terça-feira, 30 de março de 2021

Comandantes das Forças Armadas deixam os cargos

Troca simultânea de comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica é inédita e ocorre na esteira da demissão de ministro da Defesa e investidas de Bolsonaro para ampliar influência nas Forças Armadas.

Fragilizado, Bolsonaro vem tentando ampliar sua influência sobre as Forças Armadas

O novo ministro da Defesa, general Braga Neto, substituirá os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A decisão foi tomada nesta terça-feira (30/03) em reunião da qual também participou o general Azevedo e Silva, que havia sido demitido do comando da Defesapelo presidente Jair Bolsonaro no dia anterior. Uma nota divulgada pela pasta oficializou a mudança, mas não explicou os motivos.

A saída de Azevedo e Silva ocorreu em meio a uma minirreforma ministerial que envolveu trocas em seis pastas, mas foi a alteração mais rumorosa devido a movimentos frequentes de Bolsonaro para aprofundar a instrumentalização das Forças Armadas em benefício de seu projeto político. A saída do ministro provocou a maior crise na cúpula militar em décadas. É a primeira vez na história que os três comandantes das forças são substituídos ao mesmo tempo sem que isso ocorra em meio a uma troca de governo.

Azevedo e Silva vinha resistindo a algumas dessas investidas do presidente, como pedidos para mobilizar o Exército para se contrapor aos governadores que declararam lockdown para reduzir a disseminação da covid-19. O ex-ministro também havia se recusado a demitir o comandante do Exército, Edson Pujol, que não agradava a Bolsonaro e em novembro de 2020 havia dito que "a política não pode entrar nos quartéis”.

Na segunda-feira, Pujol e os comandantes da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antônio Bermudez, já haviam se reunido e discutido a possibilidade de colocarem seus cargos à disposição, como um sinal de que não compactuariam com tentativas do presidente de usar as Forças Armadas em seu benefício. 

General Braga Netto, que chefiava a Casa Civil do governo Bolsonaro, agora comanda a Defesa

Nos bastidores, vários militares de alta-patente fizeram chegar à imprensa que não queriam se envolver em alguma aventura golpista ou iniciativa que contrariasse a Constituição.

Antes de ser nomeado para a Defesa, Braga Neto era ministro da Casa Civil e tem a confiança de Bolsonaro. É atribuição do presidente definir os comandantes das Forças Armadas, em uma escolha que tradicionalmente segue uma lista elaborada por critério de antiguidade.

Em nota oficial, Azevedo e Silva disse que, durante o seu período à frente da pasta, havia preservado as Forças Armadas "como instituições de Estado".

Apesar de ter se colocado contra novas investidas de Bolsonaro, o ex-ministro chegou a sobrevoar ao lado do presidente, em um helicóptero, uma manifestação de conteúdo antidemocrático na Praça dos Três Poderes em junho de 2020.

Desde o início da sua gestão, Bolsonaro tem se apoiado nos militares para preencher diversos cargos no governo. O presidente também faz elogios frequentes à atuação das Forças Armadas durante o regime militar e determinou a comemoração do golpe de 1964, que nesta quarta-feira faz 57 anos.

"Meu Exército"

Bolsonaro e Azevedo e Silva não vieram à público informar o motivo da troca do comando na Defesa, mas apuração da imprensa brasileira aponta diversos episódios das últimas semanas que contribuíram para o desfecho.

Entre eles, em 19 de março o presidente disse que o "seu" Exército não iria contribuir para aplicar os lockdows determinados por alguns governadores do país, o que teria incomodado as Forças Armadas. "O meu Exército não vai para a rua para cumprir decreto de governadores", afirmou.

No mesmo dia, Bolsonaro disse que poderia chegar o momento de ter que declarar estado de sítio para ir contra as medidas de restrição adotadas por alguns governadores. Segundo o jornalista Ricardo Kotscho, do portal UOL, o presidente queria o apoio das Forças Armadas para pressionar o Congresso a aprovar o estado de sítio, mas Azevedo e Silva se negou a fazer isso.

A jornalista Thais Oyama, também do UOL, relatou que Bolsonaro teria pressionado Pujol a emitir uma manifestação pública criticando a decisão do ministro Edson Fachin que anulou as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e restituiu seus direitos políticos. O comandante do Exército se recusou, e Bolsonaro pediu a Azevedo e Silva que o demitisse, que novamente se negou a fazer isso.

O ex-ministro da Defesa também teria se recusado a demitir, a pedido de Bolsonaro, o general Paulo Sérgio, responsável pelo setor de recursos humanos do Exército. O presidente havia ficado irritado por Sérgio ter dito em entrevista ao jornal Correio Braziliense que os militares estavam se preparando para uma "terceira onda" de covid-19 e que haviam reforçado medidas de distanciamento social.

Deutsche Welle / Brasil, em 30.03.2021

segunda-feira, 29 de março de 2021

Brasil tem mais 1.660 mortes por covid-19 em 24h

País também registrou mais de 38 mil novos casos nesta segunda-feira. Total de mortes passa de 313 mil.

 

Taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 149,4 no Brasil

O Brasil registrou nesta segunda-feira (29/03) 1.660 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram identificados 38.927 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções oficiais no país subiu para 12.573.615, enquanto os óbitos chegam a 313.866.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.912.941 pacientes haviam se recuperado até domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 149,4 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30,2 milhões de casos e mais de 549 mil óbitos.

Ao todo, mais de 127,4 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,78 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle / Brasil, em 29.03.2021

Bolsonaro faz seis trocas no governo, confirma demissões e leva nome do Centrão para o Planalto

Deputada Flávia Arruda (PL-DF) assume Secretaria de Governo, responsável pela articulação política

O presidente Jair Bolsonaro oficializou nesta segunda-feira, 29, seis trocas no governo. Em nota, ele confirmou a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, da Advocacia-Geral da União, José Levi, e a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL-DF) como ministra da Secretaria de Governo, responsável pela articulação política do Palácio do Planalto com o Congresso.

O ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, também foi demitido. Sua saída vinha sendo cobrada dentro e fora do governo. Na visão de parlamentares, especialistas e empresários, a atuação do chanceler na pasta, considerada ideológica, prejudicou o País na obtenção de insumos e vacinas para combater a covid-19. Em seu lugar entrará o diplomata Carlos Alberto Franco França, ex-cerimonialista da Presidência.

Ministro da Defesa foi demitido após recusar alinhamento das Forças Armadas ao governo Bolsonaro

No Ministério da Justiça, Bolsonaro trocou André Mendonça, que volta a comandar a AGU, seu antigo cargo, e colocou no lugar o delegado da Polícia Federal Anderson Torres. Até então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Torres havia sido cotado para assumir a diretoria-geral da Polícia Federal em ao menos três oportunidades, e agora deve assumir um cargo hierarquicamente superior. Ele é próximo da família do presidente.

As outras mudanças foram apenas de nomes que já integravam o governo e foram realocados: o general Walter Braga Netto assume o Ministério da Defesa e o general Luiz Eduardo Ramos vai para o seu lugar, na Casa Civil, abrindo a vaga para Flávia Arruda na Secretaria de Governo.

A deputada é próxima ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), que na semana passada cobrou uma mudança de postura do governo federal no enfrentamento da pandemia. Na ocasião, alertou que a declaração era um "sinal amarelo" do Congresso ao chefe do Executivo e, sem citar o impeachment, disse que o Legislativo possui “remédios políticos amargos”, alguns “fatais”.

No mês passado, Bolsonaro já havia acomodado um nome do Centrão no governo, com a nomeação de João Roma (Republicanos-BA) no Ministério da Cidadania.

As trocas ocorrem no momento mais agudo da pandemia de covid-19 no País, com recordes diários de mortes pela doença e colapso na rede de saúde de diversas cidades. Ao mesmo tempo, pesquisas apontam queda na popularidade do presidente.

Veja abaixo as todas as trocas:

Nota oficial

O Presidente Jair Bolsonaro alterou a titularidade de seis ministérios nesta segunda-feira (29). As seguintes nomeações serão publicadas no Diário Oficial, a saber:

• Casa Civil da Presidência da República: General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira;

• Ministério da Justiça e Segurança Púbica: Delegado da Polícia Federal Anderson Gustavo Torres;

• Ministério da Defesa: General Walter Souza Braga Netto;

• Ministério das Relações Exteriores: Embaixador Carlos Alberto Franco França;

• Secretaria de Governo da Presidência da República: Deputada Federal Flávia Arruda;

• Advocacia-Geral da União: André Luiz de Almeida Mendonça.

Secretaria Especial de Comunicação Social

Ministério das Comunicações

Redação, O Estado de S.Paulo29 de março de 2021 | Atualizado às 19h24


Fake news bolsonaristas também contribuíram para a saída de ministro da Defesa

A rede de fake news ligada ao presidente Jair Bolsonaro criou uma cadeia de mal-entendidos que também contribuiu para a queda do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.  

Os deputados federais Bia Kicis e Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, incomodaram os meios militares ao relacionar as medidas de combate à Covid-19 que condenam, assim como o presidente, a um incidente ocorrido na noite de domingo em Salvador, em que um policial militar foi morto depois de atirar contra soldados do Bope da Bahia. 

O soldado, aparentemente, teve um surto psicótico, deu vários tiros para o alto e disparou contra os colegas que o cercavam no Farol da Barra. Em suas redes sociais, os dois deputados disseminaram versões semelhantes sobre o fato. Bia afirmou que o PM morreu porque “se recusou a prender trabalhadores e cumprir as ordens ilegais do governador Rui Costa”.

Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e investigada na CPI das Fake News, a parlamentar chamou o soldado de herói, antes de apagar o post pelas críticas que recebeu. Eduardo Bolsonaro também defendeu o PM morto e disse que “estamos brincando de democracia”. Perfis bolsonaristas nas redes seguiram os dois deputados e começaram a espalhar esta versão para criticar o governador da Bahia, que é do PT.

A Federação dos Policiais Militares da Bahia exigiu uma retratação do governo federal, na pessoa do próprio presidente. Assim como o comando da corporação no estado, que investiga o caso como uma crise pessoal do policial.

Azevedo defendeu que Bolsonaro se desculpasse pelos atos do filho, da aliada e do restante dos seguidores. O presidente reagiu irritado, recusando-se a qualquer retratação. Entre os dois, já havia a instatisfação do presidente com o comandante do Exército, Edson Pujol, que queria substituir, e com o que considerava falta de apoio público das Forças Armadas, como relatou Lauro Jardim

Até agora, o mais cotado para substituir Azevedo é Walter Braga Netto, ex-comandante da intervenção na segurança do Rio de Janeiro que causou insatisfação interna, no comando da Casa Civil, quando tirou férias em meio à crise do governo provocada pelos sucessivos recordes de mortes pela Covid-19 no país. A mudança abrirá espaço ao centrão na articulação política.

Por Maiá Menezes, O Globo online, em 29/03/2021 • 17:55

Malu Gaspar: Comandantes das Forças Armadas discutem renúncia conjunta

Os comandantes das três Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica – estão reunidos neste momento em Brasília discutindo uma renúncia conjunta aos cargos, como reação à saída do ministro da Defesa, Fernando Azevedo. Embora não tenha sido tomada uma decisão definitiva, o mais provável é que deixem seus postos ainda hoje. 

O comandante do Exército, Edson Pujol, em sua posse, em janeiro de 2019. Pujo; e os chefes da Marinha e da Aeronáutica também cogitam sair. 

Além de Edson Pujol, que o presidente Jair Bolsonaro disse hoje nos bastidores que demitiria, participam da reunião em local não revelado o comandante da Marinha, Ilques Barbosa Junior e o da Aeronáutica, Antonio Carlos Moretti Bermudez. Ministros militares de Jair Bolsonaro também participam do encontro. 

A renúncia conjunta dos chefes das Forças Armadas seria algo inédito na história da República. Embora o clima entre os militares seja de muita tensão, auxiliares de Bolsonaro tentam dar à saída dos comandantes caráter de normalidade. 

MALU GASPAR. Formada pela USP, cobriu política e economia nos principais veículos do país. Escritora, lançou dois livros: "Tudo ou Nada: Eike Batista e a Verdadeira História do grupo X" e "A Organização: a Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo". Esta informação foi publicada originalmente n'O Globo online, às 18,30 h, em 19.03.2021.

A favor da Amazônia, bancos e entidades católicas pressionam Bolsonaro

Carta assinada por 93 instituições, também financeiras, ameaça retirada de investimentos no Brasil, pede plano concreto contra desmatamento e proteção de povos indígenas.

Vista aérea de desmatamento na Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, em Altamira, Pará 

Diante do avanço da destruição da Floresta Amazônica, mais de 90 instituições internacionais católicas, entre as quais quatro bancos alemães, se uniram para manifestar publicamente oposição às políticas ambientais de Jair Bolsonaro.

Nesta segunda-feira (29/03), o grupo entrega uma carta ao presidente brasileiro e a seu vice, Hamilton Mourão, pedindo ações concretas para proteger a maior floresta tropical do mundo e os povos indígenas.

"Como investidores, nós estamos usando os meios possíveis para exercer pressão contra a destruição da Amazônia e de seus povos tradicionais", justifica Tommy Piemonte, da instituição financeira católica alemã Bank für Kirche und Caritas (BKC), em entrevista à DW.

Segundo Piemonte, é a primeira vez que investidores católicos se unem para exercer esse tipo de pressão internacionalmente, motivados pelo aumento do desmatamento, queimadas, crimes ambientais e violações dos direitos indígenas. Em 2020, a área de vegetação destruída na Amazônia chegou a 11.088 quilômetros quadrados, batendo recorde dos últimos 12 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

"Se não houver mudanças, vamos retirar nossos investimentos e cancelar potenciais investimentos futuros", afirma Piemonte. "Somos quatro bancos que têm muitos clientes, inclusive outras instituições católicas", complementa, mencionando o Bank im Bistum Essen, Pax-Bank Köln e Steyler Ethik Bank, que também assinam a carta.

Com um total de ativos estimado em 5,6 bilhões de euros (cerca de 38 bilhões de reais), o BKC tem fundos de investimentos que incluem títulos do governo do brasileiro. Fundada em 1972, a instituição é uma das pioneiras em apoiar projetos sustentáveis e a se opor a negócios ligados à energia nuclear, usinas de carvão, indústria de armamento, ou que tenham violado direitos humanos e usado trabalho infantil.

"É importante mostrar nosso relativo poder como investidor ao Brasil. Afinal, oferecemos dinheiro para projetos, negócios, para a economia. E, desse modo, queremos aumentar a pressão vinda de fora sobre o governo brasileiro", comenta Piemonte.adas. Dentre os pontos do plano de ação sugerido estão implementação de legislação estrita de proteção ambiental; programa concreto de combate ao desmatamento com orçamento e metas intermediárias a serem medidas; mais recursos para combater incêndios; suspensão de medidas contra organizações não governamentais; proteção dos territórios e dos direitos da população indígena; reflorestamento e relatórios anuais sobre o progresso dessa atividade.

Diálogo Difícil

O documento pede ainda diálogo com o governo brasileiro. Eleito com forte apoio dos evangélicos, Bolsonaro administra o maior país católico do mundo, em que 50% da população se diz pertencente a essa religião, segundo pesquisa Datafolha de 2020.

"É muito difícil o diálogo", diz Dom Vicente de Paula Ferreira, secretário da Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, que também encabeça o movimento de protesto.

Por outro lado, acrescenta o bispo, a CNBB tem um assento no Conselho Nacional de Justiça e mantém conversas com a Câmara de Deputados, senadores e comissões, como a de Meio Ambiente. "Há instâncias que estão abertas ao diálogo. Mas com o presidente é mais complicado, porque a pauta dele é totalmente contrária ao que pensamos."


Encíclica "Laudato si'", do papa Francisco, prega ecologia integral e proteção do meio ambiente

As críticas à postura antiambiental do governo Bolsonaro seguem as linhas gerais da encíclica Laudato si', redigida pelo papa Francisco em 2015. O documento defende o planeta como casa comum, prega a ecologia integral, proteção do meio ambiente e ações contra as mudanças climáticas.

"Num contexto maior, a nossa posição é critica e de denúncia de violações de direitos dos povos, da natureza. Por isso saímos em defesa das comunidades indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, que formam uma rede que protege o meio ambiente e que, geralmente, são afetados por grandes projetos internacionais, especialmente na Amazônia", diz Ferreira.

Mesmo sob a liderança que prega a defesa socioambiental do papa Francisco, há dificuldades internas dentro da Igreja Católica: "Há fragmentos ligados à ala mais extremista que apoiam muito também [o presidente Bolsonaro]", reconhece o bispo.

Contra projetos de destruição

Com a carta pública, as instituições católicas esperam uma sinalização do governo Bolsonaro. "A destruição da Floresta Amazônica e a violação dos direitos humanos não representam apenas uma ameaça à reputação do Brasil na comunidade internacional, mas também uma ameaça real à economia brasileira", alerta o documento.

Em toda a Europa, têm crescido pedidos de boicotes a produtos brasileiros como consequência da atual política ambiental do país. Bancos internacionais têm desencorajado investimentos em empresas que, direta ou indiretamente, atuam na cadeia ligada ao desmatamento. No fim de 2020, o governo francês anunciou que reduziria importações da soja brasileira devido ao aumento da devastação na Amazônia.

"Com esse comunicado ao governo brasileiro, esperamos fazer pressão sobre a economia, sobre as empresas que têm negócios no Brasil principalmente relacionados à madeira, mineração, soja", diz Piemonte sobre as expectativas, acrescentando que, como o Brasil ainda é o maior país católico do mundo, espera também que o documento influencie a opinião pública.

Para Dom Vicente de Paula Ferreira, essa movimentação internacional é importante para mostrar ao mundo as violações, flexibilizações de leis de proteção ambiental, agressões às comunidades indígenas de que o Brasil tem registrado aumento nos últimos dois anos.

"Lá fora, a mensagem é de que está havendo sustentabilidade nos empreendimentos, mas isso não está acontecendo de fato nos territórios. É preciso que se questione os investimentos internacionais. Será que esses bancos e agências conhecem de fato a realidade para investir por aqui? No Brasil, há muitos projetos que são de destruição", alerta Ferreira.

Deutsche Welle / Brasil, em 29.03.2021

Bolsonaro demite ministro da Defesa, Fernando Azevedo

Em nota, ministro diz que dedicou 'total lealdade' ao presidente, que pediu o cargo; Braga Netto, da Casa Civil, pode assumir

 O Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, entregou carta de demissão da pasta ao presidente Jair Bolsonaro nesta segunda-feira, 29. A informação foi confirmada pela assessoria do ministério, em nota. Segundo o Estadão apurou, o presidente havia pedido a saída do ministro do cargo.

No comunicado, Azevedo agradeceu ao presidente Jair Bolsonaro e reforçou sua lealdade ao chefe do Executivo. "Agradeço ao Presidente da República, a quem dediquei total lealdade ao longo desses mais de dois anos, a oportunidade de ter servido ao País, como Ministro de Estado da Defesa. Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado", informou. Na agenda do presidente consta que os dois se reuniram no início da tarde desta segunda-feira.

A reportagem apurou que Bolsonaro pediu a saída de Azevedo após uma entrevista do general Paulo Sérgio, responsável pela área de saúde do Exército, ao jornal Correio Braziliense. À publicação, o militar apontou a possibilidade de uma 3.ª onda da covid-19 no País nos próximos meses e defendeu lockdown, contrariando o que prega o presidente, crítico a medidas de isolamento social.

O ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, está cotado para assumir a Defesa. A mudança teria como objetivo promover uma "dança das cadeiras" no Palácio do Planalto. No lugar de Braga Netto, assumiria o ministro Luiz Eduardo Ramos, que está na Secretaria de Governo. Com isso, a pasta responsável pela articulação com o Congresso seria entregue a um político. O nome mais cotado até agora é o do líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO).

De perfil moderado e com experiência na relação com o Congresso, Azevedo foi assessor do ministro Dias Toffoli na presidência do Supremo Tribunal Federal.

Leia abaixo a nota de demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva:

Agradeço ao Presidente da República, a quem dediquei total lealdade ao longo desses mais de dois anos, a oportunidade de ter servido ao País, como Ministro de Estado da Defesa. Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado. O meu reconhecimento e gratidão aos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, e suas respectivas forças, que nunca mediram esforços para atender às necessidades e emergências da população brasileira. Saio na certeza da missão cumprida. Fernando Azevedo e Silva   

Fernando Azevedo e Silva

Eliane Cantanhêde e André Shalders, O Estado de S.Paulo, em 29 de março de 2021 | 15h59Atualizado 29 de março de 2021 | 16h25

Ernesto Araújo se reúne com Bolsonaro para pedir demissão

Ministro passou pouco mais de 800 dias à frente do Itamaraty e vinha sendo contestado dentro e fora do governo

 O embaixador Ernesto Araújo se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro nesta segunda-feira, 29, para entregar seu cargo. A informação foi repassada ao Estadão por pessoas que acompanham a discussão sobre a saída do chanceler. Ernesto passou pouco mais de 800 dias à frente do Itamaraty e vinha sendo contestado dentro e fora do governo.

O chanceler cancelou compromissos nesta segunda-feira com autoridades estrangeiras para discutir seu futuro. E foi chamado de última hora por Bolsonaro no Palácio do Planalto.

Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Auxiliares diretos do ministro consideram que a situação é "irreversível". Ele também cancelou a reunião geral com secretários, depois de ser convocado ao palácio. O encontro estava previsto para ocorrer ao meio-dia, até que o ministro recebeu o chamado presidencial.

Na reunião, segundo aliados, Ernesto disse ao presidente estar disposto a deixar o cargo para não ser mais um problema para o governo na relação com o Congresso. 

A demissão está sendo discutida, mas Bolsonaro ainda não escolheu o substituto. O nome mais forte no Palácio do Planalto é o do almirante Flávio Rocha, atual secretário de Comunicação Social e da Secretaria de Assuntos Estratégicas (SAE). Rocha tem o apoio do ministro das Comunicações, Fabio Faria. Uma ala do do Planalto, porém, defende um político para o cargo, de preferência um senador.

Um outro nome cogitado é o do embaixador do Brasil na França, Luiz Fernando Serra. O diplomata, porém, indicou a colegas que não gostaria de deixar Paris neste momento para voltar ao País.

A pressão sobre Ernesto aumentou neste domingo, depois que o ministro acusou a senadora Kátia Abreu (Progressistas-TO) de fazer lobby de chineses durante almoço com ele no Itamaraty. Com o gesto, ele forçou novo embate entre o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Presidente da Comissão de Relações Exteriores, a senadora disse que apenas defendeu que não haja discriminação à China no leilão do 5G e chamou o ministro de “marginal”. Ela recebeu apoio expressivo de congressistas que já cobravam a demissão de Ernesto.

A tese dos interesses chineses por trás da queda de Ernesto já vinha sendo apontada nos bastidores por aliados do ministro no governo e por militantes conservadores nas redes sociais.

A declaração do ministro, no Twitter, foi interpretada como gesto “suicida” por diplomatas, e uma forma de construir uma versão para justificar sua saída do cargo. Parlamentares e diplomatas avaliam que o ministro teve apoio do clã Bolsonaro nessa contra ofensiva. Ele tem apoio público do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o filho do presidente que mais interfere na política externa.  

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 29 de março de 2021 

Sob Bia Kicis, CCJ vira praça de guerra e tem até pedido para que deputada use máscara nas sessões

Principal comissão da Câmara não aprovou nenhum projeto até agora; desempenho contrasta com outros colegiados

 Eleita para comandar a principal comissão da Câmara há 20 dias, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) não conseguiu votar um único projeto desde que assumiu o cargo. De lá para cá, foram cinco sessões do colegiado, todas marcadas por discussões, obstruções e até o registro de reclamação para que a parlamentar utilizasse máscara ao presidir as reuniões - o que não fez no início da primeira.

Kicis é uma das principais aliadas do governo Jair Bolsonaro no Congresso. Sua escolha para comandar a CCJ foi articulada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), em troca do apoio que recebeu do Palácio do Planalto para se eleger ao cargo. 

A deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) Foto: Dida Sampaio/Estadão

A indicação, porém, sofreu resistências até mesmo de aliados de Lira pelo perfil da deputada. Ex-procuradora do Distrito Federal, ela se notabilizou por discursos radicais e é investigada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após promover e participar de atos que pediam o fechamento da Corte, no ano passado. 

Neste fim de semana, ela adicionou mais uma polêmica à sua lista ao incentivar um motim de policiais militares na Bahia, Estado comandado pelo petista Rui Costa. O motivo foi a morte de um PM que atirou contra seus próprios colegas na capital baiana. A paralisação de forças policiais é inconstitucional.

Após a repercussão do caso, ela apagou a postagem e disse ter sido informada que o agente morto pela PM estava em surto. "Aguardarmos as investigações. Inclusive diante do reconhecimento da fundamental hierarquia militar", postou no meio da manhã desta segunda.

Sem tantas polêmicas, outras comissões da Casa têm avançado. A Comissão de Educação, sob o comando da deputada Professora Dorinha (DEM-TO), já aprovou no mesmo período três projetos e 21 requerimentos, como pedidos de audiências públicas. Na de Meio Ambiente, presidida pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP), colega de Kicis, foram nove requerimentos votados e dois projetos aprovados, um sobre o reaproveitamento de dados de licenciamentos ambientais. 

Porta de entrada de projetos no Legislativo, a CCJ tem como sua pauta prioritária neste ano destravar a reforma administrativa. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) é uma promessa de campanha de Bolsonaro, mas que chegou ao Congresso apenas em setembro do ano passado -- 21 meses após o início do governo -- e está parada desde então. O relator do texto, deputado Darci de Matos (PSD-SC), ainda não entregou seu parecer.

No entanto, mesmo que já estivesse com seu relatório pronto, Matos teria de esperar a fila da CCJ andar. Desde a instalação da comissão, no dia 10 de março, o colegiado debateu um único tema: um recurso do deputado Boca Aberta (PROS-PR), que teve sua cassação aprovada pelo Conselho de Ética da Câmara. O caso trava a pauta. O único requerimento votado até agora foi, justamente, para adiar essa discussão para outra sessão.

Máscara e bate-boca. Logo na primeira sessão, Kicis foi advertida pela deputada Fernanda Melchiona (PSOL-RS) para que fizesse o uso de máscara enquanto estivesse à frente dos trabalhos, pois trata-se de obrigatoriedade prevista em lei. Em resposta, a parlamentar, que já gravou vídeo ensinando "truques" para burlar o uso da proteção, disse que estava apenas "tomando chá". A presidente da CCJ é autora de um projeto que torna a proteção facultativa. Após a reclamação, porém, manteve o item no rosto nas reuniões seguintes.

Dias depois, a sessão da comissão se tornou uma praça de guerra, com deputados do PSL e do PT chegando quase a se agredirem fisicamente. Tudo começou quando Paulo Teixeira (PT-SP) chamou Bolsonaro de genocida, por causa da condução do enfrentamento da pandemia de covid-19 no País. Carlos Jordy (PSL-RJ), aliado do governo, rebateu o petista e, exaltado, o chamou de “vagabundo”. Houve bate-boca generalizado e a turma do "deixa disso" precisou entrar em ação para segurar os dois parlamentares.

“Vergonhosa a produtividade da CCJ. Regra básica do parlamento é que oposição fala, governo vota. Os próprios deputados da base do governo parecem não querer votar nada, pois atrasam reuniões com 'questões de ordem' inúteis e perdem tempo batendo boca com a oposição, que ri do amadorismo dos governistas. Parece um governo de oposição”, afirmou o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que faz parte da CCJ.

Também membro do colegiado, o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) pondera que a complexidade do caso de Boca Aberta impôs um ritmo mais lento ao colegiado.  “Eles estão segurando em cima do recurso do deputado Boca Aberta sobre o Conselho de Ética. Este recurso trava a pauta. Enquanto não for votado este recurso a presidente não pode pautar a reforma administrativa”, disse o tucano.

A oposição admite atrasar os trabalhos do colegiado como um protesto contra a reforma administrativa. “O problema é a pauta, com a proposta enviada pelo presidente, que coloca como prioridade uma reforma que ataca os servidores públicos. Por isso, fizemos obstrução nas últimas três semanas. Não é razoável termos projeto que ataca direitos no momento em que o povo está sofrendo muito com a pandemia”, disse Melchiona.  

Comparação. O primeiro mês de funcionamento da CCJ em 2021 também destoa das últimas presidências. Nas três primeiras sessões após Felipe Francischini (PSL-PR) assumir, em 2019, a comissão aprovou 15 projetos de lei e de decreto legislativo, requerimentos e fez duas audiências públicas sobre a reforma da Previdência.

Em 2018, quando o ex-deputado Daniel Vilela (MDB-GO) comandava, foram 39 projetos. O hoje presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em 2017, aprovou uma PEC e seis projetos na sua primeira sessão. 

Nesta semana, a CCJ poderá concluir a análise do recurso do deputado Boca Aberta. A fase de discussão foi encerrada, mas falta votar o parecer do relator, deputado João Campos (Republicanos-GO), que recomenda o retorno do processo ao conselho, para que mais testemunhas sejam ouvidas.

Procurada para comentar o desempenho da CCJ e as polêmicas, Kicis não quis se manifestar.

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo, em 29 de março de 2021 

Denis Lerrer Rosenfield: Política e irracionalidade

Pode dar certo um governo que se caracteriza pela falta de atitudes racionais?

O cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14 milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno de Lula à cena política.

A dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados, ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.

Sua estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando, evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro, qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.

Outra versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante. Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão, emprestaria palavras de apoio e solidariedade.

Logo, ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais, reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.

O caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto, desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica. Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida. E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a conduta presidencial e governamental.

De nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar, multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi pubicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 29 de março de 2021.

José Sarney: O amor e um mundo de paz

Entre perplexo, revoltado, preso de um medo que cada vez se prolonga mais, o Brasil assiste entre preces e lágrimas ao anúncio dos recordes mundiais que alcançamos em mortes provocadas pela Covid.

O que podemos fazer? Acho que ninguém deixa de estar disposto a ajudar. O problema tornou-se uma tragédia global pelas circunstâncias que cercaram a pandemia. Primeiro o caráter de surpresa com que a quase totalidade do mundo foi tomada — apenas alguns milhares de cientistas e estudiosos sabiam que ela viria a qualquer momento. Aliás o inesperado caracteriza as catástrofes. Nos seus bilhões de anos a nossa Terra, como o universo, é marcada por acasos, nas contorções que lhe dão desde a forma geográfica — com a criação de oceanos, montanhas, vulcões, destruição de cidades — até à criação da vida e ao aparecimento e à extinção das espécies. A própria prevalência da espécie homo sapiens foi fruto do desaparecimento dos seus parentes mais próximos, como os neandertais, que chegaram a misturar-se ao próprio sapiens.

Não deixemos de considerar que somos uma espécie extremamente recente, de cerca de trezentos mil anos, que teve em sua adaptação e predominância a vantagem decisiva da linguagem, esta talvez há apenas setenta mil anos.

Criamos várias civilizações, convivemos com vários tipos de sociedade e chegamos à modernidade e à pós-modernidade. Conseguimos desvendar o mundo dos genes e das proteínas, o mundo das partículas de alta energia, como o bóson de Higgs — a que chamaram de “partícula de Deus”, por concluir o “Modelo Padrão” que explica a estrutura do universo.

E assim o bicho homem desfruta de um mundo extraordinário — o dos sentimentos —, que nos dá a sublimação da alegria, do prazer, do sentimento do amor e também da tristeza, da dor. Aquilo que Bergson chamava de “sentimento da alma”.

Pois bem, isso que nos traz a alegria de viver dá ao homem também a desgraça da maldade, do ódio, da inveja, da destruição. As nações se organizam e, em vez de construir um mundo de paz, de convivência pacífica, de uma Humanidade sem armas, sem ódio, sem competição, marcha em busca de armas cada vez mais potentes, capazes de destruir países e até a vida na Terra.

Mas se esquece que a natureza é mais forte que todos esses atos. E ela reage de maneira aleatória, como o passado mostrou tantas vezes, trazendo as pestes, a destruição de espécies, e nos ameaça com aquilo que Helmut Schmidt dizia — repito ainda uma vez — ser a maior ameaça ao futuro da Humanidade: as doenças desconhecidas. A nossa geração já conhece duas: a Aids e a Covid.

A presença do acaso em absolutamente todos os fatos da natureza levava Einstein a dizer que sua ideia de Deus era formada por sua “profunda convicção na presença de um poder superior, que aparece no universo incompreensível”.

A desgraça da Covid que nos ameaça, que não sabemos como começou e como vai terminar, nos leva a pensar no início da filosofia, o de onde viemos e para onde vamos, de Platão.

Eu, que sou cristão, penso no amor, na solidariedade e na construção, depois dessa tragédia, de um mundo melhor, mais humano e de paz.

José Sarney foi Governador do Maranhão e Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição de 28.03.2021

A bactéria comedora de carne que ameaça se espalhar pela Austrália


A úlcera de Buruli é causada por uma infecção bacteriana que pode destruir tecidos moles se não for tratada (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Adam Noel achou que era apenas uma picada de mosquito. Ele notou um leve calombo vermelho na parte de trás do tornozelo cerca de uma semana antes, mas não melhorava. Os médicos atribuíram a algum tipo de irritação na pele. No entanto, mais duas semanas se passaram, e seu calcanhar agora tinha um buraco.

"Há algo muito estranho acontecendo", ele pensou, e decidiu ir até o Hospital Austin, em Melbourne, para ser examinado novamente.

Por que os camelos podem ser a origem da próxima pandemia

H1N1: as razões para um possível retorno da pandemia de 2009

Era abril de 2020, e a pandemia de covid-19 tomava conta da Austrália. A equipe do hospital estava sobrecarregada. E os médicos disseram a ele que a ferida sararia em breve.

Em vez disso, depois de mais alguns dias, era possível ver seu tendão de Aquiles por meio do buraco do tamanho de uma bola de pingue-pongue em seu calcanhar.

Desta vez, ele foi para o St Vincent's, um dos principais hospitais da Austrália. E ficou internado por cerca de uma semana fazendo biópsias até finalmente confirmarem o diagnóstico: úlcera de Buruli. Uma doença bacteriana que pode causar grandes feridas abertas e, se não for tratada, levar à desfiguração permanente.

Foram cerca de seis semanas desde que Noel percebeu o calombo até fazer uma biópsia definitiva e tomar a medicação certa. Os médicos disseram que ele podia ter perdido o pé.

Antes de notar o que pensava ser uma mera mordida de mosquito, Noel vinha trabalhando muito no jardim, mexendo na terra para abrir espaço para um grande galpão.

"Cortei um monte de árvores que não eram mexidas há 20 anos", diz ele.

"Estou bastante convencido de que [pegar a úlcera] coincidiu com a destruição das árvores e do habitat dos gambás."

Sim, gambás. Os cientistas acreditam que essas criaturas noturnas fofas podem desempenhar um papel fundamental na transmissão da úlcera de Buruli para os humanos.

Eles também sofrem com a doença, e a bactéria do Buruli — chamada Mycobacterium ulcerans — é encontrada em grandes quantidades em suas fezes.

Os gambás perderam grande parte do seu habitat natural para o desenvolvimento urbano nos últimos anos, o que os aproximou dos humanos enquanto as duas espécies competem por espaço e, possivelmente, gerando casos da doença.

Antes restrita aos subúrbios, a úlcera de Buruli está agora se aproximando de Melbourne, e médicos e cientistas estão tentando impedir seu avanço antes que ela atinja a população de cinco milhões de habitantes.

Uma ameaça crescente

Noel mora em Melbourne, mas sua família tem uma casa de praia a cerca de 100 km de distância, na Península de Mornington. É uma área nobre que aparece no mapa como uma perna do continente, com a ponta do dedo do pé apontando para o oeste.

Os gambás podem ser portadores de bactérias que causam uma doença devoradora de carne em humanos (Crédito da foto: Alamy)

É um destino de férias popular entre os moradores da cidade, com suas praias cercadas por cabanas coloridas e passarelas de madeira que serpenteiam as colinas com vista para o mar.

Trilhas levam a lugares como a "Diamond Bay" e o "Millionaire's Walk", onde as casas são grandes e modernas, muitas com piscina e jardins enormes.

Não é exatamente o tipo de lugar em que você esperaria ouvir falar sobre uma bactéria devoradora de carne à solta, mas os casos de úlcera de Buruli no estado de Victoria tendem a ser encontrados nessa região.

Em todo o estado, o número de casos mais do que triplicou nos últimos anos: em 2014, os médicos notificaram 65 casos da doença; em 2019, foram registrados 299, enquanto no ano passado, 218.

Quando há suspeita da doença, o paciente geralmente é encaminhado para o médico Daniel O'Brien, infectologista especialista em úlceras de Buruli que tem uma clínica nas proximidades de Geelong.

Ele começou a fazer a travessia de 40 minutos de balsa semanalmente para ver o número crescente de pacientes com a doença. Ele conta que atende de cinco a dez novos pacientes por semana.

A úlcera de Buruli pode destruir rapidamente a pele e os tecidos moles se não for tratada com uma combinação de antibióticos e esteroides específicos ao longo de semanas e, em muitos casos, meses.

"Não importa o quão pequena ou grande seja a lesão, não há ninguém que não seja significativamente afetado por essa doença", diz O'Brien.

Os impactos físicos são significativos: a úlcera agressiva pode causar desfiguração, exigindo cirurgia e levando à incapacidade de longo prazo.

"Ela pode realmente devorar um membro inteiro", explica O'Brien, cuja lista de pacientes inclui crianças que precisaram de até 20 operações para combater a úlcera.

A doença também tem um impacto econômico. Noel trabalha na novela Neighbours e teve de se ausentar por um mês porque o buraco no calcanhar o impediu de ficar de pé por um longo período de tempo.

Daniel O'Brien atende de cinco a dez novos pacientes por semana com úlcera de Buruli (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Os tratamentos também podem fazer com que as pessoas se sintam muito mal. Foi o caso de Noel com os esteroides.

"Fiquei muito feliz quando paramos", diz ele.

Mas, sete meses depois, ele ainda precisa tomar antibióticos.

Outros pacientes relatam que os antibióticos causam náusea, candidíase vaginal e oral e dor de estômago.

"É difícil. É muito desconfortável e muito desagradável", afirma Cheryle Michael, aposentada que teve úlcera de Buruli no rosto em agosto de 2020 e ainda está tomando medicamentos.

"Os esteroides me deixaram muito deprimida, cansada e desmotivada", acrescenta.

Os antibióticos, por sua vez, provocam problemas estomacais que a deixam nervosa ao sair de casa.

"Para ser franca, prefiro não ficar muito longe do meu banheiro."

A úlcera de Buruli é tratada com uma dose forte de dois antibióticos potentes que precisam ser tomados por várias semanas e, muitas vezes, meses: a rifampicina, que também é usada no tratamento de outras infecções bacterianas graves, incluindo tuberculose e hanseníase, e a moxifloxacina, que pode ser usada para tratar a peste.

Dependendo da gravidade da úlcera, altas doses de esteroides também são necessárias, assim como cirurgia.

"Eu não diria que qualquer tratamento é fácil. [Os pacientes] todos sofrem em um grau significativo", diz O'Brien.

Úlcera desconhecida

Enquanto a úlcera de Buruli devora os tecidos moles dos pacientes, algumas perguntas sem resposta atormentam médicos e cientistas encarregados de tentar impedir que outras pessoas sejam infectadas.

"Não sabemos o suficiente a respeito. Há algumas questões científicas realmente importantes sobre onde ela deixa o meio ambiente, os outros reservatórios animais e como os humanos realmente a contraem", explica O'Brien.

"A menos que obtenhamos respostas para essas perguntas vitais, realmente vamos ter dificuldade para controlar a doença."

Atualmente, os cientistas estão trabalhando com a hipótese de que a bactéria é amplificada por gambás e suas fezes.

Mosquitos e outros insetos que picam transportam então essa bactéria dos gambás ou do ambiente para os humanos, ao perfurar sua pele e deixar a bactéria que vai causar a úlcera de Buruli.

Mas isso continua sendo uma teoria, e ninguém sabe ao certo se os humanos estão contraindo a doença de mosquitos, do solo ou dos próprios gambás.

Kim Blasdell está tentando monitorar os níveis da bactéria em gambás na Península de Mornington (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

A úlcera de Buruli é classificada como uma doença "negligenciada" pela Organização Mundial da Saúde (OMS): não recebe muita atenção e não se sabe muito sobre ela.

Foi descoberta pela primeira vez em 1897 em Uganda, mas como afeta sobretudo comunidades pobres com cuidados de saúde limitados, "simplesmente não havia dinheiro para realmente investir tempo, esforço e recursos na pesquisa", afirma O'Brien.

Sua própria experiência vem de passar anos trabalhando na África Ocidental, tratando de pacientes com úlcera de Buruli e doenças relacionadas: lepra e tuberculose.

Quando a úlcera de Buruli apareceu pela primeira vez no estado de Victoria em 1948, havia apenas um punhado de casos. Mas agora, segundo especialistas, a doença está se tornando mais comum na Austrália.

Ninguém sabe como ela chegou aqui. Até mesmo algumas pessoas que vivem no meio da península dizem que nunca ouviram falar dela, afirma Kim Blasdell, pesquisadora sênior da CSIRO, agência nacional de ciências da Austrália. Ela está liderando um estudo para entender a possível ligação entre gambás, a úlcera de Buruli e os humanos.

"Se há pessoas que vivem nas áreas de foco da doença que não ouviram falar dela, então a maioria das pessoas fora dessas áreas também não terá ouvido falar", diz ela.

Isso pode ser um grande problema: pacientes desinformados que esperam semanas pelo diagnóstico podem ser potencialmente desastrosos, como aconteceu no caso de Noel.

"Então, você realmente quer ser capaz de evitar", afirma O'Brien

Desenvolvimento da doença

Uma parte fundamental da prevenção está em entender o que pode estar acontecendo na região para aumentar o número de casos da doença. Buscar mudanças no ambiente local é vital, de acordo com Blasdell.

"Há muitos empreendimentos em desenvolvimento nas áreas onde houve muitos casos em humanos", diz ela.

Os humanos estão transformando a Península de Mornington desde que os europeus chegaram em 1803 e começaram derrubando grande parte da floresta nativa para fornecer lenha para a recém-criada cidade de Melbourne.

Mas, à medida que a população cresceu nos últimos anos, o desenvolvimento urbano aumentou e cada vez mais habitats naturais foram perdidos.

"Quando as pessoas limpam o terreno para construir uma casa nova ou derrubam a vegetação nativa, isso significa que os animais nativos que vivem naquela terra, inclusive os gambás, migram para a vegetação remanescente daquela área. Isso concentra o número de gambás ", explica Blasdell.

E também pode concentrar a quantidade de Mycobacterium ulcerans em uma pequena área.

Os gambás prosperam na paisagem frondosa dos subúrbios, onde encontram comida abundante nos jardins (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

O desenvolvimento humano também significa que as pessoas estão tendo um contato mais próximo com os animais. Os gambás vivem naturalmente em árvores nativas como as árvores-do-chá, mas essas criaturas fofas podem se adaptar bem a um ambiente mais urbano quando são obrigadas — como o jardim da casa das pessoas.

Em suas novas moradias, os gambás também têm acesso a mais recursos do que teriam em seus habitats naturais.

Essas criaturas têm uma queda por plantas frondosas, desde as folhas dos carvalhos dos parques públicos às rosas, magnólias e árvores frutíferas que são encontradas em abundância nos jardins da região.

Uma planta florida pode ser reduzida a um caule nu por um gambá faminto, para desespero dos jardineiros do subúrbio.

"Muitas casas na região têm muitas espécies nativas [de plantas e árvores]. Os gambás amam; vivem nelas e fazem cocô por todo chão. Eles correm sobre telhados e garagens", diz Blasdell.

Pode parecer um estorvo, mesmo sem a úlcera de Buruli, mas os gambás são espécies protegidas na Austrália — é ilegal matá-los ou feri-los.

Muitas vezes, as pessoas tentam se livrar dos gambás sacudindo as árvores para tirá-los de lá, ou até mesmo usando "spray de pimenta e molho de peixe", diz Blasdell.

Ao fazer isso, eles podem se colocar em contato ainda mais próximo com os gambás, aumentando o risco de contrair doenças.

Além de acabar com seu habitat natural e, inadvertidamente, aproximar animais selvagens e humanos, os novos projetos de desenvolvimento podem estar involuntariamente atraindo doenças, diz Blasdell.

Os novos empreendimentos na Península Bellarine, no lado oposto à Península de Mornington, são repletos de lagos e canais. Pode parecer bacana. Mas não para ela e seus colegas.

Eles pensam imediatamente nos mosquitos que podem estar envolvidos na transmissão do Buruli, além de serem portadores conhecidos de outros patógenos.

Da mesma forma que os empreendedores precisam fazer avaliações de impacto ambiental, diz Blasdell, eles também deveriam levar em consideração os riscos à saúde.

Cheryle Michael, que chegou à região com sua família no início dos anos 1990, notou a diferença.

"Costumávamos dizer que era bom porque não havia mosquitos, mas sem dúvida as populações de mosquitos aumentaram ao longo das décadas", afirma.

Assim como os casos de úlcera de Buruli. "A úlcera de Buruli não fazia parte do ambiente até recentemente. Simplesmente não era algo com que nos preocupássemos", acrescenta..


Os gambás são protegidos na Austrália, mas como vivem próximos ao homem, o risco de doenças está aumentando (Crédito da foto: Getty Images)

A úlcera de Buruli não é o único exemplo. Um relatório de 2018 encontrou muitas relações entre a perda da vegetação nativa e a mudança no uso da terra e o surgimento de doenças na Austrália.

O desenvolvimento de doenças é um processo no qual os humanos estão muito envolvidos, diz Rosemary McFarlane, professora assistente de saúde pública na Universidade de Canberra, na Austrália, e uma das coautoras do estudo.

"Estamos colocando uma pressão incrível sobre os sistemas naturais; temos muito mais humanos e rebanhos do que vida selvagem, mas eles estão todos se sobrepondo enquanto competem por recursos. É um problema que nós mesmos criamos", avalia.

Portanto, o problema não são os gambás em si — é que estamos mais perto deles do que nunca. Parte da razão pela qual não devemos culpá-los. Sem falar que os gambás são uma parte importante do ecossistema australiano, com suas fezes nutrindo o solo.

Além disso, Blasdell destaca que, se o gambá fosse o culpado, era esperado ver úlcera de Buruli em outras partes superdesenvolvidas semelhantes da Austrália, onde também há gambás. Em vez disso, o problema está centralizado perto de Melbourne e Geelong.

Uma combinação de desenvolvimento e outros fatores ambientais parecem estar contribuindo para a propagação desta doença. Entender como e por que a doença existe — tanto em gambás quanto no meio ambiente de Victoria — é vital para saber se vai se espalhar ainda mais pelo país.

Em busca de respostas

Cada vez mais frustrado com o aumento no número de pacientes que sofrem com a doença, O'Brien publicou em 2018 um artigo no Medical Journal of Australia, pedindo financiamento para uma resposta científica urgente ao crescente número de casos.

Por volta da mesma época, uma menina de 13 anos chamada Ella Crofts lançou uma petição pedindo fundos ao governo depois de sofrer com uma úlcera grave no joelho que exigiu três operações e meses de tratamento.

Uma semana após a publicação, O'Brien havia garantido mais de 3 milhões de dólares australianos (cerca de R$ 13 milhões).

Com essa verba, O'Brien tem colaborado com outros especialistas para responder à pergunta fundamental: como acontece a transmissão?

"Essa é uma doença que tem uma interação complexa entre o meio ambiente, os animais e os humanos", afirma.

Mas sem um entendimento melhor da transmissão, sua prevenção continuará difícil.

O'Brien se juntou a pesquisadores ambientais, cientistas de doenças infecciosas e especialistas em comportamento humano para conseguir montar todas as peças do quebra-cabeça e descobrir o que está acontecendo.

Um dos pesquisadores com quem ele tem trabalhado nos últimos dois anos é Blasdell.


Saras Windecker está conduzindo pesquisas noturnas para estimar quantos gambás vivem nos bairros ao redor de Melbourne (Crédito da foto: Annette Ruzicka)

Em uma manhã ensolarada de outubro de 2020, Blasdell vagava pelas ruas do subúrbio da Península de Mornington equipada de máscara, luvas azuis e um saco plástico amarelo. Ela parou ao lado de uma árvore e levantou a cabeça para olhar para sua copa.

A árvore Melaleuca preissiana é um dos pontos de encontro favoritos de gambás e — bingo! — ela avistou um ninho. Na grama logo abaixo, achou rapidamente o que procurava: bolinhas marrom-escuras de cocô de gambá.

De sua sacola plástica, Blasdell tirou um pequeno tubo de ensaio e uma pinça verde. Decantando algumas fezes no tubo, ela colou uma etiqueta nele e guardou na bolsa com outras amostras.

Enquanto isso, sua equipe enviou questionários aos moradores da Península de Mornington — tanto para aqueles que tiveram a doença quanto para aqueles que não tiveram.

Eles querem conhecer seus hábitos: será que usam luvas na jardinagem, por exemplo, e moram perto de reservatórios de água parada, que podem atrair mosquitos?

Blasdell e sua equipe também visitaram as casas de alguns moradores e coletaram amostras ambientais para ver se a bactéria se encontrava no solo ao redor de suas residências.

Ao relacionar todas essas informações, eles esperam obter uma imagem mais clara de como a doença está passando do meio ambiente para os humanos.

Depois do pôr do Sol, Saras Windecker e sua equipe se dirigiram para lá. Na escuridão da noite, Windecker, pesquisadora da Universidade de Melbourne, se pôs a caminhar lentamente pelas ruas do subúrbio da península, enquanto a lanterna presa à sua cabeça iluminava as árvores ao redor, e começou a contar. Ela estava fazendo um levantamento para ver quantos gambás existem na região.

Ela começou no norte de Melbourne, onde encontrava cerca de 30 por noite. Mas, à medida que se aproximava da Península de Mornington, "começamos a ver números realmente altos — mais de 100 gambás em uma única noite", diz ela.

Como os cientistas acreditam que os mosquitos provavelmente também desempenham um papel nesta complexa cadeia de transmissão, além de contabilizar os gambás, eles também têm realizado levantamentos de mosquitos.

"Podemos usar isso para criar um mapa espacial de onde o mosquito é mais abundante e em que períodos de tempo", afirma Windecker.

Ao obter todas essas informações —a abundância de gambás, a quantidade de bactérias em suas fezes e no meio ambiente e a profusão de mosquitos —, Windecker pretende criar um sistema de alerta para as comunidades e autoridades de saúde.

"Vamos [criar] um mapa de risco espacial mais amplo de onde a bactéria pode estar em maior risco de infectar mais humanos no futuro", explica.

Mas a importância de encontrar respostas vai muito além da costa da Península de Mornington: quase 3 mil pessoas no mundo todo sofrem de úlcera de Buruli a cada ano.

A pesquisa estava indo bem até a primavera de 2020, mas a pandemia de covid-19 prejudicou seu andamento — e é difícil obter mais financiamento.

Por enquanto, os pesquisadores ainda não descobriram com certeza como a bactéria infecta os humanos.

Diante de uma pandemia global, O'Brien teme que a úlcera de Buruli possa cair no esquecimento mais uma vez. E receia que seria imprudente ignorá-la.

"A covid-19 está nos mostrando que não podemos ver doenças isoladamente. [Os coronavírus] podem ser respiratórios, e [a úlcera de] Buruli bacteriana, mas ambos vêm da natureza, ambos são um alerta sobre nossas interações com a natureza, os dois são imensamente prejudiciais à saúde humana", afirma.

"Aprender as lições de um é muito importante para o outro."

Harriet Constable. da BBC Future, em 28 março 2021

domingo, 28 de março de 2021

Brasileiro quer líder que priorize o País e não as eleições

Diante da politização da pandemia no Brasil, pesquisa global da Ipsos mostra que 42% dos brasileiros esperam que políticos priorizem o interesse coletivo para superar a crise      

“Só um ano de atraso”, foi uma das frases irônicas que invadiram as redes sociais após o anúncio, na quinta-feira passada, da criação de um comitê para discutir e pôr em prática ações integradas de combate à covid-19 no Brasil. Após reunião com os presidentes da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal (STF), alguns governadores e ministros, o presidente Jair Bolsonaro prometeu um trabalho conjunto e disse acreditar que o melhor caminho para tirar o País da crise é “sem qualquer conflito, sem que haja politização”.

A postura e o discurso do presidente, porém, destoam da forma como o Brasil assistiu à condução da pandemia nos 13 meses anteriores. Em meio a uma crise sanitária sem precedentes e um número cada vez maior de mortos, o período foi marcado por conflitos do presidente – que se opôs a medidas de isolamento e criticou vacinas – com governadores e prefeitos.

Uma consequência desta “pane” federativa pode ser vista num levantamento da Ipsos e do Global Institute for Women’s Leadership publicado neste mês: após um ano conturbado de pandemia, uma parcela majoritária dos entrevistados no Brasil disse querer que seus líderes coloquem os problemas do País como prioridade à frente de suas próprias ambições políticas.

É o que pensa a advogada Valéria Martins, de 35 anos, do Rio de Janeiro, que acompanhou de perto o drama de amigos que perderam familiares para a doença ou que estão desempregados na crise. “Essas brigas políticas só pioram a nossa situação, tanto na questão da saúde, como financeira. Estão pensando nas eleições e não em ajudar o povo”. A mineira Amanda de Paula, que trabalha com administração de empresas, tem o mesmo ponto de vista: “Eu esperava que atitudes tivessem sido tomadas bem antes do caos todo”.

O estudo da Ipsos pediu a mais de 20 mil entrevistados de 28 países que apontassem cinco características prioritárias que esperam de um líder para reverter a crise do coronavírus. Entre os brasileiros, a principal urgência, citada por 42% dos participantes, foi o desejo de que políticos priorizem os interesses do País ao invés de suas próprias carreiras. Esta e outras características como “ser honesto”, “tomar decisões certas na hora certa” e “agir rápido para proteger as pessoas” tiveram, entre os brasileiros, suporte mais alto do que a média dos países pesquisados.

Valéria Martins, advogada, moradora do Rio: 'Estão pensando nas eleições e não em ajudar o povo' Foto: Wilton Junior/Estadão

“Essas questões são mais percebidas como mais importantes por aqui”, disse Marcos Calliari, presidente da Ipsos no Brasil. “A capacidade de enfrentar a pandemia e suas desastrosas consequências, em um país que foi particularmente atingido, requer, no olhar da população brasileira, capacidade de entender os problemas da população e protegê-la, comunicar-se bem e pensar no País.”

Apesar de agora abrandar o tom negacionista e falar que o governo nunca se opôs à vacinação, durante meses Bolsonaro duvidou da eficácia das vacinas, chegando a barrar uma decisão do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de comprar a Coronavac e chamou o imunizante de “a vacina chinesa de João Doria”. Filiado ao PSDB, o governador de São Paulo é um potencial adversário de Bolsonaro na disputa presidencial do ano que vem. “É normal que haja dissenso em alguns pontos do combate à pandemia como houve com o auxílio emergencial acerca do valor e até do auxílio em si, mas a disputa política não pode se tornar algo nocivo ao País e à população. Foi o que vimos com a vacinação”, disse o advogado Augusto Costa, de 25 anos, morador de Sertãozinho, no interior de São Paulo.

Medidas de isolamento social durante a pandemia também estão entre as principais discordâncias de Bolsonaro com gestores estaduais e municipais. Na semana passada, o presidente chegou a ingressar com uma ação no STF para tentar reverter restrições na Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal; o pedido foi negado. Recentemente, governadores e prefeitos de grandes capitais se desentenderam publicamente na adoção de medidas de restrição. Casos como o do prefeito do Rio, Eduardo Paes (DEM), e do governador do Estado, Cláudio Castro (PSC), de Doria e do prefeito paulistano, Bruno Covas (PSDB). 

O Supremo assegurou a Estados e municípios a autonomia para tomar medidas contra a propagação da doença, mas não exime a União de realizar ações e de buscar acordos com gestores locais.

“Colocar o País à frente da política é um apelo por responsabilidade coletiva, tomar medidas no tempo certo, sem conflito e sem procrastinação é olhar para as necessidades do povo”, diz o cientista político e escritor Sérgio Abranches. “Hoje vivemos uma ameaça existencial e, em muitos lugares, como o Brasil, governos em completo divórcio com o país, com o povo. Várias lideranças, aqui e em quase todos os países democráticos, já entenderam esse anseio coletivo.”

Para o analista de risco político Creomar de Souza, da consultoria Dharma, a combinação de crises na pandemia – sanitária, política, econômica e social – indica uma tendência de debate político mais focado nas necessidades urgentes do País para o pleito do ano que vem. “As duas grandes tendências de debate são saúde pública e desemprego. O debate eleitoral tende a girar nesses dois temas por causa da pandemia, a dificuldade do governo em atender os doentes e a disponibilização de vacinas.”

O cenário de polarização dialoga com outro dado da pesquisa Ipsos: apenas 4% dos entrevistados brasileiros citaram como prioritária a necessidade de que líderes saibam dialogar e atuar conjuntamente com quem pensa diferente. Nenhum outro país do estudo aparece com uma porcentagem tão baixa neste quesito. “Uma parte do eleitorado brasileiro passou firmemente a acreditar nos últimos anos que dialogar com o diferente é uma corrupção de valores. Isso é ruim para a sociedade”, diz Creomar. 

Para Calliari, da Ipsos, o dado indica que a percepção de prioridade deveria desconsiderar as diferenças ideológicas: “Parece haver a percepção de que trabalhar apesar das diferenças políticas não é importante por si só. Há sinais de que a população vê a polarização política, mas importante é trabalhar para atacar o que o País enfrenta, com honestidade, empatia, transparência e competência, independentemente de qual seu espectro ideológico.”

Matheus Lara, O Estado de S.Paulo, em 28 de março de 2021 

300.000 mortos e um Brasil refém de Bolsonaro

Sem auxílio emergencial, sem plano econômico nacional e emparedados pelo Planalto, governadores e prefeitos se acovardam e repetem erros de meses atrás. Estamos implorando ao Ministério da Saúde, um ano depois, que ao menos não atrapalhe

Bandeira brasileira na praia de Copacabana, fechada por causa da crise sanitária. (Crédito da foto: RICARDO MORAES / REUTERS)

Um ano depois da pandemia e chegando ao imoral marco de 300.000 mortes, o Brasil segue repetindo erros que paga com óbitos e sequelas dolorosas para sobreviventes do novo coronavírus. Vivendo situações “de guerra” e prejudicados por um presidente que age deliberadamente contra o fim da crise, governadores e prefeitos cedem a invencionices e repetem ideias que já não deram certo meses atrás.

O boletim do Observatório Covid-19 da Fiocruz desta quarta-feira é cristalino. Diz que, ao se comparar o Brasil com os países que tiveram mais de 100.000 óbitos por covid-19 durante a pandemia (EUA, México, Índia, Reino Unido e Itália), todos estão em situação melhor que a nossa. Só o Brasil exibe tendência crescente e contínua. Vários especialistas, os secretários de Saúde e a própria Fiocruz já pediram: lockdown nacional já, com regras nacionais de circulação e barreira em portos e aeroportos por ao menos 14 dias. “Mesmo que vários municípios e Estados já venham adotando estas medidas, é fundamental que governos municipais, estaduais e federal caminhem todos na mesma direção”, pede o documento.

Mas essa alternativa de coordenação nacional, com Jair Bolsonaro no poder, não está no horizonte. No máximo, ele vai adotar agora um discurso pró-vacinação, insuficiente para o momento e mais um álibi para seguir falando contra o isolamento social. Então, o que fazer?

O país atravessa a pior fase da pandemia sem auxílio emergencial para os mais pobres ―graças à lentidão do Planalto― e sem ajuda para o comércio e pequenos empreendedores ―pela falta de um plano econômico nacional. Tudo isso aumenta, e muito, o custo político de confinamentos drásticos, sem falar na situação de fome propriamente dita, mesmo na cidade mais rica do país. Aí cada gestor tenta mesclar medidas na direção correta, do ponto de vista epidemiológico, com cálculo político e terceirização de responsabilidades.

O caso mais recente é a reedição na cidade de São Paulo de megaferiadão, desta vez ligado à Semana Santa, para tentar conter a circulação da população. Tudo começa porque, mesmo com São Paulo vivenciando o colapso, o governador João Doria não tem coragem de declarar um lockdown sério, com restrição do que é considerado essencial e restrição de viagens não justificadas. Dada essa primeira omissão, o seu colega tucano, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, faz o mesmo: resolveu dar impulso ao jogo de empurra. Covas decretou novo feriadão na capital, que começa no dia 26. Não há tampouco regra sobre restrição de viagens, o que pressiona litoral e interior, como se essas regiões também não estivessem pagando precariedade com mais mortes. Em alguns lugares, a ação de Covas gerou um efeito cascata: várias cidades da Baixada Santista não tiveram outra escolha que decretar elas mesmas um lockdown, enquanto outras cidades do interior correm para desincentivar o veraneio.

O epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, diz que, apesar das trapalhadas, o feriadão pode ajudar a aumentar as taxas de isolamento, ao menos na capital. Qualquer ponto percentual na redução na circulação, ele diz, vai diminuir contágios e depois, mortes. É pouco? Sim, mas com pessoas morrendo na fila por um leito de UTI não dá para desprezar. O problema é que, com tudo descoordenado e com esse salve-se quem puder político, não se descarta que em outras regiões no interior haja espaço para algum prefeito negacionista brilhar. Na capital paulista, empresas e escolas ainda deliberam se vão ou não acatar o feriadão. Quem pode julgá-los? O feriado existe não para as atividades que já estão remotas, mas para dar um empurrão naquelas que o Governo não tem coragem de fechar. Enquanto mais confusão se instala, aqui e ali ainda se especula na imprensa se Doria vai ou não endurecer as regras para outras atividades econômicas.

Não era hora de inventar a roda, mas somos muito desiguais e tolerantes à morte para qualquer medida horizontal. Na França, há regra clara sobre deslocamento mesmo dentro das cidades. A Espanha, em situação bem melhor do que a brasileira agora, haverá medida duras para a Semana Santa. Mesmo o Chile, onde 20% da população já se vacinou, haverá novas restrições praticamente em todo território. Se o mundo inteiro segue essas regras, por que achamos que vamos nos safar sem elas? Se já chegamos à marca de 3.000 óbitos por dia, o que nos impede de seguir a escalada?

Em vez de estarmos discutindo uma saída para a calamidade nos hospitais, estamos de novo, um ano depois, cobrando o Ministério da Saúde. Implorando, na verdade, que ao menos não atrapalhe os Estados nem mude regras de última hora para complicar a transparência sobre os óbitos. Os dados não são apenas títulos nos jornais, eles são ferramentas de trabalho. É inacreditável que tenhamos transformado a pasta e o SUS, nossa Ferrari em termos de sistema de saúde, numa Veraneio modelo 64, lotada de recrutas zero. A lista de cúmplices é imensa, mas a elite do empresariado que apoiou a eleição de Bolsonaro tem um lugar especial nela. É estarrecedor que só agora o PIB tenha resolvido cobrar o presidente a respeito.

Nesse imobilismo entra o fator dos 30% que apoiam Jair Bolsonaro em seu negacionismo, segundo o Datafolha. O presidente está fazendo um jogo político que tem seu método: não governa para uma maioria, mas para sua minoria suficiente, em torno de 30%, que o permita se blindar contra o impeachment e chegar a um segundo turno em 2022. Vai ser sustentável no tempo? Até agora, tem sido. Então há, no momento, um país refém, com 70% de insatisfeitos, e ninguém governa pensando neles.

FLÁVIA MARREIRO, do EL PAÍS. Publicado originalmente em 24 MAR 2021

Brasil tem 1.656 mortes por covid em 24 horas

País acumula mais de 312 mil vítimas, dos 12,53 milhões de infectados com o coronavírus desde o início da pandemia. Taxa de mortalidade por 100 mil habitantes se aproxima de 149

Homem de máscara sanitária passa diante de lenções estendidos no chão de rua como memorial por vítimas da covid-19

Memorial pelas vítimas da covid-19 montado pela ONG Rio de Paz diante do Hospital Ronaldo Gazolla, no Rio de Janeiro

O Brasil registrou oficialmente 44.326 novos casos confirmados de covid-19 e 1.656 mortes ligadas à doença neste domingo (28/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.534.688, enquanto os óbitos chegaram a 312.206. Ao todo, 10,88 milhões de pacientes se recuperaram da doença, segundo o Ministério da Saúde (o Conass não divulga número de recuperados).

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 148,6 no Brasil, a 17ª mais alta do mundo, desconsiderados os Estados-nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30 milhões de casos, e seguido da Índia, com pouco menos de 12 milhões. É também o segundo em número de mortos por covid-19, depois dos quase 550 mil em solo americano.

Ao todo, mais de 127 milhões já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,78 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença respiratória, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle / Brasil, em 28.03.2021

Centrão e mercado dão ultimato a Bolsonaro

Com agravamento das crises sanitária e econômica no País, Lira e Pacheco alinham discurso com empresários e defendem uma intervenção nos rumos do governo

Arthur Lira chegou a incluir impeachment no discurso na Câmara em que falou em 'sinal amarelo'

Para empresários, é preciso ‘controlar’ o presidente

Uma série de nove encontros da cúpula do Congresso com grandes empresários, representantes de bancos e do mercado financeiro resultou num movimento político pela intervenção nos rumos do governo de Jair Bolsonaro. Os mais de 300 mil mortos na pandemia de covid-19 e a situação cada vez mais insustentável da economia levaram os presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a afinar o discurso com o mercado. Os dois têm colocado o impeachment como possibilidade se as conversas com o governo fracassarem. 

As cobranças mais urgentes do setor econômico são a demissão dos ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A avaliação recorrente nas reuniões é de que Araújo atrapalha as negociações por vacinas e insumos da Índia e da China. Já Salles, que comanda a criticada política ambiental brasileira, é visto como obstáculo na relação com Washington, especialmente agora que o País mira as vacinas excedentes dos Estados Unidos.

Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (à esq.), e do Senado, Rodrigo Pacheco; encontros com empresários Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

Interlocutores de Lira e Pacheco argumentam que, no caso específico, é errada a leitura de que a pressão pela troca dos dois ministros – verbalizada por eles – tenha como objetivo lotear o governo, uma demanda constante do Centrão. O intuito é atender à principal reivindicação do setor econômico e, de quebra, garantir um “ganho de imagem” perante seus novos interlocutores. 

Na noite da última segunda-feira, Washington Cinel, empresário do ramo de segurança privada, recebeu os presidentes da Câmara e do Senado em sua casa na Rua Costa Rica, no Jardim Europa, em São Paulo. Participaram do encontro presencial e remoto Luiz Carlos Trabuco Cappi (Bradesco), Carlos Sanchez (SEM) e André Esteves (BTG Pactual). As conversas à mesa de jantar foram precedidas por discursos breves de Lira e Pacheco, do anfitrião Cinel e dos também empresários Abílio Diniz e Flávio Rocha, que falaram por videoconferência. Uma das manifestações mais duras foi a de Pacheco. Mas, segundo presentes, não houve “tom panfletário” em público.

Os empresários relataram que a crise sanitária bloqueia investimentos externos e atinge diretamente os planos de abertura de capital de empresas, o IPO. “Quem quer fazer IPO não consegue ter grandes resultados, porque ninguém tem segurança de botar dinheiro no Brasil, principalmente pela condição sanitária”, disse o deputado Dr. Luizinho (Progressistas-RJ), presente ao encontro.

Jantares como este ocorrem com regularidade. Os encontros são promovidos uma vez por mês por nomes como Cinel e João Camargo, filho do ex-deputado José Camargo. Segundo um parlamentar que já esteve no convescote, eles se reúnem para tomar vinho e convidam um político para “cantar”. Lira era o convidado principal desta vez. Pacheco já estava em São Paulo e acabou sendo incluído. 

Antes, Lira e Pacheco haviam passado na casa de Claudio Lottenberg, homem forte do Hospital Israelita Albert Einstein. Lá havia um grupo menor de empresários do setor de saúde. A conversa foi sobre a escassez de sedativos e analgésicos, medicamentos usados para intubação de pacientes com quadro grave de covid-19, em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). A falta atinge o SUS e hospitais da rede privada. 

Os dirigentes do Congresso também têm frequentado a Febraban, a Fiesp e participado de agendas fechadas em São Paulo com nomes de peso. No último dia 2, Pacheco esteve com Milton Maluhy Filho (Itaú), Octavio de Lazari Jr. (Bradesco) e Roberto Sallouti (BTG). Um dia antes, os dois políticos falaram na Fiesp para Abílio Diniz e Rubens Menin. Em 25 de fevereiro Lira já havia estado com Sergio Rial (Santander), entre outros. 

Demitir ministros pode ser traumático para Bolsonaro. A substituição de Salles, por exemplo, implica uma ruptura com a faixa média dos ruralistas, justamente o setor que desde o início apoiou a campanha do presidente, em 2018. Os líderes do Centrão têm deixado claro, porém, que a sobrevivência do governo depende das mudanças. 

Vacina

Um outro encontro de Pacheco por videoconferência foi organizado no último dia 11 pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Luiz Antônio França, presidente da entidade que reúne grandes construtoras, afirmou que o objetivo da conversa foi buscar o melhor para a economia. “O que a gente percebe é um alinhamento entre as duas Casas (do Congresso)”, disse França. “E o que é o melhor para a economia? Primeiro, resolver a pandemia. Depois, um país com capacidade de investimento e crescimento”, completou. “A prioridade é vacinar.” 

Uma queixa, em especial, marcou as reuniões com as presenças de Lira e Pacheco. Os empresários destacaram que as medidas para conter o avanço da pandemia dependem do Executivo, razão pela qual, desta vez, não há como tratar Bolsonaro como “café com leite”. Trata-se de uma situação diferente do processo de votação da reforma da Previdência, por exemplo. Na época, o presidente era contra a proposta, mas o Legislativo deu de ombros e aprovou a medida.

Em sintonia com empresários e mercado, líderes do Centrão dizem que, diante do fracasso no controle da pandemia, o presidente não terá mais a tolerância do Congresso. “Bolsonaro está no fio da navalha. Se a coisa fugir do controle, se ele quiser fazer tudo do jeito dele, fora da ciência, não tenha dúvida de que nós vamos atropelar”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).

Pinato advertiu que “ninguém” quer afrontar o presidente, mas ele precisa assumir a liderança dentro de uma “racionalidade mundial”, e não na “destemperança” da ala ideológica. “O impeachment está descartado, desde que ele mantenha esse diálogo construtivo. Se tiver ameaça de choque institucional ou sair da racionalidade no combate à pandemia, ninguém vai pular no buraco com ele, não”, resumiu o parlamentar.

Felipe Frazão e André Shalders, O Estado de S.Paulo, em  28 de março de 2021