sábado, 3 de julho de 2021

Miguel Reale Júnior e a busca pela terceira via presidenciável

Não é fácil, ao contrário, mas a tragédia do momento empurra para uma saída de grandeza

Em setembro de 2018, instado por grupo de jovens, participei da tentativa de promover reunião de cinco candidatos à Presidência da República com vista a, informalmente, constituírem fusão em torno de um programa, liderada por quem escolhessem como candidato único das forças de centro (esquerda e direita). 

Chegou a se realizar profícua conversa prévia com assessores dos candidatos, no dia anterior ao encontro, a ocorrer no Instituto dos Advogados de São Paulo e a ser mediado por seu presidente, o dinâmico José Horácio Halfeld Ribeiro. 

Nessa conversa virtual com assessores, por sugestão nossa, fixou-se que a discussão seria sobre pontos básicos de proposta de governo a ser integrado por todos como ministros. Fariam parte do encontro Álvaro Dias, João Amoêdo, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Marina Silva.

Após animadora conversa com a assessoria dos candidatos, todavia, Amoêdo foi o primeiro a sair. Na noite anterior ao encontro, Marina avisou que não compareceria. Essa desistência levou Meirelles a também a não participar. Alckmin achou não ser produtivo um encontro apenas entre ele e Álvaro Dias, que manteve o interesse até o fim.

Não se pode voltar à sinuca de bico de ter de optar entre Bolsonaro, PT ou nulo. E mesmo se Bolsonaro se liquefazer, uma via de centro democrático é essencial para enfrentar Lula e garantir governabilidade.

Se o governo do PT teve pontos positivos, não se pode esquecer o imenso aparelhamento do Estado e a instituição de corrupção sistêmica, que as falhas graves de Moro e de procuradores não desfazem. O PT traiu os princípios que regiam o partido, por mim alcunhado, desde que Weffort era secretário-geral, de UDN de macacão, por sua pregação da ética na política. Nem é olvidável a pior recessão já vivida pelo País no governo Dilma.

Cumpre deixar de ter a atenção voltada só para nomes, em busca de pessoa salvadora, pois os carismáticos Jânio, Collor, Bolsonaro e mesmo Lula indicam o erro da crença em “mitos”.

O raciocínio é simples: de que vale ser candidato derrotado? O desejo de ocupar a Presidência da República precisa ceder à evidência das dificuldades eleitorais na fragmentação do campo do centro democrático, agindo-se com o bom senso que não houve em 2018. De outra parte, é certo que a reunião de muitos em torno de um projeto único terá impacto extraordinário.

A conjunção de forças políticas e da sociedade civil, a ser chamada a participar, deve estar acima dos interesses pessoais e partidários, para se cimentar união em vista de um programa mínimo. Os pretensos candidatos devem vir a ser partícipes de governo de aliança nacional, no qual o compromisso de luta conjunta preceda à assunção ao poder. A conversa havida dia 16 último, com a presença de presidentes de sete partidos (DEM, PSDB, MDB, PV, Cidadania, Podemos, Solidariedade) é alvissareira, bem como a posição comum contra o voto impresso. Outras siglas podem aderir, como Rede, PSB, PDT e PSD.

Assim, cumpre, desde já, firmar carta de intenções a respeito de programa de governo em pontos essenciais, com especificação da forma de execução da proposta, para não se permanecer no campo das declarações grandiloquentes e genéricas. Seria o caso de se ter na prática um “presidencialismo congressual”, com a existência de ministro coordenador, que vá gerenciar a execução do plano de governo, com comparecimento a cada dois meses ao Congresso para discutir e expor as ações governamentais.

Os temas da educação, saúde, segurança pública, redução da desigualdade com inclusão social e crescimento econômico, avanço científico e tecnológico, meio ambiente, custo Brasil em face de tantos entraves, são, por exemplo, questões a serem objeto de discussão e de definição conjunta, e levadas ao País como bandeira. Apresenta-se, então, não um nome, mas um projeto de governo ao qual as lideranças aderem e se comprometem a dar apoio parlamentar. Cabe ser um governo de Ministério, que gire em volta da proposta, e não em função de um salvador.

Estamos exaustos da pirotecnia e das bravatas irresponsáveis do clã Bolsonaro, bem como desconfiados do “faz de conta” do PT a se fantasiar de inocente, sem jamais ter feito qualquer autocrítica. Chega de teatro: o Brasil precisa de bom senso e comedimento, em busca da segurança que a previsibilidade outorga.

O instante requer a generosidade de se limitarem as ambições pessoais, para preservar a democracia do populismo, tão vazio como envolvente, e atender à ansiedade da maioria silenciosa, sôfrega de estabilidade e seriedade. Cada liderança, ao abrir mão do personalismo próprio do frágil presidencialismo imperial, contribuirá para construção do pressuposto essencial da democracia: a confiança nas instituições.

Mais à frente escolhe-se o nome do candidato que, em face do programa, apresente melhores condições de composição e de catalisação das forças diversas. Não é fácil, ao contrário, mas a tragédia do momento empurra para uma saída de grandeza.

Miguel Reale Júnior é Advogado, Professor Titular Sênior da Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo e membro da Academia paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 03.07.21.

Bolsonaro é um agente letal que agrava a pandemia

O Congresso Nacional se tornou uma extensão do matadouro instalado na presidência da República, que celebra a morte de Lázaro mas não se compadece de mais de meio milhão de mortos por covid-19

Um mural em protesto contra Bolsonaro no início de junho, na avenida Paulista, em São Paulo. (MARCELO CHELLO / AP)

Mais de meio milhão de pessoas morreram em decorrência da covid-19. O vírus está aí, fazendo o papel dele que é infectar. Enquanto isso a pessoa que foi eleita, não por mim, mas pela maioria dos votos válidos, nada faz para cessar esta catástrofe. Aliás, ele com sua agenda e postura negacionistas ajuda, e muito, na disseminação do vírus. Nesse contexto o presidente da República, Jair Bolsonaro, se torna um agente letal. Presidente? Ao pronunciar esta palavra me vem um sentimento de indignação e de revoltas profundos. Como alguém tão desqualificado para a função e tão desprovido de valores ligados à humanidade, pode chegar lá?

Bolsonaro tem uma relação íntima com a morte. Enquanto foi deputado federal nada propôs em prol da vida, da saúde pública e do bem estar da população. Ficou famoso – sim, grosseria pode trazer fama – pelo que não fez de útil, e pelo que fez de absurdo. Ele é lembrado pelas frases infames, pela canalhice com a deputada federal Maria do Rosário, pela apologia à tortura ao exaltar a figura de Brilhante Ustra, quando da votação do impeachment da Dilma Rousseff.

Bolsonaro fala e age como se fosse um zeloso pai dos policiais, e olhem que tem muito policial idiota que acredita nisso. Mas, ele também não está nem aí para estes profissionais. Quer mais que eles se danem, usa os corpos e as mentes dos incautos, como escadas na sua caminhada populista. Instiga os policiais para matarem, serem violentos e arbitrários. Não é por acaso que ele despreza o avanço das mortes por covid-19 e é o primeiro a tuitar “CPF Cancelado” nesta segunda, enaltecendo o extermínio do criminoso Lázaro Barbosa. Tudo isso como se fosse sinônimo de autoridade.

Bolsonaro abraça a morte ao apregoar que policiais saiam matando e sejam considerados heróis por isso. Quanto aos policiais que adoecem psiquicamente e aqueles que chegam ao suicídio? Quanto aos familiares dos policiais que sofrem? Bom, para Bolsonaro, são problemas deles. Coisa de maricas. Danem-se. E daí?

Bolsonaro tem um torturador como herói e exemplo de conduta. Ele fez inúmeras menções nesse sentido ao Major Ustra, ser das trevas. Exemplo do que é mais anti-humano e degradante. Bolsonaro se identifica com esse tipo de pessoa. Há uma afinidade de valores – torturar, degradar, humilhar, destruir. São verbos que ele conjuga, assim como Ustra, com maestria. A morte simbólica daqueles que foram e são submetidos a condição desumana, daqueles que foram e são reduzidos à condição de nada, de objeto descartável e a morte, proveniente da eliminação física, abraça Bolsonaro para chamar de parça, de amigo de fé e meu irmão camarada.

Para quem acredita que a morte é o fim de tudo, que ela representa a falência do organismo, Bolsonaro também demonstra que “está em relacionamento sério com a morte”, apaixonado, cego, ligadão. Esse senhor tem prazer na destruição. Vejam o que fez e faz com o meio ambiente, com as agências regulatórias e com as instituições de Estado. Basta ver o que ele fez com o Exército brasileiro, o que fez e está fazendo com as universidades públicas, o que fez com o Ministério Público Federal, com o COAF, com a Polícia Federal e com a Câmara dos Deputados. Todos assassinados, para servir ao seu propósito destrutivo, ele tem atração pela morte e pela destruição. “Morte, I love you!”, diz Bolsonaro, sonha Bolsonaro. Certa feita, ele disse para o Trump: “I love you!”. Realmente, Bolsonaro tem atração por todos aqueles que, de alguma forma, simbolizam a destruição e o absurdo.

Algo precisa ser feito para cessar essa aberração. Não dá mais para suportar, nem por um segundo, Bolsonaro na presidência, presidindo um enorme cortejo fúnebre de pessoas e do Brasil, como nação. Esse ser precisa ser sacado do poder. Urgente!

Há meios. Para tanto, o Procurador Geral da República e o presidente da Câmara dos Deputados devem assumir as suas responsabilidades para com a nação. Tanto Augusto Aras, como Arthur Lira são cúmplices nesse morticínio. Tudo para receber verbas, emendas e posição política? Basta, senhores. Nada vale mais do que vidas humanas. Partidos políticos, os mais variados, devem igualmente assumir suas responsabilidades para com a nação. O Congresso Nacional se tornou uma extensão do matadouro instalado na presidência da República. Verbas, emendas e cargos políticos valem mais? Não, senhores.

Senhores procuradores da República, se manifestem contra o seu chefe. Proponham ações e iniciativas para retirá-lo do poder. As associações de classe devem se manifestar publicamente pela saída do sr. Aras. Ele não é dono do Ministério Público. Ele não é procurador ou defensor mor de Bolsonaro. Ele tem que agir a favor da República. E isso, definitivamente, ele não faz.

Não quero que alguém execute Bolsonaro, não estou tramando e nem propondo que ele seja assassinado. Portanto, André Mendonça, Augusto Aras, Ministro da Justiça e demais autoridades afins, não percam seu tempo comigo. Façam isso cumprindo suas missões constitucionais, há mais gente que, de fato, merece ser alvo da atenção de vossas senhorias. Dou uma sugestão: comecem pelo presidente da República. Não sejam omissos, não sejam mesquinhos, não sejam desumanos. Honrem as funções que exercem.

Adilson Paes de Souza, o autor deste artigo, é tenente coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos. Publicado no EL PAÍS, em 29.07.21.

De Xuxa ao PSTU, protestos contra Bolsonaro atraem aliados improváveis e buscam crescer com a crise política

Movimentos de diferentes ideologias convergem nos atos que serão realizados neste sábado nas grandes capitais de todo país, em um momento em que a pressão aumenta para o presidente. Vem para a Rua apoia movimento, mas disse que não é hora ainda de ir aos atos por causa da pandemia


Protestos contra o presidente Jair Bolsonaro dia 30 de junho,em Brasília. (JOÉDSON ALVES /  

Um post, à primeira vista tímido, da ex-apresentadora Xuxa Meneghel em sua rede social chamando para os protestos contra o presidente Jair Bolsonaro deste sábado, e a resposta do roqueiro, assumidamente reacionário, Tico Santa Cruz, dão o tom do que parece ser o início de um diálogo nas ruas entre improváveis aliados nas manifestações deste final de semana: “Vamos derrubar o genocida corrupto! Não se trata de ideologias, se trata de salvar vidas! TMJ”. 

Em todo o país, movimentos sociais somam forças com partidos de esquerda e centrais sindicais para aumentar a pressão sobre o Governo federal e já contam com a simpatia —não necessariamente apoio— de antigos opositores, como o diretório municipal do PSDB de São Paulo e o movimento Vem Pra rua.

“O diretório municipal de São Paulo é o que tem maior base e militância política de rua, temos 19 secretários e é unânime a indignação com o que está acontecendo no país. Por isso decidimos aderir às manifestações e somos a favor do impeachment”, afirmou o presidente do diretório paulistano Fernando Alfredo, deixando claro que ele não fala pelo PSDB Nacional, que ainda não se posicionou sobre o pedido de afastamento do presidente. 

Para Alfredo, tirar Bolsonaro do cargo é uma questão de “garantir a preservação da vida e da democracia”, mesmo se a estrutura que o sustenta hoje, baseada no apoio de militares, seja mantida com um eventual impeachment. “O presidente isolou o vice. Mourão sabe da responsabilidade dele”, justifica.

Já o Vem pra Rua, que nasceu como um antagonista dos governos de esquerda, não fez convocação desta vez, mas se diz simpático ao movimento. “Ainda estamos muito preocupados com a pandemia. Acompanhando o calendário de vacinação, acredito que em 45, 50 dias já será possível ir à rua com mais segurança. 

Entendemos que é muito importante, não criticamos quem decide ir agora”, afirma Luciana Alberto, porta-voz do Vem pra Rua, que acredita na possibilidade de diálogo com a esquerda, porque há uma convergência entre diferentes ideologias na pauta do impeachment. Segundo ela, é um equívoco acreditar que o movimento deu apoio específico a Bolsonaro nas últimas eleições. “Apoiamos a renovação política”, afirma. 

No entanto, as primeiras medidas do atual Governo já demonstraram um certo distanciamento das promessas de campanha, como combate à corrupção. O Vem pra Rua ―que a representante define como um “movimento de centro mais liberal, mais à direita”―, protocolou seu próprio pedido de impeachment contra Bolsonaro, listando 130 crimes de responsabilidade que teriam sido cometidos em seu Governo.

REGIANE OLIVEIRA, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 02.07.21

Rosa Weber autoriza abertura de inquérito contra Bolsonaro por suposta prevaricação no caso Covaxin

Pedido foi feito pela Procuradoria-Geral da República após o próprio STF cobrar a manifestação do órgão sobre notícia-crime apresentada por senadores. Mais cedo, ex-ministro da Saúde Pazuello foi denunciado pelo MPF por improbidade administrativa na gestão da pandemia

O presidente Jair Bolsonaro nesta sexta-feira, em Brasília. (ADRIANO MACHADO / REUTERS)

A ministra Rosa Weber autorizou na noite desta sexta-feira a abertura de inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro no caso da negociação da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde. A investigação havia sido solicitada pela Procuradoria-Geral da República pela manhã, após a própria ministra ter pedido a manifestação do órgão a respeito de uma notícia-crime que acusa o presidente de crime de prevaricação, ou seja, quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal.

A notícia-crime foi apresentada ao STF na última segunda-feira pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) com base em um depoimento do deputado Luis Miranda (DEM-DF) na CPI da Pandemia. Na semana passada, o parlamentar afirmou que Bolsonaro foi informado sobre irregularidades na compra do imunizante desenvolvido para a covid-19. A investigação busca apurar se o presidente de fato soube do ocorrido e se não agiu para encaminhar o caso para investigação, cometendo assim a prevaricação, que é um crime contra a administração pública. Após a revelação do parlamentar, o Ministério da Saúde suspendeu o contrato, que previa o pagamento 1,6 bilhão de reais por 20 milhões de doses.

O pedido da PGR foi protocolado depois que a ministra do Supremo cobrou uma posição do órgão sobre a queixa dos senadores. Na terça, a Procuradoria chegou a enviar uma outra manifestação pedindo que a corte esperasse a conclusão dos trabalhos da CPI, que também apura o caso da Covaxin, para não haver “investigação concorrente”. A comissão no Senado foi iniciada em abril e a princípio se encerrará em 7 de agosto, mas um pedido de prorrogação por mais 90 dias, até novembro, ainda deve ser analisado pelos parlamentares. Em resposta à PGR, porém, Rosa Weber afirmou que a apuração da CPI não impede a atuação da Procuradoria.

Segundo o deputado Luis Miranda, ele e seu irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, foram pessoalmente informar Bolsonaro sobre as supostas irregularidades na compra da vacina indiana. O servidor Luis Ricardo disse que sofreu “pressão” para fechar contrato com a Precisa Medicamentos, intermediadora dos negócios entre o Brasil e a Índia. Segundo os irmãos, o presidente chegou a afirmar que acionaria a Polícia Federal para apurar o caso, o que não ocorreu.

No pedido da PGR, assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, solicitou que “se esclareça o que foi feito após o referido encontro em termos de adoção de providências”. Ele também pediu informações à Controladoria-Geral da União, ao Tribunal de Contas da União, à Procuradoria da República no Distrito Federal, e em especial à CPI da Pandemia com o compartilhamento de provas, sugerindo o prazo de 90 dias para as providências solicitadas. Rosa Weber aceitou todos os pedidos.

Sobre as acusações, Bolsonaro diz apenas que não desembolsou “nem um centavo” para a compra do imunizante indiano. Mas nesta semana, o Ministério da Saúde e a Controladoria-Geral da União anunciaram a suspensão do contrato a Precisa Medicamentos até que os fatos sejam apurados.

Pazuello é alvo do MPF

O Ministério Público Federal (MPF) enviou à Justiça uma ação contra o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que responderá por danos ao patrimônio público e violação aos princípios da Administração na gestão da pandemia. A ação, que tramita provisoriamente em segredo de justiça por conter documentos protegidos por sigilo legal, aponta quase 122 milhões de reais de dano aos órgãos de administração pública. O MPF pede o ressarcimento integral do prejuízo mais pagamento de multa de até duas vezes o valor do dano.

Além da devolução dos valores e da multa, o MPF pede que Pazuello perca a função pública, os direitos políticos por até oito anos e a proibição de contratar com o Poder Público. Embora tenha deixado o comando do Ministério da Saúde, Pazuello ocupa atualmente o cargo de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

MARINA ROSSI e DANIELA MERCIER, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 02.07.21

Há 70 anos, Brasil ganhava primeira lei contra racismo

Para especialistas, Lei Afonso Arinos teve o mérito de mostrar que o Brasil nunca foi uma "democracia racial" e abrir caminho para normas futuras. Mas efetividade da legislação foi pequena.    

Com lei de 1951, Estado brasileiro reconheceu existência da discriminação contra negros

Em 3 de julho de 1951, o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) promulgou a primeira norma brasileira de combate ao racismo, a Lei 1390, mais conhecida como Lei Afonso Arinos — em referência ao autor do texto, o então deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), jurista e historiador.

Não foi por acaso que a discussão foi levantada e chegou ao ponto de se tornar lei. Um ano antes, a dançarina e coreógrafa americana Katherine Dunham (1909-2006) havia feito uma denúncia a repórteres que cobriam sua estreia no Teatro Municipal de São Paulo: o gerente do Hotel Esplanada, cinco-estrelas luxuoso que funcionava próximo à casa de espetáculos paulistana, havia se negado a hospedá-la depois de constatar que ela era "uma mulher de cor".

A repercussão não se restringiu à imprensa brasileira, mas repercutiu também em outros países. No dia 17 de julho de 1950, o deputado Arinos apresentou seu projeto de lei — que depois de todos os trâmites, seria aprovado há exatos 70 anos.

Estudioso da temática da população negra no período pós-abolição e professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS), o historiador Petrônio Domingues frisa que esse tipo de constrangimento ocorria com outros artistas negros em turnê no Brasil — a diferença fundamental foi que Dunham, que também era ativista social e antropóloga, denunciou o episódio.

Grande passo, baixa efetividade

De acordo com especialistas ouvidos pela DW Brasil, o maior avanço trazido pela lei foi reconhecer a existência do racismo no país. "No Brasil, o mito da democracia racial sempre se fez presente. E as legislações acompanhavam o retrocesso ideológico", pontua o jurista Julio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama.

"[A lei] teve um efeito muito importante do ponto de vista da formalização, do reconhecimento do Estado de que existe uma prática discriminatória. Foi a partir dessa legislação que se pôde lutar por outras legislações", afirma a socióloga Flavia Rios, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

O problema, ressalta ela, é que a lei tinha "baixo impacto". "Se a pessoa fosse pega num contexto discriminatório, pagava-se uma fiança e ela era liberada. O 'custo' da discriminação era baixíssimo", contextualiza ela. "[Ao contrário de hoje], antes se podia pagar, [o crime] podia prescrever, e a pessoa não era presa."

O historiador Domingues reconhece que a lei teve o mérito de "tipificar o preconceito racial como crime de contravenção penal" e de "criar a figura jurídica do negro" — mas "o dispositivo legal não teve eficácia na prática". "[A lei] vigorou de 1951 a 1989, mas são raríssimos os casos conhecidos de processos e condenações com base na lei", ressalta.

Segundo levantamento realizado pelo historiador e brasilianista Jerry Dávila, foram apenas 23 os casos enquadrados pela Afonso Arinos — sendo que apenas sete resultaram em condenação.

O caso mais notável envolveu uma celebridade televisiva. Em 1980, a jornalista Gloria Maria, repórter da TV Globo, apresentou denúncia contra o gerente do hotel Othon Palace, em Copacabana, no Rio, depois de ter sua entrada barrada por ele, que teria argumentando que "negro não entra no hotel". O funcionário foi levado para a delegacia — e liberado após pagar fiança.

Décadas depois, a luta continua: manifestação no Dia da Consciência Negra em 2019, em São Paulo

Coordenadora-adjunta da Comissão da Igualdade Étnico-Racial da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), a jurista Aline Mota atenta para o fato de que a lei se limitava apenas a duas esferas da realidade.

"Apesar de ser um avanço, em certa medida, a lei reduzia o problema a aspectos do direito do consumidor — se negar a vender, hospedar, matricular aluno negro… — e do direito do trabalho — se negar a empregar", pontua. "Não foram tratados [pela legislação] outros aspectos relevantíssimos, como o direito à terra pela população quilombola, ações afirmativas ou de reparação histórica."

"Analisando de forma conjuntural, no contexto global a lei poderia ser vista como um atraso", comenta Santos. "Mas, no Brasil, a legislação foi um avanço, pois em um período em que imperava a cultura eugenista, ou seja, elementos estruturantes dos privilégios da branquitude, os legisladores e formuladores de opinião estabeleceram uma agenda, tratando da temática racial e [implementando] a construção de uma política inaugural de combate ao racismo, prevendo igualdade de tratamento e direitos iguais."

Depois da Afonso Arinos

Com nove artigos, a lei originalmente previa como contravenções uma série de situações em que a pessoa fosse discriminada "por preconceito de raça ou de cor'. Em 1985, a norma ganhou nova redação, ampliando seu escopo. A partir de então, poderiam ser enquadrados também casos de preconceito "de sexo ou de estado civil".

Esse instrumento acabou sendo substituído, em 1989, pela Lei 7.716, conhecida como Lei Caó. Sancionada pelo então presidente José Sarney em 5 de janeiro daquele ano, ela havia sido proposta pelo deputado federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos (1941-2018), conhecido como Caó, um advogado e jornalista que militava no movimento negro.

"[A Lei Caó] estabelece a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", explica Domingues. "Com a sanção, a lei regulamentou o dispositivo da Constituição Federal [de 1988] que tornava inafiançável e imprescritível o crime de racismo, já que todos são iguais, sem discriminação de qualquer natureza."

Deutsche Welle Brasil, em 03.07.2021

Caso Covaxin: 5 pontos em que a PGR investigará Bolsonaro por suposta prevaricação

A Procuradoria-Geral da República (PGR) informou nesta sexta-feira (02/07) ao Supremo Tribunal Federal (STF) que instaurou inquérito para apurar se o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prevaricou ao não comunicar à Polícia Federal supostas irregularidades no processo de compra da vacina indiana Covaxin.

Presidente Jair Bolsonaro será investigado por não ter comunicado irregularidades na compra da vacina.

Bolsonaro teria sido comunicado quanto à "pressão atípica" sofrida pelo servidor do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Fernandes Miranda, para autorizar o pagamento à empresa que intermediaria a compra de 20 milhões de doses do imunizante produzido pela Barath Biotech.

O alerta do servidor e seu irmão, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), teria sido feito em 20 de março, em reunião no Palácio da Alvorado. Bolsonaro teria então dito que acionaria a Polícia Federal para investigar o caso, o que não aconteceu.

Os irmãos Miranda relataram o encontro à imprensa e à CPI da Pandemia.

"Cumpre que se esclareça o que foi feito após o referido encontro em termos de adoção de providências", escreve o vice-procurador-geral da República, Humberto Jaques de Medeiros, na manifestação encaminhada nesta sexta-feira ao STF.

A prevaricação é uma infração prevista no artigo 319 do Código Penal brasileiro.

Segundo a legislação, o crime ocorre quando um funcionário público "retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".

No caso específico, seria a suposta não comunicação de eventual irregularidade para outras autoridades investigarem. O Código Penal prevê pena de três meses a um ano de prisão e multa.

No inquérito, a PGR vai apurar notícia-crime apresentada à Suprema Corte na segunda-feira (28) pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO).

A manifestação da procuradoria foi encaminhada à ministra Rosa Weber e o prazo sugerido para as investigações é de 90 dias.

Entenda os 5 pontos em que a PGR investigará Bolsonaro por suposta prevaricação.

Luis Ricardo e Luis Claudio Miranda na CPI; irmãos denunciaram supostas irregularidades na contratação da vacina indiana Covaxin (Ag. Senado)

1. Depoimento dos irmãos Miranda

A base da notícia-crime apresentada por Randolfe, Contarato e Kajuru são os depoimentos prestados no último dia 25 de junho pelo deputado federal Luis Miranda e seu irmão, Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia.

CPI da Covid: os embates mais tensos no depoimento dos irmãos Miranda sobre a Covaxin

2. 'Pressão atípica'

No depoimento, o deputado Luis Miranda disse ter advertido o presidente Bolsonaro de que seu irmão - servidor público do Ministério da Saúde - tinha sofrido "pressão" para autorizar o pagamento pela pasta para a empresa que intermediara a aquisição de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, produzida pela empresa indiana Bharat Biotech.

Essa informação não consta da manifestação da PGR, mas, no Brasil, o negócio foi intermediado pela Precisa Medicamentos, empresa cujos sócios estão envolvidos em ações judiciais por processos anteriores de compras de produtos de saúde mal sucedidos.

A empresa tem como sócio o empresário Francisco Maximiano, que teria relações próximas com o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).

Como ministro da Saúde, Barros defendeu cortes na pasta e redução do tamanho do SUS (Ag. Brasil)

3. Denúncia à PF e envolvimento de Ricardo Barros

Ainda segundo os irmãos Miranda, em seu depoimento à CPI, Bolsonaro teria dito que acionaria a Polícia Federal para investigar o caso, destaca a PGR em sua manifestação ao STF.

Vale lembrar, porém, que a Polícia Federal informou, em 24 de junho, que não havia aberto nenhum inquérito sobre a compra da Covaxin, conforme informou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) à CPI naquela data. O dia foi a véspera do depoimento dos irmãos Miranda à comissão, quando as denúncias feitas por eles já eram amplamente noticiadas pela imprensa.

Apenas no dia 30 de junho, e após a CPI ter levantado indícios de irregularidades na transação, a PF finalmente abriu inquérito para investigar o caso.

Novamente conforme o depoimentos dos irmãos Miranda e segundo o documento da PGR, na reunião realizada em 20 de março no Palácio da Alvorada, Bolsonaro teria relacionado as supostas irregularidades ao deputado federal Ricardo Barros.

4. O ministro Eduardo Pazuello também sabia?

Um quarto ponto que consta da manifestação protocolada pela PGR ao STF na manhã desta sexta-feira é que o alerta das supostas irregularidades também teria sido dado ao então titular do Ministério da Saúde, general Eduardo Pazuello, durante uma viagem oficial.

5. Possível prevaricação

A PGR afirma que há "dúvida acerca da titularidade do dever descrito pelo tipo penal do crime de prevaricação", ou seja, que ainda não está claro qual funcionário público incorreu em prevaricação ao não comunicar o caso para ser investigado.

A procuradoria vê ainda "ausência de indícios que possam preencher o (...) elemento subjetivo específico, isto é, a satisfação de interesses ou sentimentos próprios dos apontados autores do fato". Ou seja, não vê por ora indícios de interesses pessoais na não-comunicação das alegadas irregularidades

Ainda assim, o órgão avalia que é preciso esclarecer que providências foram tomadas pelas autoridades após a denúncia dos irmãos Miranda.

Polícia Federal deve agora reunir provas para PGR formar opinião sobre abertura de ação penal (Sebastião Moreira / EPA)

O que a PGR vai fazer agora

Para formar opinião sobre se cabe ou não abertura de ação penal com relação a esse caso, a PGR pede autorização do STF para que a Polícia Federal solicite informações à Controladoria-Geral da União (CGU), ao Tribunal de Contas da União (TCU), à Procuradoria da República no Distrito Federal, e em especial à CPI, para compartilhamento de provas.

A PF também deve produzir provas por conta própria, fazendo uso de testemunhas e ouvindo aqueles que supostamente comentaram as irregularidade, para saber se houve omissão e dolo (prejuízo) para satisfazer interesse pessoal.

BBC News Brasil, em 02.07.2021

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A improbidade se desnuda

O crime atua em silêncio, sem revelar o que pode ou vai provocar

Peço desculpas por quebrar o encanto do dia a dia e lembrar que estamos rodeados pelo horror. De um lado, cresce a bandidagem de rua e nos assaltam (ou matam, até) em busca do celular ou do carro. De outro, em plena pós-modernidade, reaparece o perverso e retrógrado feminicídio, dando ao machismo “status” de superioridade total, que nem sequer fora insinuada pela versão bíblica de que a mulher surgiu da costela do primeiro homem. Para comprovar basta ler os jornais.

Além disso, pequenos e grandes horrores se acumulam uns sobre outros por decisão dos que nos governam. Já seria brutal recordar a mistura de insensatez, cinismo e falsidade que surge dos atos do governo federal e que o presidente da República aciona dia a dia como metralhadora giratória, atingindo os quatro pontos cardeais. Agora, a Câmara dos Deputados, que (em teoria) representa o povo, aprovou projeto alterando a Lei de Improbidade Administrativa e, assim, abrindo portas à expansão da corrupção na área administrativa.

O mais absurdo é que governistas do seio íntimo do bolsonarismo se uniram aos mais duros oposicionistas e votaram a favor do parecer do relator, deputado Carlos Zarattini, do PT paulista. Essa insólita união entre adversários não foi feita em torno de um projeto de governança em benefício da população. Ao contrário, uniram-se para acobertar crimes contra o patrimônio público. Assim, acobertam o assalto e entronizam a corrupção.

A alteração principal na lei atual é uma aberração em si ao exigir que exista clara “intenção” de lesar o patrimônio público. Esqueceram-se o deputado relator e a ampla maioria que o acompanhou que o crime atua em silêncio, sem revelar o que pode ou vai provocar. O crime é como silenciosa serpente escondida no matagal, que nunca se mostra ou se exibe. Exigir que mostre “intenção” de lesar significa isentar antecipadamente o crime em si.

Essa inesperada união entre deputados bolsonaristas e oposicionistas, além de tudo, é perigosamente reveladora de que os supostos “representantes” do povo não nos representam e são, apenas, um aglomerado de gente em busca de poder político e vantagens pessoais. Ou revela, ainda, que pode ser verdadeira aquela afirmação de que “são todos iguais” ou que os atuais partidos nada representam.

Os próprios políticos contribuem para essa visão popular ao mudarem de partido como se trocassem a camisa suada no verão tórrido. O presidente Jair Bolsonaro é um exemplo gritante. Ele pulou tanto de partido em partido que já se perdeu a conta, não se sabendo se esteve em oito legendas, ou menos. E agora busca outra mais.

Nosso Parlamento não se compõe de castas donzelas acima de qualquer suspeita. Dos 513 deputados federais, 106 estão sob investigação da Justiça em diferentes áreas. E quase todos os dias surge mais gente entrando na roda. Um exemplo concreto é a atual CPI do Senado que investiga o desdém com que nosso governo combateu a maléfica covid-19.

O Senado pode, ainda, frear a decisão e recusar o horror inventado pelos deputados. É improvável, porém, que o faça. Nada menos que 21 dos 81 senadores respondem a processos na Justiça, acusados de diferentes delitos. Estão livres devido à excrescência do tal “foro privilegiado”, que se transformou em aberração. Foi instituído para garantir imunidade à atuação parlamentar, mas passou a englobar também as demais atividades.

Antes disso, vimos o Supremo Tribunal Federal desmontar – na prática – as conclusões da Operação Lava Jato e, assim, anular a condenação do ex-presidente Lula da Silva, como se tudo o que foi apurado ao redor nunca houvesse existido. Criou-se a ideia ou sensação de que não houve jamais um centavo roubado, nem milhões de dólares depositados no estrangeiro, nem sequer o devolvido ao erário pelos próprios ladrões nas tais “delações premiadas”.

Nada supera, porém, o horror da suspeita sobre a milionária propina pela compra da vacina indiana pelo Ministério da Saúde. O combate à covid-19 esconde uma aberração ético-moral sem paralelos. A Embaixada do Brasil na Índia informou que a dose da vacina custaria 100 rúpias (ou US$ 1,34), mas o governo Bolsonaro avaliou cada unidade em US$ 15 (R$ 80,70 na cotação da época), a mais cara das seis vacinas compradas, e “empenhou”, ou reservou, os milhões correspondentes.

Todo tão rápido que o próprio funcionário pressionado para apressar a compra levou a suspeita, pessoalmente, a Bolsonaro, que nada fez de concreto. Ao contrário, o presidente (que antes se proclamava como “o supremo manda-tudo”) disse que não podia saber dos atos de cada ministro, “tantos são os ministérios”.

Nesse quadro (e noutros não descritos aqui) a improbidade se desnuda e crescerá com as alterações dos deputados. Além da patética MMM, “média móvel de mortos”, se entroniza a sigla de que, no Brasil, cadeia é só para PPP, “pobre, preto e prostituta”.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Prêmio Jabuti de Literatura em 2004. Professor Aposentado da Universidade de Brasília. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.07.2021.

O impeachment e o compadrio

É no mínimo estranha a certeza de Arthur Lira de que ainda faltaria materialidade aos 23 crimes relatados de Jair Bolsonaro

Qualquer cidadão pode denunciar à Câmara dos Deputados o presidente da República por crime de responsabilidade, competindo ao presidente da Casa verificar se a denúncia preenche os requisitos legais. “Do despacho do presidente que indeferir o recebimento da denúncia caberá recurso ao plenário”, dispõe o Regimento Interno da Câmara, evidenciando quem deve ter a última palavra sobre o tema.

Apresentada a denúncia por crime de responsabilidade, o presidente da Câmara dos Deputados deve no mínimo inteirar-se de seu conteúdo e analisá-lo sem precipitações. Na quarta-feira passada, no entanto, o deputado Arthur Lira (PP-AL) fez questão de mostrar que tem modos próprios de proceder, mais afeitos aos interesses do Palácio do Planalto do que em conformidade com o Regimento Interno.

Horas depois de ter sido protocolado o 125.º pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro – um documento de 271 páginas, no qual 46 pessoas e instituições acusam o chefe do Executivo federal da prática de 23 crimes –, o presidente da Câmara descartou qualquer possibilidade de receber a denúncia, alegando que precisaria esperar o final da CPI da Pandemia. 

“Então, ao final dela (da CPI) a gente se posiciona aqui, porque, na realidade, impeachment, como ação política, a gente não faz com discurso, a gente faz com materialidade”, disse Arthur Lira. É no mínimo estranha essa certeza do presidente da Câmara de que ainda faltaria materialidade aos 23 crimes relatados, sem sequer ter analisado minimamente a nova denúncia contra Jair Bolsonaro.

Resultado de uma mobilização ampla, que reuniu movimentos e partidos de esquerda, siglas de centro, centro-direita e ex-bolsonaristas, o documento protocolado no dia 30 de junho elenca ações graves, que exigem apuração. Entre elas: atentar contra o livre exercício dos Poderes, ao participar de ato com ameaças ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF); usar autoridades sob sua subordinação para praticar abuso de poder no episódio de troca do comando militar e interferir na Polícia Federal; incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina; provocar animosidade nas classes armadas, ao incentivar motim dos policiais militares em Salvador; e as várias omissões e erros no combate à pandemia.

Longe de diminuir o peso político e a gravidade das acusações, a pressa de Arthur Lira em desqualificar o pedido de impeachment mostrou que o governo Bolsonaro e seus aliados estão preocupados com o tema. Não há como tapar o sol com peneira. Voltou-se a falar abertamente da real possibilidade de um processo de impeachment contra Jair Bolsonaro.

“As últimas denúncias de corrupção na compra de vacina trazem mais força ainda ao pedido”, disse o líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Não é para menos. Ao longo de mais de dois anos, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que tinha sido eliminada a corrupção de toda a administração federal.

Bastou, no entanto, o Senado instaurar a CPI sobre a atuação do governo federal na pandemia, para que surgissem denúncias de mau uso do dinheiro público envolvendo compra de vacinas – precisamente o item mais necessário para a retomada do crescimento econômico e do emprego. No dia 1.º de julho, em depoimento na CPI da Pandemia, Luiz Paulo Dominghetti confirmou que integrantes do governo Bolsonaro pediram-lhe propina de US$ 1 por dose de vacina, numa negociação de 400 milhões de doses.

Além disso, há a notícia-crime no Supremo Tribunal Federal na qual três senadores pedem abertura de inquérito para investigar o presidente da República por crime de prevaricação. Segundo o deputado Luis Miranda (DEM-DF), Jair Bolsonaro não teria tomado providências depois de ser informado, em março, sobre esquema de corrupção na compra da vacina Covaxin.

Todos esses fatos devem ser investigados pelas instâncias competentes. Não se conhece suspeita de corrupção que tenha sido bem resolvida com compadrios. O caminho é a lei, não a bravata de simplesmente negar os fatos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 02 de julho de 2021 

Diretor financeiro das empresas de Trump se entrega a procurador de Manhattan

Ministério Público deve apresentar nesta quinta a denúncia criminal por fraude e crime fiscal envolvendo o conglomerado do ex-presidente

O ex-presidente Donald Trump durante um ato na fronteira do Texas com o México, nesta quarta-feira. (POOL / REUTERS)

Allen Weisselberg, diretor financeiro da Organização Trump, conglomerado empresarial do ex-presidente norte-americano Donald Trump, entregou-se nesta quinta-feira no edifício do Ministério Público em Manhattan, como parte de uma investigação criminal sobre supostas fraudes e irregularidades fiscais. Os promotores devem apresentar denúncias penais contra Weisselberg e a Organização Trump nesta quinta-feira, após o término do seu inquérito. O republicano não será imputado, nem tampouco seus filhos, segundo fontes conhecedoras da investigação, mas sim a companhia e seu responsável financeiro, acusado de receber apartamentos, carros de luxo e matrículas em colégios privados como rendimentos em espécie, não declarados ao fisco.

A apresentação de acusações contra o conglomerado de Trump era amplamente esperada há semanas, depois que o Ministério Público convocou um júri de instrução para decidir sobre a imputação. Weisselberg, de 73 anos, fiel servidor do magnata durante décadas, comparecerá ao longo do dia perante um juiz, junto com representantes do consórcio, também imputados, para ouvir formalmente as acusações. Uma fonte da organização afirmou que as acusações são “políticas” e buscam prejudicar o ex-mandatário.

Trump pagou apenas 750 dólares de impostos nos anos de 2016 e 2017, de acordo com o ‘The New York Times’

O procurador distrital de Manhattan, Cyrus Vance, que se aposenta este ano, empenhou-se a fundo no seu último grande caso, paralelamente às investigações da secretária de Justiça do Estado de Nova York, Letitia James. As duas investigações em curso sobre suposta fraude fiscal confluíram em maio, quando o escritório de Vance abriu um inquérito penal para determinar se Trump poderia ter declarado valores inferiores à realidade em algumas propriedades do seu patrimônio para evitar pagar mais impostos. As duas instâncias investigavam há mais de um ano os negócios de Trump por possíveis delitos fiscais e bancários, mas a confirmação da colaboração entre ambas aumentou a pressão sobre o republicano. Tanto James como Vance são democratas. Já fora da Casa Branca, em fevereiro passado, Trump qualificou de “fascista” e “politicamente motivado” o processo do procurador de Manhattan, “a maior caça às bruxas na história dos EUA”.

As investigações do Ministério Público em Manhattan começaram como resultado de um depoimento de Michel Cohen, ex-advogado de Trump. Numa audiência parlamentar em 27 de fevereiro de 2019, esse ex-colaborador do então presidente declarou que Trump havia tinha inflado o valor de várias de suas propriedades em suas declarações aos bancos que lhe emprestavam dinheiro, com a intenção de obter melhores empréstimos e seguros, ao tempo mesmo que as desvalorizava em suas declarações fiscais com a intenção de pagar menos impostos. A promotoria distrital se centrou em duas das propriedades mais emblemáticas da família Trump: a Torre e Hotel Internacional Trump, em Chicago, e o edifício Trump em Nova York. As duas instâncias analisaram também os registros de um imóvel no condado nova-iorquino de Westchester.

A sede da Organização Trump, na Quinta Avenida de Nova York, nesta quarta. SPENCER PLATT / AFP

O processo de Vance contra a Organização Trump recebeu um impulso em fevereiro, quando a Suprema Corte acatou seu pedido para examinar oito anos de declarações tributárias e milhares de documentos com o objetivo de elucidar se o ex-presidente e sua família cometeram fraude fiscal e enganaram bancos e companhias de seguros.

Nem os advogados de Weisselberg nem o Ministério Público de Manhattan se pronunciaram sobre o caso na quarta-feira. Ronald Fischetti, advogado de Trump, disse na última segunda à agência Reuters que esperava que as acusações se limitassem a supostas irregularidades fiscais.

Em um comunicado divulgado na segunda-feira, Trump acusou os promotores de parcialidade e afirmou que as atividades de seu consórcio “nunca incorreram em delito algum”. Seu advogado também alegou que a ação de Vance não tem fundamento, pois nunca, no último século, deu-se o caso de que o Ministério Público investigue a uma companhia por lucros adicionais.

MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO, de New York para o EL PAÍS, em 01.07.2021. 

Um diálogo para combater a violência policial no Brasil

É necessário investir numa formação de policiais que não passe pela degradação dos aspirantes nem pela introjeção do lema “bandido bom é bandido morto”. Como diria Drummond, escolhe o teu melhor diálogo

Um homem diante de um mural em homenagem à Kathlen de Oliveira Romeu, jovem grávida que foi morta com um tiro na zona norte do Rio de Janeiro durante uma ação policial no início de junho.PILAR OLIVARES / REUTERS

O acesso às armas é a única resposta de Bolsonaro para melhorar a segurança pública?

A redução da letalidade policial é tema discutido há tempos no Brasil, mas ganha novos contornos pelos massacres e execuções recentes, além da pauta jurídica em torno dos direitos humanos debatida no Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. O tema em discussão não é novo, nem exclusivo em terras brasileiras.

Nos EUA, por exemplo, os gastos são enormes. Segundo dados do Police Departatments, a cidade de Nova Iorque gastou em 10 anos 1, 7 bilhão de dólares em acordos em decorrência da violência policial, uma média de 170 milhões de dólares por ano. Chicago está em segundo lugar com gastos de 46 milhões de dólares em média por ano, seguida de Los Angeles (com 32 milhões de dólares em média por ano) e Washington DC (com gastos de 12 milhões de dólares em média por ano).

A violência policial de um lado e os direitos humanos de outro fazem parte de uma dicotomia que permeia os estados modernos, todavia, situações fáticas ocorridas nos últimos tempos têm aflorado um acalorado debate em torno do tema, como a morte de George Floyd nos Estados Unidos e o massacre do Jacarezinho.

Equalizar os polos não é tarefa fácil, visto que o problema é complexo, interdisciplinar e envolve questões culturais, institucionais, econômicas, sociais e jurídicas.

Temas correlatos como pobreza, desigualdade social, militarização e estrutura das policias, organização interna e hierarquia do sistema de segurança pública, prevenção primária, secundária e terciária, além do uso seletivo do Direito Penal em um sistema de capital e trabalho promovem uma mistura perigosa, politizada e polarizada com foco em interesses de classe e eleitorais, deixando a parte técnica e resolutiva em segundo plano.

Soluções criadas em caixas estanques e pulverizadas em redes sociais por militantes em nada contribuem para a solução do problema, pelo contrário, só acirram a discussão sem qualquer critério técnico e prejudicam o maior aliado para o combate à violência, que é o diálogo.

Diálogo que é praticamente inexistente, já que no Brasil a falácia ancorada em um Direito Penal simbólico que supostamente se aplicaria para todos sem distinção é um engodo, pois estamos longe de ter igualdade, ao analisar os “clientes” do sistema penal e da violência policial.

O Direito Penal e seu processo é uma violência, porém uma violência institucionalizada e, ao menos em tese, medida em critérios racionais, uma vez que visa equilibrar de um lado o direito de punir do Estado e de outro o direito de liberdade do cidadão.

Todavia, na prática, essa racionalidade se esvai, já que a polícia como agência executiva da lei que realiza a primeira etapa de seleção de quem vai para o sistema, promove uma seletividade por etiquetamento, rotulação ou estereótipo, promovida pelo mass media e inflada por militantes dos teclados, criando no inconsciente coletivo um criminoso modelo.

Esse modelo de criminoso é transformado em inimigo do Estado, que escondido numa palavrinha mágica “guerra” pode fazer tudo para combatê-lo, ou seja, a violência policial passa por um discurso oficial de justificação que reverbera no imaginário popular, muitas vezes se transformando em uma bandeira partidária.

Guerra contra as drogas, guerra contra os ladrões, guerra contra os estelionatários, guerra contra os menores, mas não se tem a mesma veemência quando se trata de uma guerra contra os ladrões de terno que sangram os cofres públicos por corrupção, fraudes em licitações e outros tantos crimes do colarinho branco.

Na verdade, esse estereótipo do criminoso pobre, com camisa de time de futebol, negro, que mora na periferia como o “elemento” a ser combatido, vez que é o inimigo número um do Estado, a violência policial contra ele praticada é tolerada, escancarada e justificada por uma militarização de uma política de segurança pública que somente se preocupa com a repressão e olvida a prevenção.

Não se combate a violência policial somente com planos mirabolantes de estratégias ou proliferação de um discurso de defesa dos direitos humanos, é preciso mudar a mentalidade, o giro metodológico de nossa segurança pública (da repressão para a prevenção), investir numa formação de policiais sem a degradação moral e da dignidade de aspirantes que passam por uma aculturação pela introjeção do lema “bandido bom é bandido morto” e que muitas vezes são selecionados em camadas mais pobres da população e exercem uma espécie de vingança escondida na violência e nos traumas que já sofreram pela sociedade.

Um programa de “tolerância zero” da violência policial perpassa por isso e mais, como treinamento de abordagens, hierarquia sem degradação, investimento em formação policial, destinação de recursos para prevenção primária, educação para a cidadania, diminuição da seletividade penal dos excluídos socialmente, minoração da judicialização da pobreza e pela alteração do objetivo do Estado pela política de segurança pública, pois se continuarmos buscando um inimigo do Estado que é definido previamente pela classe social dominante, já que o Direito Penal é usado como instrumento de controle social, a violência policial continuará sendo um prato cheio para manchetes jornalísticas.

Como diria Drummond, escolhe o teu melhor diálogo. Chegou a hora de fazermos isso, sob pena de perdemos mais vidas que importam.

Grégore Moreira de Moura, o autor deste artigo, é procurador Federal da AGU. Mestre em Ciências Penais e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor da PUC-MG. Autor dos livros Direito Constitucional Fraterno, Do Princípio da Coculpabilidade e em coautoria o livro Criminologia da Não-cidade todos da Editora D’Plácido. Conselheiro Seccional da OAB-MG. Ex-Diretor Nacional da Escola da AGU. Palestrante. Publicado originalmente no EL PAÌS, em 01.07.2021

Eduardo Leite assume que é gay e isso é um passo importante num país presidido por um homofóbico

Governador do Rio Grande do Sul quebra uma barreira ao falar de orientação sexual ao ‘Conversa com Bial’. É um chacoalhão na corrida de 2022 e abre saudável ponto de debate para o movimento LGBTQIA+

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.BRAZIL PHOTO PRESS/FOLHAPRESS (CUSTOM CREDIT)

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), deu um passo importante para a política brasileira. Em entrevista ao programa Conversa com Bial, que vai ao ar na TV Globo ainda nesta quinta-feira, o aspirante a candidato presidencial em 2022 diz ao apresentador: “Eu sou gay”, mostra a chamada antecipada pelo Instagram do programa. “Sou um governador gay, não um gay governador. Como Obama era um presidente negro, não um negro presidente. Tenho orgulho disso.”

Num país onde gays e transexuais sofrem agressões diárias, presidido por um mandatário abertamente homofóbico e onde a TV aberta ainda tolera apresentadores que cometem crime abertamente, como Sikêra Junior, não é uma declaração trivial. É um posicionamento político. Leite acena a um público que não está mais disposto a considerar a orientação sexual um tema a esconder, e isso não quer dizer que necessariamente seja um eleitor apenas identificado com a esquerda. O governador, de 36 anos, fala a toda uma geração. Ele quer e pode, se for bem-sucedido dentro da briga interna do PSDB e da direita tradicional, ser o único millennial na corrida presidencial e por isso fala aos seus pares e aos mais jovens também. Nada mais cringe do que inventar subterfúgios para a questão.

O governador tucano se torna o segundo mandatário estadual abertamente gay, ao lado de Fátima Bezerra (PT-RN), no momento em que outro político gay, Fabiano Contarato, brilha na CPI da Pandemia e parlamentares trans fazem história. Um alento em meio ao obscurantismo bolsonarista. Leite segue os passos de Pete Buttigieg, que em 2020 se tornou o primeiro democrata abertamente gay a disputar as primárias presidenciais nos EUA. Não levou, mas se tornou um termômetro na corrida e ganhou uma importante disputa, o caucus em Iowa.

O governador vai chamar atenção em rede nacional num momento de especial desalento para os candidatos a presidente que não são Luiz Inácio Inácio Lula da Silva nem Jair Bolsonaro. As pesquisas que simulam os cenários de 2022 mostram um espaço reduzido, no momento, para a direita e centro-direita e também para o progressismo desenvolvimentista não lulista que Ciro Gomes (PDT) ainda tenta delinear. Daí que o governador do Rio Grande Sul salta na frente ao se apresentar como liberal nos costumes e na economia, um nicho ainda pouco explorado no país.

É importante também que essa declaração saia de um político do PSDB, um partido em crise de identidade (parte dos tucanos se abraçaram à ultradireita bolsonarista, João Doria, que chegou até a vetar livros escolares, e o próprio Leite incluídos), mas de fundações social-democratas relevantes. Como lembrou o antropólogo Lucas Bulgarelli, os caminhos abertos pela esquerda nos nos 80 e 90 ofereceram as condições para o surgimento de coletivos como o Diversidade Tucana, em 2006. Embora não fossem maioria nos espaços do ativismo, militantes LGBTQIA+ do PSDB atuavam nas administrações do partido.

“Descobrimos o que há muito já sabíamos: em uma democracia, a identidade de gênero e a orientação sexual não vinculam uma orientação ideológica, e tampouco deveriam”, escreveu Bulgarelli no EL PAÍS, ainda em 2018, quando 29% dos que se diziam não heterossexuais afirmavam que votariam em Jair Bolsonaro em 2018, segundo o Datafolha. Leite traz esse debate como nunca, inclusive para a militância.

FLÁVIA MARREIRO para o EL PAÍS, em 01 JUL 2021 

Post do editor do blogue no Twitter:

E qual o problema em ser gay? Opção sexual não interessa à gestão da coisa púbica. Interessa se é capaz, preparado, honesto e se tem verdadeiro espirito público para administrar a coisa pública. Meritória a declaração. Postura de gente honesta.

PGR pede inquérito para investigar Bolsonaro no caso Covaxin

Procuradores vão investigar se presidente cometeu crime de prevaricação na compra de vacina indiana. Pedido foi apresentado após pressão do STF. Procuradoria tentava aguardar conclusão da CPI para analisar o caso.

Irmãos Miranda afirmaram à CPI que alertaram presidente sobre suspeitas na compra da Covaxin, mas não há registro de que Bolsonaro tenha feito algo

A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu nesta sexta-feira (02/07) ao Supremo Tribunal Federal (STF) a abertura de um inquérito para investigar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime prevaricação na compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin.

O contrato, que envolve R$ 1,6 bilhões, é alvo de suspeitas de superfaturamento e pressão indevida dentro do Ministério da Saúde para que fosse aprovado. Na semana passada, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) afirmou que havia alertado pessoalmente Bolsonaro sobre problemas na transação, mas não há registro oficial de que o presidente tenha tomado alguma providência. O governo também mudou várias vezes a sua versão para o caso.

O caso é um dos focos da CPI da Pandemia e atingiu em cheio o líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR).

O pedido da PGR é assinado pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros. Ele foi apresentado após a ministra do STF Rosa Weber rejeitar um pedido da procuradoria para aguardar a conclusão da CPI antes de abrir uma eventual investigação contra Bolsonaro no âmbito do caso Covaxin.

Na sua decisão. Weber criticou a postura da PGR e determinou que a equipe do procurador-geral Augusto Aras se manifestasse de maneira direta sobre a abertura ou não da investigação. "No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República", escreveu Weber.

A investigação tem como base uma notícia-crime apresentada pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO).

O contrato para a aquisição da Covaxin foi assinado pelo governo Bolsonaro em fevereiro e fois suspenso nesta semana após a eclosão do escândalo. O caso também passou a ser alvo de uma procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público Federal, um inquérito da Polícia Federal, além de de análises por parte da Controladoria Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU).

A vacina indiana já vinha levantando questionamentos por causa do seu preço (15 dólares, o mais caro entre todas as vacinas compradas pelo Brasil), a velocidade com que o governo fechou o negócio (em contraste com outros laboratórios, como a Pfizer), a falta de aval da Anvisa (Bolsonaro afirmou em 2020 que não compraria vacinas não autorizadas pela agência) e pelo fato de a compra não ter sido feita diretamente com a fabricante .

Mas o caso ganhou proporção de escândalo com as revelações feitas pelos irmãos Miranda. Há menos de duas semanas, a imprensa revelou que Luis Ricardo Fernandes Miranda, servidor da área de importação do Ministério da Saúde, relatou ao Ministério Público em março que vinha sofrendo uma "pressão atípica" para acelerar a compra da Covaxin dentro da pasta. O caso logo entrou na mira da CPI da Pandemia e ganhou impulso com entrevistas concedidas pelo deputado Luis Claudio Fernandes Miranda (DEM-DF), irmão do servidor.

À CPI, o deputado Miranda afirmou que repassou as suspeitas de irregularidades ao presidente Jair Bolsonaro, que teria prometido acionar a Polícia Federal. No entanto, a corporação comunicou que não encontrou nenhum registro de abertura de inquérito. O deputado ainda relatou que Bolsonaro teria relacionado as suspeitas de irregularidades ao deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara. Barros nega qualquer irregularidade.

O governo também reagiu agressivamente às acusações dos irmãos Miranda. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, chegou a atacar o deputado Miranda numa entrevista coletiva, no que foi visto por senadores da CPI como uma forma de ameaça.

Deutsche Welle Brasil, em 02.07.2021

Oposição tenta manter ruas como frente de pressão sobre Bolsonaro

Movimentos contra o governo realizam neste sábado terceiro ato desde fim da trégua da pandemia. Protestos foram antecipados para surfar em escândalos de compra de vacina, e agora contarão também com tucanos.

Para organizadores, povo na rua também ajudaria a convencer partidos de centro-direita a aderirem ao impeachment.

Duas semanas após o último protesto nas ruas contra o governo Jair Bolsonaro, movimentos sociais, organizações civis e partidos convocaram para este sábado (03/07) novas manifestações por vacina, auxílio emergencial de R$ 600 enquanto durar a pandemia e o impeachment do presidente.

A mobilização será a terceira da série que oposicionistas têm realizado desde 29 de maio, após um longo período de receio de organizar atos presenciais durante a pandemia. Nessa mesma data, o país superou a marca de 500 mil mortos por covid-19.

A nova rodada protestos estava agendada para o dia 24 de julho, mas foi adiantada devido ao estouro de escândalos de corrupção na compra da vacina indiana Covaxin, que envolve Bolsonaro e o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e à acusação de pedido de propina por um então diretor do Ministério da Saúde em uma oferta suspeita de venda de doses da AstraZeneca.

As manifestações são organizadas majoritariamente por forças de centro-esquerda e esquerda, mas ganharam o apoio de parte dos tucanos. O diretório do PSDB na cidade de São Paulo decidiu convocar também seus filiados.

Agenda negativa para o Planalto

O objetivo da oposição é aproveitar a recente onda de revezes para o governo e a capacidade de a CPI da Pandemia impor uma agenda negativa ao presidente para ampliar o desgaste a Bolsonaro.

Na quarta, diversos partidos e movimentos de centro-esquerda e esquerda protocolaram um novo pedido de impeachment, apelidado de "superpedido" pela sua abrangência, que acusou o presidente de 23 crimes de responsabilidade – inclusive prevaricação e denunciação caluniosa relacionados ao escândalo Covaxin. A denúncia teve também o apoio de ex-bolsonaristas que romperam com o presidente, os deputados federais Alexandre Frota (PSDB-SP), Kim Kataguiri (DEM-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP).

Os próprios autores do pedido reconhecem não terem agora os votos necessários de deputados federais nem condições objetivas para instalar o processo de impeachment. Após a denúncia ter sido protocolada, o presidente da Câmara, Artur Lira (PP-AL), líder do Centrão, aliado de Bolsonaro e dono da caneta que pode aceitar ou rejeitar a denúncia, disse que não analisará o pedido agora e que aguardará o fim da CPI para se posicionar.

A expectativa dos organizadores dos protestos deste sábado é que a intensificação dos atos de rua pressione as legendas de centro-direita hoje contrárias ao impeachment, como PSDB, PSD e PMDB, além dos partidos do Centrão, a reverem sua posição sobre o tema. Para isso, seriam necessários protestos grandes e em trajetória crescente, algo que pode esbarrar na falta de capacidade de mobilização e no receio de ir às ruas enquanto a pandemia ainda não está sob controle.

Nas convocações, os organizadores sugerem comportamentos para evitar a propagação do vírus, como ir a pé, de bicicleta, moto ou carro ao protesto, usar máscaras de qualidade a todo o momento, higienizar as mãos com álcool em gel com frequência e manter distanciamento social.

PSDB e PSD se movimentam

Os tucanos têm adotado um tom cauteloso ao se referir ao impeachment de Bolsonaro, e em geral seus líderes dizem não ser o momento para deflagar o processo. Mas, nos últimos dias, surgiram sinais de que setores do PSDB consideram mudar de ideia.

O diretório municipal do PSDB na cidade de São Paulo anunciou que participará dos atos deste sábado. É a primeira vez que os tucanos da cidade decidem integrar as manifestações contra Bolsonaro. Os diretórios estaduais e nacional do PSDB não estão na inciativa.

"Nosso líder Bruno Covas [morto em 16 de maio] disse que restariam poucos dias para o obscurantismo e o negacionismo e, para que isso se concretize, é necessário que todos os que são a favor da democracia e principalmente da vida se unam contra um governo que coloca o brasileiro a venda por 1 dólar", afirmou o presidente do PSDB paulistano, Fernando Alfredo, em nota à imprensa.

Ele convocou "a militância tucana e simpatizantes para que, dentro dos protocolos, estejam presentes nessa luta em defesa da democracia". À revista Veja, Alfredo disse que o partido deve levar cerca de duas mil pessoas à Avenida Paulista. "A gente estava muito no luto do prefeito Bruno Covas. Mas chegou em um momento em que não dá mais para não se posicionar”, afirmou.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também do PSDB, que nesta quinta atraiu atenção nacional ao se assumir gay, também avançou uma casa em relação ao impeachment. Sem propor a instauração do processo agora, ele defendeu a apuração rigorosa das denúncias e o início do procedimento se elas forem comprovadas.

"Tem fatores bastantes preocupantes com as novas denúncias da vacina, fatores bastante fortes para que se analise um processo de impeachment. Não estou aqui defendendo pelo impeachment. O papel de defender o impeachment ou não cabe mais aos parlamentares ( ...) Deve ser apurado rigorosamente o que aconteceu e se houver fatos comprovados, precisa ser dada a sequência a um processo de impeachment se for o caso", disse Leite em entrevista à TV Globo.

Do lado do PSD, o presidente do partido, Gilberto Kassab, afirmou em entrevista publicada nesta quarta pela Folha de S.Paulo que surgiram recentemente mais circunstâncias para a defesa do impeachment de Bolsonaro, apesar de ressaltar que não defende a instauração do processo neste momento. "Não se pode banalizar o impeachment, é preciso ter cuidado. A base governista é grande e não pode ser menosprezada também. Mas quando é inevitável, é inevitável (...) Há mais circunstâncias para a defesa [do impeachment]", afirmou.

O presidente da CPI da Pandemia, senador Omar Aziz, é do PSD do Amazonas e tem conduzido a comissão de forma combativa contra o governo Bolsonaro, mas evita falar em impeachment. O relator, Renan Calheiros (PMDB-AL), também crítico ao governo, afirmou no final de maio ao El País que a CPI poderia dar subsídios para um processo de impeachment, mas considera difícil que um processo do tipo ocorra em ano eleitoral, ainda mais com Lira à frente da Câmara e parlamentares atraídos pelo governo com verbas orçamentárias.

O Movimento Brasil Livre (MBL), que apoiou o impeachment de Dilma Rousseff e também defende o impeachment de Bolsonaro, disse que não participará da manifestação deste sábado. O grupo está dividido sobre ir às ruas.

Oposição protocolou "superpedido" de impeachment, mas faltam condições objetivas para um processo do tipo prosperar

Quatro fatores para um impeachment

Impeachments ocorridos em países da América Latina costumam ter quatro elementos em comum, segundo o cientista político argentino Aníbal Pérez-Liñán, um dos maiores especialistas em processos do tipo no continente: escândalo de corrupção, crise econômica, mobilizações de rua e perda de sustentação no Congresso.

Para os opositores de Bolsonaro, o escândalo de corrupção se materializou com as denúncias envolvendo a compra de vacinas. Apesar de o presidente já ter se envolvido em outros casos nessa seara, como com Fabrício Queiroz e valores depositados na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, corrupção na compra de vacinas é um assunto muito mais explosivo, considerando que a pandemia já matou mais de 520 mil brasileiros. A agenda da CPI nas próximas duas semanas será tomada por depoimentos que irão aprofundar a investigação sobre esse tema.

A crise econômica que se abateu no país durante a pandemia deu sinais de ter passado, mas os efeitos são sentidos de forma muito desigual pela população. No primeiro trimestre do ano, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 1,2% comprado com o trimestre anterior, o que levou o PIB ao mesmo patamar do quarto trimestre de 2019, antes da pandemia. Por outro lado, o país nunca teve tantos desempregados e a pobreza extrema está em seu maior nível desde o início da série histórica. Uma nova alta no preço da commodities contribui para a entrada de recursos no país, mas a crise hídrica com reflexo no sistema elétrico, com aumento da tarifa de luz, piora o cenário.

No quesito mobilizações de rua, os atos contra o presidente começaram há cerca de um mês, e apesar de crescentes são menores e mais recentes do que os que antecederam a queda de Dilma. A popularidade de Bolsonaro está em nível baixo, mas é superior à de Dilma e de Fernando Collor quando eles sofreram impeachment. Segundo pesquisas realizadas nas últimas duas semanas por Ipec, PoderData e Extra/Idea, cerca de metade da população (de 50% a 54%) considera o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, e cerca de um quarto (de 23% a 28%) considera seu governo ótimo ou bom. Quando Dilma caiu, apenas 13% consideravam seu governo ótimo ou bom, e Fernando Collor pontuava 9% quando renunciou ao mandato.

Bolsonaro também não tem enfrentado significativa perda de sustentação no Congresso. Lira segue protegendo o presidente, e a aproximação pragmática do Planalto com o Centrão continua em funcionamento. O painel "Adeus Bolsonaro", criado pelo MBL para contar quantos deputados são a favor do impeachment, registrava nesta sexta 107 votos, 235 a menos do que o necessário. Além disso, grandes organizações empresariais com ascendência sobre os parlamentares, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que apoiaram o impeachment de Dilma, não se posicionam da mesma forma em relação a Bolsonaro.

Um elemento que pode afetar esse equilíbrio é a evolução do caso Covaxin, que envolve Barros, um dos líderes do Centrão. Setores da centro-direita e da direita também consideram na equação do impeachment a chance de construir uma terceira via a um embate entre Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Nessa perspectiva, para alguns, retirar Bolsonaro antes da eleição poderia abrir mais espaço para um outro nome enfrentar Lula.

Deutsche Welle Brasil, em 02.07.2021