sábado, 1 de maio de 2021

A opção Mourão debatida por generais

Generais críticos a Bolsonaro articulam uma “terceira via” para as eleições de 2022 e não descartam impeachment

O vice presidente, General Hamilton Mourão e o presidente Jair Bolsonaro, participam da cerimônia da troca da Guarda Presidencial. (Crédito da foto: Antonio Cruz, Ag. Brasil).

Em 27 meses no cargo, o general Hamilton Mourão construiu uma trajetória bem diferente da dos vices nos últimos 60 anos. Ele tem atribuições de Governo e comanda efetivamente nichos importantes da política ambiental e de relações exteriores. É, por exemplo, mediador de conflitos com a China, processo iniciado com um encontro com o presidente do país, Xi Jinping, em 2019, restabelecendo a diplomacia depois de duros ataques feitos por Jair Bolsonaro ainda na campanha.

Mourão esforça-se para não parecer que conspira, mas é visto por militares e especialistas ouvidos pela Agência Pública como um oficial de prontidão diante de uma CPI que pode levar às cordas o presidente Jair Bolsonaro pelos erros na condução da pandemia.

“Como Bolsonaro virou um estorvo, os generais agora querem colocar o Mourão no Governo”, diz o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, um dos poucos oficiais das Forças Armadas a criticar abertamente o grupo de generais governistas que, na sua visão, “dá as ordens” e sustenta o Governo de Bolsonaro.

Ex-assessor especial do general Carlos Alberto Santos Cruz na missão de pacificação no Haiti, Jorge de Souza está entre os militares que enxergam o movimento dos generais como uma aposta num eventual impeachment e ascensão de Mourão ―que, por sua vez, tem fechado os ouvidos para o canto das sereias.

“Mourão jamais vai ajudar a derrubar Bolsonaro para ocupar a vaga. O que ele pode é não estender a mão para levantá-lo se um fato grave surgir. Honra e fidelidade são coisas muito sérias para Mourão”, diz um general da reserva que conviveu com o vice-presidente, mas pediu para não ter o nome citado.

A opção Mourão é tratada com discrição entre os generais que ocupam cargos no Governo. Três deles, Braga Netto (Defesa), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional, o GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), formam o núcleo duro fechado com o presidente. Os demais, caso a crise política se agrave, são uma incógnita. Mas são vistos como mais acessíveis à influência dos generais da reserva que romperam com Bolsonaro e articulam a formação de uma terceira via pela centro-direita.

“O que fazer se a opção em 2022 for Lula ou Bolsonaro? É sentar na calçada e chorar”, afirma à Pública o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do GSI no Governo Michel Temer (MDB).

Embora se recuse a fazer críticas ao presidente, Etchegoyen acha que os sucessivos conflitos entre Executivo e Judiciário criaram no país um quadro grave de “instabilidade e incertezas”, que exigirá o surgimento de lideranças mais adequadas à democracia.

“O Brasil não precisa de um leão de chácara. Precisa de alguém que conheça a política e saiba pacificar o país”, diz o general.

O ex-ministro sustenta que 36 anos depois do fim do regime militar, com a democracia madura, a reafirmação do compromisso das Forças Armadas contra qualquer aventura autoritária a cada surto da política tornou-se desnecessária e repetitiva. E cutuca a imprensa: “Alguém ensinou um modelo de análise à imprensa em que a possibilidade de golpe está sempre colocada”, diz, referindo-se à crise provocada por Bolsonaro na demissão de Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, e dos comandantes militares. Para ele, a substituição é parte da rotina de Governo e das crises decorrentes da política. “Ministros são como fusíveis que podem queimar na alta tensão da política. Quem não tiver vocação para fusível que não vá para o Governo”, afirma.

Generais articulam terceira via para eleição

As articulações por uma terceira via são comandadas por generais da reserva, que já ocuparam cargos em governos e, até o agravamento da pandemia do coronavírus, se encontravam com frequência em cavalgadas no 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), sede dos Dragões da Independência, grupamento do Exército sediado no Setor Militar Norte de Brasília, encarregado de guarnecer o Palácio do Planalto.

Os ex-ministros Etchegoyen e Santos Cruz e o general Paulo Chagas, ex-candidato ao Governo do Distrito Federal, embora em diferentes linhas, fazem parte do grupo. Têm em comum o gosto pela equitação e bom trânsito com o vice, que também gosta do esporte e frequentava o 1º RCG ao lado de outros generais, o ex-comandante do Exército Edson Pujol e civis como Aldo Rebelo, ex-ministro da Defesa, ex-PCdoB, hoje pré-candidato à presidência em 2022 pelo Solidariedade.

Mourão defende Exército e “vai ficar na cara do gol”

Nas ocasiões em que foi sondado para substituir Bolsonaro diante da probabilidade de impeachment ou para se colocar como terceira via, Mourão rejeitou as duas hipóteses. Segundo fontes ouvidas pela Pública, ele “não se furtaria” a assumir, mas só o faria dentro de limites constitucionais, ou seja, em caso de vacância no cargo.

“O Mourão se impôs um limite ético para lidar com a política. Não disputará contra Bolsonaro e nem imporá desgaste a ele. É um homem de visão de mundo diferenciada, entende muito do que fala, compreende o país e tem trânsito confortável na política externa. Seu perfil não é do interesse do presidente e nem oposição”, avalia a fonte próxima ao vice.

Em entrevista à TV Aberta, de São Paulo, na quinta-feira, 22 de abril, Mourão disse que, por lealdade, não disputará com Bolsonaro em 2022 e apontou como seu horizonte a candidatura ao Senado ou simplesmente a aposentadoria. Em janeiro, quando veio à tona notícia sobre um assessor parlamentar da vice-presidência que falava com chefes de gabinete de vários deputados sobre a necessidade de se preparar para um eventual impeachment, Mourão o demitiu, marcando sua postura pública sobre a questão.

Crítico corrosivo de Bolsonaro e um dos mais empenhados na construção da terceira via, o general Paulo Chagas vê Mourão como um reserva preparado tanto para um eventual impeachment quanto como nome viável pela terceira via. “Benza Deus que ele aceite! Mourão tem toda capacidade para colocar ordem na casa democraticamente, mas isso agora não interessa ao presidente nem à oposição, que quer ver Bolsonaro sangrar até o fim do Governo”, diz.

O coronel Jorge de Souza pensa diferente. “Mourão não vai em bola dividida. Ficará na cara do gol”, afirma, referindo-se ao provável desgaste que Bolsonaro enfrentará com o avanço da CPI da Covid, o que, na sua opinião, poderá desengavetar um dos mais de cem pedidos de impeachment parados na Câmara.

Nesta segunda, 26 de abril, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o vice defendeu a caserna e antagonizou mais uma vez com Bolsonaro. Afirmou que o Exército não pode ser responsabilizado pela atuação do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. E disse que chegou a aconselhar o ex-ministro a deixar o serviço da ativa quando ele assumiu o combate à pandemia. À tarde, logo depois de ter recebido a segunda dose da vacina Coronavac, se recusou a falar sobre a CPI. “Isso aí não tem nada a ver comigo. Sem comentários”, desvia-se.

A CPI deve pegar Bolsonaro em pontos frágeis: o insistente apelo à população pelo uso de medicação sem eficácia, o boicote ao distanciamento social, a falta de remédios para intubação e de oxigênio para UTIs, a recusa em comprar vacina a tempo de evitar o espantoso aumento de mortes e a demora em prover a saúde de insumos necessários ao combate à pandemia.

Reforça as acusações ―23 delas listadas pelo próprio Governo em um documento encaminhado a todos os ministérios― um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no qual um parecer do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto sustenta existirem indícios fortes de crime de responsabilidade cometido pelo presidente. O parecer afirma que Bolsonaro sabotou as medidas que poderiam aliviar a tragédia, o que acabou transformando o vírus numa espécie de arma biológica contra a população. A OAB entretanto ainda não protocolou o pedido, e pode fazê-lo em pleno vigor da CPI.

Bolsonaro não conseguiu barrar a CPI e ainda terá de enfrentá-la em desvantagem, já que o controle da investigação, pelo acordo fechado, será exercido pela oposição.

“A CPI vai render manchetes diárias, mostrará nomes, extratos, vai revolver a política”, alerta o general Etchegoyen, com a experiência de quem teve sob seu controle a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e enfrentou as muitas crises do Governo Temer.

Na visão de Paulo Chagas, Bolsonaro fracassou na condução do Governo e agora está com a “cabeça na guilhotina” da CPI. 

Segundo o coronel Jorge de Souza, os generais têm até um plano para a hipótese de uma reviravolta que ponha Mourão no Palácio do Planalto: um pacto para enfrentamento da pandemia e dos efeitos desta na economia, seguido da demissão de ministros tidos como exóticos ou alinhados ao extremismo alimentado pelo presidente. Ele acha, no entanto, que o perfil real do vice é diferente do que é vendido pelo marketing. “Num hipotético cenário de delegacia, em que o preso é torturado para falar, Mourão faz o papel do bom policial. As pessoas gostam dele porque é informal, brinca no ‘gauchal’ e tenta passar para a imprensa a imagem de maleável. Mas que ninguém se engane. Se forçar uma pergunta que não goste, ele explode. Mourão é autoritário”, diz.

O coronel conta que assistiu, no QG do Exército, em 2016, o hoje vice-presidente, num inflamado discurso à tropa, chamar o coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos nomes ligados à tortura nos anos de chumbo, de herói e combatente anticomunista. “Mourão é mais preparado e mais perigoso que Bolsonaro. Ele comanda o Bolsonaro, e não o contrário”, afirma o oficial.

Para Souza, os generais terão a paciência necessária para aguardar que o agravamento da crise “consolide a ideia de Mourão é o cara”.

Em programa semanal, Mourão defende vacina e cita Gilberto Gil

Presidente do Conselho Nacional da Amazônia, Mourão tem se ocupado dos temas que considera relevantes para o país. É de sua lavra o levantamento que levou Bolsonaro a prometer neutralidade na emissão de gases de efeito estufa até 2050 e o fim do desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, no discurso de quinta-feira (22/4) à Cúpula do Clima, visto como bom sinal pelos líderes mundiais, mas irreal diante do desmonte dos órgãos de fiscalização e da falta de previsão de recursos.

Dias antes, quando o número de vítimas do coronavírus batia a trágica marca dos 4.000 mortos diários, ele reagiu com aparente perda de paciência com a gestão da saúde: “Pô, já ultrapassou o limite do bom senso”, disse, ressaltando que era necessário um plano para salvar vidas.

Se Bolsonaro tem as já famosas lives das quintas-feiras para falar contra as medidas de combate à pandemia, Mourão tem o Por dentro da Amazônia, um programa semanal gravado às segundas-feiras destinado aos 23 milhões de habitantes da Amazônia Legal. O programa é transmitido pela Rede Nacional de Rádio pelo mesmo sinal da Voz do Brasil, gerido pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e chega a regiões sem acesso à internet ou à energia elétrica. Pode ser acessado também pelo YouTube.



Mourão antagoniza com Bolsonaro e expõe as contradições do Governo. (Crédito da foto: Valter Campanato, Ag. Brasil).

Ali ele lista focos de desmatamento, pede ajuda dos moradores e se diz preocupado com a pandemia, fazendo recomendações que deveriam partir do Palácio do Planalto. “A covid-19 está na esquina, à espreita. Não deixe de se vacinar, mantenha distância e não se aglomere”, repete sempre. Num desses programas, descontraído, se despediu com uma citação que irrita os ouvidos do presidente: “Como diria o grande Gilberto Gil, alô povo da Amazônia, aquele abraço!”. Gil, como se sabe, foi ministro da Cultura de Lula.

Na mesma transmissão, em 29 de março, ele anunciou o fim do programa Brasil Verde II, destinado a combater as atividades ilegais na Amazônia e uma espécie de menina dos olhos do vice, que havia montado uma superestrutura militar para auxiliá-lo.

No dia em que apresentava um balanço que considera positivo ―a queda de 23% no desmatamento entre 1º de junho de 2020 e 31 de março deste ano, a apreensão de 500 mil metros cúbicos de madeira, 335 tratores e mais de mil máquinas de serrarias e mineração ilegal e 3,3 bilhões de reais em multas―, Mourão foi surpreendido com boatos segundo os quais Bolsonaro pretendia criar um ministério para a Amazônia como prêmio de consolação ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que havia perdido o combate contra o vírus.

O vice desconfiou, no entanto, que o movimento não era só para socorrer Pazuello. Um assessor do Conselho da Amazônia disse à Pública que Mourão reagiu com perplexidade por não ter sido sequer consultado sobre uma opção que, de cara, esvaziaria o órgão que estruturou a duras penas, enfrentando inclusive desconfianças do entorno do próprio presidente. Mas reagiu em público com bom humor, declarando que, se um novo ministério não tivesse como meta dar corpo ao que chama de “bioeconomia”, termo que usa para se referir ao desenvolvimento sustentável, o presidente estaria procurando “deserto para mais um camelo”.

O programa Brasil Verde, uma vitrine ainda embaçada que Mourão tentou vender ao mundo, chega ao fim melancólico neste final de abril, como mais um paliativo governamental de resultado pífio no combate ao desmatamento e às queimadas.

Na contramão do ministro Ricardo Salles ―que chegou a se reunir em seu gabinete com madeireiros de Santa Catarina fornecedores da empresa que foi o principal alvo da apreensão recorde de madeira ilegal na Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO, como revelou a Pública― o general Mourão tem apoiado as ações de repressão e, ao ser obrigado a encerrar o Brasil Verde por falta de recursos, criou o Plano Amazônia 21/22, para tentar estancar a alta incidência de crimes ambientais.

O plano prevê a sinergia de pelo menos dez órgãos de controle, mas até agora é só uma intenção. Mourão diz que a ideia é organizar concursos públicos para fiscais que se disponham a formar equipes permanentes por seis anos ininterruptos na Amazônia e que atuariam auxiliados por centrais de inteligência baseadas em Porto Velho, Belém e Manaus, em operações deflagradas de acordo com o surgimento de focos de incêndio monitorados por satélite. O vice estima que, com um gasto anual de 100 milhões de dólares, é possível chegar em 2030 com desmatamento zero.

Enquanto não deslancha, o programa Por dentro da Amazônia continua, dando voz semanalmente ao vice-presidente, todas as 2ª feiras às 9h e às 20h30. O último episódio teve pouco mais de 200 visualizações no Youtube.

Analistas veem Mourão desde como “incógnita” até “contradição emulada”

A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) enxerga o vice como uma incógnita. “Ainda é cedo para saber de que lado está o general Mourão. Ele tem uma característica que o difere dos demais [militares do Governo], que é ser indemissível. Pode questionar, pode se posicionar, que continuará sendo o vice-presidente da República. De certa forma, ele representa uma parcela dos militares. Mas por mais que tenha um discurso mais moderado, ainda é uma pessoa que defende que não houve golpe militar. Espero que a gente não dependa dele para a sobrevivência da democracia”, diz a deputada à Pública.

Tabata fez um levantamento em parceria com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) mostrando que, além de nove dos 21 ministros serem militares ―todos eles levaram coronéis da reserva e da ativa como assessores―, em outros escalões os cargos de confiança ligados ao Palácio do Planalto mais que triplicaram desde o Governo Dilma (eram 102 e agora são 343), com amplo destaque para o Ministério da Saúde, no qual a presença militar saltou de um para 30 na gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello.

O antropólogo Piero Leiner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), avalia que as diferenças públicas entre presidente e vice fazem parte de uma estratégia. “Desde a eleição, Mourão faz o papel de um ‘contraditório’: Bolsonaro diz, ele desdiz. Mas é preciso ter em mente que essa é uma contradição emulada. Este é um Governo pensado e executado por militares, e Mourão está lá também para fazer esse papel de subordinação militar, que é a ideia do ‘ele manda, nós obedecemos’. A ideia é que nas várias instâncias fique clara a aparência de que Bolsonaro seria uma coisa, os militares outra. Assim, eles podem aparecer como uma instância de moderação, o que é uma premissa falsa, uma vez que Bolsonaro é obra deles”, afirma.


Analistas veem Mourão até como “contradição emulada”. Crédito da foto: R.P. Ag. Brasil)

Um dos maiores estudiosos das Forças Armadas no Brasil, o cientista político João Roberto Martins Filho diz que a conta pelo apoio a Bolsonaro já está chegando aos militares. “As Forças Armadas, em especial o Exército, estão muito comprometidas com esse Governo e pagam o preço com grande desgaste. Tem pesquisa mostrando que já estão em terceiro lugar (18%) entre as instituições que apresentam perda de confiança da população e em último (1%) entre as que apresentaram aumento da confiança”, diz à Pública. Martins Filho se refere à pesquisa Exame/Ideias sobre o efeito da gestão da pandemia nas instituições, com 1.259 entrevistados, feita entre 5 e 7 de março e publicada no último dia 10, portanto antes das mudanças feitas por Bolsonaro no Ministério da Saúde e nos comandos da Defesa e das Forças Armadas.

O pesquisador acha que já há sintomas de insatisfação entre os militares da ativa pelo fato de Bolsonaro ter tentado interferir nos comandos em busca de uma lealdade no conflito com o STF e certa fissura no generalato que ocupa cargos no Governo. Ele, no entanto, não acredita em rompimento. “Vão procurar remendar o que foi feito e estão pensando nas eleições do ano que vem. Se perceberem que Bolsonaro pode cair, vão de Mourão, que faz aquecimento no canto do campo e é palatável”, afirma.

O coronel Jorge de Souza acha que esse desgaste será ainda maior quando a população perceber com mais clareza que os militares “são o Governo”, já que o prestígio da tropa junto à população era motivado justamente pelo distanciamento da política, rompido, segundo ele, pelo envolvimento do Alto-Comando do Exército nos movimentos que antecederam o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Dos 17 oficiais que integravam a cúpula da força à época, 16 estão ou estiveram em funções políticas nos Governos de Michel Temer e de Bolsonaro, que simplesmente militarizou a Esplanada.

“A geração dos anos 70 é o problema. Eles estão gostando do poder”, diz Jorge de Souza, para quem “é necessário fazer regredir a marcha da politização nos quartéis” e desgrudar a imagem das Forças Armadas de Bolsonaro. “Os generais não têm jogo de cintura para exercer funções políticas que são civis.”

Esta reportagem foi publicada originalmente no site da Agência Pública. Reproduzida por EL PAÍS, em 01.05.2021.

Brasil registra mais 2.656 mortes por covid-19

País já soma 406 mil óbitos ligados ao coronavírus. Secretarias estaduais confirmam ainda 66 mil casos em 24 horas, e total de infectados vai a 14,72 milhões.


Cruzes em frente ao Congresso Nacional (Crédito da foto: Ueslei Marcelino / Reuters)

O Brasil registrou oficialmente 2.656 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste sábado (01/05).

Também foram confirmados 66.964 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 14.725.975, e os óbitos somam agora 406.437.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 13.194.538 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de sexta-feira.

Com os dados de óbitos registrados neste sábado, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 193,4 no país, a 12ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

A média móvel de mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) é de 2.421, o que significa que o país está há 45 dias consecutivos registrando um índice acima de 2.000.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 576 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (32,3 milhões) e Índia (19,1 milhões).

Ao todo, mais de 151,6 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,1 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo números oficiais.

Deutsche Welle Brasil, em 01.05.2021

Os erros que levaram centenas de cidades no Brasil a suspender vacinação por falta de 2ª dose

"As cidades usaram a vacina da segunda dose para a primeira, e não está tendo reposição porque o Butantan está com problemas no fornecimento de matéria-prima", diz a epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunização entre 2011 e 2019.


Quase um terço das cidades ficaram sem vacina para 2ª dose na última semana (Crédito da foto: Getty Images)

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que "é possível garantir" que todos os brasileiros estarão protegidos contra a covid-19 até o fim do ano.

"Temos doses suficientes para o segundo semestre", afirmou Queiroga em uma coletiva da Organização Mundial da Saúde na sexta-feira (30/4), acrescentando que o governo receberá até o fim do ano mais de 500 milhões de doses.

Para atingir esses objetivos, será preciso resolver primeiro um problema bem mais imediato: a falta de doses da CoronaVac, vacina fabricada pelo Butantan e que hoje é aplicada em três de cada quatro pessoas que são vacinadas no país.

Isso tem feito centenas de cidades do país paralisarem a vacinação por completo e deixado muita gente apreensiva e com medo por não saber o que acontece se elas não tomarem a segunda dose na data certa.

E a razão, dizem especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é uma combinação de erros do governo federal e das prefeituras e de contratempos na produção dos imunizantes.

O tamanho do problema

A paralisação da vacinação por falta de doses não é uma novidade — já aconteceu antes, em muitos lugares, e continua a acontecer.

Mas, antes, era em geral interrompida a chamada de novos grupos, mas a aplicação da segunda dose continuava garantida. Agora começou a faltar vacina também para quem já estava no meio do caminho para ser imunizado.

Nesta semana, 30,8% das cidades do país tiveram esse problema, diz a Confederação de Municípios. Foram consultados 2.824 municípios — mais que a metade do total — , entre 26 e 29 de abril.

A pesquisa mostrou que o problema estava mais grave na região Sul, onde 47% das prefeituras disseram ter parado de vacinar a segunda dose.

Isso aconteceu em parte porque o governo federal mudou há pouco mais de um mês as recomendações para a vacinação.

Em 20 de março, o Ministério da Saúde anunciou, na nona entrega semanal de vacinas, que as prefeituras não precisavam guardar metade do que recebessem para a segunda dose da CoronaVac, como era recomendado.

A regra já valia para a vacina da AstraZeneca, que tem um prazo entre as doses maior, de três meses, em vez de 28 dias como a vacina do Butantan.

"Essa estratégia vai possibilitar a aceleração da vacinação dos grupos prioritários no Brasil e redução dos casos graves de covid-19", disse o ministério na época.

De fato, isso contribuiu para que houvesse um aumento sensível nas doses aplicadas diariamente no país a partir de então.

O problema é que a nova regra valia apenas para aquele lote, de 5 milhões de doses, e isso não ficou muito claro na hora.

O governo só explicou melhor no anúncio da remessa seguinte: "A estratégia é revisada semanalmente em reuniões tripartites (governos federal, estaduais e municipais), observando as confirmações das entregas por parte do Butantan, de forma a garantir a disponibilidade da segunda dose no intervalo máximo recomendado".

A situação ficou ainda mais confusa porque, justamente quando a pasta explicou que a regra podia variar, a regra (para usar todas as doses daquele lote imediatamente) foi mantida.

As instruções só mudaram de fato na outra leva de doses distribuídas — e vem variando desde então. Semana a semana, o Ministério da Saúde adota uma estratégia diferente, de aplicação imediata e reserva de doses, para adequar as remessas às necessidades daquele momento.

Mas teve muita prefeitura que não entendeu isso (ou decidiu fazer do seu próprio jeito, já que elas têm autonomia para isso) e passou a usar integralmente todas as CoronaVacs disponíveis em todos os lotes.


Problemas na produção levou a atrasos e redução das entregas (Crédito da foto: Getty Images)

'Estamos reforçando necessidade de reservar doses'

A maioria (49,3%) das quase 3 mil cidades ouvidas pelo CNM há duas semanas disse que não estava guardando doses.

Mesmo antes da mudança da regra pelo ministério, já tinha muita cidade fazendo isso. "Faltou planejamento e organização", diz Carla Domingues.

Não reservar doses é arriscado nesse momento. O governo federal, quando anunciou a nova estratégia, disse que estava fazendo isso porque teria dali para a frente o fornecimento de vacinas ia estabilizar. Mas os problemas continuam.

Atrasos na chegada de matéria prima e problemas na linha de produção levaram a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) a adiar a entrega de doses da vacina de Oxford e a reduzir o volume previsto inicialmente para abril.

A falta de insumos também levou à paralisação da fabricação e atrasos na entrega da CoronaVac, que responde neste momento pela maioria das doses aplicadas no país.

Isso tem feito com que o tamanho dos lotes distribuídos pelo Ministério varie bastante.

No final de março o total distribuído por semana ficou em torno de 4 a 5 milhões. No início de abril, bateu um recorde: 9,1 milhões.

Caiu bastante já na semana seguinte, para 4,4 milhões. Na outra, voltou a subir (6,3 milhões). Depois, caiu de novo, para 3,5 milhões.

"As cidades tinham recebido uma orientação do governo federal de que não tinha necessidade de fazer reserva de doses. Acabou se vacinando muito, e agora começou a faltar porque a demanda foi grande e teve atrasos de produção", diz Denilson Magalhães, consultor da área técnica de saúde do CNM.

A confederação diz que está conversando com as prefeituras para que elas se atentem e respeitem as recomendações que o ministério divulga toda semana com cada lote.

"Também estamos reforçando com as cidades a necessidade de guardar doses para garantir a vacinação de toda a população", diz Magalhães.

Equívocos em série

Na segunda-feira, o ministro Queiroga reconheceu durante uma audiência pública no Senado que há "dificuldade" com a entrega da segunda dose da CoronaVac e citou atrasos no fornecimento pelo Butantan.

Dimas Covas, diretor do Butantan, retrucou afirmando em entrevista à rádio CBN que o atraso foi pequeno, afetando cerca de 3 milhões de doses.

Ele também disse que o calendário tinha sido acertado com antecedência com o ministério e que tinha avisado sobre a possibilidade de haver "qualquer interveniência".


Ministério da Saúde reconheceu 'dificuldade' com estoques de segunda dose (Crédito da foto: Getty Images).

Covas apontou então que a causa do problema está na mudança de estratégia do governo federal.

"Alguns Estados fizeram a reserva para a segunda dose, como é o caso de São Paulo, portanto aqui não tem faltado a segunda dose no prazo determinado. Agora, outros não fizeram essa reserva, inclusive por conta da orientação do próprio ministério", afirmou o diretor do Butantan.

"O maior equívoco de todos foi a orientação dada pelo governo federal", diz Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Kfouri diz que, com os problemas que vinham acontecendo, era melhor ter sido mais conservador e trabalhado com mais folga entre as remessas.

"Já dava pra prever que isso ia acontecer com aquela conta do lápis feita pelo ministério, confiando na capacidade de gerenciamento de doses por Estados e municípios, que não é tão fina assim", diz ele.

Mas o cronograma prometido não se cumpriu. E a isso se somou um erro de comunicação do ministério, que fez muito prefeito achar que podia usar todas as vacinas que chegassem do fim de março em diante.

"A comunicação e a estratégia não foram bem definidas, e o resultado está aí. As cidades deviam ter guardado vacina para a segunda dose, e muitas não fizeram isso. Mas a orientação nacional foi essa, e isso deixou muita gente na mão", diz Kfouri.

O CNM fez uma reunião com o Ministério da Saúde na última terça-feira (28/4) para resolver a questão.

Ficou combinado que o governo federal vai enviar diariamente vacinas para os municípios que enfrentam problemas, de forma emergencial, até a situação normalizar.

Por sua vez, o Butantan antecipou a entrega ao governo federal de 420 mil doses da CoronaVac.

O Ministério da Saúde também anunciou a distribuição imediata de 104,8 mil doses da CoronaVac aos Estados.

Denilson Magalhães diz, no entanto, que esse, como esse lote emergencial do ministério é destinado inteiramente para a aplicação da primeira dose, não vai ajudar a resolver a falta de segunda dose.

"Se o Ministério da Saúde não mandar já na segunda-feira mais doses para as cidades, esse problema vai se agravar ainda mais na próxima semana", avalia o consultor do CNM.

Rafael Barifouse, da BBC News Brasil em São Paulo, em 30 abril 2021

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Eurodeputados criticam "necropolítica" de Bolsonaro

"Negacionismo" e "irresponsabilidade" são algumas das expressões usadas durante sessão no Parlamento Europeu para classificar gestão da pandemia do coronavírus pelo presidente brasileiro.

"Por ação ou omissão, a necropolítica de Bolsonaro constitui um crime contra a humanidade", disse eurodeputado espanhol

Em debate nesta quinta-feira (29/04) sobre a crise de covid-19 na América Latina, eurodeputados criticaram duramente o presidente Jair Bolsonaro. O objetivo da sessão no Parlamento Europeu era discutir o impacto da disseminação do coronavírus na região e as possibilidades de ajuda da União Europeia aos esforços dos governos latino-americanos.

Em particular, as discussões buscaram analisar a relação entre o alto nível de desigualdades sociais e econômicas no continente e o avanço da pandemia, mas as denúncias contra o presidente brasileiro dominaram a sessão.

"Por ação ou omissão, a necropolítica de Bolsonaro constitui um crime contra a humanidade que deve ser investigado", disse em plenário o eurodeputado espanhol Miguel Urbán Crespo, do partido de esquerda Podemos.

"Incubadora de cepas"

Outro eurodeputado espanhol, Jordi Solé, do partido Esquerda Republicana da Catalunha, alertou que a gestão da crise sanitária pelo presidente brasileiro pode "transformar o país numa incubadora de novas cepas" do coronavírus.

A portuguesa Isabel Santos, do Partido Socialista, disse que a situação no Brasil é mais difícil por causa da "negação irracional" de Bolsonaro, a quem acusou de fazer "de tudo para que a população não se vacine".

"Não é um erro, mas uma irresponsabilidade deliberada", acrescentou.

Eurodeputada Isabel Santos: atitude de Bolsonaro é "uma irresponsabilidade deliberada"

Críticas do bloco conservador

Os parlamentares conservadores que participaram do debate também fizeram críticas, mas muitos deles evitaram citar o nome do presidente brasileiro. Para o português Paulo Rangel, do centrista Partido Social Democrata, o impacto da pandemia foi agravado "por erros políticos e visões negacionistas, como é o caso do Brasil".

Já o legislador hispano-venezuelano Leopoldo López, do conservador Partido Popular, afirmou que é necessário "destacar a negação da seriedade por parte dos dirigentes de alguns dos países com maior população".

"O negacionismo de Bolsonaro ajuda o vírus a matar ", afirmou Izaskun Bilbao, do Partido Nacionalista Basco, que integra o bloco liberal do Parlamento Europeu.

A Comissária Europeia para a Estabilidade Financeira, Mairead McGuiness, ressaltou na sessão plenária que a União Europeia já destinou 38 milhões de doses de vacina contra a covid-19 a 30 países latino-americanos através do consórcio Covax Facility, um programa apoiado pelas Nações Unidas que visa um acesso mais igualitário aos imunizantes.

As críticas dos eurodeputados a Bolsonaro ocorrem na semana em que o Senado brasileiro instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do governo em meio à pandemia e no dia em que o país superou as 400 mil mortes em decorrência da covid-19.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.2021

Brasil registra mais 2.595 mortes por covid-19 em 24 horas

País também contabilizou 68.333 novos casos. Total de óbitos já ultrapassa 403 mil e infecções superam 14,6 milhões. Por problemas técnicos, os números desta sexta-feira não incluem os dados do Ceará.    

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 192,1

O Brasil registrou oficialmente 2.595 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta sexta-feira (30/04). 

Também foram confirmados 68.333 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 14.659.011, e os óbitos somam agora 403.781. Por problemas técnicos, os números não incluem os dados do Ceará. 

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 13.152.118 pacientes se recuperaram da doença até esta quinta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 192,1 a 14ª mais alta do mundo, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mund19:37 30/04/2021o com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 32,3 milhões de casos, e da Índia, com 18,7 milhões de pessoas infectadas. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 575 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 150,8 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e mais de 3,1 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.2021

'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras

O Brasil atingiu a marca de 200 mil mortes por covid-19 no dia 7 de janeiro de 2021. Os 300 mil óbitos foram registrados 77 dias depois, em 25/03.

Para alcançar as 400 mil vítimas da infecção pelo coronavírus, o prazo foi cortado pela metade: bastaram 35 dias para que, neste 29/04, o país fatalmente se aproximasse do número e ficasse à beira de se tornar o segundo lugar do mundo a quebrar essa barreira (após os Estados Unidos).

Na visão da diretora-executiva da ong, pandemia no Brasil teve características totalmente diferentes em relação ao que aconteceu no resto do mundo. (Crédito da foto: Diego Baravelli / MSF)

Enquanto mundo mira Índia, 'efeito sanfona' põe Brasil na rota de 1 milhão de mortes, apontam especialistas

Três efeitos para o Brasil do descontrole da covid-19 na Índia

Para Ana de Lemos, diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, a pandemia no país é completamente diferente do que acontece no resto do mundo.

"A situação é extrema e, um ano depois que tudo começou, ainda não temos uma resposta nacional. As unidades de saúde são deixadas à própria sorte, sem protocolos de prevenção, equipamentos de proteção, oxigênio, insumos e remédios", aponta.

"Muitas vidas que perdemos poderiam ter sido salvas se tivéssemos estrutura e organização", completa.

Nascida em Angola e cidadã portuguesa, Lemos é formada em Publicidade e Relações Públicas e fez pós-graduação em Gestão Ambiental, Estudos de Paz e Resolução de Conflitos, Relações Internacionais e Geopolítica.

Ana de Lemos já trabalhou em nove países e é diretora-executiva do MSF no Brasil desde 2018 (Crédito da foto: MSF)

A especialista entrou para o MSF em 2000 e trabalhou em crises sanitárias e humanitárias em várias partes do mundo, com passagens por Hungria, Libéria, Moçambique, Nigéria, Palestina, Quênia, Sudão, Tanzânia e Zimbábue.

Ela está desde 2017 no Brasil, quando passou a atuar como diretora de comunicação da ONG e foi promovida ao cargo de diretora-executiva a partir de 2018.

Recado que vem de fora

O posicionamento de Lemos está em consonância com um manifesto internacional, que foi assinado pelas altas esferas do MSF.

O texto, divulgado no site e nas mídias sociais da entidade, critica duramente a atuação do governo brasileiro durante a pandemia e classifica a situação no país como uma "catástrofe humanitária".

"Mais de um ano desde o início da epidemia de covid-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros", escrevem os autores.

Em outro trecho, os líderes da entidade fazem um apelo urgente para que as autoridades nacionais reconheçam a gravidade da crise e organizem uma "resposta centralizada e coordenada".

"O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos", aponta no texto o médico grego Christos Christou, presidente internacional do MSF.

"Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso", completa o especialista.

Mais à frente, a carta critica a politização das medidas preventivas cientificamente comprovadas, como o uso de máscaras e o distanciamento físico.

"Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados".

Brasil será o segundo país do mundo a superar a marca das 400 mil mortes por covid-19 (Crédito da foto: Reuters)

Christou finaliza pedindo um "recomeço" no enfrentamento da pandemia:

"A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado."

Lemos revela que a carta teve uma grande repercussão internacional. "Recebemos ligações e contatos de pessoas de vários países, que se mostraram bastante preocupadas com a situação".

Já no Brasil, não houve nenhuma resposta formal do Ministério da Saúde ou do Governo Federal.

"Já havíamos enviado outros comunicados para o ministério e tentamos reuniões. Mas entendemos que as autoridades devem estar bastante ocupadas neste momento e esperamos que estejam trabalhando para resolver os problemas", diz.

Crise sem precedentes

Lemos, que acompanha de perto o trabalho dos voluntários do MSF e tem a experiência de atuar em outros nove países , diz que não consegue comparar a situação brasileira com outros lugares do planeta.

"A sensação que tenho é que a pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", avalia.

A diretora relata que a ONG começou a reforçar o enfrentamento da covid-19 no Brasil ainda em abril de 2020, com foco na população de rua, migrantes, refugiados, usuários de drogas, idosos e pessoas privadas de liberdade da cidade de São Paulo.

Em 2021, o trabalho dos voluntários está mais focado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Roraima e Amazonas.

"Damos apoio ao Sistema Único de Saúde, o SUS, especialmente em áreas de comunidades indígenas e imigrantes", diz.

No momento, o MSF foca seus esforços em três estados da Região Norte do país. (Crédito da foto: Diego Baravelli/MSF)

Nos últimos meses, um dos focos do trabalho é justamente fomentar o treinamento dos profissionais da saúde que estão na linha de frente.

"Muitos médicos e enfermeiros que atuavam nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) tiveram que transformar rapidamente as instalações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Só o fato de ter uma equipe extra ajudando a organizar os fluxos, os protocolos de atendimento e toda essa estrutura, já faz toda a diferença", acredita.

Oportunidades desperdiçadas

Lemos é testemunha ocular de como as informações fazem toda a diferença durante uma crise sanitária.

A diretora lembra que o MSF foi fundado em 1971 na França por um grupo de médicos e jornalistas.

A entidade, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999, sempre entendeu a comunicação como um dos pontos-chave de sua atuação.

Ela se recorda que, durante experiências passadas, as equipes e as instalações da entidade chegaram a ser atacadas pela população local durante surtos e epidemias.

"Em muitos locais, tínhamos que restringir o acesso aos centros de tratamento ou aos funerais, pois a transmissão de doenças infecciosas era dramática", relata.

"Se as pessoas não forem comunicadas e não entenderem a importância daquelas medidas, fica impossível trabalhar durante essas crises", ensina.

E, de acordo com a visão dela, foi justamente isso o que não ocorreu no Brasil durante os últimos meses: sem uma coordenação nacional e com tantas mensagens contraditórias, as pessoas não captaram a real gravidade da covid-19.

"Ainda hoje vemos indivíduos que acreditam e usam cloroquina e ivermectina, como se elas pudessem ter algum efeito contra o coronavírus. As UTIs estão cheias de pacientes que acreditaram no kit covid", observa.

"Enquanto isso, sofremos com a falta de oxigênio, sedativos e outros remédios tão necessários para os casos mais graves", lamenta.

Aprendizados e próximos passos

A diretora do MSF no Brasil espera que as autoridades tenham entendido que a prevenção da covid-19 depende mais de ações comunitárias do que da abertura de novos leitos hospitalares.

"Não se para uma pandemia na UTI, porque os hospitais são sempre o último recurso. Precisamos atuar contra a transmissão de pessoa para pessoa, com restrição da mobilidade e fechamento de todas as atividades não essenciais", sugere.

A especialista também aponta a necessidade de reforçar o uso de máscaras e de criar políticas massivas de testagem e isolamento de casos confirmados.

"Boa parte do mundo já faz isso há tempos e os resultados são claros", atesta.


Profissional de saúde atende paciente com covid-19

Ana de Lemos aponta que falta de comunicação foi fator decisivo para agravamento da pandemia no país (Crédito da foto: Diego Baravelli / MSF)

E os exemplos positivos não vêm apenas de lugares ricos ou desenvolvidos: a diretora do MSF destaca o trabalho feito em nações africanas durante os últimos meses.

"A despeito da subnotificação e da existência de outras doenças infecciosas impactantes, os países da África tiveram governos e políticas muito bem coordenadas, com o fechamento de fronteiras, o incentivo ao uso de máscaras e uma comunicação muito clara com os cidadãos", descreve.

Por fim, Lemos entende que o encerramento da pandemia está necessariamente vinculado à vacinação e aposta que não há solução sem cooperação internacional.

"Nós defendemos, inclusive, a quebra temporária das patentes de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico para que se amplie o acesso a esses recursos", revela.

"Espero que as pessoas entendam que a covid-19 só estará controlada quando houver imunidade global. Enquanto tivermos pessoas desprotegidas, ninguém estará verdadeiramente a salvo", finaliza.

André Biernath, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 29 abril 2021

Enquanto mundo mira Índia, 'efeito sanfona' põe Brasil na rota de 1 milhão de mortes, apontam especialistas

Percepção de recuo da pandemia no Brasil seria precipitada, falha tecnicamente e perigosa, alertam cientistas, porque dados sem contexto estimulam relaxamento de medidas necessárias de isolamento, prolongam o pico da doença no país, e podem resultar em novos recordes de casos e mortes.

Nos últimos dias, boa parte do mundo desviou sua atenção para a Índia, que desponta como novo epicentro global da pandemia da covid-19, com cenas trágicas de cremações em estacionamentos e doentes morrendo na porta de hospitais por falta de oxigênio.

Enquanto os holofotes estrangeiros saem do Brasil, hospitais em alguns Estados celebram quedas nas internações em UTIs. É o caso de São Paulo, que na quarta-feira (28/04) apontou baixa de 26,9% nas internações de pessoas com o novo coronavírus em um mês.

Para muitos, os dois movimentos trazem impressão de suposto controle da doença no Brasil, mesmo com o país registrando 3.019 mortes só nas últimas 24 horas, com um total de 398.343 óbitos desde o início da pandemia.

Com uma população seis vezes maior que a brasileira, a mesma Índia que agora ocupa o lugar do Brasil na imprensa internacional teve 3.645 mortes no mesmo período, com um total de 204.832 óbitos.

Nos dois países, segundo especialistas, a subnotificação da doença mascara o real alcance da pandemia.

A percepção de recuo da pandemia no Brasil seria não apenas precipitada e falha tecnicamente, mas também perigosa, alertam cientistas.

Para membros de alguns dos principais grupos de estudos investigando a pandemia no país, a falta de uma resposta centralizada pelo governo federal e o uso de dados de internações fora de contexto estimulam o relaxamento precipitado de medidas ainda necessárias de isolamento social, o que prolonga o pico da doença no país e pode resultar em novos recordes de casos e mortes.

E o problema brasileiro pode ir além, como explica o neurocientista Miguel Nicolelis, que coordenou o Comitê Científico do Nordeste, criado em março de 2020 para organizar a resposta dos nove Estados da região à pandemia.

"Quando eu estava no comitê, no ano passado, apareciam números estáveis durante a semana e governadores já me ligavam dizendo que a pandemia tinha acabado", conta o cientista por telefone à BBC News Brasil.

"Houve uma queda porque medidas mínimas foram adotadas em alguns lugares, (...) mas essas quedas são temporárias. Essas mudanças estão dentro da margem de variação estatística e só servem para políticos brasileiros as usarem como desculpa pra relaxarem medidas", diz.

"Isso não é sustentável."

No fim de março, o mesmo cientista chamou atenção ao prever que o Brasil chegaria a 500 mil mortes até junho. Semanas mais tarde, a universidade de Washington fez estimativa semelhante, levando em conta uso de máscaras pela população, mobilidade social e ritmo da vacinação, e disse que, até 30 de junho, o país chegaria a um total de 562,8 mil mortes.

Pior está por vir, mas colapso no inverno pode ser evitado, diz médico de universidade que prevê 100 mil mortes por covid no Brasil em abril

Ao se debruçar sobre os números atuais no Brasil, Nicolelis não só mantém a aposta, como vai além.

"No ritmo atual, nós não vamos nem conseguir vacinar as pessoas antes que alguma variante brasileira, ou da África do Sul, ou da Índia, ou da Inglaterra, escape às vacinas. Essa variante indiana é assustadora. Se as variantes entrarem aqui e passarem a competir com a P-1 (variante brasileira), e as vacinas que temos não derem conta, podemos ter um milhão de óbitos até 2022", diz.

Além de Nicolelis, a BBC News Brasil ouviu outros cientistas que haviam previsto nos últimos meses um cenário possível de 5 mil mortes diárias no Brasil.

Todos concordam que os índices no país continuam acima de limites aceitáveis, reiteram a gravidade da pandemia no Brasil e apontam que as quedas em internações podem ser reflexo imediato de medidas de distanciamento adotadas irregularmente em alguns Estados, além dos primeiros efeitos práticos da vacinação no país.

Apesar de ter população 6 vezes maior, Índia tem até o momento quase metade do total absoluto de mortes registrado no Brasil. (Crédito da foto: AFP)

"Método sanfona"

Dados do boletim epidemiológico mais recente do Observatório da Covid da Fiocruz, com base em números oficiais de 19 de abril, mostram que 17 capitais brasileiras tinham taxas de ocupação de leitos de UTIs em hospitais públicos superiores a 90%. Outras cinco tinham taxas superiores a 80%.

Só cinco capitais - Manaus (73%), Macapá (74%), Salvador (77%), Boa Vista (38%) e João Pessoa (59%) tinham ocupação menor do que 8 a cada 10 leitos.

Em semanas anteriores, o país chegou a ter recorde de 21 capitais com mais de 90% de ocupação.

Essa queda de 21 para 17 capitais, no entanto, significa pouco quando o tema é a gravidade da pandemia, já que a referência para estado considerado crítico na lotação de UTIs adotada por organismos internacionais e nacionais, como a Fiocruz, é de 80%.

Assim, apesar da oscilação, o Brasil continua com 21 dos 26 Estados, mais o Distrito Federal, nesta situação considerada alarmante.


Miguel Nicolelis: "Se variantes entrarem no Brasil e passarem a competir com variante brasileira, e as vacinas que temos não derem conta, podemos ter um milhão de óbitos até 2022". (Crédito foto: Arq. Pessoal)

"Muita gente está usando esses números pra argumentar contra o lockdown, mas isso é completamente ridículo", avalia Miguel Nicolelis. "Você tem 21 de 26 capitais em nível crítico de leitos de UTI, sem medicamentos, sem médico, com gente jovem morrendo com um dia de internação."

Ele continua: "O Brasil está se especializando no método sanfona de controle da pandemia. Fecham quando está altíssimo por uma, talvez duas semanas, e aí, quando cai 4 pontos, abrem tudo de novo e volta (a subir)".

Para a pesquisadora Margareth Portela, especialista em políticas e administração em saúde e uma das responsáveis pelo monitoramento do Observatório Covid-19, da Fiocruz, o país "está longe de uma situação de controle real".

"As últimas duas semanas mostram que estamos vivendo um cenário de desaceleração. Mas os dados em relação às taxas de ocupação de UTIs continuam muito elevados", ressalta.

Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, em 25 de março, um dos colegas de Portela no Observatório da Fiocruz, o professor Carlos Machado, afirmou que "se nada for feito, nada nos impedirá de chegar a quatro ou cinco mil óbitos por dia".

Para cientista, mortes podem voltar a crescer após interrupção 'prematura' de medidas restritivas em Estados. (Crédito da foto: Reuters)

Ele se referia ao pior cenário e à necessidade de um lockdown mínimo de duas semanas, coordenado entre os governos federal, estadual e de municípios.

"De lá pra cá, vários Estados e vários municípios adotaram medidas restritivas mais rigorosas", pondera hoje a pesquisadora, "o que com certeza deve ter tido um impacto e deve explicar um pouco dessa redução que de fato se observa".

Entre os Estados que se destacaram com medidas de restrição, Portela destaca Bahia e São Paulo.

O primeiro vem implementando medidas restritivas desde 26 de fevereiro e, depois de algumas tentativas de reabertura, prorrogou toque de recolher e proibição de eventos públicos até 3 de maio.

Já o governo de São Paulo manteve o Estado em "fase emergencial" entre 15 de março e 9 de abril, o nível mais restritivo de controle da pandemia, quando locais e serviços não-essenciais como academias, salões de beleza, templos religiosos, cinemas, shoppings e lojas de rua foram fechados.

Direito à vida e liberdade religiosa: os argumentos dos ministros do STF na sessão que vetou cultos na pandemia

O fantasma dos repiques

A BBC News Brasil também conversou com o professor do departamento de Estatística da UFF (Universidade Federal Fluminense) Marcio Watanabe.

Ele assina um estudo, publicado em 24 de abril, que estimava mortes diárias no Brasil a partir de um modelo matemático que analisava números de mais de 50 países afetados pela pandemia, coletados entre setembro de 2020 e março deste ano.

O levantamento apontava que o pico de óbitos no Brasil aconteceria "provavelmente em abril ou início de maio, com um número calculado entre 3 mil e 5 mil mortes por dia".

À epoca, Watanabe destacou que os números reais eram sujeitos ao ritmo de vacinação e à aplicação de medidas restritivas nos Estados.

A BBC News Brasil perguntou se os novos números que sugerem desaceleração em internações surpreeendem o pesquisador.

"Houve uma série de medidas ali no final de março pra tentar conter aquele aumento explosivo. As medidas, muitas, tiveram visivelmente impacto na curva de casos e de óbitos, e agora a gente vai ter que ver qual vai ser o impacto dessa reabertura que já está ocorrendo em muitos lugares", diz.


"Brasil nunca teve lockdown real", diz coordenadora de Observatorio da Covid-19 da Fiocruz à BBC News Brasil. (Crédito da foto: EPA)

Mas, ele ressalta que não é momento para relaxamento.

"Pode ser que tenhamos repiques, ou seja, depois de ter essa pequena queda, que a gente volte a ter aumento de casos em alguns lugares, principalmente os mais povoados", prevê.

Ele explica que o impacto das medidas de distanciamento social nas taxas de contágio depende diretamente da duração das medidas.

"No caso do Brasil, as medidas foram retiradas de maneira prematura, no sentido de que a gente via uma pequena diminuição nas internações, e assim que se viu essa pequena diminuição as medidas foram retiradas. Então, existe uma tendência de o contágio voltar a aumentar."

A maior parte dos países que conseguiram reduzir drasticamente o número de internações e mortes investiu em longos períodos de lockdown nacional. No Reino Unido, por exemplo, a população enfrentou no começo de janeiro o terceiro lockdown rígido desde o início da pandemia. Na época, o país tinha, proporcionalmente, quase 30% de mortes a mais que o Brasil tem hoje.

Como o Reino Unido fez número diário de mortos por covid-19 desabar de 1,3 mil para 36

Com mais de 3 meses de novo isolamento total, associado a auxílios financeiros para pessoas e empresas e um plano robusto de vacinação, o país viu as mortes despencarem para um total de 6, no último dia 26.

"É muito importante que todos entendam que a redução em hospitalizações, mortes e infecções não foi por causa do programa de vacinação", justificou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, na primeira quinzena de abril, quando uma reabertura gradual foi autorizada.

"As pessoas não se dão conta que o lockdown foi extremamente importante pra que tivéssemos essa melhora."

Ponto para a vacinação

Para a pesquisadora da Fiocruz, Margareth Portela, o avanço da vacinação no Brasil, ainda que lento, também pode ter influenciado positivamente nas quedas em internações notadas nas últimas semanas.

"No histórico brasileiro de enfrentamento à covid, não há muitas experiências de lockdown no sentido próprio da palavra, mais restritivo. Então você continua tendo circulação de pessoas, transporte público lotado. A gente nunca teve um lockdown real e não estamos em uma situação tranquila", diz.

"Mas a questão da vacinação, ainda que lentamente, está avançando."

Segundo a pesquisadora, o país "já começa a ver redução nas internações de pessoas mais idosas, que já estão vacinadas no Brasil".

"Isso está fazendo diferença", ela comemora. "Entre pessoas mais idosas, por exemplo, a partir de 70 anos, já se observa, sim, uma queda importante."

Até a publicação desta reportagem, 30,7 milhões de brasileiros (ou 14,5% da população) haviam tomado a primeira dose de vacinas, enquanto 14,6 milhões (6,6%) receberam a segunda.

O ritmo da vacinação no país e a atuação do governo no combate à pandemia de modo geral, colocaram a administração do presidente Jair Bolsonaro no centro de uma CPI, que neste momento apura "ações e omissões" do governo federal na pandemia.

A compra de vacinas é um dos pontos mais sensíveis da investigação.

Ricardo Senra - @ricksenra, da BBC News Brasil em Londres, 29 abril 2021

400 mil mortes por covid-19? Total já pode ter passado de 514 mil no Brasil, apontam pesquisadores

Oficialmente, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29/04) a marca trágica de 400 mil mortos por covid-19 durante a pandemia. Mas registros hospitalares brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram em decorrência de casos confirmados ou suspeitos da doença no país pode já ter passado de 514 mil.

Cemitério no Brasil (Crédito da foto: Getty Images)

Essa estimativa aparece em duas análises distintas, uma liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e outra pelo engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Ambas se baseiam em dados oficiais de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), um quadro de saúde caracterizado por sintomas como febre e falta de ar.

A legislação brasileira estabelece que todo paciente que é internado no hospital com SRAG precisa obrigatoriamente ter seus dados notificados ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (conhecido como Sivep-Gripe). Esse sistema é utilizado há anos e permite saber quantos casos de infecções respiratórias necessitaram de hospitalização e evoluíram para óbito no país.

No ano inteiro de 2019, foram registrados 5.342 óbitos por síndrome respiratória aguda grave. Em uma semana de abril de 2021, foram registrados 86.651. Até o momento, de todas as pessoas com SRAG e resultado laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com covid. Ou seja, SRAG e covid-19 são praticamente a mesma coisa na pandemia.

Esses dados são considerados bons indicadores por não sofrerem tanto com a escassez de testes ou resultados falsos positivos. Mas há alguns problemas, entre eles o atraso: pode levar bastante tempo até uma internação ou uma morte ser contabilizada no sistema.

Então, como saber o número atual mais próximo da realidade? Como os pesquisadores chegaram à estimativa de 514 mil ou de 540 mil (no caso de Buelta) mortes por doença respiratória grave, ou melhor, mortes por covid-19?

Projeção do agora

Bem, os cientistas fazem o que se chama de nowcasting, que grosso modo é uma projeção não do futuro (forecasting), mas do agora. Isso se faz ainda mais necessário durante a pandemia por causa dessa demora da entrada dos registros de hospitalizações e mortes no sistema digitalizado.

É como se os dados disponíveis hoje no sistema oficial formassem um retrato desatualizado e cheio de buracos. Para preencher e atualizar essa imagem, é preciso calcular, por exemplo, qual é o tamanho desse atraso, de uma morte de fato à entrada do registro dela no sistema, a fim de "prever" o que está acontecendo atualmente.

Bastos lidera análises de nowcasting numa parceria que envolve o Mave, grupo da Fiocruz de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica, e o Observatório Covid-19 BR, grupo que reúne cientistas de diversas instituições (como Fiocruz, USP, UFMA, UFSC, MIT e Harvard).

"(O nowcasting) corrige os atrasos do sistema de notificação vigente, isto é, adianta-se as notificações oficiais futuras pelo tempo médio entre a ocorrência dos primeiros sintomas no paciente e a hospitalização, quando há o registro dos seus dados no sistema de vigilância. Esse tempo abrange várias etapas: desde procurar um hospital, coletar o exame, o exame ser realizado e o resultado do teste positivo para covid-19 estar disponível para ser incluído no banco de dados. O tempo acumulado entre essas etapas do processo causa atrasos de vários dias entre o número de casos confirmados no Sivep-Gripe (plataforma oficial de vigilância epidemiológica) e os casos ainda não disponíveis no sistema, que são compensados somando aos casos já confirmados uma estimativa de casos que devem ser confirmados no futuro", detalha o Observatório Covid-19 BR.

A dificuldade de monitorar em "tempo real" o que acontece durante epidemias é global, e diversos cientistas ao redor do mundo tentam achar soluções para esse problema.

Os cálculos atuais sobre a pandemia no Brasil liderados por Bastos foram feitos a partir da adaptação de um modelo estatístico proposto em 2019 por ele e mais oito pesquisadores.

Para apontar um retrato atual mais preciso da pandemia, essa modelagem estatística (hierárquica bayesiana) corrige os atrasos dos dados incorporando nos cálculos, por exemplo, a partir do conhecimento prévio da ciência sobre o que costuma acontecer durante o espalhamento de doenças como gripe. Mais detalhes no artigo disponível neste link aqui.

Para chegar até o número de 514 mil mortes por SRAG, Bastos explica à BBC News Brasil que são analisados primeiro os dados da semana atual e da anterior, a fim de identificar quantos casos e óbitos tiveram uma semana de atraso.

"Assim, aprendemos a respeito do atraso e usamos isso para 'prever'/corrigir a semana atual e as últimas 15 semanas. O total de 514 mil mortes por SRAG é a soma dos casos observados acumulados até 15 semanas atrás com as estimativas mais recentes corrigidas."

Cemitério no bairro Bom Jardim, em Fortaleza (Crédito da foto: Jarbas Oliveira)

Em sua análise, Miguel Buelta, professor da USP, aponta um número próximo, de 540 mil mortos, ou seja uma diferença de cerca de 140 mil mortes entre o dado oficial divulgado hoje pelo governo federal e o número corrigido (sem atraso) dos óbitos por síndrome respiratória aguda grave.

A subnotificação do atraso, nesse caso, gira em torno de 35%. O cálculo dele se baseia, entre outros pontos, na análise do número de mortes em uma data específica, mas capturada em dois momentos distintos. Ou seja, em 28/2, por exemplo, Buelta registrou o número de mortes naquele dia e fez o mesmo dois meses depois (quando os registros parecem já "normalizados") para saber quantas mortes ocorreram de fato naquele dia.

O professor explica que o fator atual de subnotificação é de 1.33. Ou seja, para saber qual é o número de mortes atualizado hoje, é preciso multiplicar o dado do registro oficial pelo fator. Por exemplo, em 28/04 constavam 398.185, mas o estimado atualizado sem atraso é de 529.533.

Buelta acredita que o valor pode ser ainda maior por causa do caos nos hospitais vivido pelo país nas últimas semanas, quando o número de mortos passou de 4.000 por dia. "A situação atual é muito mais emergencial. É uma tragédia. Vamos todos lutar contra isso. Isolamento social e ajuda emergencial. Fora disso não há solução." Mais detalhes sobre o modelo estatístico usado por ele aqui neste link.

1,9 milhão de internados

Na análise liderada por Bastos, da Fiocruz, estima-se que o Brasil tenha registrado mais de 1,9 milhão de internações durante a pandemia de coronavírus por causa de doenças respiratórias graves. Na pandemia de H1N1, em 2009, o total foi de 202 mil hospitalizações.

Segundo análise da Fiocruz com base em registros de casos de síndrome respiratória aguda grave entre 18/4 e 24/4, há pelo menos cinco estados no país com regiões com tendência de alta nas infecções por covid: Mato Grosso do Sul, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.

Na Bahia, o avanço da doença ocorre nas regiões de Jacobina e Ilhéus. No Ceará, na região do Cariri. O mesmo ocorre no sertão de Pernambuco. Minas Gerais enfrenta situação semelhante no Triângulo Sul e Mato Grosso do Sul em torno de Dourados.

A Fiocruz afirma que começou a desacelerar a queda nas internações por casos confirmados ou suspeitos de covid em estados como Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

"Tais estimativas reforçam a importância da cautela em relação a medidas de flexibilização das recomendações de distanciamento para redução da transmissão da covid-19 enquanto a tendência de queda não tiver sido mantida por tempo suficiente para que o número de novos casos atinja valores significativamente baixos."

Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres, - 25 março 2021, atualizado 29 abril 2021

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Brasil supera os 400 mil mortos por covid

Marca foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país. Normas de distanciamento foram relaxadas e risco segue muito alto, dizem especialistas. Vacinação também segue lenta após governo demorar para comprar doses.

Últimas 100 mil mortes foram registradas no país em apenas 36 dias

O Brasil alcançou nesta quinta-feira (29/04) a marca dos 400 mil mortos por covid-19, equivalente a nove vezes o número de pessoas assassinadas no país no ano passado, ou onze vezes o de pessoas mortas em acidentes de trânsito. Foram 3.001 mortes registradas nas últimas 24 horas, o que elevou o total de óbitos para 401.186, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

A cifra foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país, apenas 36 dias após o Brasil ter registrado 300 mil mortes, e na mesma semana que o Senado instalou a CPI da Pandemia para investigar a atuação do governo Jair Bolsonaro no enfrentamento da covid.

O registro das 400 mil mortes ocorre em um momento da pandemia que pode ser traiçoeiro para o país. Os números mais recentes indicam leve desaceleração do contágio, o que incentivou parte dos governantes e da população a relaxar o distanciamento social. Mas o número de novos casos e mortes segue em patamar muito elevado, assim como a ocupação das UTIs na maior parte do país.

Como resultado, o aumento na circulação de pessoas, enquanto a vacinação completa chegou a apenas 9% da população, tem potencial para reverter a tendência de queda e elevar rapidamente o número de mortes diárias acima do patamar de 4 mil, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Momento da pandemia

Diversos indicadores mostram uma desaceleração recente na contaminação pelo vírus. A média móvel de novas mortes por dia, que nesta quarta era de 2.379, vem em tendência de queda desde 12 de abril, quando estava em 3.125.

A média móvel de novos casos por dia também registrou queda desde 11 de abril, quando era de 71.283, e desde o início desta semana estabilizou-se ao redor de 57 mil novos casos por dia.

A taxa de transmissão (Rt), que chegou a 1,23 em março – o que significa que 100 pessoas com a covid infectavam outras 123 – caiu e está agora em 0,93, segundo monitoramento do Imperial College de Londres. Foi a primeira vez que o número ficou abaixo de 1 em cinco meses.

Boletim divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na quarta também informou que há tendência de "ligeira queda" no número de casos e mortes. No último domingo, o estado de São Paulo registrou redução de 27% no número de pessoas internadas com covid comparado com o mês anterior.

Essa desaceleração se deve a medidas mais duras para restringir a circulação social adotadas por alguns prefeitos e governadores em março, e à parcela da população que, assustada com a escalada da pandemia, reduziu ainda mais as aglomerações.

Em 15 de março, por exemplo, o estado de São Paulo entrou na fase emergencial da restrições, com toque de recolher noturno, proibição de cultos religiosos presenciais e home office obrigatório. Em 26 de março, a cidade do Rio de Janeiro também determinou o fechamento do comércio e de serviços não essenciais.

 "É claro que isso teve algum efeito: há menos gente circulando e menos contatos, e começa a arrefecer a subida no número de casos e mortes", diz Roberto Kraenkel, membro do Observatório covid-19 BR.


Risco alto

Diante da tímida melhora, autoridades começaram a relaxar as normas de distanciamento. Em 12 de abril, o estado de São Paulo saiu da fase emergencial, e no último sábado iniciou a transição para a fase laranja, que autoriza inclusive o funcionamento de bares, restaurantes, academias e cinemas. Desde 9 de abril, bares e restaurantes também podem funcionar na cidade do Rio de Janeiro.

O relaxamento das restrições, associado ao cansaço das pessoas com a necessidade de isolamento, é perigoso neste momento, pois o nível de novos casos e mortes segue muito alto, afirma Marcelo Bragatte, um dos coordenadores da Rede Análise covid-19.

"Estabilizar em 3 mil, 2,5 mil mortes por dia, e normalizar isso, não é normal. Afirmar 'estamos desacelerando, vamos retomar as aulas, flexibilizar o comércio', é uma loucura. Tu estás se afogando numa piscina de dez metros de profundidade, tu tens 1,70 de altura e o nível da piscina baixou para cinco metros. Não vai te salvar", compara.

Na avaliação de Bragatte, se o roteiro de flexibilizações pelo país for mantido, o número de casos e mortes logo voltará a subir e o Brasil voltará a registrar mais de 4 mil novas mortes por dia em junho. "As tendências são muito ruins, estamos num patamar muito alto", diz.

UTIs cheias, mortalidade crescente

Um dos indicadores do perigo da flexibilização neste momento é a taxa de ocupação de UTIs. Nesta segunda-feira, 16 capitais brasileiras e o DF tinham 90% ou mais dos leitos públicos de UTI para pacientes de covid ocupados, contra 14 na semana anterior, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo. Na cidade do Rio de Janeiro, onde bares e restaurantes estão abertos, a taxa de ocupação é de 96%, contra 93% na semana anterior.

Outro dado preocupante é a maior taxa de letalidade da covid neste momento, que mede a parcela das pessoas diagnosticadas com a doença que morre. Segundo o boletim da Fiocruz divulgado na quarta, a taxa de letalidade foi de 4,4% na semana de 18 a 24 de abril, mais que o dobro da do final do ano passado, quando estava em torno de 2%.

A maior letalidade da doença é atribuída ao sistema de saúde trabalhando próximo ou acima de seu limite, e também pode estar relacionada à variante P1, mais transmissível, identificada pela primeira vez em Manaus e hoje predominante no país – essa cepa do vírus já responde por 90% das amostras analisadas no estado de São Paulo.

Letalidade da doença está em 4,4%, mais que o dobro do final do ano passado

Vacinação lenta

A solução duradoura para a pandemia é a vacinação, mas o Brasil demorou a firmar contratos com um rol variado de produtores e a falta de doses tem provocado atrasos e interrupções no plano de imunização. Esse é um dos pontos que serão investigados pela CPI da Pandemia.

"Temos poucas vacinas, e a perspectiva de vacinar a população de forma que a quantidade de pessoas com imunidade seja realmente grande para segurar a pandemia não vai acontecer tão cedo. Enquanto isso não acontecer, sempre poderemos ter novos surtos e subidas de casos", diz Kraenkel, que também lembra da importância de o país incluir em sua estratégia a testagem em massa e o rastreio de quem teve contatos com pessoas infectadas, "algo que nunca entrou na agenda do governo".

O Brasil é no momento o segundo país do mundo com mais mortes pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 574 mil pessoas morreram com covid. A distância entre os dois países, porém, está diminuindo. Nas duas últimas semanas, os americanos, que vêm conduzido um programa de vacinação agressivo, registraram cerca de 700 novas mortes por dia.

Bragatte avalia que a pandemia no Brasil apresenta números "funestos" em parte porque o governo federal decidiu "não levar a sério os avisos que a ciência vinha dando desde o início" e baseou suas decisões em uma falsa dualidade entre preservar a saúde pública ou a economia. "Elas são simbióticas. A economia é alicerçada em pessoas, não em números", diz.

Ele também afirma que a postura de Bolsonaro teve papel decisivo na piora da pandemia. "As lideranças têm um efeito forte. Todos os cientistas do país fazendo divulgação não têm o alcance de um presidente dando um exemplo inadequado", diz.

Deutsche Welle Brasil, em 29.04.2021

O Judiciário passando a boiada

O processo judicial eletrônico iniciou a reforma mais expressiva no sistema de justiça nacional neste século. Práticas obsoletas, morosidade, falta de transparência e gargalos de acesso à Justiça são problemas que a tecnologia prometia enfrentar. 

A distribuição dos serviços judiciários ao cidadão depende de usuários profissionais, dentre os quais, a advocacia. É a única profissão que atua em todos os pontos do sistema de justiça e tem contato direto com os cidadãos que demandam por aqueles serviços. Portanto, pode contribuir de maneira decisiva para aprimorar a justiça. Porém, raramente as opiniões da advocacia são consideradas, quando não tratadas como obstáculo.

Por exemplo, a gravação de audiências sempre foi reivindicação da advocacia. Os juízes resistiam com firmeza à medida, mesmo depois de prevista no artigo 367 do Código de Processo Civil. Na diretoria da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), representamos contra juíza que expediu mandado de busca contra um advogado, para apreender o gravador em que ele havia registrado sua audiência.

Com a pandemia, as audiências por videoconferência tornaram a gravação habitual, defendida pelos juízes e regulamentada com rapidez em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça que tratam da “justiça digital”. Formulado ao arrepio do debate público e valendo-se da situação emergencial, há um arsenal de normas de gabinete estreitando a participação cidadã na administração da justiça.

As regras de audiência online estão sendo definidas conforme interesses exclusivos da burocracia judiciária e, na prática, servem para realizar desejo antigo de parcela expressiva dessa burocracia: distanciar-se dos advogados e, por consequências, da população. 

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus processuais e econômicos excessivos e desiguais para a advocacia, também por omissão da OAB. Partes e testemunhas sem meios técnicos ou ambiente adequado para participar de atos judiciais dependem dos escritórios de advocacia, que se tornaram extensão dos fóruns e, assim, têm garantido a continuidade da prestação jurisdicional.

O ingresso livre nos fóruns e tribunais foi substituído por horas em “salas de espera” virtuais, o botão de mudo usado para cassar a palavra de advogados. Há notícias recorrentes de juízes que não atendem advogados pelos meios eletrônicos ou inviabilizam esse imprescindível contato com regras criativas (envio de sustentação oral gravada, despacho por e-mail etc).

A tecnologia sempre será muito útil no campo jurídico. Porém, há que se observar a necessidade de preservação do espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de custódia, de instrução, depoimentos sensíveis, acareações etc. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas com a solenidade devida que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quando tudo ocorre por vídeo, com perda das percepções pessoais, da comunicação não verbal e da mediação direta entre profissionais do direito e jurisdicionados.

O modelo de justiça digital que está sendo implementado é excludente, disfuncional e formatado apenas sob a ótica da burocracia judiciária. No final dos anos 90 desenvolveu-se o conceito de “justiça de proximidade”. Desde 2020, provimentos estão substituindo-o pela “justiça de distanciamento”.

Para reverter esse processo e não desperdiçar mais uma oportunidade de usar bem a tecnologia é essencial que a justiça digital seja tratada em lei. O Parlamento é a arena pública adequada ao debate republicano. E, isso acontecendo, é preciso que a OAB saia da letargia, pense mais nos problemas da justiça e menos em política eleitoral. 

O debate legislativo deve pautar-se por definições que não constam das centenas de provimentos de tribunais e do CNJ, em especial: quais casos e atos judiciais serão realizados apenas por meio digital; quais aqueles que não poderão ser realizados por meio digital e quais os que poderão ser online diante de concordância das partes, não dos juízes. Esta última categoria, empodera o cidadão e democratiza a administração da justiça, além de se alinhar com o princípio de cooperação adotado por nossa legislação em 2015. Sem que essas definições sejam claras e fruto de um processo que passa pela participação e deliberação de todos, a justiça digital, anunciada como panaceia, não será nada além da repetição online de antigos problemas de uma justiça que segue sobrecarregada, arbitrária e errática.

Leonardo Sica, o autor deste artigo, é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) no biênio 2015-2016 e pré-candidato à presidência da OAB-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.04.2021.

Defesa do governo na CPI da Covid mobiliza milícias digitais

Senadores da comissão dizem ter sido alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais; parlamentares recebem ‘dossiês’ apócrifos contra críticos do Planalto

Com o governo Jair Bolsonaro no foco da CPI da Covid, senadores que integram o grupo dizem ser alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais que tem como origem milícias digitais ligadas ao bolsonarismo. As mensagens incluem desde a disseminação de fake news, como a publicação de declarações descontextualizadas, até ameaças veladas. Em outra frente, parlamentares passaram a receber “dossiês” apócrifos contra adversários políticos do presidente em seus gabinetes.

Nas primeiras 24 horas após a abertura da comissão, anteontem, posts no Facebook com o termo “CPI da Covid” alcançaram mais de 3 milhões de interações (curtidas, comentários e compartilhamentos). Um monitoramento via Crowdtangle indicou que os mais populares partiram de bolsonaristas investigados por compartilhamento de fake news, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que iniciou uma cruzada nas redes e na Justiça para barrar a participação de Renan Calheiros (MDB-AL) na comissão. Crítico do governo Bolsonaro, o senador foi designado relator da CPI.

CPI da Covid em reunião que definiu presidente, vice e relator. (Crédito foto: Edilson Rodrigues/Ag. Senado)

“Você não imagina quantas mensagens grosseiras eu recebi ao longo desses dias. Coisas grosseiras, ameaças perguntando se eu gostava da minha família, xingamentos. É um volume atípico, com robôs. Pagam para fazer isso”, afirmou o senador Otto Alencar (PSD-BA), que se define como independente.

Por trás de algumas das publicações relacionadas à CPI também estão nomes ligados ao chamado “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Revelado pelo Estadão em setembro de 2019, o núcleo costuma dar as diretrizes da atuação digital de bolsonaristas e é influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

O assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz é um dos nomes do grupo. Tércio usou o Twitter para se referir ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta como “genocida”, uma vez que, em várias ocasiões, ele recomendou que pessoas com sintomas leves ficassem em casa, seguindo o que diziam autoridades sanitárias no início da pandemia. A postagem do assessor de Bolsonaro teve mais de 10 mil compartilhamentos. 

Em sua primeira reunião de trabalho, marcada para hoje, a CPI deve analisar um requerimento do senador Humberto Costa (PT-PE) que pede a convocação de três integrantes do “gabinete do ódio”. Além de Tércio, o pedido inclui José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz – todos assessores da Presidência da República – e é fundamentado por informações de que eles são operadores informais das redes bolsonaristas. O requerimento entra no escopo da investigação sobre a atuação da comunicação do governo, suspeita de desinformar e agir contra as medidas em favor da contenção da pandemia. 

‘Dossiês’

Além dos ataques virtuais, Mandetta também passou a ser alvo de “dossiês” apócrifos entregues nesta semana nos gabinetes do Congresso. O Estadão apurou que ao menos três parlamentares receberam envelopes com dados sobre a gestão do ex-ministro e possíveis irregularidades envolvendo contratações da pasta. Os três pediram para não ter os nomes revelados. Embora evitem apontar os autores, senadores que tiveram acesso ao conteúdo afirmaram que apenas pessoas com acesso a informações internas do governo poderiam produzi-los. Mandetta deixou o governo em abril do ano passado por desavenças com Bolsonaro e será o primeiro a ser ouvido pela CPI, na terça-feira. Procurado pelo Estadão, ele não quis se manifestar.

Chefiada pelo general Luiz Eduardo Ramos, a Casa Civil tem coletado informações em várias áreas, sob o argumento de que se trata de uma estratégia para defender o governo na CPI da Covid. A Secretaria de Governo, comandada por Flávia Arruda, também ajuda senadores aliados na comissão com dados e orientações sobre quem convocar. 

A assessora especial da Secretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência, Thais Amaral Moura, é indicada como autora de requerimentos preparados pelos senadores governistas Ciro Nogueira (Progressistas-PI) e Jorginho Melo (PL-SC) na CPI. É possível encontrar o nome de Thais ao acessar as propriedades dos arquivos das solicitações dos senadores. A Secretaria é ligada à Segov. O Planalto não se pronunciou sobre a reportagem.

Relator

A articulação de bolsonaristas nas redes sociais vem sendo acompanhada de perto por Renan e discutida com outros integrantes da comissão.  O relator da CPI escalou sua equipe para produzir e apresentar ao colegiado relatórios periódicos sobre o que realmente é debatido pela opinião pública nas redes sociais. A interlocutores, ele disse que sua intenção é permitir que “ninguém seja influenciado pelo gabinete do ódio” e que os senadores “não apanhem calados”.

O modelo é uma adaptação de um sistema usado pela Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, que serve para filtrar comentários e pressões das redes usando uma espécie de checador. Esse aplicativo leva em conta o comportamento dos perfis, o tipo de postagem, o tipo de nome e a participação nos temas.

Eleito vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) também identificou o acirramento nos ataques virtuais. Um levantamento da assessoria do parlamentar aponta que postagens críticas subiram 40% em relação ao ano passado. Em alguns casos, incluem frases como “Deus tenha misericórdia de você” e “Você não tem medo, não?”. “E é sempre à noite. Acho que tem um horário que os robôs saem e aumentam os níveis das agressões”, afirmou Randolfe.

Vinícius Valfré, Marcelo de Moraes e Lauriberto Pompeu para O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 05h00