terça-feira, 18 de maio de 2021

Nem liberal nem conservador

Jair Bolsonaro não é conservador; é apenas reacionário. O conservadorismo não se opõe a reformas, e sim às rupturas revolucionárias

Que o governo de Jair Bolsonaro não é liberal na economia, todos já sabem. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, queixou-se recentemente da falta de “aderência” a seu projeto de redução radical do Estado, anunciado na campanha eleitoral de 2018 por Bolsonaro e claramente frustrado após mais de dois anos de mandato.

A cada dia que passa, no entanto, o governo tampouco consegue ser o campeão dos valores conservadores, conforme também prometido por Bolsonaro nos palanques.

O presidente não é conservador; é apenas reacionário. O conservadorismo não se opõe a mudanças e reformas, como faz Bolsonaro, e sim às rupturas revolucionárias, especialmente aquelas motivadas por utopias que só podem resultar em autoritarismo e na anulação do indivíduo. Ademais, o conservadorismo defende o respeito às instituições democráticas e luta por sua estabilidade; defende a liberdade política e econômica, dentro da ordem constitucional; defende a igualdade de todos perante a lei, que é o verdadeiro lastro da estabilidade; defende a política como a “arte do possível”, fruto de ampla negociação; e, finalmente, defende a coesão social baseada em valores morais comuns, sobretudo o respeito, a responsabilidade e a honestidade.

Lamentavelmente, Bolsonaro viola esses princípios de forma sistemática desde que ganhou os holofotes da vida pública, quebrando o decoro sem constrangimento, tomando a coisa pública como se fosse privada e atacando os pilares da democracia.

Poucas vezes na história brasileira as instituições foram tão vilipendiadas por um presidente da República. Poucas vezes um chefe de Estado foi tão indiferente às leis e à Constituição, considerando-se frequentemente acima delas. Poucas vezes um governante desprezou tanto o diálogo político, demonizando a oposição e menosprezando partidos. E poucas vezes um presidente transgrediu de forma tão desabrida os valores morais comuns da sociedade, especialmente ao rejeitar a responsabilidade por seus atos e omissões e ao ofender e ameaçar quem o contesta.

Nesse cenário, a linguagem chula de Bolsonaro é, por incrível que pareça, o menor dos problemas – embora, frise-se, só isso já bastasse para constranger os movimentos que se dizem conservadores e que apoiam o presidente, notadamente os religiosos.

Bolsonaro julga ter recebido dos eleitores o poder de fazer o que bem entende – e, se as instituições republicanas e os valores morais se tornam obstáculos ao exercício desse poder sem limites, pior para as instituições e para os valores.

O presidente já se confundiu com a Constituição (“eu sou a Constituição”), um ato falho que traiu seu desejo de transformar sua vontade pessoal em lei. E anunciou, desde a campanha, que a “verdade” não era a realidade, mas uma revelação mística que ele profetizou nos palanques, transformando em slogan eleitoral o versículo bíblico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32).

No seu governo, vale o Führerprinzi, isto é, o princípio da supremacia do líder sobre qualquer outra consideração, pois o presidente julga encarnar o “povo”. Por essa razão, demanda-se lealdade absoluta a Bolsonaro, seja de seus ministros, seja de seus eleitores, e o que quer que o presidente estabeleça como verdade deve ser aceito sem contestação.

Assim, a verdade dos fatos, cujo respeito é princípio central no credo conservador, não tem lugar no mundo bolsonarista. Nesse universo fantástico, o presidente não pode ser refutado quando declara não ter nenhuma responsabilidade sobre os mais de 435 mil mortos pela pandemia de covid-19, tampouco pela desastrosa situação econômica, e muito menos pela morosidade das reformas e das privatizações. Questionar Bolsonaro equivale a violar um mandamento.

Isso obviamente nada tem a ver com o espírito do conservadorismo cuja representação Bolsonaro reivindica. É, ao contrário, uma violação explícita. Os conservadores que se alinham a Bolsonaro supostamente por afinidade de valores deveriam repensar esse apoio, pois correm o risco de se confundir com a desonestidade bolsonarista.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de maio de 2021 | 03h00

Ramos assinou projeto que criou orçamento secreto do governo Bolsonaro

Ministro reformulou proposta e articulou lei que originou a emenda do relator; mecanismo foi usado pelo governo Bolsonaro para distribuir R$ 3 bi a parlamentares aliados

O atual ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, participou diretamente da articulação e criação do orçamento secreto para favorecer políticos aliados do governo, o chamado “tratoraço”. Braço direito de Jair Bolsonaro, Ramos era chefe da Secretaria de Governo quando reformulou uma proposta antes barrada pelo presidente para criar uma emenda de relator-geral usada pela equipe para distribuir R$ 3 bilhões e conquistar o controle do Congresso.

(Eliane Cantanhêde: Tratoraço, ou orçamento secreto, serve para o quê? Comprar votos, como o mensalão)

Articulação. Luiz Eduardo Ramos assinou sozinho, no dia 3 de dezembro de 2019, projeto de lei que criou a emenda RP9 Foto: Dida Sampaio / Estadão

Em sua sala no quarto andar do Palácio do Planalto, um nível acima do gabinete do presidente, Ramos resgatou um mecanismo incluído pelo Congresso na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), mas que havia sido vetado por Bolsonaro. Assim, em 3 de dezembro de 2019, o ministro assinou sozinho o projeto de lei que criou a emenda chamada RP9. É um caso atípico, pois propostas sobre orçamento costumam passar pelo crivo do Ministério da Economia.

Desde que o Estadão revelou o orçamento secreto, Bolsonaro tem negado a existência do esquema. O presidente chegou a chamar os jornalistas do Estadão de “idiotas” e “jumentos” por noticiar o caso, batizado de “tratoraço” nas redes sociais por envolver compras de máquinas a preços até 259% acima da tabela de referência do governo. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, sustenta que “é de conhecimento de qualquer jornalista que acompanhe minimamente o noticiário em Brasília que a RP9 foi iniciativa do Congresso”. Os documentos contradizem essa versão. 

Oposição só teve 4% do orçamento secreto do governo Bolsonaro

Políticos indicam verbas do orçamento secreto para fora de seus Estados

Orçamento secreto: Ministério admite que ofícios não estão públicos

Orçamento secreto: Governador do DF destina R$ 7 milhões para onde tem fazendas 

A operação de Ramos ocorreu três semanas após Bolsonaro vetar a tentativa do Congresso de criar a RP9. A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, tinha convencido o presidente de que a nova emenda engessaria o governo, pois impactava o cálculo do resultado primário, afetando a meta fiscal. Mas, quando Ramos ressuscitou a proposta, Bolsonaro trocou as justificativas técnicas que usou para barrar a medida pela criação de um orçamento que lhe permitira escolher quais parlamentares seriam beneficiados com bilhões de reais. 

No mesmo projeto enviado ao Congresso, o general da reserva chegou a incluir no texto um artigo, o 64-A, que dava ao Congresso o direito de indicar o que deveria ser feito com o dinheiro. Nesse caso, porém, Bolsonaro novamente impediu a iniciativa por contrariar o “interesse público” e “fomentar o cunho personalístico” das indicações. O Congresso não derrubou esse veto. Dessa forma, tornou irregular o toma lá, dá cá que veio a fazer mais tarde.

Agora na Casa Civil, Ramos é o homem forte do governo no Planalto e mantém influência na articulação política. Em fevereiro, com o orçamento secreto, ele garantiu as vitórias dos aliados Arthur Lira (Progressistas-AL), na Câmara, e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado. 

Procurado pelo Estadão, o ministro desconsiderou ter assinado o projeto e repetiu que “a iniciativa da criação da RP9 foi da Comissão de Orçamento do Congresso”. Toda negociação dos parlamentares para divisão do dinheiro da RP9 foi feita no gabinete da Secretaria de Governo, pasta que Ramos comandava quando assinou o texto.

Riscos

Em ao menos duas reuniões no gabinete do general, no fim de 2019, técnicos previram que o esquema para aumentar a base de apoio de Bolsonaro poderia resultar no primeiro grande escândalo do seu mandato. Na ocasião, tentaram dissuadir o Planalto de vetar a possibilidade de os congressistas imporem os bilhões da emenda RP9.

Segundo um dos presentes, o braço direito do ministro, Jonathas Assunção de Castro, foi alertado de que as negociações para divisão do dinheiro já estavam em curso e o veto tornaria essa operação ilegal. Nessa queda de braço, porém, quem ganhou foi a equipe econômica, para quem dar ao Congresso o direito de também definir como aplicar R$ 20 bilhões de RP9 transformaria Bolsonaro em “rainha da Inglaterra”.

O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União investiga se, ao ignorar seu veto, Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade por “atentar contra a lei orçamentária, nos termos do art. 85, inciso VI, da Constituição Federal”.

Felipe Frazão e Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 18 de maio de 2021 | 05h00

Independentes estremecem tabuleiro político do Chile e controlarão 64% da Assembleia Constituinte

Nem militam em partidos e a maioria se autodefine como esquerda. Triunfo eleitoral de grupo heterogêneo é evidência da crise de representatividade dos partidos tradicionais no país andino

A candidata do Partido do Povo, a mapuche Juanita Millal, faz campanha em Santiago.MARTIN BERNETTI / AFP

Uma das grandes surpresas da jornada eleitoral chilena no fim de semana é a grande presença que os independentes terão na Assembleia Constituinte que a partir de junho começará a trabalhar em uma nova Carta Fundamental. Dos 155 constituintes, 48 se apresentaram por listas independentes dos partidos políticos, ou seja, 31%. Se a eles forem somados os 40 eleitos que não militam, mas chegaram às urnas sob o guarda-chuva de alguma comunidade —de diversos setores—, o número de independentes no órgão chega a 64%, segundo o Observatório da Nova Constituição. Em suma, sem contar as 17 cadeiras reservadas aos povos indígenas, haverá apenas 50 militantes partidários na Assembleia paritária (77 mulheres e 78 homens) que terá o prazo máximo de um ano para estabelecer as novas leis que regerão os destinos do Chile.

Chile, crônica de um país fraturado Confronto político e tensão social marcam ano de renovação da grande parte das autoridades

Os que não são militantes de partidos se organizaram principalmente por listas e foram duas as que se destacaram de longe. A Lista do Povo, que surgiu no âmbito dos protestos sociais de 2019 e que conseguiu articular uma organização social e política, alcançou 27 cadeiras na Assembleia (17,4%). Já a lista de Independentes para uma nova Constituição ficou com 11 cadeiras (7%) na Assembleia que se reunirá no Palácio Pereira, em Santiago, e na sede do Congresso da capital. É uma lista de centro-esquerda não-militante que se define como “um grupo diverso, transversal e comprometido com a atividade pública” que atua “em organizações da sociedade civil e no meio acadêmico, da cultura, ciência, planejamento urbano, comunicação e outros assuntos sociais “. Tiveram o não-militante com a maior votação, Benito Baranda, um psicólogo amplamente conhecido pelo público por seu trabalho social de décadas. Além disso, 10 outros constituintes foram eleitos por listas independentes em nível nacional.

Eles estremeceram o tabuleiro político chileno e foram uma surpresa total para os analistas e dirigentes de todos os setores. As projeções predominantes indicavam que ganhariam entre 8 e 16 cadeiras. Mas, segundo a cientista política Pamela Figueroa, do Observatório da Nova Constituição, era impossível fazer cálculos eleitorais prévios porque estavam sendo colocadas em prática novas regras do jogo. “As três novas regras —paridade, cadeiras reservadas para indígenas e listas de independentes— contribuíram para que a Constituinte represente algo diferente dos típicos órgãos de representação”, diz a cientista política.

O sucesso dos independentes nas eleições chilenas está diretamente relacionado à crise de representatividade dos partidos políticos. Segundo a última pesquisa do Centro de Estudos Públicos (CEP), apenas 2% dos chilenos confiam em alguma das formações que não conseguiram renovar seus quadros (desde 2006 Michelle Bachelet e Sebastián Piñera se alternaram na presidência).

A crise da democracia representativa não é nova no Chile e explicaria, em parte, a abstenção já quase estrutural nas eleições, que não fica abaixo de 50% desde que o voto voluntário foi implementado em 2012. Nesta eleição, tão importante para os destinos no país, a maioria dos eleitores também optou por ficar em casa (57%).

Neste fim de semana os independentes se tornaram uma força gravitacional na política chilena. Ao analisar as listas e as propostas dos eleitos —em sua maioria, desconhecidos até agora do grande público—, observa-se que têm um discurso transformador, que estavam empenhados em mudar a Constituição e que não se situam à direita do espectro político. “Os 48 independentes votaram em outubro por mudar a Constituição e para que a Constituição seja cívica e não formada por parlamentares”, explica Baranda.

A Lista Popular, por exemplo, se define como antissistêmica, segundo Daniel Trujillo, coordenador nacional desse movimento que ainda não tem sede nem liderança nacional e que superou em cadeiras a centro-esquerda (que conquistou 25, uma grande derrota) e quase igualou o Partido Comunista e a Frente Ampla (28).

“Somos um movimento de cidadãos autoconvocado e independente que se organizou para permitir a participação dos representantes do povo sem partidos políticos que representassem os valores da revolta na Constituinte”, afirma Trujillo. Surgiram na Plaza Italia, o epicentro dos protestos em Santiago, que cresceram à medida que se conectaram com os territórios, o que lhes permitiu formar listas em quase todos os bairros. “Acreditamos que a crise a que chegaram as instituições chilenas se deve justamente ao fato de o sistema partidário ter sido capturado pela elite econômica que controla o Chile”, diz o coordenador nacional da Lista do Povo, que estima que todas as organizações políticas se levantaram para proteger Sebastián Piñera e seu Governo após a eclosão social de outubro de 2019. “É uma grande traição ao povo mobilizado nas revoltas e, portanto, com eles, nada”, afirma Trujillo.

Ele fala de uma institucionalidade “caduca” e diz que se ser antissistema capitalista os define como de esquerda, então, a Lista do Povo é de esquerda. Não gostam do Governo de Piñera nem da elite econômica que “capturou” o Chile. Mas reforça a diversidade que os compõe: “Somos contra o modelo neoliberal, mas temos eleitos que endossam o marxismo e até ao trotskismo, como a companheira María Rivera, e outros constituintes como a jovem advogada Francisca Arauna, 28, que foi eleita em um município de camponeses, uma região do latifúndio chileno, que tem um discurso baseado no feminismo, na colaboração e na defesa do meio ambiente, não na luta de classes”, diz Trujillo.

Como a Lista do Povo se formou em torno das mobilizações da Plaza Italia —Plaza Dignidad, como alguns setores a rebatizaram—, símbolos do protesto aderem a este grupo. Como a constituinte Giovanna Grandón, que ficou conhecida como Tía Pikachu por se disfarçar de criatura dos videogames. Ou o Sensual spiderman, um homem-chave na configuração desse grupo, famoso por usar o traje do super-herói.

O alto número de independentes sugere que na Constituinte chilena não haverá disciplina partidária, nem mesmo para os 40 não militantes que chegam ao órgão constituinte amparados pelos partidos. Será semelhante, em todo caso, ao Congresso chileno, onde há muito tempo não se vota em bloco. A partir da instalação da Constituinte, porém, novas alianças internas começaram a se configurar tendo em vista as novas normas.

ROCÍO MONTES, de Santiago do Chile para o EL PAÍS, em 17 MAI 2021 - 23:09 BRT

Combinar vacinas da AstraZeneca e Pfizer é seguro, indica estudo

Pesquisa detecta mais anticorpos em pessoas que receberam uma dose de cada um dos imunizantes contra covid-19 do que em quem foi vacinado apenas com o da AstraZeneca. Efeitos colaterais foram pouco comuns e moderados.

Vacina da Pfizer-Biontech usa tecnologia de RNA mensageiro

Uma pesquisa científica feita na Espanha concluiu que aplicar uma dose da vacina contra a covid-19 da Pfizer-Biontech em pessoas que receberam a primeira dose da AstraZeneca é um procedimento seguro e eficaz.

As duas vacinas utilizam tecnologias diferentes: a da AstraZeneca é uma vacina de vetor viral, e a da Pfizer, de RNA mensageiro.

O estudo, chamado Combivacs e cujos resultados preliminares foram divulgados nesta terça-feira (18/05), foi conduzido pelo Instituto de Saúde Carlos 3º. Ele detectou a presença de anticorpos IgC no sangue em quantidade 30 a 40 vezes maior em pessoas que receberam uma segunda dose da Pfizer na comparação com aquelas que receberam apenas a primeira dose da AstraZeneca.

Já a presença de anticorpos neutralizantes subiu sete vezes depois de uma segunda dose da Pfizer, bem mais do que na aplicação de uma segunda dose da AstraZeneca, quando a presença apenas dobrou.

Cerca de 670 voluntários entre 18 e 59 anos que já haviam recebido uma primeira dose de AstraZeneca participaram do estudo, e cerca de 450 receberam uma segunda dose da vacina da Pfizer.

Um número mínimo de participantes, apenas 1,7%, relatou efeitos colaterais, restritos a dor de cabeça, dor muscular e mal-estar.

Um estudo semelhante foi feito no Reino Unido, e primeiros resultados mostram que pessoas vacinadas com uma combinação das vacinas da Pfizer e da AstraZeneca são mais propensas a apresentarem efeitos colaterais moderados do que aquelas que receberam as duas doses da mesma vacina. Ainda não foram divulgados dados sobre a geração de anticorpos.

O objetivo do estudo na Espanha era ajudar a determinar como proceder após a limitação de uso da vacina da AstraZeneca para pessoas com mais de 60 anos devido a temores de formação de coágulos sanguíneos, adotada pela Espanha e outros países.

A restrição causou insegurança, e pessoas jovens que já receberam a primeira dose da AstraZeneca estavam impossibilitadas de receber uma segunda.

Deutsche Welle Brasil, em 18.05.2021

Octavio Guedes: Calma, Pazuello! Não é o Ustra, é só o Renan

Ex-ministro da Saúde conseguiu um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal para poder ficar calado durante perguntas que possam lhe incriminar em depoimento na CPI da Covid.

Ex-ministro da Saúde conseguiu um habeas corpus no STF para poder ficar calado durante CPI da Civd — Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino

O general da ativa Eduardo Pazuello, quando perguntado sobre o que achava do AI-5, deu a seguinte resposta à repórter Marcela Matos, da revista Veja: "Nasci em 1963, nem sei o que é o AI-5, nunca nem estudei para descobrir o que é".

Dez meses depois da entrevista, Pazuello terá a oportunidade de, finalmente, aprender a diferença entre democracia e ditadura, quando for depor, na quarta-feira, na CPI da Covid.

Com o intuito de ajudar, este humilde blog vai comparar uma sessão de depoimentos presidida pelo senador Omar Aziz na CPI com outra comandada pelo coronel Ustra. "Por que Ustra?", pergunta o leitor. Porque ele usou e abusou do AI-5 para "fazer investigações". Além de ser referência moral do chefe de Pazuello, o presidente Jair Bolsonaro.

A convocação

Luiz Eduardo da Rocha Merlino tinha 23 anos quando foi "convocado" para colaborar com uma investigação por homens armados de metralhadora que invadiram a casa de sua mãe, em Santos, em julho de 1971. Não tinham nenhuma intimação, mandado, nenhuma ordem escrita e fundamentada.

A irmã dele questionou o que estava acontecendo e recebeu como resposta uma coronhada de um dos militares que cumpriam a ordem de Ustra. Sem um papel de embrulhar pão como respaldo, os militares levaram Merlino e avisaram à mãe que seria um rápido interrogatório.

Pazuello foi convocado de forma oficial, conseguiu um atestado de risco sanitário do comandante do Exército para adiar sua ida à CPI, usou o hotel de trânsito da Força em Brasília para fazer media training e ainda contratou um advogado.

O AI-5 que Pazuello não sabe e não estudou impediria toda sua estratégia. Viva a democracia!

As perguntas

Pazuello é livre para escolher como chegará ao Senado. Já Merlino foi levado de Santos até o Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) de São Paulo por quatro militares armados, dentro de um Corcel.

No Senado, o relator Renan Calheiros irá indagar Pazuello sobre suas atividades no Ministério da Saúde. Ele poderá ficar em silêncio em alguns momentos, porque o governo descolou um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, remédio extinto pelo AI-5, que lhe garante o silêncio parcial.

Nas suas inquirições, Renan tem adotado um tom duro, mas educado. E não encostou um dedo nas testemunhas quando achou que elas estavam mentindo. Nem pode. Queiroga e Wajngarten, acusados de não dizer a verdade, saíram da CPI sem um roxo. Assim é a democracia.

No DOI, Merlino foi perguntado sobre suas atividades no Partido Comunista Operário e pelo paradeiro de sua companheira, Angela Maria. Os militares acharam que ele estava mentindo e não gostaram de seu silêncio a alguns questionamentos. Merlino teve as roupas arrancadas, foi colocado num pau de arara e começou a receber choques no pênis e espancamentos de todos os tipos. Ustra participou pessoalmente das sessões.

O AI-5 que Pazuello não sabe e não estudou tinha a tortura, e não o habeas corpus, como método para testemunhas que se reservam ao direito de silêncio. Viva a democracia!

Acareação

Se Pazuello cair em contradição em relação a outra testemunha, a democracia permite que a CPI faça uma acareação entre os dois. É duro, difícil, mas nada se compara às acareações do AI-5 que Pazuello não sabe e não estudou.

Merlino caiu em contradição aos olhos dos interrogadores e Ustra determinou que ele fosse colocado em pé, frente a frente, com outro preso. Em pé é modo de dizer, pois Merlino já não consegui fazer isso. Seus membros inferiores estavam em gangrena, suas nádegas esfoladas e ele vomitava sangue quando se alimentava. Mesmo assim a acareação aconteceu. Ele morreu em seguida.

Para disfarçar a morte de Merlino, Ustra ordenou que um caminhão passasse várias vezes por cima do cadáver. O Estado brasileiro forneceu à família a justificativa de que ele morrera atropelado.

No Senado, Pazuello terá uma equipe médica à disposição, caso se sinta mal. E sairá dali vivo. Viva a democracia!

Moral da história

Da próxima vez em que for perguntado sobre o AI-5, Pazuello não precisará dar uma resposta carregada de cinismo. Bastará dizer que a diferença entre a democracia e a ditadura é a vida. No caso, sua própria vida. Viva a democracia.

PS:

1 - As informações contidas neste artigo foram obtidas em denúncia do Ministério Público Federal baseada no relatório da Comissão Nacional da Verdade.

2 - O título é copiado de um meme da internet que inspirou este artigo.

 Por Octavio Guedes é Comentarista de política da GloboNews e eterno repórter. Publicado originalmente pelo G1, em 16.05.2021, às 14h06  Atualizado há um dia.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

8 anos e 12 quilos, a criança com malária e desnutrição que simboliza o descaso com os Yanomami no Brasil

Etnia enfrenta crises sanitária e ambiental com escalada de violência por garimpos ilegais. Imagem expõe o grave e crônico problema da assistência à saúde em várias aldeias

Criança Yanomami com desnutrição e malária, na aldeia Maimasi. / Foto: Divulgação

Uma rede escura acomoda o corpo miúdo de uma criança Yanomami tão magra que é possível ver sua pele moldar as costelas. A fotografia de uma menina de oito anos que pesa apenas 12,5 quilos (o peso mínimo normal para a idade seria de 20 quilos), feita na aldeia Maimasi em Roraima, expõe um problema crônico de desassistência à saúde que os povos indígenas enfrentam no coração da Amazônia ―e que vem crescendo ano após ano. 

A criança estava acometida por malária, pneumonia, verminose e desnutrição, em uma região sem visitas regulares de equipes sanitárias e que fica a 11 horas a pé do polo de saúde mais próximo. Ela teve sua imagem capturada dias antes de ser transferida de avião a um hospital da capital Boa Vista no dia 23 de abril, onde já se recuperou da malária, mas segue em tratamento para os outros problemas. 

Virou símbolo do histórico descaso do Brasil com o povo Yanomami, que luta para sobreviver em meio a uma junção de graves crises: a escalada de violência por garimpeiros ilegais, os impactos ambientais que levam fome a algumas regiões e a fragilidade do acesso à atenção sanitária.

“Meus antepassados morreram pelo mesmo que eu tô enfrentando: o garimpo ilegal e a epidemia”

“Na cultura Yanomami a gente não pode demonstrar imagem de criança, frágil, doente. Mas é muito importante [fazer isso] pela crise que estamos vivendo”, explica o líder indígena Dario Kopenawa, ao autorizar a publicação da fotografia nesta reportagem. Para esta etnia, a imagem da pessoa é parte importante dela e disseminá-la em uma situação de enfermidade pode enfraquecê-la ainda mais. Até quando se morre, é preciso queimar todas as lembranças de quem partiu para preservar seu espírito no mundo dos mortos. Mas a comunidade decidiu divulgar a fotografia enquanto a criança tenta se recuperar para denunciar aos napëpë ―como chamam os não indígenas― seu sofrimento diante da grave crise de saúde que os ameaça.

“Esta foto é uma resposta da violação de direitos dos povos indígenas”, resume Kopenawa. Enquanto a malária e a covid-19 avançam sobre as aldeias, lideranças narram que equipes de saúde foram reduzidas com profissionais afastados por covid-19 e outras doenças, postos de saúde foram fechados temporariamente e falta helicóptero para transporte de pacientes em áreas de difícil acesso. “A gente sofre há muito tempo sem estrutura boa, sem todos os profissionais completos pra dar assistência. Com a pandemia, piorou”, destaca Konepawa. 

O problema afeta especialmente as comunidades mais isoladas, que dependem de visitas esporádicas das equipes. “Tem locais que estão ainda sem vacinação contra a covid-19 porque não têm profissionais. São comunidades que ficam longe dos postos, não têm como chegar”, acrescenta Júnior Yanomami, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), um órgão responsável pelo controle social das ações governamentais. No Brasil, os grupos indígenas são prioritários na fila de vacinação.

“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”

“A saúde Yanomami está abandonada. Falta tudo”, continua o líder indígena. Segundo ele, a aldeia Maimasi, que vive um surto de malária e onde várias crianças padecem com desnutrição e verminoses, não recebia visita de equipes de saúde havia seis meses, quando profissionais atenderam a criança da fotografia (divulgada por um missionário católico e publicada pela Folha de S. Paulo), no final de abril. A equipe não dispunha de medicamentos suficientes para todos os que precisavam, conta o indígena. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela atenção aos povos originários, dá uma versão diferente: diz que o atendimento ocorreu dia 19 de março, “mas a família não autorizou a remoção para uma unidade de saúde”. Também garante ter estoque suficiente de medicamentos e ter contratado profissionais de saúde, mas não esclarece qual é a frequência das visitas à aldeia. A Sesai tampouco informa ao EL PAÍS sobre a incidência de malária, desnutrição e mortalidade infantil para dar a dimensão do crescimento das doenças na região.

Esses problemas de saúde não são generalizados em todo o território Yanomami ―tão vasto quanto a área de um país como Portugal―, mas estão presentes em várias comunidades. Um estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz em duas áreas do território ―Auaris e Maturaká― e divulgado no ano passado dá pistas sobre o tamanho do problema: 80% das crianças de até 5 anos apresentavam desnutrição crônica e 50% desnutrição aguda nestes locais. 

A situação está relacionada desde à escassez de água potável até a falta de acompanhamento nutricional e de pré-natal na gestação. Passa ainda pelos quadros de verminoses, malária e diarreia frequentes nas comunidades, sem ações preventivas de saúde fortes. “Desde 2019, relato as necessidades e pedimos socorro ao Governo”, diz Júnior Yanomami. “Agora está pior. Aumentou muito a desnutrição. Onde tem garimpo forte tem o problema da fome. E na pandemia aumentaram as invasões. Como eu vou explicar a fome dos Yanomami? Eles [os garimpeiros] sujam os rios, destroem a floresta, acabam a caça. Nós nos alimentamos da natureza”, explica o indígena.

Os moradores da Maimasi são descendentes de um dos grupos mais afetados pela abertura da estrada Perimetral Norte (BR-210) na década de 1970, durante a ditadura militar. Naquela época, parte significativa do grupo morreu diante de surtos de sarampo e outras doenças levadas pelos trabalhadores das obras. Há anos, eles cobram um posto de saúde, mas por enquanto seguem dependendo de visitas esporádicas da equipe de saúde à comunidade. 

A situação que já era difícil ficou pior especialmente a partir do ano passado. As visitas diminuíram enquanto cresceram as atividades de garimpeiros ilegais, aumentando a chance de doenças transmissíveis e a violência. E os casos de malária, enfrentados pelos indígenas há décadas e considerados “endêmicos” pela Sesai, seguem crescendo. 

Segundo Júnior Yanomami, só neste ano já foram identificados cerca de 10.000 casos, o que corresponde a pouco mais de um terço de toda a população yanomami, de cerca de 29.000 pessoas. “A criança na foto provavelmente expressa esse somatório de tragédias”, afirma uma nota da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.

“Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo”

Os vários problemas sanitários, ambientais e sociais enfrentados não estão dissociados. O desmatamento na Amazônia no último mês de abril foi o maior em seis anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. 

O desmatamento tem crescido ano após ano, e o desequilíbrio ambiental interfere na alimentação dos povos da floresta, que se alimentam do que colhem, pescam e caçam nas comunidades mais isoladas. Em várias áreas, a presença de garimpeiros e madeireiros ilegais leva ainda à contaminação de rios com mercúrio, contribuindo para desnutrição, desidratação e diarreia. 

Com os recursos diminuindo na floresta e a fome à espreita, alguns indígenas acabam trabalhando com não indígenas e aderindo a uma alimentação industrializada e menos nutritiva. “Não dá para generalizar que as crianças estão morrendo desnutridas, com fome. Tem esse problema onde há presença dos garimpeiros. 

Onde não tem garimpo as crianças estão saudáveis, comendo bem e cuidando de suas atividades. O que falta é assistência de saúde”, defende Kopenawa. “A vida do povo Yanomami está em risco. Nosso território está vulnerável com tantos problemas ao mesmo tempo.”

Crianças do povo Sanöma, que vive na Terra Indígena Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela. (Crédito da foto: Sílvia Guimarães / Arquivo Pessoal).

A escalada da violência com garimpos ilegais

Às crises sanitária e ambiental, soma-se ainda uma escalada de violência em algumas regiões. É o caso da comunidade indígena Palimiu, em Roraima. Há uma semana, a aldeia enfrenta ataques de garimpeiros, com tiros, bombas e gás lacrimogêneo contra os indígenas. Na última terça, garimpeiros ilegais trocaram tiros com a Polícia Federal durante uma visita para averiguar as denúncias de ataques à aldeia. “Eu nunca tinha visto tantos tiros. Só em filme. Eles [garimpeiros] eram muitos e tinham armamento pesado”, conta Júnior Yanomami, que estava na comunidade naquele momento. No ano passado, os indígenas criaram uma barreira sanitária para evitar a passagem de garimpeiros e tentar frear a disseminação do coronavírus. Mas o rio Uraricoera, onde fica a barreira, é uma das principais rotas para a atividade. No dia 24 de abril, os Yanomami impediram a passagem de um grupo. Tentaram negociar para que não voltassem. A resposta, segundo Júnior Yanomami, veio meio hora depois, com tiros em direção à comunidade. Os indígenas revidaram com flechas e tiros de espingarda.

Os vários conflitos na última semana, segundo relatam os indígenas, deixaram três garimpeiros e um Yanomami feridos. Duas crianças teriam morrido afogadas enquanto fugiam dos tiros, segundo lideranças. “É uma coisa muita séria. Todos lá estão com muito medo. Eu também fiquei”, emenda Júnior Yanomami. “Tem Yanomami correndo risco. Tenho medo de acontecer um massacre a qualquer momento. O Governo Federal tem que se mexer”, clama.

Entidades indigenistas veem o posicionamento do presidente Bolsonaro, que já fez declarações contra a demarcação da terra indígena Yanomami e costuma defender a regularização do garimpo nos territórios, como um estímulo aos conflitos. Na última quarta-feira, o Exército até deslocou homens para a comunidade, mas os retirou horas depois. A 1ª Brigada em Boa Vista não respondeu à reportagem se reenviará os militares e o que motivou a retirada deles. 

A Polícia Federal, por sua vez, deve retornar para investigar o caso. Enquanto isso, os indígenas seguem em estado de alerta e medo, contam lideranças. Até que a situação se modifique, devem ficar também sem os serviços de saúde, já que a Sesai retirou os profissionais diante da gravidade da situação. “A unidade de atendimento será reaberta tão logo seja possível atuar em segurança”, afirma a secretaria, acrescentando que atendimentos de urgência serão realizados pontualmente no distrito sanitário indígena que fica fora do território. 

Já a Fundação Nacional do Índio não retornou os contatos da reportagem. “O clima é de medo. Muito medo. Agora só eles estão lá. Não tem PF, Exército nem Saúde. Estão sozinhos para defender a sua comunidade”, finaliza Júnior Yanomami.

BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 17 MAI 2021 - 19:12 BRT

Bolsonaro diz que pessoas que cumprem isolamento são "idiotas"

Presidente critica apelos para que brasileiros restrinjam os contatos sociais em meio à pandemia, que já provocou 435 mil mortes no país. "Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa", diz.

Presidente vem atacando medidas de isolamento desde o início da pandemia

O presidente Jair Bolsonaro chamou nesta segunda-feira (17/05) de "idiotas" as pessoas que ficam em casa para impedir a disseminação do coronavírus ou por medo de pegar a doença.

A pandemia já provocou mais de 435 mil mortes no país desde março de 2020 e, apesar de sinais de desaceleração, o Brasil ainda continua registrando média móvel de cerca de 2 mil óbitos por dia. 

Em declarações a sua claque de apoiadores que aparece diariamente em frente ao Palácio do Alvorada, Bolsonaro ainda elogiou o agronegócio, que na sua visão não parou durante a pandemia.

"O agro realmente não parou. Tem uns idiotas aí, o 'fique em casa'. Tem alguns idiotas que até hoje ficam em casa. Se o campo tivesse ficado em casa, esse cara tinha morrido de fome, esse idiota tinha morrido de fome. Daí, ficam reclamando de tudo", disse Bolsonaro, ignorando o fato de que nenhum governo mundo afora determinou a suspensão de atividades essenciais como a agricultura ou pecuária.

Os elogios ao agronegócio seguiram a linha de falas que Bolsonaro dirigiu para apoiadores no sábado, durante um ato na Esplanada dos Ministérios. Na ocasião, vários apoiadores exibiam faixas e placas com mensagens anticonstitucionais, pedindo um golpe militar no país.

Queda na adesão ao isolamento

Ainda nesta segunda-feira, o Datafolha mostrou que a adesão dos brasileiros ao isolamento chegou ao nível mais baixo desde o início da crise. De acordo com o instituto, apenas 30% dos brasileiros adultos seguem totalmente isolados ou saem de casa apenas quando é inevitável. Em abril de 2020, o percentual era de 72%. Em março deste ano, 49%.

Para o levantamento, o Datafolha fez 2.071 entrevistas presenciais, entre os dias 11 e 12 de maio, em 146 municípios. A margem de erro da pesquisa é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos.

O Brasil segue como um dos países mais afetados do mundo pela doença, com taxa de mortalidade de 206,4 por 100 mil habitantes - a 12º mais alta do mundo, atrás apenas de uma série de pequenos e médios países europeus e bem à frente de vizinhos como a Argentina. Em números absolutos, o país tem o segundo maior número de mortes no mundo.

O país também registrou oficialmente até o momento 15,6 milhões de casos da doença - atrás apenas dos EUA e Índia -, mas especialistas apontam que o número é certamente mais alto, já que a capacidade de testagem no país continua baixa. 

Pressão

Desde o início da pandemia, Bolsonaro vem criticando e sabotando sistematicamente recomendações de isolamento para combater a pandemia. O presidente costuma incentivar aglomerações, raramente usa máscara e ainda critica o uso do acessório - em fevereiro, Bolsonaro chegou a divulgar uma enquete distorcida que, segundo ele, provaria que máscaras são perigosas. Bolsonaro também já ameaçou diversas vezes acionar as Forças Armadas contra governadores e prefeitos que determinam medidas de restrição no comércio.

As novas críticas de Bolsonaro ao isolamento ocorrem num momento delicado para o governo, que está sob pressão por causa da CPI da pandemia. Nesta semana, a comissão deve ouvir o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que ocupou o cargo entre maio de 2020 e março deste ano e que é acusado pela oposição e especialistas de incompetência, má gestão e de implementar uma agenda negacionista na pasta sob a direção de Bolsonaro.

Números do Datafolha também apontam que o governo está perdendo cada vez mais apoio entre a população. No sábado, o instituto apontou que 49% dos brasileiros apoiam o impeachment de Bolsonaro, contra 46% que rejeitam. Outro levantamento do instituto apontou que 58% dos brasileiros acreditam que Bolsonaro não tem capacidade de liderar o país. Uma pesquisa do mesmo instituto também apontou que uma eventual candidatura à reeleição de Bolsonaro pode ser derrotada por larga margem em 2022. O presidente aparece com apenas 23% das intenções de voto no primeiro turno, bem atrás do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que tem 41%.

Deutsche Welle Brasil, em 17.05.2021

Brasil registra mais 786 mortes por covid-19

País também contabiliza 29.916 novos casos da doença nesta segunda-feira. Número acumulado de mortes passa de 436 mil.    

O Brasil registrou oficialmente nesta segunda-feira(17/05) 786 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 29.916 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 15.657.391, e os óbitos somam agora 436.537.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números de segunda-feira também costumam ser mais baixos porque refletem dados do fim de semana, quando muitos hospitais e secretarias trabalham em regime de plantão.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 14.097.287 pacientes haviam se recuperado da doença até domingo.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 586 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (32,9 milhões) e Índia (24,9 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 207,7 no Brasil, a 10ª mais alta do mundo, quando desconsiderado o país nanico de San Marino.

Ao todo, mais de 163,2 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 3,38 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 17.05.2021

Vera Magalhães: Maior marca de Covas foi política, não administrativa

Confirmada a notícia trágica da morte do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, aos 41 anos recém-completados, fui questionada pelo jornalista Fernando Andrade, na CBN, a respeito da marca que o tucano deixou em sua gestão à frente da cidade.

Não é possível falar em uma marca distintiva do ponto de vista administrativo. Covas herdou a cadeira de João Doria menos de dois anos depois de ser eleito seu vice em uma inédita conquista em primeiro turno, em 2016.

Tinha então 36 anos, uma breve experiência no Executivo, como secretário estadual de Meio Ambiente de Geraldo Alckmin, mas uma longa trajetória partidária, além de uma vivência dos bastidores da política que vinha literalmente de berço, do convívio com o avô e ídolo Mário Covas, com quem chegou a morar no Palácio dos Bandeirantes.

O estilo jovial, o gosto não disfarçado por viagens e baladas, uma então recém-adquirida disposição para perder peso, mudar a alimentação e investir na saúde e na forma física levavam a que seus adversários, e mesmo alguns aliados, apontassem nele a inapetência pelo dia a dia da administração, que exige longas horas dedicadas a questões burocráticas e que numa cidade como São Paulo, que de fato não para, significa uma rotina exaustiva de trabalho.

Essa crítica, aliada à dúvida a respeito de se ele conseguiria imprimir a própria marca à gestão herdada de Doria, consumiu os primeiros meses de sua gestão, nos quais Covas se eximiu de fazer grandes mudanças, até para não atrapalhar uma já complicada eleição do correligionário ao governo do Estado.

Foi só a partir de 2019 que ele se sentiu livre para fazer as mudanças que entendia necessárias e que visavam também contemplar aliados políticos. Algumas, como a nomeação de Ale Youssef para a Cultura, levaram a que se indispusesse com o próprio Doria. Mas a dúvida quanto à vocação para a gestão permanecia.

No dia 11 de outubro de 2019, Covas me convidou para almoçar com ele e alguns secretários, em seu gabinete na prefeitura. Fiz a pergunta sobre isso diretamente a ele, e questionei justamente se essa característica seria uma ameaça à sua reeleição.

Não vou saber reproduzir as palavras exatas, mas me lembro do que ele disse: que vivia a política desde criança, estava no PSDB desde adolescente, tinha sido deputado, secretário, vice-prefeito. Como era possível que duvidassem de sua aptidão e de seu apetite pela vida pública. Faltava um ano para a eleição: a partir dali suas entregas começariam a aparecer e ele seria reeleito. 

Bolsonaro já era presidente. O PT vinha do desgaste da prisão de Lula e do impeachment. Ele imaginava que seu aceno à esquerda na composição do secretariado e uma plataforma de centro que não estigmatizasse os adversários venceria a eleição.

No dia 29 daquele mesmo mês ele descobriu que tinha um câncer na cárdia, com metástase. Foi essa diferença de dias que fez com que a conversa permaecesse tão nítida na minha memória.

Cheguei a imaginar que o diagnóstico o levaria a desistir da candidatura. De fato, houve uma movimentação dos partidos para sondar a possibilidade de lançar outro nome. Mas, assim como foi firme ao encarar penosas sessões de quimioterapia sem se afastar da prefeitura (dissipando ali as críticas pela pouca afeição ao trabalho na prefeitura), Covas bateu o pé de que seria candidato para submeter seu trabalho ao escrutínio do eleitor.

Não foi a única circunstância adversa que enfrentou. Veio a pandemia. Ele teve covid-19 em meio ao tratamento. Mas levou a candidatura adiante, com transparência, conciliando uma campanha atípica com a quimioterapia. Tive a oportunidade de entrevistá-lo quatro vezes ao longo da campanha de 2020, além de questioná-lo em dois debates.

Em todas as vezes perguntei se sua situação de saúde não seria um entrave a novo mandato de quatro anos. Era uma dúvida mais que legítima, que a cidade merecia ver esclarecida. Ele em todas as vezes repetia que não estava curado, mas se sentia bem e confiava na cura.

E ao longo de um ano entre nossa conversa e sua reeleição construiu outro legado, que não foi de natureza administrativa -- respondi ao Fernando Andrade e repito aqui que sua gestão não deixou grandes marcas de Educação, Saúde, urbanismo ou mobilidade urbana --, mas político.

Primeiro, ao conduzir a cidade durante a pandemia (mesmo vivendo um drama pessoal paralelo) segundo preceitos científicos, assumindo inclusive o potencial desgaste de adotar medidas impopulares num ano eleitoral.

E, depois, e não menos importante, ao se portar de forma republicana diante dos adversários, mesmo tendo a máquina e a maior estrutura financeira entre os postulantes. O Brasil vinha de duas campanhas, a presidencial de 2014 e a presidencial e estadual de 2018, tóxicas, abjetas mesmo, em que a aposta na desinformação, na aniquilação dos adversários e na negação da política foram marcas.

Covas resgatou a importância dos partidos, não fez uma falsa estigmatização da esquerda, não procurou surfar a onda de direita que vinha de dois anos atrás e não se furtou a traçar uma linha divisória no chão, mostrando que o presidente representava a negação da política e um risco à democracia.

Principalmente no segundo turno, ele e também seu rival, Guilherme Boulos (PSOL), brindaram uma cidade abatida pelo vírus e pela crise econômica com o mínimo que se deveria esperar dos homens públicos: respeito, razoabilidade, diálogo, divergência republicana.

O fato de o eleitor ter referendado sua gestão ao reelegê-lo não se deveu a nenhuma obra, ou à melhora significativa em indicadores sociais e econômicos. Mas a uma gestão confiável da pandemia e à razoabilidade na política. A direita histérica bolsonarista, ex-bolsonarista ou protobolsonarista não foi nem ao segundo turno na maior cidade do Brasil dois anos depois de o capitão se eleger. Não foi pouca coisa. E aquela campanha, ainda tão fresca na memória de todos, projeta um caminho para 2022: o de que é possível uma candidatura de centro viável, desde que haja autenticidade.

Não só o sobrenome, o câncer, a risada por vezes sarcástica e as entradas acentuadas nas têmporas uniram a trajetória dos dois Covas, o avô e o neto, com a diferença de 20 anos entre a morte de um e de outro: também foi um traço de ambos a prática da política dos cavalheiros, o que não os eximia de ser grosseiros ou irritadiços às vezes, mas nunca autoritários.

Por tudo isso, a marca que Covas deixou para o debate público e para a História foi que o que existe de melhor na política não é nenhuma panaceia de "nova política" ou o culto a uma falsa "não-política": é a prática da arte da política em sua plenitude, com as idiossincrasia, as contradições, as imperfeições e as limitações que ela tem numa democracia que muitas vezes vive de solavancos, mas não pode prescindir da negociação e do dissenso, sob pena de deixar de ser democracia.

Vera Magalhães é Jornalista. Apresentadora do Roda Viva da TV Cultura. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 17.05.2021

Paladinos ilegais e profetas infiéis, heranças seculares e perigosas

Logo teremos eleições e preocupa muito que não elejamos quem defenda os interesses coletivos

O advogado, escritor, político e revolucionário Maximilien Robespierre conquistava simpatizantes com posições humanistas, era contrário à escravidão, à pena de morte e defendia a participação política de todos os cidadãos, independentemente de seu lastro financeiro.

Ele se tornaria líder dos jacobinos, ala revolucionária mais radical, e rapidamente sua parcimônia seria substituída pelo autoritarismo, que em nome da causa decapitaria amigos por divergências de toda ordem. Mas da ala dos descontentes um estruturado revés levaria também sua cabeça para rolar na Place de la Concorde.

Na democracia, os reveses que inquietam por alternar extremos ideológicos também principiam nas insatisfações, porém se concretizam nas urnas, sem ferimentos democráticos. Uma vez empossado, o novo mandatário deve abandonar a belicosidade eleitoral e encontrar os caminhos para validar suas promessas, sem distanciamento dos crivos institucionais e do sentimento popular, sob o grave risco de decapitação no pleito seguinte, ou durante o vigente.

É alternativa condenável o aparelhamento do sistema administrativo para, em seguida, mutilar as instituições e modular o governo longe da participação popular. Essas estratégias, ou tentativas, para linhas à direita ou à esquerda, ensaiadas ou implementadas, nunca deixam bons saldos.

Outra tática para dominar as massas e os consequentes triunfos políticos contempla alinhamento por arrimos religiosos, não faltando habilidosos articuladores que se utilizam, para suas próprias pretensões, da fé incondicional dos seguidores. As religiões têm variadas teceduras em suas origens, provavelmente a frágil pequenez humana perante o universo tenha sido detectada muito cedo por nossos ancestrais e, desde quando nós encontramos registros, nossa jovem espécie tem seus credos.

A adoção do cristianismo, em 323, por Constantino, no Império Romano, foi simbiótica, crucial para estender a sustentação imperial, porém ainda mais importante na imensa propagação da religião cristã. Mas a frente única de doutrinas seria contestada em sua hegemonia quase 12 séculos depois, por Martinho Lutero, principiando dissidências que se estabeleceram em diversos nomes.

Importante marco das cisões internas no cristianismo, e notório exemplo da relação entre religião e poder, se deu quando Henrique VIII oficializou a Igreja Anglicana em substituição à Católica. A atitude do rei, em 1534, foi tomada em retaliação ao papa, que não lhe concedera o divórcio de sua primeira esposa, a rainha espanhola Catarina de Aragão. Henrique estava decidido a se casar com Ana Bolena.

A partir de então, a Grã-Bretanha viveria séculos de terror nos grandes duelos entre cristãos de uniformes diferentes, enquanto na França, do mesmo modo, se verificavam muitos massacres e sangue antes e depois da permissão para o culto protestante.

A mistura de religião e poder é cáustica e perigosa, emotiva e raramente racional, míope quando homogênea e segregante, assim como tempestuosa, se é impositiva. Por outro lado, o elo entre a religiosidade e as soluções de enfermidades permanece no imaginário humano, e aqui não se discutem suas bases, mas a ciência caminha bem por quase todas as crenças. São bastante pontuais afrontamentos religiosos perante condutas ditadas pela ciência, e propositadamente não enunciarei nenhum deles.

Muito embora alguns credos, em raras ramificações, contemplem sacrifícios, em geral sucede o contrário, buscam dádivas que intercedam em sobrevivências ameaçadas, habitualmente em favor da vida.

Sobraram vozes consonantes, em Legislativos e Executivos de todas as nossas esferas governamentais, para o desesperado manifesto de alguns líderes religiosos solicitando exceção para execução de cultos, em oposição contundente às então orientações das autoridades sanitárias. Buscavam apoio oficial para convocar fiéis à aglomeração, chamamento que já verificava em ato clandestino, desumano e inaceitável para os propósitos dessas instituições.

Fosse a arrecadação dos dízimos para quitar os débitos de R$ 1,9 bilhão inscritos na Dívida Ativa da União, seria ao menos compreensível, embora equivocado. Contudo o argumento se derramava no que entendem como necessário louvor a Deus, sugerindo incapacidade do ser supremo quanto à onipresença nos lares e quinhões planetários.

Por aqui, todos os dias surgem Robespierres de inúmeras tribos com a promessa paladina de uma inadiável limpeza institucional, mas perdem a mão ou pelo exagero, rasgando o Código Penal, ou desmantelando (aparelhando) a estrutura para estender o domínio, sem nos distanciar do caos. Na mesma esteira são muitos os candidatos a Henriques VIII, resolvendo suas dores com os suores e vidas de seus fiéis e/ou eleitores.

Preocupa muito que em breve escolhamos nas eleições os representantes do empresariado, da indústria, do mercado financeiro, do setor imobiliário, de frações religiosas, de facções criminosas e de grupos de extermínio, mas não elejamos ninguém que defenda os interesses coletivos.

Antonio Carlos do Nascimento, no autor deste artigo, é doutor em endocrinologia pela Faculdade de Medicina da USP e membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia  e Metabologia (SBE).  Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17 de maio de 2021.

Um jovem exemplar

Bruno Covas mostrou-se à altura das melhores tradições paulistanas, que valorizam o trabalho, a cooperação e o diálogo, tudo isso temperado pelo orgulho de viver nesta cidade que é o mundo

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas, morreu ainda no início de sua trajetória política, mas isso não impediu que esse jovem quadro do PSDB desse muitas lições inclusive para os veteranos que parecem ter esquecido qual é a verdadeira missão dos homens públicos.

Aos 41 anos, enfrentou com relativo sucesso o desafio de governar a maior cidade do País e uma das maiores do mundo em meio a uma pandemia e a sérias restrições orçamentárias, tudo isso diante de problemas crônicos da gigantesca metrópole.

A morte precoce não impediu que Bruno Covas gravasse seu nome na história da cidade. Mostrou-se à altura das melhores tradições paulistanas, que valorizam o trabalho, a cooperação e o diálogo, tudo isso temperado pelo orgulho de viver nesta cidade que é o mundo.

Mesmo seus mais críticos adversários reconhecem em Bruno Covas a disposição para a verdadeira política – aquela em que as eventuais diferenças ideológicas não são encaradas como obstáculos intransponíveis, mas como expressões legítimas de distintas visões de mundo. 

O prefeito vinha fazendo sua carreira firmemente apegado à ideia de que a política não é briga de rua, e sim colaboração em nome de ideais superiores, tal como se comportava seu avô, o governador Mario Covas – que não pestanejou em manifestar apoio a Lula da Silva quando este disputou o segundo turno da eleição presidencial contra Fernando Collor em 1989, e que se juntou à candidata petista Marta Suplicy na disputa à Prefeitura de São Paulo contra Paulo Maluf em 2000.

Foi dessa maneira, aliás, que Bruno Covas tentou resgatar os valores do antigo PSDB, partido que fez história com a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, levando ao Palácio do Planalto, vitrine para o Brasil, o compromisso com a responsabilidade fiscal e com a modernização do Estado. Hoje perdido entre projetos de quem coloca suas ambições pessoais à frente dos imperativos históricos do partido, o PSDB vem perdendo musculatura moral para voltar a ser protagonista da política. Bruno Covas era uma brisa de ar fresco em meio a essa atmosfera pesada.

O prefeito reconheceu o valor dos veteranos políticos tucanos que foram sendo deixados de lado em nome de uma ideia totalmente equivocada de competitividade eleitoral e de renovação partidária. Fez questão de acompanhar o ex-presidente FHC quando este foi votar na eleição para a Prefeitura, no ano passado. Um contraste e tanto com a posse do governador tucano João Doria em 2019, que não foi prestigiada por nenhum dos antigos dirigentes tucanos – nem por Bruno Covas, que assumira a Prefeitura no lugar de Doria.

A renovação que Bruno Covas pretendia liderar era, portanto, de outra natureza. Significava não a destruição do passado social-democrata, tampouco uma guinada à direita reacionária, e sim a atualização da plataforma política que se constituíra, no passado, como alternativa política e eleitoral consistente.

Ao mesmo tempo, Bruno Covas demonstrou notável determinação para enfrentar as muitas crises que se apresentaram durante sua curta passagem pela Prefeitura. Já em 2018, quando mal assumira o cargo, Bruno Covas teve que encarar o pandemônio causado pela greve dos caminhoneiros. Montou um gabinete de crise, decretou estado de emergência e providenciou combustível para abastecer veículos de prestação de serviços. Apesar de tudo, a cidade não parou.

Mas a pandemia foi o grande teste, do qual o prefeito saiu-se relativamente bem – a ponto de ter sido este um dos trunfos de sua vitoriosa campanha à reeleição. É evidente que a Prefeitura cometeu vários erros, e a cidade foi submetida a restrições muitas vezes confusas, sobretudo em áreas críticas, como a educação. Mas não se pode negar que Bruno Covas jamais se furtou de sua responsabilidade e sempre teve coragem de assumir publicamente seus atos, por mais impopulares que fossem.

Era, principalmente, honesto e sereno – qualidades singelas que andam escassas na embrutecida política brasileira. Que sua morte sirva para lembrar que a política pode voltar a ser assim.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 17 de maio de 2021 

Aliados e adversários exaltam Bruno Covas como voz moderada


Prefeito de São Paulo morreu neste domingo com câncer. Tucano era "ponderado", "ponto de equilíbrio" e "democrata", dizem políticos de diferentes partidos.

Covas entrou na política por influência do avô, o ex-governador Mário Covas

O prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), morreu neste domingo (16/05), aos 41 anos, após 19 meses tratando um câncer surgido na região entre o estômago e o esôfago e que atingiu também o fígado e alguns ossos.

De perfil moderado e hábil articulador, Covas valorizava o papel da política e dos partidos e buscava imprimir ao PSDB um posicionamento de centro. Antibolsonarista, declarou voto nulo em 2018 para presidente, ao contrário do governador paulista, João Doria, que fez dobradinha com Jair Bolsonaro naquele ano.

Em entrevista à DW Brasil em fevereiro de 2020, Covas defendeu que o PSDB deveria ter um discurso "cada vez mais firme de parceria com o setor privado" e usar os instrumentos do governo para focar em "redução da desigualdade social".

Na sua gestão à frente da prefeitura paulistana, Covas buscou compor com políticos da centro-direita e direita sem deixar de fazer acenos a setores progressistas. Ele também insistia na expulsão do senador Aécio Neves do PSDB, após ele ter sido flagrado em 2017 pedindo R$ 2 milhões a Joesley Batsta, dono da JBS.

A prefeitura de São Paulo será assumida de forma definitiva pelo vice de Covas, Ricardo Nunes (MDB), um político pouco conhecido pela população e de perfil mais conservador, que já comandava a administração de forma interina desde o início do mês.

"Ponderado" e "democrata"

O traço moderado de Covas foi destacado por diversos políticos aliados e adversários que divulgaram notas de pesar neste domingo.

Em sua manifestação, Dória afirmou que Covas era "pragmático e ponderado". "Bruno Covas era sensível, sereno, correto, racional, pragmático e ponderado. Voz sensata, sorriso largo e bom coração. Bruno Covas era esperança. E a esperança não morre: ela segue, com fé, nas lições que ele nos ofereceu em sua vida", disse.

O presidente nacional do PSDB, Bruno Araújo, disse que Covas era uma das lideranças mais promissoras e brilhantes da legenda e deixa "a certeza de que é possível fazer política sem ódio, fazer política falando a verdade".

Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul pelo PSDB, afirmou que Covas deixa o exemplo de "dedicação por uma política feita com respeito e equilíbrio".

Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, disse que a morte de Covas priva o país de uma "liderança jovem e capaz, um ponto de equilíbrio na crise política".

Em mensagem em redes sociais, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva expressou sentimentos aos "familiares, amigos e correligionários de Bruno Covas, que nos deixou hoje após travar uma longa e dura batalha contra o câncer".

A ex-presidente Dilma Rousseff também elogiou a trajetória de Covas: "O Brasil perdeu um dos seus promissores líderes políticos. Quero manifestar meus sentimentos ao filho Tomás e a toda família Covas, além dos militantes e dirigentes do PSDB.”

O ex-presidente Michel Temer afirmou: "Com ele vai embora parte da nossa esperança. Descansa em paz".

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, registrou seu sentimentos aos familiares, amigos e ao filho de Covas. "Admiro a forma aguerrida como conduziu a pandemia na maior cidade do País e como fez sua campanha de eleição para a prefeitura", disse.

Orlando Silva, deputado federal pelo PCdoB de São Paulo, disse que Covas era "inteligente, cortês mesmo com quem a ele se opunha politicamente. Um democrata verdadeiro".

Guilherme Boulos, do PSOL, que disputou o segundo turno da eleição de 2020 contra Covas, afirmou: "Lamento muito a morte do prefeito Bruno Covas. Tivemos uma convivência franca e democrática. Minha solidariedade aos seus familiares e amigos neste momento difícil. Vá em paz, Bruno!"

Neto de ex-governador

Covas se aproximou da política desde cedo por influência do seu avô, o ex-governador Mário Covas (1930-2001). Ele filiou-se ao PSDB aos 18 anos de idade e foi presidente nacional da Juventude Tucana de 2007 a 2011.

Formado em direito pela USP e em economia pela PUC, Covas venceu sua primeira eleição em 2006, para deputado estadual. Quatro anos depois, foi reeleito com a maior votação no estado naquele ano.

Ele se afastou da Assembleia Legislativa antes do final do mandato para assumir a Secretaria de Meio Ambiente do governo Geraldo Alckmin, e em 2014 elegeu-se deputados federal.

Em 2016, Covas foi eleito vice-prefeito com Doria, representando na chapa tucana os setores mais tradicionais do PSDB. Quando Doria foi eleito governador, dois anos depois, Covas assumiu a prefeitura, aos 38 anos de idade.

Ele disputou a reeleição em 2020, quando já enfrentava o câncer, e derrotou Boulos no segundo turno com 59,4% dos votos válidos.

Evolução da doença

O câncer na cárdia foi diagnosticado em outubro de 2019, quando Covas havia se internado no Hospital Sírio-Libanês para tratar uma infecção de pele e exames localizaram os tumores, que também atingiram no início da doença os linfonodos.

Ele fez quimioterapia e radioterapia e, em novembro do ano passado, com os resultados positivos do tratamento, passou a fazer imunoterapia.

Em fevereiro e abril de 2021, porém, foram diagnosticados novos tumores no fígado, na coluna e a bacia. Em 2 de maio, ele tirou uma licença de 30 dias do cargo e se internou para realizar exames e retomar a quimioterapia e a imunoterapia.

Uma endoscopia identificou sangramento na região da cárdia e ele chegou a ficar entubado por um dia  Seu quadro de saúde permaneceu delicado nos dias seguintes, e na sexta-feira (14/05) os médicos informaram que seu quadro era irreversível. Ele faleceu às 8h20 deste domingo.

Deutsche Welle Brasil, em 17.05.2021

sábado, 15 de maio de 2021

Brasil registra mais 2.087 mortes por covid-19

País também contabiliza 67.009 novos casos da doença neste sábado. Número acumulado de mortes passa de 434 mil.

O Brasil registrou oficialmente neste sábado (15/05) 2.087 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 67.009 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 15.586.534, e os óbitos somam agora 434.715.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 14.028.355 pacientes haviam se recuperado da doença até sexta-feira.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 585 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (32,9 milhões) e Índia (24,3 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 206,9 no Brasil, a 10ª mais alta do mundo, quando desconsiderado o país nanico de San Marino.

Ao todo, mais de 162 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 3,36 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 15.05.2021

Bolsonaro desfila a cavalo em protesto de ruralistas e reclama de soltura de Lula

Presidente também discursou contra ‘arbitrariedades’ de governadores e prefeitos

Bolsonaro desfila a cavalo em ato na Esplanada dos Ministérios Foto: Reprodução / Twitter

O presidente Jair Bolsonaro participou neste sábado de uma manifestação organizada por ruralistas para apoiar o governo e criticar o Supremo Tribunal Federal (STF) e a CPI da Covid. Depois de cavalgar na frente dos manifestantes usando um chapéu de boiadeiro na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro subiu em um carro de som e, sem citar nominalmente o STF, fez discurso afirmando que "tiraram um canalha da cadeia". Segundo ele, um político solto, o ex-presidente Luiz Inácio Lula, que também não teve no nome citado, quer ganhar a eleição por meio de fraude. Bolsonaro repete o discurso da campanha de 2018 e, sem apresentar provas, alega que só o voto impresso é capaz de garantir a lisura das eleições.

Datafolha: 49% apoiam impeachment de Bolsonaro, e 46% se dizem contrários

— Quem prepara a terra e planta, é porque quer colher alguma coisa lá na frente. Se tiraram da cadeira o maior canalha da História do Brasil, se para esse canalha foi dado o direito de concorrer, o que me parece é que se não tivermos o voto auditável, esse canalha ganha as eleições do ano que vem — disse Bolsonaro, em referência a Lula.

Sem usar máscara, Bolsonaro caminhou entre os manifestantes, que criticavam tanto os ministros do Supremo quanto os membros da CPI da Covid. Bolsonaristas também se reuniram neste sábado na Avenida Paulista, em frente ao prédio da Fiesp, em São Paulo, para defender pautas do governo. O ato foi organizado pela Marcha da Família.

Ao som de gritos de "eu autorizo, eu autorizo”, uma referência ao discurso em tom de ameaça do próprio Bolsonaro de que esperava um pedido do povo para adotar medidas contra as medidas de isolamento social na pandemia, o presidente afirmou que não se pode “assistir passivamente tantos desmandos”:

— Não podemos assistir passivamente tantos desmandos, tantas arbitrariedades que vocês bem viram ao longo do último ano. Parece que tínhamos que passar por isso para dar valor à nossa liberdade.

O presidente disse que "direitos" estão sendo "suprimidos" e que "acabou esse tempo":

— Não queremos o confronto com ninguém. Mas não ousem confrontar ou roubar a liberdade do nosso povo. Vocês tem todo o direito de ir e vir, o direito à crença, o direito de trabalhar. E, sem qualquer critério, esses direitos foram suprimidos de vocês. Acabou esse tempo. Isso não voltará a acontecer. Afinal de contas, esse dispositivo constitucional é um dever de todos nós respeitar.

Bolsonaro destacou que muitos apoiadores querem "solução rápida para tudo", mas afirmou que todos os seus ministros tem o mesmo propósito de "servir à sua pátria" e "preservar a nossa liberdade".

Diversos ministros do governo federal estiveram presentes, como Walter Braga Netto (Defesa), Anderson Torres (Justiça), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Tezera Cristina (Agricultura), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

Bolsonaro também falou em "reunião de vagabundos" — repetindo o termo usado por um dos seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), para se referir ao relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (MDB-AL) — e disse que não iria dar "palanque".

— Você falou a palavra "súcia". Alguém sabe o que o significado de súcia? É a reunião de vagabundos. É a turminha deles. Mas não vamos dar palanque. Todo mundo já conhece quem é esse cara e qual o seu papel.

Antes da chegada de Bolsonaro, dois helicópteros da Presidência sobrevoaram a manifestação em Brasília, por volta das 15h, para observação. Depois de darem duas voltas, as aeronaves retornaram para o Palácio da Alvorada. Pela manhã, o presidente avisou nas redes sociais que estaria “com o povo” na Esplanada.

Dois atos diferentes estavam marcados para este domingo na capital federal: um de religiosos, pela manhã, e outro de produtores agropecuários, de tarde. Na prática, no entanto, houve uma mistura entre os dois grupos.

O STF foi um dos principais alvos dos manifestantes, seja em cartazes ou em gritos nos carros de som. Uma faixa, por exemplo, dizia que os ministros da Corte estão “demitidos”. Outra pedia uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o tribunal.

Outro ponto muito citado foi o chamado "voto impresso auditável". A presidente da Comissão de Constituição de Justiça (CCJ), Bia Kicis, autora de uma proposta sobre este tema, discursou no carro de som e pediu para os manifestantes gritarem alto o suficiente para o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, escutar.

Ataques a Renan na Paulista

Em São Paulo, cerca de 200 pessoas fizeram orações por Bolsonaro, também defenderam a aprovação do uso do voto impresso nas eleições de 2022 e fizeram diversos ataques a desafetos do presidente. Renan Calheiros foi alvo de coros de "Renan vagabundo", uma repetição da ofensa proferida por Flávio Bolsonaro. A CPI da Covid, que investiga possíveis crimes do governo federal no combate à pandemia, foi chamada de "farsa".

A manifestação contou com dois representantes do baixo escalão do governo. Quirino Cordeiro Jr, secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, do Ministérios da Cidadania, e Angela Gandra, secretária nacional da Família, ligada ao ministério de Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), discursaram do carro de som.

Numa barraca atrás da aglomeração, onde muitas pessoas não usavam máscaras, militantes bolsonaristas coletavam assinaturas para a criação do Aliança pelo Brasil, partido em construção ligado à família Bolsonaro. Enquanto Angela fez defesa das políticas públicas do governo voltadas à família, Quirino afirmou que o "Brasil vive o maior risco de legalização das drogas na história". No discurso de outros militantes, a esquerda foi associada ao "demônio" e à maconha.

O deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP) participou da manifestação de cima do carro de som. Estavam presentes também grupos como Aliança Jovem Conservadora, Família Cristã pela Liberdade e Movimento Pra Frente Brasil.

Daniel Gullino e Guilherme Caetano / n'O Globo, em 15/05/2021 - 15:43 / Atualizado em 15/05/2021 - 18:44

Uma revolução a caminho

Talvez essa chacoalhada nos tire do marasmo destes anos sem recursos e inspiração

Quem acompanha as políticas de ciência, tecnologia e inovação está atento ao que acontece nos EUA. Uma revolução está a caminho. O governo Biden, com apoio do Congresso, prepara uma reforma abrangente da institucionalidade que há décadas financia a pesquisa, e o faz também com uma elevação sem precedente dos orçamentos destinados a essa tarefa.

Há momentos da História em que os acontecimentos se aceleram. Foi o que aconteceu na 2.ª Grande Guerra, com o Office of Scientific Research and Development, que coordenou o esforço tecnológico americano, com inúmeras consequências, a exemplo do Projeto Manhattan. Os EUA emergiram da guerra como nação absolutamente hegemônica e a ciência também saiu triunfante.

Mas a ossatura da institucionalidade de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico criada no pós-guerra se fragmentou, em razão de falta de acordo no Congresso sobre que modelo criar e sobre o papel da National Science Foudation (NSF). Os Departamentos de Defesa, Energia, Saúde e Agricultura criaram, cada um, sua própria agência, sob a frágil coordenação de um escritório na Casa Branca, o US Office of Science and Technology Policy (OSTP).

A História se acelerou novamente com o susto causado pelos russos ao lançarem o Sputnik 1, em outubro de 1957, e um mês depois, o Sputnik 2. O efeito dos satélites soviéticos foi similar ao do ataque a Pearl Harbor. No ano seguinte os EUA criariam a Nasa e a Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), hoje uma espécie de sonho de consumo de muita gente, como canadenses e ingleses. A missão à Lua e todas as suas implicações vieram no rastro disso.

O terceiro momento dessa história veio com a competição criada pela Alemanha e, em especial, pelo Japão, nos anos 1970. O triunfo japonês na indústria de semicondutores fez soar novamente o alarme. Quem cataloga as inúmeras leis americanas sobre esses temas, aprovadas depois de 1980, fica assustado ao ver sua profusão. O Bayh-Dole Act é a mais famosa. Mas elas foram numerosas, fortalecendo o sistema de propriedade intelectual, incentivando a comercialização de tecnologia, relativizando as regras antitruste, etc. Em suma, facilitando a interação de atores desse sistema de inovação e incentivando a comercialização dos resultados da pesquisa.

A resposta ao desafio chinês vem agora com Joe Biden. Num ato mais simbólico que efetivo, elevou o OSTP ao status de ministério. Encomendou também, como fez Roosevelt ao fim da 2.ª Guerra, um relatório de propostas do que fazer, nos moldes do famoso Science the Endless Frontier, coordenado à época por Vannevar Bush. Em paralelo anuncia a criação de duas novas agência nos modelos da Darpa, como já ocorrera anos antes na área de energia com a Arpa-E: a Arpa-Clima e a Arpa-Saúde. Em iniciativas paralelas iniciadas na Câmara dos Deputados, no Senado e no próprio Executivo, prepara-se uma reforma da NSF, criando uma diretoria de tecnologia e inovação e ampliando muito seu orçamento.

A proposta do Senado, sintomaticamente chamada de The Endless Frontier Act, iniciativa bipartidária, é abrangente e vai impactar toda a nova geração de política de ciência e inovação do mundo. Amplia o escopo de ação da NSF, reforça a coordenação entre as agências, sinaliza ações de redução das desigualdades de gênero e raça na ciência, muda a governança do sistema e reforça seu orçamento, com US$ 100 bilhões para os próximos cinco anos. Faz isso definindo dez tecnologias prioritárias para os investimentos e estendendo o leque de apoio da NSF para além da pesquisa, buscando endereçar o gap que existe entre a pesquisa e a comercialização – o chamado vale da morte.

Similar ao que a Europa fez e faz no âmbito de seus megaprogramas – o Horizon 2020, vigente entre 2014 e 2020, com orçamento de € 80 bilhões, e o novo Horizon Europe, para operar entre 2021 e 2027, com orçamento de € 95.5 bilhões – voltados progressivamente para a pesquisa orientada por problemas e missões, os EUA mudam de patamar, elegem seus focos e redesenham seus instrumentos.

Um forte impacto no mundo e entre nós será inevitável. Não apenas pelos muitos desafios competitivos que criam, ampliando nosso atraso. Mas também porque nosso sistema foi sempre inspirado na cópia e adaptação das políticas americanas, como exemplifica o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), criado em 1949 com foco inicial na área nuclear, antes mesmo do CNPq, em resposta ao tsunami do Projeto Manhattan.

Talvez seja oportuno que esta chacoalhada nos tire do marasmo destes anos, em que faltam recursos e inspiração. Talvez organize o debate sobre o que fazer. Todos sabemos que a inovação é crucial para o desempenho econômico. Hoje acordamos também para reconhecer o papel da ciência na vida das pessoas, com as vacinas e os tratamentos para a covid-19. Mas continuamos a nos distanciar do mundo. Às vezes porque o mundo anda mais rápido, às vezes porque contribuímos andando para trás. Vamos esperar que Biden nos ajude a acordar também neste campo das iniciativas públicas.

Carlos Américo Pacheco, o autor deste artigo, é Presidente Executivo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e Professor da UNICAMP. Foi Reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA e Secretário Executivo do Ministério da Ciência,  Tecnologia. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 15.05.2021.

O autoritarismo de ontem e os males de sempre

Muitas vezes, reflexões jurídicas aparentemente inofensivas assentam o caminho autoritário

Não são apenas as desigualdades sociais e econômicas que insistem em permanecer na trajetória brasileira. Os males institucionais são também teimosos, como mostra Luis Rosenfield em seu livro Revolução Conservadora: Genealogia do Constitucionalismo Autoritário Brasileiro (1930-1945) – Editora da PUCRS, 2021.

A descrição do ambiente público da Primeira República, por exemplo, é aplicável à época atual. “As polêmicas (...) diziam respeito à lisura do processo eleitoral, à inviolabilidade do voto secreto e universal, à independência do Poder Judiciário, à separação de poderes e à organização de partidos políticos de âmbito nacional. Somavam-se a esse cenário a pauta de modernização da gestão pública, o problema da corrupção e a crônica ineficiência governamental.”

Resultado de sua pesquisa de doutorado, o livro de Luis Rosenfield é incômodo. Seu objetivo é precisamente “abordar as ideias que levaram o Brasil à consolidação de um pensamento constitucional autoritário, antiliberal e corporativista que teve seu ápice no Estado Novo”.

O tema envolve muitas sombras e contradições. “A história das doutrinas constitucionais não entra em pausa durante os regimes autoritários. Compreender o constitucionalismo como um simples andar para frente das garantias individuais, das liberdades e de uma suposta evolução dos sistemas políticos democráticos implica endossar uma perspectiva ingênua da História”, diz Luis Rosenfield.

No estudo sobre o modo como a comunidade jurídica pensava os rumos do País, escancaram-se não apenas incoerências teóricas, mas cumplicidades constrangedoras. Por exemplo, “Oliveira Vianna, o grande intelectual do período (varguista), defendia desde a década de 20 a democracia autoritária, eugênica e corporativa”.

O livro é também incômodo – e, na exata medida desse incômodo, necessário nos dias de hoje – ao delinear os antecedentes do pensamento constitucional autoritário. Em sua gênese não estavam “apenas delírios autoritários”. A motivação comum a esses pensadores era oferecer um rumo ao Estado brasileiro capaz de superar “os males da ineficácia, da corrupção e do subdesenvolvimento”.

Eis um ponto que merece especial atenção. O Estado Novo de Vargas cometeu atrocidades e violou garantias e liberdades; e, nessa trajetória de desrespeito a direitos fundamentais, contou com a cumplicidade de muitos juristas. No entanto, isso não foi fruto de mera perversidade autoritária. Os caminhos foram mais sutis e, portanto, mais perigosos.

O pensamento autoritário do Estado Novo nasce – aqui as palavras têm desconcertante atualidade – de um “profundo desapontamento com os rumos da prática constitucional do País”. No final da Primeira República, “disseminam-se obras jurídicas que irão contestar o anacronismo das instituições liberais, a ineficácia da democracia parlamentar e o idealismo da Constituição de 1891”.

No embate entre idealistas constitucionais e realistas autoritários – “oposição utilizada como chave de leitura da Era Vargas”, pontua o autor –, “gradualmente, a defesa do sistema de freios e contrapesos, típico das democracias ocidentais, passou a ser observada como um ideal de outra época, dissociado das necessidades reais do País”.

Aqui se vê outra característica da perigosa sutileza do autoritarismo. Muitas vezes, são reflexões jurídicas, aparentemente inofensivas, que assentam o caminho autoritário. “Os juristas ligados ao regime (...) forneceram novos contornos à interpretação jurídica, demonstrando intensa repulsa ao formalismo jurídico”.

A ofensiva autoritária não se dirigia explicitamente contra as liberdades. Havia mais astúcia no ataque. “Investidas contra o ‘formalismo’ e a ‘ortodoxia jurídica’ foram muito utilizadas pelos pensadores autoritários brasileiros como forma de justificar e legitimar o Estado Novo”, afirma Luis Rosenfield. Uma vez mais, o tema é incomodamente atual. Não faltam, nos dias de hoje, discursos contrapondo liberdades e garantias fundamentais a moralidade pública, a combate à corrupção e até mesmo a desenvolvimento social e econômico.

Nessa trajetória de concessões – tolerando o que é intolerável, com a desculpa das boas causas; no caso do autoritarismo da era Vargas, o pretexto era “encontrar soluções genuinamente brasileiras para os problemas nacionais” – chega-se a situações paradoxais. “A nova separação de poderes do varguismo culminou na eliminação dos partidos políticos, no fechamento do Congresso e no fim do federalismo da Primeira República”, aponta o autor. Como se vê, os resultados do autoritarismo não são nada sutis.

Por isso, jogar luzes sobre as doutrinas jurídicas que deram sustentação ao passado autoritário, como faz o livro de Luis Rosenfield, é muito mais do que mera tarefa acadêmica. É caminho para superar males que insistem em voltar ao cenário brasileiro. Quase um século depois, não pode o País seguir atado às mesmas questões, refém do uso insidioso da percepção de crise (seja moral, social, política ou econômica) para tentativas antiliberais e antidemocráticas.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, Advogado,  é mestrando em Direito Penal pela USP. Publicadoo originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 15 de maio de 2021 | 03h00

O desmonte do conhecimento

Áreas de ensino, ciência e pesquisa não têm prioridade no governo Bolsonaro

Se em seus primeiros meses o governo Bolsonaro começou relegando para segundo plano as áreas de ensino, ciência e pesquisa, contingenciando verbas e bloqueando recursos, com o advento da pandemia e da crise econômica por ela deflagrada a situação se agravou ainda mais, tornando-se dramática. 

No Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a redução do orçamento obrigou o órgão a financiar em 2021 somente 13% das 3.080 bolsas de pós-graduação e pós-doutorado que já haviam sido aprovadas. A informação foi divulgada recentemente pelo próprio órgão, deixando a comunidade científica perplexa. Já a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) perderá neste ano quase um terço do que recebeu em 2019. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) também sofreu cortes drásticos, segundo levantamento da Academia Brasileira de Ciências, da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif). Essas entidades também lembraram que o orçamento previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em 2021, equivale a menos de um terço do que foi repassado uma década atrás. 

No ensino superior, as universidades federais enfrentam graves dificuldades para pagar despesas de custeio, como água, energia e segurança, não dispondo também de recursos para manter pesquisas em andamento. Por causa dos cortes, o orçamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) voltou ao patamar de 2008, quando tinha 20 mil alunos. Hoje ela conta com mais de 36 mil alunos, dos quais 8,5 mil são apoiados por programas de ações afirmativas. Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o reitor Marcus David informou que as atividades de ciência e tecnologia estão “acabando” na instituição. 

Já na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Reitoria anunciou que o orçamento aprovado para 2021 equivale ao do exercício de 2010 e alegou que a redução de recursos orçamentários, conjugada com contingenciamentos, está levando à “destruição” da instituição. A reitora Denise de Carvalho e o vice-reitor Carlos Rocha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicaram artigo no jornal O Globo alertando para o risco de a instituição “fechar as portas” a partir de julho. “A universidade está sendo inviabilizada”, concluíram. 

Outra instituição importante, a Universidade de Brasília (UnB) distribuiu nota lembrando que “a redução crescente dos recursos, associada a bloqueios e contingenciamentos, prejudica a execução do planejamento da instituição. A política de contínua redução orçamentária trouxe dificuldades e desafios nunca antes vivenciados”. Por seu lado, o MEC lamenta a redução dos recursos da rede federal de ensino superior e informa que não tem medido esforços no Ministério da Economia para tentar “uma recomposição e/ou mitigação das reduções orçamentárias das instituições federais de ensino superior” e obtido um repasse que, apesar de pequeno, garante a elas algum fôlego financeiro para os próximos meses. 

Independentemente desses esforços, a situação em que as áreas de ensino, ciência e pesquisa se encontram não se deve apenas à crise econômica. Ela trouxe inúmeros problemas, não se pode negar. Mas a verdade é que as dificuldades enfrentadas por essas três áreas decorrem do fato de elas jamais terem sido consideradas prioritárias desde o início de um governo que não sabe o que é planejamento e não tem noção de futuro. 

Determinado por razões políticas e ideológicas no início do governo, o desinvestimento no CNPq, na Capes e nas universidades federais vem, paradoxalmente, ocorrendo no momento em que o Brasil mais necessita de pesquisadores e universidades trabalhando a pleno vapor. Por isso, atribuir a asfixia financeira do ensino, da ciência e da pesquisa às dificuldades econômicas causadas pela pandemia, como as autoridades educacionais vêm fazendo, é mais do que escamotear a verdade. É um crime praticado contra os cidadãos e as futuras gerações. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo 15 de maio de 2021 | 03h00

Liberdade e lei da selva

O presidente Jair Bolsonaro faz da irresponsabilidade seu principal ativo eleitoral. Convida os brasileiros a ignorar leis, normas de convivência democrática e restrições características da civilização. Apresentando-se como protetor da liberdade, é na verdade um intrépido campeão da lei da selva.

É com esse espírito que, em meio a uma pandemia que já causou mais de 430 mil mortes, Bolsonaro provoca aglomerações quase todos os dias, garante que as Forças Armadas (“meu Exército”, como diz o presidente) jamais obrigarão os cidadãos a ficar em casa e qualifica de “ditadores” os governadores e prefeitos que adotaram medidas restritivas para conter a contaminação.

Há poucos dias, Bolsonaro chegou a anunciar que tem “pronto” um “decreto” para impedir que Estados e municípios continuem a determinar restrições de movimento no enfrentamento da pandemia. Ninguém no governo sabe da existência do tal “decreto”, que ademais seria inconstitucional – o Supremo Tribunal Federal já esclareceu, logo no início da pandemia, que, conforme o princípio federativo inscrito na Constituição, a União pode legislar sobre o combate à pandemia, desde que respeite a autonomia dos demais entes subnacionais.

A esta altura, já está claro que a Constituição mencionada pelo Supremo não é a mesma que Bolsonaro diz prestigiar. O presidente informou que seu “decreto” nada mais é que “a cópia dos incisos do artigo 5.º da Constituição, que todos nós juramos defender”, em referência ao artigo sobre direitos fundamentais. Explicou que “o nosso direito de ir e vir é sagrado, a nossa liberdade de crença e trabalho também”, razão pela qual “não se justifica, daqui para frente, depois de tudo o que nós passamos, fechar qualquer ponto do nosso Brasil”. Por fim, disse que “aquele que abre mão de parte da liberdade em troca de segurança, por menor que seja, acaba no futuro sem liberdade e segurança”, e arrematou: “Preferimos morrer lutando a perecer em casa”.

É evidente que a exegese constitucional de Bolsonaro é esdrúxula, condizente não com o espírito da Carta, mas com uma visão distorcida sobre os direitos e a liberdade.

Não se trata de ignorância. Bolsonaro já foi informado diversas vezes, da maneira mais didática possível, que são absolutamente legais as medidas adotadas por Estados e municípios, e mesmo assim as classifica como inconstitucionais. Ou seja: o presidente decidiu, de forma deliberada e pública, ignorar a Constituição que ele jurou respeitar e, no lugar dela, inventou um texto constitucional que expressa não um pacto democrático, mas a utopia da ausência total de limites.

Na condição de presidente da República, Bolsonaro deveria saber que, num Estado Democrático de Direito, não há direito absoluto. Mas Bolsonaro resolveu proclamar a prevalência do que entende ser liberdade sobre qualquer outro direito – anunciando, inclusive, que seus eleitores, a quem chama de “povo”, estão dispostos a morrer por ela.

Essa liberdade absoluta que os bolsonaristas reivindicam nada tem a ver com a liberdade característica da democracia. É, ao contrário, a expressão do estado de natureza de que nos falava Hobbes – estágio primitivo em que todos se julgavam soberanos de si mesmos e, portanto, no direito de fazer o que bem entendessem. O desejo era a lei.

Os bolsonaristas, portanto, recusam a civilização, que se traduz pela imposição de limites legais e morais nos mais diferentes aspectos da vida em sociedade. É um discurso extremamente sedutor para os que atribuem seus problemas e fracassos a decisões políticas tomadas no âmbito de uma democracia em que não se sentem representados.

Bolsonaro surge assim como o líder dessa massa de descrentes da democracia. Sua irreverência pelas leis – pilota moto sem capacete, não usa máscara onde é obrigatório, ignora restrições municipais contra aglomerações – é ato político deliberado: serve para manifestar desprezo pelas instituições democráticas, sinalizando a seus seguidores que estão livres para fazer o que bem entenderem, sem qualquer freio. Desde é claro que ele mande e os outros obedeçam.

É a barbárie.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de maio de 2021 | 03h00