e democráticas, não haverá eleição”, disse Bolsonaro em videochamada realizada neste domingo. “Nós mais que exigimos, podem ter certeza, juntos, porque vocês são de fato meu Exército —o nosso Exército—, que a vontade popular seja expressada na contagem pública dos votos”, afirmou o presidente a sua base eleitoral, que voltou a pintar as ruas de verde e amarelo no último domingo para exigir o voto impresso. Os ministros da Supremo, especialmente Luís Roberto Barroso, que preside o Supremo Tribunal Eleitoral (TSE), foram o principal alvo de descontentamento desses manifestantes, acusados de serem “comunistas de toga” e “inimigos do povo” pela defesa da transparência e segurança das eleições no país.

Nesta segunda-feira, 2, 18 ex-presidentes do TSE assinaram uma carta em que reforçam a segurança do voto eletrônico, assegurando que as instituições que marcaram a virada democrática do país “conseguiram eliminar um passado de fraudes eleitorais que marcaram a história do Brasil, no Império e na República”. Os ministros destacaram que desde 1996, quando foi implantada a urna eletrônica, “jamais se documentou qualquer episódio de fraude nas eleições”. Também afirmaram que urna eletrônica passou “por sucessivos processos de modernização e aprimoramento” e que as eleições são auditáveis em todas as etapas do processo.

“O voto impresso não é um mecanismo adequado de auditoria a se somar aos já existentes por ser menos seguro do que o voto eletrônico, em razão dos riscos decorrentes da manipulação humana e da quebra de sigilo”, ressaltaram os ministros. Segundo eles, a contagem pública manual de cerca de 150 milhões de votos “significará a volta ao tempo das mesas apuradoras, cenário das fraudes generalizadas que marcaram a história do Brasil”.

Ameaça militar às eleições

Na semana passada, o ministro do STF Gilmar Mendes também encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) quatro ações que pedem que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, seja investigado por suspeita de ameaçar a realização das eleições de 2022. O general, um um dos principais assessores de Bolsonaro, defende uma proposta de emenda constitucional que tenta recriar o voto impresso no país. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que atua alinhado às pautas bolsonaristas, terá de se manifestar sobre o tema. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Braga Netto disse em 8 de julho por meio de um interlocutor ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não haveria eleições em 2022 se não houvesse voto impresso e “auditável”. Nas últimas sondagens eleitorais, Bolsonaro tem aparecido atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de seus principais adversários, incluindo o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Apesar das reações dos ministros às posturas antidemocráticas de Bolsonaro e seus aliados, a velocidade de resposta da Justiça costuma ser bem inferior ao potencial do ataque da extrema direita às instituições. O próprio Fux admitiu em seu discurso que o “tempo da Justiça não é o tempo da política”. Talvez por isso, o presidente da corte tenha pedido uma maior abertura ao diálogo. “Nunca é tarde para o diálogo e para a razão. Sempre há tempo para o aprendizado mútuo, para o debate público compromissado com o desenvolvimento do país, e para a cooperação entre os cidadãos bem-intencionados”, afirmou. A questão é que o Brasil entrou em clima de campanha presidencial antecipada e diálogo nunca foi o forte do período pré-eleitoral. Aliás, desde 2018, sabe-se que mesmo sem debate é possível ganhar eleição.

Pensando nisso, alguns ministros da corte até já optaram por um diálogo porta a porta, ao adotar uma postura evangelizadora contra a PEC de autoria da deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), que instituiria o voto impresso auditável. Uma força-tarefa de bastidores feita por ministros do TSE e STF conseguiu evitar que o projeto prosperasse. Eles se reuniram com presidentes dos 11 partidos, que fecharam acordo para engavetar a proposta já na comissão especial que a avaliava.

Íntegra do pronunciamento do ministro Luiz Fux

Sessão Plenária de 2 de agosto de 2021

Senhoras ministras, Senhores ministros, Senhoras e Senhores, Imbuído de singular senso responsabilidade institucional, início mais um semestre de atividades jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal.

Este Tribunal, no exercício de suas competências, não tem medido esforços para assegurar que a nossa Constituição permaneça como a certeza primeira dos brasileiros. Deveras –nunca é demais lembrar– a nossa Carta Maior é a âncora do Estado Democrático de Direito e a bússola que deve guiar as nossas aspirações de presente e de futuro, bem como a de todos os demais poderes da nação. Movido por esse espírito, o Supremo Tribunal Federal, seja nos momentos de calmaria, seja nos momentos de turbulência, tem cumprido o seu papel de salvaguardar a Constituição, atuando em prol da estabilidade institucional da nação, da harmonia entre os Poderes e da proteção da democracia, sempre pelo povo e para o povo brasileiro.

Numa sociedade democrática, momentos de crise nos convidam a fortalecer –e não deslegitimar– a confiança da sociedade nas instituições. Afinal, no contexto atual, após trinta anos de consolidação democrática, o povo brasileiro jamais aceitaria que qualquer crise, por mais severa, fosse solucionada mediante mecanismos fora dos limites da Constituição. Ambientes democráticos garantem aos cidadãos liberdade para pensar, inovar, empreender e se expressar. A História nos ensina: a democracia nos liberta do obscurantismo, da intolerância e da inverdade, permitindo que possamos exercer em plenitude a nossa dignidade e as nossas capacidades humanas.

Não por acaso, o economista Daron Acemoglu (MIT) preconiza que a chave para o desenvolvimento de uma nação perpassa a construção de um ambiente sólido de respeito às instituições, balizado em uma cultura política íntegra e proba. Nações que souberam construir instituições fortes, independentes e inclusivas alcançaram ciclos virtuosos de prosperidade.Trago uma advertência, porém: democracia é o exercício da liberdade com responsabilidade. Tratando-se de higidez democrática, não há nada automático, natural ou perpétuo. Ao revés, o regime democrático necessita ser reiteradamente cultivado e reforçado, com civilidade, respeito às instituições e àqueles que se dedicam à causa pública. Ausentes essas deferências constitucionais, as democracias tendem a ruir.

Por isso mesmo, a democracia, mais do que uma ideia, é uma prática constante; mais do que um direito, é um dever compartilhado por todos os cidadão se pelos poderes públicos. É dizer, a manutenção da democracia exige permanente vigilância, a ser executada por muitos olhos, mãos e vozes, com obediência a inafastáveis pressupostos: 1) sociedade civil educada e consciente de seus direitos e deveres; 2) imprensa atuante e independente; 3) atores políticos cumpridores das regras do jogo democráticoe responsivos aos diversos interesses da população; 4) magistrados independentes, fiéis à Constituição e às leis; e 5) instituições fortes, inclusiva se estáveis.

Nesse ambiente plural de responsabilidades, cada um dos atores contribui a seu modo para a necessária proteção do Estado Democrático de Direito, nos limites das normas constitucionais. Os cidadãos e a imprensa questionam, criticam, erguem contundentemente seus pontos de vista; propõem novos direitos; denunciam e aplaudem, e devem ser respeitados. Os atores políticos debatem na arena pública e fazem confluir os diversos interesses de cada um dos grupos que compõem o tecido social, seja aprovando leis,seja executando políticas públicas. Os Poderes em geral atuam independentes e harmônicos, sem que haja superpoderes entre aqueles instituídos pela ordem constitucional.

Por sua vez, magistradas e magistrados do país reforçam a democracia diuturnamente, no âmbito de suas decisões judiciais. Quando chamados a pacificar conflitos, juízes fazem girar as engrenagens da democracia constitucional e, ao assim agirem, estimulam o respeito ao funcionamento adequado do regime político escolhido pelo povo brasileiro. Por outro lado, a sociedade não espera de magistrados o comportamento que é próprio e típico de atores políticos. O bom juiz tem como predicados a prudência de ânimos e o silêncio na língua. Sabe o seu lugar de fala e o seu vocabulário próprio.

Igualmente, o tempo da Justiça não é o tempo da Política. Embora diuturnamente vigilantes para com a democracia e as instituições do país,os juízes precisam vislumbrar o momento adequado para erguer a voz diante de eventuais ameaças. Afinal, numa democracia, juízes não são talhados para tensionar. Nesse ponto, é de sabença que o relacionamento entre os Poderes pressupõe atuação dentro dos limites constitucionais, com freios e contrapesos recíprocos, porém com atuação harmônica e alinhamento entre si em prol da materialização dos valores constitucionais. Porém, harmonia e independência entre os poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições.

Permanecemos atentos aos ataques de inverdades à honra dos cidadãos que se dedicam à causa pública. Atitudes desse jaez deslegitimam veladamente as instituições do país; ferem não apenas biografias individuais, mas corroem sorrateiramente os valores democráticos consolidados ao longo de séculos pelo suor e pelo sangue dos brasileiros que viveram em prol da construção da democracia de nosso país. De Tiradentes à Esperança Garcia, da Princesa Isabel a Rui Barbosa, de Oswaldo Cruz à Irmã Dulce, a história brasileira é farta de exemplos que nos permitem vaticinar: o tempo é o melhor juiz de nossas trajetórias.

Daqui a algumas décadas, as próximas gerações, mais distanciadas das paixões que inebriam as controvérsias de nossos dias, saberão perfeitamente a quem reverenciar. As instituições sólidas republicanas e os bons propósitos,esses sim, permanecerão imorredouros. Por fim, como protagonistas de nossos tempos, não olvidemos que o maior símbolo da democracia é o diálogo. Nunca é tarde para o diálogo e para a razão. Sempre há tempo para o aprendizado mútuo, para o debate público compromissado com o desenvolvimento do país, e para a cooperação entre os cidadãos bem-intencionados.

Entretanto, relembro: palavras voam; ações fortificam. Diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras. O brasileiro clama por saúde, paz, verdade e honestidade. Não deseja ver exacerbados os conflitos políticos; quer a democracia e as instituições em pleno funcionamento. Não quer polarizações exageradas; quer vacina, emprego e comida na mesa. Saibamos ouvir a voz das ruas para assimilarmos o verdadeiro diálogo que o Brasil, nesse momento tão sensível, reclama e deseja. Nós, do Supremo Tribunal Federal, ainda quando nossas atuações tenham que ser severas, jamais abdicaremos dos nossos deveres e responsabilidades. No exercício de nosso nobre mister constitucional, trabalharemos para que, onde houver hostilidade, construa-se respeito;onde houver fragmentação, estabeleça-se diálogo;e onde houver antagonismo, estimule-se cooperação.

No exercício dessa missão desafiadora que tem sido a Presidência deste Tribunal nesses tempos de pandemia e de dissonâncias, agradeço a colaboração incondicional dos meus pares, que ao meu lado tem unissonamente trabalhado na defesa institucional de nossa democracia e da Suprema Corte do Brasil. Seguindo os nossos bons desígnios, retomaremos a pauta de julgamentos do Plenário, exercendo nossa função presencialmente tão logo possível, pacificando conflitos constitucionais que contribuam para a segurança jurídica, para a garantia de um ambiente estável dos negócios e para o fortalecimento do nosso Estado Democrático de Direito.

Nesse ponto, cumprindo o meu dever de ofício, informo que 94% dos processos selecionados para julgamento por este Plenário, durante o segundo semestre de 2021, encontram-se vinculados a um ou mais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, conforme expressamos recentemente em evento global. Senhoras ministras, Senhores ministros, Senhoras e Senhores, nós do Supremo Tribunal Federal trabalhamos e existimos pelo povo brasileiro.

Que Deus nos abençoe nesta nova jornada.

Ministro Luiz Fux

REGIANE OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em 02.08.2021

sábado, 31 de julho de 2021

Uma dívida fora dos padrões

Jogadas políticas ameaçam o acerto das contas fiscais e a contenção da dívida

Maior economia da América Latina, o Brasil se destaca também pelo peso da dívida pública, de R$ 6,73 trilhões, equivalente a 84% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Esse endividamento supera de longe a média dos países emergentes e de renda média, estimado em 65% do PIB pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Supera até o valor do PIB de qualquer outra economia latino-americana. Reconhecida no Ministério da Economia como fora dos padrões, essa condição é percebida também, no mercado, pelos financiadores do governo, sempre atentos à situação financeira e ao grau de solvência de seus devedores. É preciso, segundo nota do Tesouro, levar o endividamento brasileiro a “níveis prudenciais” e assim “garantir os fundamentos para o crescimento econômico sustentável”. Pressões políticas e objetivos eleitorais serão os principais obstáculos.

A dívida bruta de R$ 6,73 trilhões aparece nas contas de junho do governo geral. Esse conjunto inclui as finanças da União, dos Estados e municípios e também do INSS. Entre maio e junho o quadro melhorou ligeiramente, com o peso da dívida passando de 84,6% para 84% do PIB, segundo as estatísticas fiscais elaboradas pelo Banco Central (BC), mensalmente, e divulgadas ontem.

Mas o Brasil continua muito longe do padrão médio de sua categoria. Além disso, o desafio real, neste ano e nos próximos, é controlar o endividamento e depois tentar reduzi-lo em relação ao PIB. Isso dependerá em parte do crescimento econômico e em parte da condução das finanças públicas.

A gestão financeira poderá ser perigosamente afetada pelas pressões do Centrão, agora instalado na Casa Civil da Presidência da República, pelos arranjos políticos do presidente Jair Bolsonaro e pela ação de vários ministros. Alguns deles defendem furar ou alterar o teto de gastos para dar espaço a um aumento do Bolsa Família. Esse aumento, defendido principalmente pelo ministro da Cidadania, João Roma, pode servir à campanha de reeleição do presidente Bolsonaro.

Na contramão das pressões políticas, a equipe econômica tem estudado uma alteração da meta fiscal de 2022, um déficit primário de R$ 170,5 bilhões. Tem-se discutido no Ministério da Economia uma redução desse rombo para algo próximo de R$ 100 bilhões, segundo o Estado. A melhora da receita, propiciada principalmente pela retomada econômica, poderia facilitar esse esforço de austeridade. Além disso, a reforma do Imposto de Renda proposta ao Congresso poderá proporcionar um ganho de arrecadação, mas isso ainda é muito incerto, porque há resistência ao projeto.

Com a recuperação da economia, depois da contração de 4,1% em 2020, o setor público tem arrecadado muito mais que no ano passado e, além disso, tem ficado livre de facilidades fiscais concedidas na pior fase da crise. Nesse quadro mais favorável, o déficit primário do setor público, no primeiro semestre, foi reduzido de R$ 402,70 bilhões em 2020 para R$ 5,21 bilhões neste ano, de acordo com o levantamento do BC. No caso do governo central, a redução foi de R$ 417,24 bilhões para R$ 55,15 bilhões. Governos estaduais e municipais foram superavitários.

Somados os juros, o resultado geral – ou nominal, pela nomenclatura do BC – foi um buraco de R$ 150,63 bilhões, ou 3,66% do PIB. Em 12 meses esse déficit bateu em R$ 589,69 bilhões, ou 7,36% do PIB. No período encerrado em janeiro a proporção era de 13,57%.

No começo de 2020, antes da pandemia, o Ministério da Economia fixou para a dívida bruta do governo geral o teto de 80% do PIB. Com a crise, esse limite foi estourado, mas algum avanço ocorreu em 2021. Para levar o endividamento a proporções mais aceitáveis, o governo precisará de superávits primários, mas isso, pelas projeções do mercado, só deverá ocorrer depois de 2024. O cenário inclui crescimento econômico de 5,30% neste ano, 2,10% em 2022 e 2,50% em cada um dos dois seguintes. Está pressuposta, naturalmente, alguma seriedade na gestão pública. O aumento do PIB em 2021 parece garantido. O resto dependerá do dia a dia das jogadas políticas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31 de julho de 2021 | 03h00

Bolsonaro insulta o Brasil

É muito provável que Jair Bolsonaro continue sua campanha para minar a democracia, ao lançar dúvidas sobre a lisura das eleições

O presidente Jair Bolsonaro insultou o Brasil inteiro ao mobilizar as atenções do País para o espetáculo imoral e degradante que protagonizou na noite de quinta-feira. Usando recursos públicos, com transmissão pela TV Brasil e pelas redes oficiais da Presidência, desde o Palácio da Alvorada, residência oficial, e ao lado do ministro da Justiça, Anderson Torres, Bolsonaro disseminou mentiras escandalosas para minar a confiabilidade do sistema de votação brasileiro. Foi um ataque direto e inequívoco à democracia.

Bolsonaro passou a semana prometendo apresentar “provas” – uma “bomba”, segundo definiu – de que as urnas eletrônicas foram fraudadas para prejudicá-lo na eleição passada. Faz três anos que Bolsonaro anuncia ter as tais “provas”, mas nunca as mostrou. Chegado o momento, o presidente passou mais tempo ofendendo o Tribunal Superior Eleitoral – em particular seu presidente, ministro Luís Roberto Barroso, acusado por Bolsonaro de impedir que haja eleições “limpas”, para favorecer o petista Lula da Silva – do que demonstrando a alegada vulnerabilidade do sistema.

Quando afinal resolveu exibir as tais “provas”, limitou-se a mostrar vídeos com falsas denúncias que circulam há anos na internet, um deles produzido por um astrólogo que diz fazer acupuntura em árvores, e a dar crédito a análises estatísticas claramente distorcidas.

Por fim, admitiu candidamente que “não temos prova” e que “não tem como comprovar que as eleições foram ou não foram fraudadas”. Bolsonaro disse haver “indícios”, mas nem isso foi apresentado pelo presidente.

As agências de checagem de informações e a Justiça Eleitoral trabalharam dobrado para verificar, em tempo real, todas as mentiras de Bolsonaro. Mas, na prática, é ocioso esperar que a exposição da patranha seja suficiente para constranger o presidente, pois a mentira é a essência de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Afinal, a Justiça Eleitoral já demonstrou inúmeras vezes que o sistema de votação, um dos mais modernos do mundo, é confiável e totalmente auditável. Ou seja, se tivesse um mínimo de boa-fé, Bolsonaro já teria abandonado suas acusações a respeito das urnas eletrônicas.

É muito provável, portanto, que Bolsonaro continue sua campanha para minar a democracia, ao lançar dúvidas sistematicamente sobre a lisura das eleições e ao informar, de forma clara, que não pretende aceitar o resultado do pleito do ano que vem, caso perca.

Evidência disso é que, no mesmo pronunciamento em que pretendeu desmoralizar o sistema de votação, Bolsonaro convocou sua militância a ir às ruas protestar contra o atual sistema de votação. “Eu tenho certeza, se eu pedir ao povo no dia tal, comparecer na Paulista, em São Paulo (...), vai comparecer 1 milhão de pessoas lá”, jactou-se. E emendou: “Se a demonstração popular não sensibilizar as autoridades do Brasil, o que podemos esperar? Que o povo se revolte? Queremos isso?”.

Trata-se de ameaça explícita de insurreição. Ao agir dessa maneira, Bolsonaro torna-se tóxico para a democracia e, convém lembrar, para quem a ele se alia.

Não faz muito tempo, acreditava-se que os militares da ativa e da reserva que integram o governo fossem capazes de moderar o presidente, um insubordinado desde seus tempos de Exército. Se tentaram, fracassaram.

Agora, imagina-se que o Centrão, na figura do novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, conseguirá refrear os ímpetos liberticidas de Bolsonaro, no mínimo para evitar um impeachment. Contudo, na mesma semana em que nomeou Ciro Nogueira, Bolsonaro chocou o País com seu pronunciamento golpista contra o sistema de votação, reiterou suas acusações levianas contra a Justiça Eleitoral, disse que o Supremo Tribunal Federal “cometeu crime” ao defender o princípio federativo no combate à pandemia de covid-19 e, de quebra, chamou os eleitores de Lula da Silva de “jumentos”.

Bolsonaro, portanto, é caso perdido. Mesmo que quisesse, não saberia ser moderado. O conflito permanente é seu combustível, e arruinar a democracia, sua meta. Nesse caso, só a lei é capaz de moderar Bolsonaro. Está na hora de aplicá-la.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31 de julho de 2021 | 03h00

Com rejeição de 62%, Bolsonaro perderia para Lula, Mandetta, Ciro, Haddad e Doria no segundo turno

Pesquisa da Atlas Político mostra que erros na gestão da pandemia e suspeitas de corrupção na compra da vacina elevaram a reprovação do presidente. Vantagem do petista cresce e governador de São Paulo aparece por primeira vez com chances de vencê-lo

O presidente Jair Bolsonaro, durante cerimônia no Palácio do Planalto, nesta terça, 27.ERALDO PERES / AP

A gestão da pandemia e as suspeitas de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 mantêm o desgaste do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mostra pesquisa da Atlas Político, realizada desde segunda, 26, e finalizada nesta quinta, 29. Se as eleições fossem hoje, o presidente perderia para seus principais adversários no segundo turno, incluindo o governador João Doria (PSDB-SP), empatado tecnicamente com Bolsonaro, mas com viés de vantagem. Doria venceria com um resultado de 40,6% a 38,1% do presidente. Como a pesquisa tem 2 pontos porcentuais de margem de erro para cima ou para baixo, eles ainda estão empatados, mas é a primeira vez que o governador paulista aparece no páreo para se eleger. Em maio, Doria ficava 6,1% atrás de Bolsonaro na simulação de segundo turno.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ampliou a vantagem sobre Bolsonaro em comparação à pesquisa anterior e venceria por 49,2% contra 38,1%, num eventual segundo turno, num cenário com 12,8% de votos nulos ou brancos. Em maio, a vantagem de Lula era de 4,7% sobre o presidente. “A tendência é de fortalecimento de Lula”, diz o cientista político Andrei Roman, CEO do Atlas. “Desde o início do ano, Lula vem numa trajetória constante de crescimento”, completa.

Também Ciro Gomes (43,1% a 37,7%), o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (42,9% a 37,5%), e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (41,9% a 38,4%) ampliaram sua preferência, e poderiam frustrar o sonho da reeleição do presidente em 2022.

O levantamento confirma o momento de baixa de Bolsonaro, enquanto ele intensifica a campanha contra o sistema eleitoral eletrônico, mesmo sem ter provas para sustentar o que afirma, como mostrou sua live nesta quinta. Segundo a Atlas Político, a rejeição ao presidente subiu e chegou a 62% neste final de julho, contra 36% de aprovação. Trata-se de uma alta de cinco pontos porcentuais em relação a maio, quando a CPI da Pandemia começou. A Comissão Parlamentar apontou irregularidades em contratos de compra de vacinas, como a indiana Covaxin, e suspeitas de pedidos de propina em outras negociações que atingem inclusive militares que ocupavam cargo no Ministério da Saúde.

Roman lembra que o noticiário tem sido negativo para Bolsonaro desde o início do ano, com a pandemia, que teve seu ápice em março e abril, até que a vacinação pegasse velocidade. “Há, ainda, os problemas da vida cotidiana. O impacto econômico da pandemia, com os brasileiros desempregados, a renda menor. E milhares de brasileiros que perderam alguém querido para pandemia”, explica Roman.

As ameaças à democracia, quando sugeriu, no início deste mês, que as eleições poderiam não se realizar , não são fatores captados pelo eleitor ouvido na pesquisa. “Pode ser que isso gere uma polarização maior na sociedade, que neste momento se consolide uma maioria contra Bolsonaro, mas também é algo que mobiliza a sua base”, observa Roman. “Não há derretimento de sua imagem por causa da retórica contra as instituições, nem com a insistência na fraude em eleição, uma tese aventada desde as eleições de 2018”, completa.

Mas seus adversários também se fortalecem. O ex-presidente Lula, por exemplo, que já teve 60% de rejeição em maio do ano passado, hoje tem 54%. Ciro Gomes, pré-candidato do PDT à presidência, também já teve 60% de rejeição em novembro do ano passado e hoje tem 50%. Ciro, porém, ainda avança lentamente no ranking de preferência dos eleitores. Alcança 6,2% da preferência numa simulação de primeiro turno com Lula, Bolsonaro, Mandetta, os apresentadores Danilo Gentile e Luiz Datena, além do governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB). Em maio, Ciro tinha 5,7% das preferências.

Rejeição no Nordeste e no Sul

Na divisão dos eleitores por religião, o presidente tem uma aprovação de 52% dos entrevistados evangélicos, contra 45% que desaprovam o seu desempenho. Entre os católicos, a rejeição vai a 69% contra 29% que o aprovam. Já na divisão por renda, Bolsonaro tem rejeição maior que 50% em todas as faixas. Seu melhor desempenho está entre os eleitores que ganham entre 3000 e 10.000 reais (43% dos entrevistados aprovam sua gestão) e 2.000 e 3.000 reais (42%). Sua maior rejeição vem entre os que ganham até 2.000 reais (69%), e os que ganham acima de 10.000 reais (também 69%, como mostra o quadro abaixo). Os eleitores do Nordeste e Sul do Brasil são os mais refratários ao presidente: 73% e 65%, respectivamente.

O cientista político lembra que apesar do momento de baixa, a rejeição ao presidente não é irreversível. “Quem não votou nele continua rejeitando, mas quem votou, não”, diz Roman. A pesquisa mostra que 70% dos eleitores que votaram nele em 2018 continuam aprovando seu Governo. “Bolsonaro se elegeu com 57,7 milhões de votos. Mesmo com a perda de apoio de parte desses eleitores, ele continua forte”, explica.

Os ‘nem nem’ e Eduardo Leite

Segundo Roman, há 23% do eleitorado que não quer votar nem em Lula nem em Bolsonaro. É nesse espaço que seus adversários tentam construir uma terceira alternativa para o eleitor, por ora, sem sucesso. Na simulação com todos os potenciais candidatos, nenhum alcança dois dígitos nas preferências, até o momento. Não é uma tarefa fácil, explica o CEO da Atlas Político, pois seria necessário um nome que tirasse votos de ambos que têm um eleitorado já consolidado. Juntos, eles somam mais de 70% do eleitorado. “Esse é um espaço que não foi criado, e o potencial candidato precisa mostrar que as suas propostas são melhores que as de Lula e Bolsonaro”, avalia.

Roman vê no governador Eduardo Leite um potencial de crescimento capaz de criar essa alternativa. Seu nome foi testado na pesquisa da Atlas Político em maio, quando alcançou 1,1% das preferências. No início deste mês, Leite ficou no centro das atenções do país após uma entrevista ao jornalista Pedro Bial em que assumiu publicamente sua homossexualidade. Falou também da sua intenção de concorrer as prévias tucanas para ser candidato à presidência, distanciando-se dos dois líderes nas pesquisas. Depois da exposição, foi entrevistado por jornais de todo o Brasil e seu nome ganhou mais força.

Na pesquisa desta sexta, ele aparece com 3,1% das preferências, logo atrás do governador João Doria, que tem 3,5%. “Ele é o fator novidade. Se ultrapassar o Doria, fica numa posição bem interessante para avançar, com chances do segundo turno”, opina Roman. “Aí, todo o jogo político seria reinventado”, completa.

Leite tem a vantagem de ser desconhecido (43% dos entrevistados não sabiam quem é ele) e portanto com rejeição menor que os outros nomes no páreo: 37% contra 62% de rejeição a Bolsonaro e 54% de Lula. Já o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que está menos exposto ao público nos últimos meses, tem uma rejeição similar à de Lula e numa simulação de segundo turno seria derrotado por Bolsonaro. A um ano e três meses da próxima eleição, ainda é cedo para cravar qualquer resultado, especialmente num cenário em que se desenham cascas de banana com a campanha do presidente contra a urna eletrônica. A pesquisa da Atlas Político foi feita a partir entrevistas online com 2.884 pessoas levando em conta região, faixa etária, gênero e faixa de renda. As respostas são calibradas por um algoritmo de acordo com o perfil do eleitorado.

CARLA JIMÉNEZ, de S. Paulo para o EL PAÍS, 30 JUL 2021 

"Redes sociais precisam fazer mais contra discurso de ódio"

Jornalista Patrícia Campos Mello, alvo de ataques de bolsonaristas desde que revelou esquema de envio de mensagens falsas na eleição de 2018, pede que Facebook e outras redes invistam mais no combate à violência digital.

Campos Mello participou do Global Media Forum 2021, a maior conferência de mídia da Alemanha

Jornalistas brasileiros se tornaram alvo frequente de campanhas de ódio na internet, muitas vezes incentivadas por autoridades governamentais, e as redes sociais não estão investindo o suficiente para combater a prática, seja com inteligência artificial ou com funcionários para fazer a moderação do conteúdo compartilhado nas plataformas.

A análise é da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, que sofre ataques de bolsonaristas desde que publicou uma série de reportagens sobre o disparo de notícias falsas nas eleições de 2018. As apurações apontaram que empresários bancaram o envio de mensagens em massa com conteúdo anti-PT no Whatsapp, com recursos não declarados e à margem da legislação eleitoral.

Campos Mello falou à DW como participante do Global Media Forum 2021, a maior conferência de mídia da Alemanha, que neste ano ocorreu totalmente online.

Em função de seu trabalho, a jornalista passou a receber mensagens de ódio e ameaças, viu sua imagem ser usada em memes que a difamavam e teve sua conta de Whatsapp hackeada. Em 2020, ela foi alvo de um insulto com insinuação sexual proferido pelo presidente Jair Bolsonaro, repudiado por entidades de imprensa, jornalistas e políticos.

No mesmo ano, Campos Mello lançou um livro, A máquina de ódio – Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital (Companhia das Letras), no qual relata suas apurações e os ataques que sofreu, e contribui para o debate sobre o problema das notícias falsas e como enfrentá-lo.

O envio em massa de mensagens falsas pelo Whatsapp para beneficiar Bolsonaro é o tema de ações propostas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pedem a cassação do mandato do presidente. Duas delas foram rejeitadas em fevereiro, e outras duas ainda não foram julgadas. Em julho, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou que provas obtidas nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos sejam usadas nas ações que tramitam na Corte eleitoral.

Campos Mello recebeu em 2019 o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa, concedido pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), e em 2020 o prêmio Maria Moors Cabot, concedido pela universidade americana Columbia.

DW: Você foi alvo de ataques e discurso de ódio diversas vezes desde 2018, quando investigou uma campanha de Whatsapp em apoio a Jair Bolsonaro. É necessário ter mais coragem para fazer o seu trabalho no Brasil de hoje do que quando você costumava cobrir áreas de conflito e em guerra?

Quando eu estava fazendo reportagens na Síria, na Serra Leoa e no Afeganistão, estava em uma posição privilegiada. Tinha saído do meu país voluntariamente para cobrir uma perspectiva de um conflito ou de uma pandemia, e depois voltaria para casa. Os verdadeiros alvos eram os civis morando nesses países, que não tinham a opção de ir para outro lugar.

Hoje em dia, os jornalistas são os alvos no Brasil. Claro que não podemos comparar isso a uma situação de guerra, na qual pessoas estão morrendo. Mas jornalistas estão sendo constantemente atacados na internet e nas ruas, fisicamente e verbalmente, e estão sujeitos a campanhas de difamação conduzidas por autoridades governamentais e a assédio judicial.

Em 2020, o escritório do Twitter no Brasil a apoiou, condenando a campanha de assédio contra você. O Twitter, o Facebook e outras redes sociais deveriam fazer mais contra discurso de ódio? O quê, em termos práticos?

Em 2018, quando os ataques começaram, o Facebook não ajudou em nada. Apesar de eu ter explicado que muito conteúdo falso sobre mim estava sendo disseminado, eles disseram que não poderiam fazer nada.

Em 2020, o Twitter foi mais proativo, enquanto o Facebook e outras redes sociais ainda foram muito lentos na reação. Certamente acho que eles precisam fazer mais a respeito de discurso de ódio. Acho que eles não estão investindo recursos suficientes para combater discurso de ódio, seja com inteligência artificial ou com pessoas para moderar.

Como organizações de mídia em todo o mundo podem fortalecer o espírito jornalístico e criar solidariedade sob essas circunstâncias? Um maior comprometimento proativo com educação sobre mídia e informação ajuda o público a resistir ao tipo de manipulação da opinião pública que autocratas e déspotas tentam criar?

Fazer uma cobertura precisa e cuidadosa é sempre a melhor resposta. E cobrir ataques à liberdade de imprensa é parte dessa estratégia. E sim, também temos que deixar claro e educar as pessoas sobre a diferença entre fatos e opiniões.

Deutsche Welle Brasil, em 31.07.2021

STF manda retomar investigação sobre interferência de Bolsonaro na PF

Inquérito aberto após acusações de Sergio Moro estava parado desde 2020. Decisão ocorre em meio a novo momento de tensão entre STF e Bolsonaro por causa de campanha de mentiras do presidente contra processo eleitoral.

O inquérito foi aberto em abril de 2020, após o ex-ministro Sergio Moro pedir demissão do Ministério da Justiça e lançar acusações contra o presidente

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou nesta sexta-feira (30/07) que a Polícia Federal retome o inquérito que apura a suspeita de interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.

As investigações foram abertas no ano passado, a partir de acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro.

A retomada do caso ocorre em um novo momento de tensão entre Bolsonaro e membros do STF. Enfraquecido politicamente e em desvantagem nas pesquisas para as eleições de 2022, o  presidente lançando uma nova campanha de mentiras para enfraquecer a confiança no processo eleitoral. Os ataques de Bolsonaro estão sendo especialmente direcionados contra o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

"Determino a imediata retomada da regular tramitação deste inquérito, independentemente do julgamento do agravo regimental interposto pelo presidente da República Jair Bolsonaro, que está previsto para data breve, 29/9/2021", escreveu Moraes.

Moraes é relator de outros casos que provocam tensão entre bolsonaristas

No despacho, Moraes ressaltou que a retomada do inquérito não precisa aguardar uma definição do plenário do STF sobre a forma como o depoimento de Bolsonaro no caso deve ocorrer. O inquérito está paralisado desde 17 de setembro de 2020, devido à indefinição sobre o depoimento de Bolsonaro. Na ocasião, o ministro Marco Aurélio Mello suspendeu a investigação até que o plenário do STF decida se Bolsonaro tem ou não o direito de depor por escrito, ao invés de presencialmente.

O julgamento sobre a forma do depoimento está marcado para o final de setembro deste ano.

Em dezembro, Alexandre de Moraes decidiu que o presidente Bolsonaro não pode desistir de prestar depoimento. Na mesma decisão, o ministro do STF também negou um pedido da Advocacia Geral da União (AGU) para encerrar as investigações contra o presidente.

A relatoria do inquérito passou para Moraes após aposentadoria do ministro Celso de Mello em outubro de 2020. Moraes também é relator de outros dois inquéritos que tem figuras do círculo de Bolsonaro como alvo. Um envolve os atos antidemocráticos organizados e estimulados por aliados do presidente no ano passado. O outro é o chamado inquérito das "fake news", que investiga uma rede de propagação de ataques contra ministros do STF e adversários do bolsonarismo.

O caso

O inquérito foi aberto em abril de 2020, após o ex-ministro Sergio Moro pedir demissão do Ministério da Justiça e lançar acusações contra o presidente. Segundo o ex-juiz, Bolsonaro decidiu trocar a chefia da Polícia Federal, à época comandada por Maurício Valeixo, para ter acesso a informações de inquéritos sobre a família dele.

Valeixo foi exonerado da chefia da PF em 24 de abril. Na véspera, Moro havia dito a Bolsonaro que não ficaria no ministério se o diretor-geral fosse afastado, e acabou pedindo demissão na mesma data. À época, o ex-ministro afirmou que não assinou a exoneração de Valeixo e que ficou sabendo dela pelo Diário Oficial. Ele também já havia declarado que Valeixo não pediu para deixar o cargo, como Bolsonaro chegou a alegar.

Ao anunciar sua renúncia, o ex-juiz acusou o presidente de tentar interferir na Polícia Federal ao cobrar a troca da direção-geral, bem como a do comando da Superintendência no Rio de Janeiro. As declarações acabaram levando à abertura da investigação pelo Supremo em 28 de abril. Bolsonaro vem negando as acusações desde então.

Tanto o presidente como Moro são investigados na ação, que apura se Bolsonaro de fato tentou interferir na PF, ou se o ex-ministro da Justiça mentiu em suas alegações.

Em depoimento ao Supremo, Moro apontou que uma reunião ministerial realizada em 22 de abril serviria de prova contra Bolsonaro no caso, e Celso de Mello acabou tornando pública a gravação do encontro em maio de 2020, gerando fortes repercussões no meio político pelo teor das conversas.

As imagens mostraram que o presidente estava insatisfeito com a Polícia Federal e revelaram desejos de Bolsonaro de proteger seus filhos, irmãos e amigos. Bolsonaro afirma que estava apenas preocupado com segurança física de seus familiares, mas as imagens do encontro enfraquecem a versão do presidente.

"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f... minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar, se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", disse Bolsonaro na reunião.

Deutsche Welle Brasil, em 31.07.2021

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Bolsonaro mexe as peças com um só objetivo: salvar o pescoço e garantir sua reeleição em 2022

O governo virou comitê de campanha de presidente, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho para 2022

Goste-se ou não de Roberto Jefferson, o polêmico político do PTB e do Centrão que detonou a crise do mensalão no governo Lula, ele tem razão: a reforma ministerial do presidente Jair Bolsonaro lembra a manobra de Fernando Collor para salvar o pescoço em 1992, quando mudou o seu governo para ampliar a base de apoio no Congresso. No caso de Collor, foi tarde demais. E no de Bolsonaro?

O fato é que foi uma decisão drástica entregar a “alma do governo” para o senador Ciro Nogueira, do PP, líder do Centrão e aliado do PT em 2018, quando chamava Bolsonaro de “fascista”. O Centrão está com tudo, os militares vão escorregando para o segundo pelotão e Paulo Guedes perde de nacos de poder para Onyx Lorenzoni construir sua campanha durante curtos – ou longos? – oito meses, até se desincompatibilizar para disputar o Governo do Rio Grande do Sul.

Bolsonaro diz que voto impresso é questão para militar tratar

Onyx foi da Casa Civil, do Ministério da Cidadania e da Secretaria Geral da Presidência, até Bolsonaro criar o Ministério de Emprego para gerar um único emprego, o dele. E Guedes tinha um latifúndio ministerial, mas nunca teve poder. Agora, não tem um nem outro. Seu ministério vai continuar sendo fatiado para o Centrão e ele desliza para o ostracismo, não pelo que não fez, mas pelo que insiste em fazer: engolir sapos em nome da reeleição.

O argumento de Guedes é o mesmo dos generais que insistem em se submeter ao capitão insubordinado: “espírito de missão”. Heroico, mas não verdadeiro. Ele só fica pela sensação de poder e por resistir a admitir a derrota, ao contrário do também “superministro” Sérgio Moro, que demorou mais do que o razoável, mas mostrou que tinha limite. Guedes não tem limite.

O governo virou comitê de campanha de Bolsonaro, onde as peças se movem para salvar seu mandato e pavimentar o caminho da reeleição. Ao atravessar a rua e ir para o Planalto, Ciro Nogueira anula as chances do seu amigo Arthur Lira abrir um dos 125 pedidos de impeachment, reforça a articulação com o Senado e abre espaço para o filho “01”, Flávio Bolsonaro, virar suplente da CPI da Covid com direito a palavra, impropérios contra a cúpula da comissão e acesso direto a todos os documentos da CPI. Presentão para o papai.

Além de reformar a casa, melhorar os alicerces governistas da CPI e penetrar mais firmemente no Nordeste (Ciro é do Piauí e Lira, de Alagoas), Bolsonaro também cria vales e aumenta as bolsas para o eleitorado mais pobre, e mais numeroso. De quebra, fideliza o núcleo duro do seu eleitorado ao se assumir cada dia mais radical.

Vem daí a foto, às gargalhadas, com a líder de um partido alemão xenófobo e de inspiração nazista, investigado no próprio país por mensagens e práticas ilegais. Não é trivial presidentes receberem deputados estrangeiros. Menos ainda, presidentes de países democráticos receberem parlamentares antidemocráticos.

Além disso, o presidente deu a Michelle Bolsonaro a medalha Oswaldo Cruz, para quem se destaca em ciência, educação e saúde, e o governo comemorou o Dia do Agricultor com uma foto, não de um trabalhador com sua enxada, mas de um jagunço com um rifle. Nem Michelle se destaca em nenhuma dessas áreas, nem o sofrido agricultor é jagunço, grileiro, desmatador, miliciano do campo. O governo estimula a guerra no campo?

O presidente também assinou um decreto para regulamentar a Lei Rouanet e, como tem sido um desastre para a Cultura, boa coisa não sai daí. E ele ainda não vetou o fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, mas atendeu aos planos de saúde e vetou a lei que os obrigava a custear a quimioterapia oral para pacientes com câncer. É esse Jair Bolsonaro, o verdadeiro, que disputará voto na urna eletrônica em 2022.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globo News Em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 30.07.2021.


O Centrão vai suportar o ‘Custo Bolsonaro’?; leia análise

Live do presidente sobre supostas fraudes mostra que se casar com ele significa levar o combo bolsonarista junto: teses malucas e autoritárias defendidas pelo bolsonarismo

Presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 27/07/2021

A live do presidente Bolsonaro sobre as supostas fraudes nas urnas eletrônicas mostra que se casar com ele significa levar todo o combo bolsonarista junto. O Centrão imagina que possa ficar só com o lado bom desse casamento: o comando de grande parte do Orçamento federal, peça-fundamental para reeleger deputados e senadores desse grupo. Porém, existe um outro lado: as teses malucas e autoritárias defendidas pelo bolsonarismo.

No fundo, a aposta política do Centrão envolve incorporar o que se poderia chamar de ‘Custo Bolsonaro’. Os políticos de partidos tradicionais da centro-direita que agora aliam-se ao presidente da República poderão ser, em alguma medida, identificados com os atos golpistas e extremistas do bolsonarismo. Três efeitos negativos podem advir disso. Primeiro e mais importante: alguns parlamentares do Centrão têm processos no STF e serão acompanhados pelo TSE durante a eleição de 2022. Aparecerem como incendiários da democracia os ajudará nestas arenas judiciais?

Bolsonaro deu 1.682 declarações falsas ou enganosas no ano passado, diz relatório

Em segundo lugar, esse discurso golpista afastará a maior parte dos eleitores dos principais centros urbanos e de grande parte da classe média, algo que se soma ao impacto negativo derivado da condução da pandemia. Não será arriscado jogar fora todo esse eleitorado? Claro que o casamento com Bolsonaro pode gerar bônus eleitorais junto aos mais pobres por meio de um Bolsa Família turbinado e do clientelismo em obras públicas. Mas em lugares como o Nordeste não será fácil tirar votos do lulismo, enquanto em Estados comandados por adversários, como São Paulo, haverá programas sociais para concorrer com o dinheiro federal do Centrão.

A consequência maior, no entanto, é que a aposta do bolsonarismo no golpismo mobiliza um grupo muito coeso e disposto a tudo. O Centrão acredita que pode moderar os arroubos bolsonaristas, e se isso der errado, há tempo suficiente para pular do barco antes da eleição de 2022. Mas tais lideranças da política tradicional se esquecem que se aliaram com quem poderá ser amanhã o seu maior inimigo. Assim, um divórcio poderá não ser suficiente para recuperar um eleitorado urbano e ainda gerar uma enorme dor de cabeça, com extremistas xingando os políticos do Centrão pelas redes sociais e pelo país afora. 

Fernando Abrucio, o autor deste artigo, é doutor em ciência política pela USP e Professo de Gestão Pública da FGV-Eaesp. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 30 de julho de 2021 | 05h00

Como enfrentar a impostura

O presidente não mente de forma eventual, mas sistemática. A reação a isso deve ser institucional, com economia rigorosa de expletivos e exclamações

O presidente Jair Bolsonaro deu 1.682 declarações falsas ou enganosas em 2020, o que dá uma média de 4,3 por dia, segundo um estudo anual divulgado ontem pela Artigo 19, organização britânica de defesa da liberdade de expressão.

Esse espantoso número mostra que o presidente não mente apenas de forma eventual, mas sistematicamente, o que constitui um evidente método. Sua intenção, já está claro, é usar o destaque conferido a seu cargo para confundir a opinião pública, de modo a dificultar a formação de consensos sobre a realidade. Sem esses consensos mínimos, o debate democrático se torna inviável, o que é precisamente o que Bolsonaro almeja.

Não à toa, como mostra o mesmo estudo, o presidente e seus assessores deram nada menos que 464 declarações públicas contra a imprensa em 2020, justamente para desacreditar as informações baseadas na realidade – matéria-prima do jornalismo profissional – e legitimar distorções produzidas pelo departamento de agitação e propaganda do bolsonarismo.

Se não traz novidade, pois afinal a mendacidade crônica de Bolsonaro e de seus camisas pardas, a esta altura, já é notícia velha, o estudo da Artigo 19 tem o mérito de dar a dimensão chocante daquilo que apenas se intuía: para Bolsonaro, mentir é uma virtude, talvez a principal da seita que lidera.

Um presidente com essas características impõe desafios inéditos na história republicana. As instituições democráticas, por definição, devem se alicerçar na veracidade dos fatos, para que as decisões que afetam a sociedade respeitem a realidade e, assim, sejam efetivas e aceitas como legítimas mesmo por aqueles que a elas se opuseram.

Quando a mentira impera nas mais altas esferas de governo, as decisões das instituições democráticas serão sempre objeto de desconfiança, instaurando-se o conflito – que é precisamente o combustível dos regimes de vocação autoritária. O conflito, tal como idealizado por esses governos, presume a criação de inimigos ubíquos, cujo combate demanda a politização dos menores aspectos da vida cotidiana, impedindo, mesmo nas relações pessoais e familiares, a formação de consensos triviais.

É claro que, num tal estado de coisas, a democracia se inviabiliza, razão pela qual as instituições democráticas devem reagir com firmeza a cada mentira proferida pelo presidente.

No entanto, essa reação deve ser, com o perdão da redundância, institucional. Isto é, deve se limitar a demonstrar as mentiras do presidente, com economia rigorosa de expletivos e exclamações. Deixar-se levar pela emoção, produzindo respostas exageradas às imposturas presidenciais, é fazer exatamente o que pretendem os vândalos da democracia: rebaixar o debate ao nível da briga de rua.

Por esse motivo, não foi adequada a recente reação do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de sua Secretaria de Comunicação, à enésima declaração do presidente Bolsonaro acerca das decisões da Corte que, segundo ele, o impediram de interferir na administração do combate à pandemia de covid-19.

“O STF não proibiu o governo federal de agir na pandemia! Uma mentira contada mil vezes não vira verdade!”, exclamou o Supremo em sua conta no Twitter, ao divulgar um vídeo para esclarecer que jamais proibiu Bolsonaro de trabalhar para conter a pandemia.

Além do tom indignado, fora de lugar, o uso de uma expressão que serve frequentemente para caracterizar a propaganda do regime nazista (“Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”) cria desnecessário ruído.

Ademais, e isso talvez seja o mais importante, não serão comparações com o nazismo que farão o presidente se emendar. Ao reagir à mensagem do Supremo, Bolsonaro mentiu novamente, dizendo que a Corte “cometeu crime” por ter dado a governadores e prefeitos a possibilidade de “suprimir todo e qualquer direito previsto no inciso (sic) 5.º da Constituição, inclusive o ir e vir” – em referência às medidas de isolamento social. E arrematou: “Fizeram barbaridades acobertados pelo Supremo”.

Como se vê, ao presidente interessa transformar o País numa imensa rinha de galos. Nela, Bolsonaro joga em casa.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de julho de 2021 | 03h00

Fux prepara resposta a ameaças de Bolsonaro e Braga Netto às eleições e quer reunião entre Poderes

Presidente descumpriu o acordo firmado com o presidente do STF e voltou a tensionar a relação com a Corte e o TSE em busca do voto impresso  

O presidente da República, Jair Bolsonaro, reunido com chefes de Poderes para tratar sobre a pandemia Foto: Dida Sampaio/Estadão

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, deve usar o tradicional discurso de retomada dos julgamentos na Corte na segunda-feira, 2, após o recesso do Judiciário, para enviar recados ao Palácio do Planalto, diante das sucessivas ameaças à realização das eleições em 2022. Fux prepara uma resposta à tentativa de intimidação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Como revelou o Estadão, o ministro mandou um interlocutor avisar aos Poderes que não haveria eleições de 2022 se não fosse aprovado o voto impresso.

O recado chegou para o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que cobrou do presidente Jair Bolsonaro respeito ao processo democrático. Desde a semana passada, Fux vem sendo pressionado a se manifestar sobre as ameaças golpistas que agora também partem da Esplanada dos Ministérios. Segundo apurou o Estadão, o presidente do STF deve discursar em defesa da democracia, destacando que os Poderes não podem extrapolar o seu papel no Estado de Direito.

‘Provas’ de Bolsonaro sobre fraude em urnas são vídeos antigos com alegações falsas

Presidente do STF, Luiz Fux. Foto: Fellipe Sampaio / STF

Em conversas reservadas, o ministro disse que avalia citar nominalmente as Forças Armadas e Braga Netto, que teriam gerado a crise política instalada a partir de acenos golpistas. Há, ainda, a possibilidade de que a declaração seja mais genérica, evitando despertar animosidade no meio militar, mas que, mesmo assim, cumpra o papel de sinalizar aos outros Poderes e à caserna o comprometimento do Supremo com a estabilidade democrática.

A crise entre o Supremo e o Planalto ganhou fôlego depois que ministros da Corte se reuniram com dirigentes de partidos para reverter a tendência de aprovação do voto impresso pelo Congresso. Após a ameaça de Braga Netto, houve reação pública de três magistrados — Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso –, e se chegou a considerar uma nota conjunta a respeito.

Vice-presidente do TSE, Fachin declarou, momentos após a publicação da reportagem do Estadão, que “o sistema eleitoral do País encontra-se desafiado pela retórica flagiciosa, perversa, do populismo autoritário”. Nesta quinta-feira, 29, Barroso fez duras críticas à proposta de adoção do voto impresso como mecanismo adicional de auditagem das urnas eletrônicas. “O discurso de que se eu perder houve fraude, é um discurso de quem não aceita a democracia”, afirmou. A manifestação de Barroso foi feita no mesmo dia em que Bolsonaro prometeu apresentar provas de que as eleições de 2014 e 2018  foram manipuladas. O presidente queria dizer que as do ano que vem também serão. Em transmissão ao vivo nas redes sociais, porém, acabou admitindo não ter provas, mas apenas “indícios”.

Em cerca de duas horas de live, retransmitida pela TV Brasil, ele usou uma série de alegações falsas para contestar a segurança da urna eletrônica, além de repetir ataques ao TSE e ao ministro Barroso, presidente da Corte eleitoral. Durante o discurso de Bolsonaro, o TSE rebateu as acusações por meio de checagens enviadas à imprensa. 

Reunião

O pronunciamento de Fux ocorrerá pouco após um novo episódio de conflito entre as instituições. O discurso na sessão inaugural, no entanto, não será o único ato do presidente do Supremo na tentativa de debelar a crise institucional instalada na Praça dos Três Poderes. Na próxima semana, Fux deve se encontrar com Bolsonaro e com os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

O encontro deveria ter ocorrido no último dia 14, mas foi desmarcado porque Bolsonaro precisou ser submetido a tratamento médico de emergência em São Paulo. Naquele momento, o presidente do STF tentava reunir as lideranças para remediar a crise política entre os Poderes causada, sobretudo, pela atitude beligerante de Bolsonaro em relação à adoção do voto impresso.

No dia 12 deste mês, pouco antes da data prevista para a realização do encontro de líderes, Fux chamou Bolsonaro ao Supremo para selar um acordo de paz. Na ocasião, o magistrado pediu ao presidente que ‘respeitasse os limites da Constituição’. Em resposta, o político teria se comprometido a moderar os ataques aos ministros do STF e do TSE. Esse encontro ocorreu depois que Lira avisou Bolsonaro que não compactuaria com atitudes golpistas, como revelou o Estadão.

A promessa, no entanto, caiu por terra pouco tempo depois da conversa com Fux. No último sábado, 24, Bolsonaro voltou a questionar a lisura do sistema eleitoral brasileiro e a defender o voto impresso. "Na quinta-feira (29) vou demonstrar em três momentos a inconsistência das urnas, para ser educado. Não dá para termos eleições como está aí", disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Ele ainda afirmou que o povo não aceitaria o pleito sem a possibilidade de imprimir o comprovante do voto.

Horas antes da live prometida, Bolsonaro voltou a atacar o Supremo. Dessa vez, o tensionamento da relação com a mais alta corte do Judiciário ocorreu devido ao vídeo publicado ontem pela Secretaria de Comunicação do STF.

Na peça publicitária que integra a campanha “#VerdadesdoSTF”, é desmentida mais uma vez a versão reproduzida reiteradamente pelo presidente e por aliados do Planalto de que o tribunal teria proibido o governo federal de agir no enfrentamento à pandemia de covid-19.

Parafraseando a famosa frase de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do regime nazista de Adolf Hitler, o Supremo dizia no texto de divulgação do vídeo em resposta a Bolsonaro que “uma mentira contada mil vezes não vira verdade”.

Na manhã desta quinta-feira, 29, o presidente respondeu e subiu o tom em conversa com apoiadores em frente ao Alvorada: “O Supremo cometeu crime ao dizer que prefeitos e governadores podem suprimir direitos”. A afirmação desinformativa foi seguida pela declaração também inverídica e recorrente de que o tribunal o impediu de atuar. “Prefeitos e governadores tinham mais poder do que eu”, disse. Em sua conta oficial no Twitter, Bolsonaro escreveu que o Supremo “delegou poderes para que Estados e municípios” agissem no enfrentamento da doença.

A decisão por unanimidade no plenário da Corte apenas definiu a possibilidade de concorrência entre as instâncias do Executivo na adoção de medidas preventivas à doença. O voto do ministro Edson Fachin, por exemplo, avaliou que a concentração das decisões na figura do presidente da República, sem contrapartida aos prefeitos e governadores, viola a separação dos Poderes.

Em uma medida cautelar que referendou a decisão do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes declarou que não cabe ao Executivo tomar qualquer iniciativa “que vise a desautorizar medidas sanitárias adotadas pelos Estados e municípios com o propósito de intensificar ou ajustar o nível de proteção sanitária”. Apesar de não poder evadir a competência de prefeitos e governadores, a decisão não retira os poderes do governo federal “de atuar como ente central no planejamento e coordenação de ações integradas de saúde pública, em especial de segurança sanitária e epidemiológica no enfrentamento à pandemia da Covid-19”, como cabe em suas atribuições.

Uma trégua, se houver, será apenas institucional. Na agenda do tribunal encontram-se pautas importantes, que dizem respeito inclusive a Bolsonaro, como o julgamento previsto para setembro que definirá se o presidente prestará depoimento no inquérito que apura se ele tentou interferir indevidamente nas atividades da Polícia Federal. Em novembro, os ministros votam a criação do juiz de garantias nos processos judiciais do País.

Weslley Galzo / BRASÍLIA, O Estado de S.Paulo, em 30 de julho de 2021 | 09h56