quinta-feira, 25 de março de 2021

Brasil poderá chegar a 5 mil mortes diárias por covid-19, diz estudo

Análise da Universidade Federal Fluminense / UFF prevê pico da segunda onda da epidemia entre abril e maio, e destaca que medidas de isolamento, além de vacinação, são fundamentais para atenuar cenário.

Coveiros levam caixão de vítima de covid-19 em São Paulo

Brasil ultrapassou marca de 300 mil mortos por covid-19 nesta quarta-feira

O Brasil pode chegar a registrar 5 mil mortes diárias por covid-19 no final de abril ou início de maio, de acordo com um estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF) divulgado nesta quarta-feira (24/03). A análise prevê que, nesse período, ocorra o pico da segunda onda da epidemia no país.

Desenvolvido pelo professor do Departamento de Estatística da UFF, Marcio Watanabe, o estudo calculou o número possível de mortes diárias nos próximos meses a partir de um modelo matemático-epidemiológico que levou em consideração a análise de dados da pandemia de mais de 50 países entre setembro de 2020 e março deste ano.

"O pico de óbitos no Brasil será provavelmente em abril ou início de maio, com um número calculado entre 3 mil e 5 mil mortes por dia", afirmou Watanabe. "O valor real do pico dependerá da velocidade da vacinação nos próximos meses e das medidas de distanciamento adotadas", acrescentou.

Com base em dados do ano passado, o pesquisador afirmou que a pandemia tende a se agravar nesses meses em países do hemisfério sul, em particular no Brasil, e também em nações que seguem padrões sazonais semelhantes, como Índia e Bangladesh.

Já em países do hemisfério norte, como Estados Unidos e os europeus, os casos tendem a estagnar por um longo prazo, com menor tendência de aumento, segundo o especialista.

Para tentar desacelerar esse ritmo, o estudo destaca a necessidade de medidas de isolamento social, que já se mostraram eficazes para conter a transmissão do coronavírus. Watanabe ressalta que a efetividade delas depende, principalmente, da redução de aglomerações.

"É essencial reduzir aglomerações como ônibus lotados, que têm sido ignorados pelo poder público ao longo da pandemia", afirmou o pesquisador.

Cenário para o futuro

O estudo prevê ainda que a partir de 2022 a covid-19 seguirá, de forma mais clara, o mesmo comportamento das demais doenças respiratórias, com aumento de casos e óbitos entre março e junho, mas de forma mais controlada. Nas demais épocas do ano, deverá ocorrer uma redução da transmissão. Porém, essa previsão depende da evolução das campanhas de vacinação.

"Poderemos conviver com a covid-19 da mesma forma que convivemos com outras doenças respiratórias, como a pneumonia, quando vacinarmos a maior parte da população. Mas, mesmo com a vacina, a doença será endêmica, ou seja, sempre haverá casos", destacou Watanabe.

O especialista também aponta como desafio fundamental para o futuro a busca por um tratamento eficaz para pacientes hospitalizados com covid-19. "Após a produção de diversas vacinas eficazes em tempo recorde, temos que depositar novamente nossas esperanças e apoiar o incrível trabalho de pesquisadores de universidades do Brasil e do mundo que seguem trabalhando incansavelmente para mitigar cada vez mais os efeitos da maior pandemia da história", acrescentou.

Pior momento

O Brasil enfrenta o pior momento da pandemia. Nesta quarta-feira, o país ultrapassou a marca de 300 mil mortos em decorrência da doença. O número trágico foi atingido apenas dois meses e meio após ter registrado 200 mil mortes. Ao todo, mais de 12,2 milhões de casos foram registrados no país.

A explosão no número de infecções levou ainda ao colapso dos sistemas de saúde em diversos estados, com UTIs lotadas e pacientes morrendo em filas de espera por um leito.

Em pronunciamento na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro tentou defender as ações do governo no combate à crise, mas mentiu e distorceu dados sobre a crise e a vacinação. Na fala, apesar de reconhecer que o coronavírus "infelizmente tem tirado a vida de muitos brasileiros", o presidente sequer mencionou o recorde de mortes. Ele afirmou que o governo tomou medidas para combater o coronavírus ao longo de toda a pandemia e que sempre foi a favor das vacinas.

Na realidade, ao longo de um ano de pandemia, apesar de lançar medidas econômicas, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, combateu medidas de isolamento social, promoveu curas sem eficácia, criticou a vacina e tentou sabotar iniciativas paralelas de vacinação e combate à doença lançadas por governadores e prefeitos em resposta à inércia do seu governo na área.

Deutsche Welle / Brasil, em 25.03.2021

Brasil tem mais de 100 mil novos casos de covid-19 em 24 horas

País atinge recorde de infecções em um dia e chega a 12,3 milhões de casos desde o início da epidemia. Total de vítimas chega agora a 303.462 mil, com 2.787 novos óbitos.


Covas abertas em cemitério de Brasília. 

O Brasil registrou 2.787 mortes associadas à covid-19 nesta quinta-feira (25/03), e superou pela primeira vez a marca de 100 mil novos casos da doença em 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Foram identificados 100.736 novas infecções, de acordo com o Conass. Com isso, o total de casos identificados no país subiu para 12.320.169, enquanto os óbitos chegaram a 303.462 desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.689.646 pacientes se recuperaram da doença até esta quarta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 144,4 no Brasil, a 18ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30 milhões de casos. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 545 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 125 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,74 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 25.03.2021

Pressão sobre Bolsonaro cresce no auge da pandemia. Entenda a crise em quatro pontos

Com popularidade em queda, presidente viu aliado Arthur Lira mandar recado sobre insatisfação do Congresso

Pouco mais de um ano após o início da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro se encontra cercado por instabilidade em diferentes frentes. Nesta quarta-feira, o país ultrapassou a marca de 300 mil mortes por Covid-19, sem sinais de diminuição do ritmo de contaminação ou de aceleração da vacinação. A condução errática do governo federal levou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado do Bolsonaro, a subir o tom das cobranças. No setor econômico, a cobrança foi tornada explícita por meio de uma carta: empresários, banqueiros e economistas cobraram medidas concretas de enfrentamento à pandemia. Outra má notícia veio em formato de pesquisa: seguindo o Datafolha, 54% dos brasileiros reprovam a gestão de Bolsonaro na crise sanitária, maior nível desde o começo da crise sanitária.

Em quatro pontos, entenda os principais fatores que explicam a crise

Lira manda recado

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), passou um recado claro durante um discurso em plenário na noite desta quarta-feira: a paciêeia:ncia do Congresso com a condução do governo no momento mais grave da pandemia está se esgotando.

Horas após participar de reunião no Palácio da Alvorada, Lira fez uma referência indireta a um processo de impeachment. Nas palavras do presidente da Câmara, “tudo tem limite”.

– Mas será preciso que essa capacidade de ouvir tenha como contrapartida a flexibilidade de ceder. Sem esse exercício, a ser praticado por todos, esse esforço não produzirá os resultados necessários. Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta presidência. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política.

Bastidores: Discurso duro de Lira nasceu de pressão de aliados para 'Congresso não afundar junto' com o governo

O discurso de Lira foi construído com outras lideranças, que argumentaram junto ao presidente da Câmara que a Casa não poderia “afundar junto com o governo”.

No fim da semana passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já havia manifestado insatisfação após Bolsonaro comparar restrições impostas por governadores a um “estado de sítio”

“Não há mínima razão fática, política e jurídica, para sequer se cogitar o estado de sítio no Brasil. Volto a dizer que o momento deve ser de união dos Poderes e ações efetivas para abertura de leitos, compras de medicamentos e vacinação”, escreveu Pacheco.

Judiciário distante

A tentativa de Bolsonaro de trazer o Poder Judiciário para o comitê de enfrentamento à pandemia também não prosperou. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, esteve na reunião, mas afirmou que não fará parte do grupo. Como existe a possibilidade de formulação da políticas públicas conjuntas, que eventualmente poderão ser questionadas junto ao próprio STF, Fux e os outros integrantes da Corte definiram que a participação não poderia ocorrer.

– Conforme deliberado neste plenário em nossa última sessão, ficou explícito na reunião que o Supremo Tribunal Federal não fará parte do comitê, uma vez que cabe ao Poder Judiciário aferir a legitimidade dos atos que serão praticados. Eu explicitei em minha fala que este Supremo tem sido o guardião imediato da saúde do povo, diante de centenas de decisões tomadas ao longo da pandemia, sempre observando a ciência — disse Fux em plenário, após o encontro.

Entenda por que o STF decidiu não participar do comitê de Bolsonaro sobre a pandemia

Na terça-feira, outro movimento do STF foi contrário aos interesses do Palácio do Planalto. O ministro Marco Aurélio Mello barrou a ação em que o governo federal questionava decretos em que os governadores do Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Bahia estabeleceram medidas de restrição de circulação, em função do agravamento da pandemia.

Popularidade em queda

Em meio à sequência de recordes diários na média móvel de casos de coronavírus, a última pesquisa Datafolha mostra que 54% da população avaliam como ruim ou péssima a atuação presidencial na crise sanitária. A avaliação negativa sobre a postura do governo no enfrentamento à Covid-19 deu um salto de seis pontos percentuais em dois meses – o índice era de 48% em janeiro.

(Datafolha: No pior momento da pandemia, rejeição a Bolsonaro na condução da crise bate recorde e chega a 54%, diz Datafolha)

Quando perguntados sobre a administração do país em geral, a reprovação chega a 44%, mesmo patamar de junho do ano passado, último ponto antes de uma sequência de queda turbinada pelo pagamento do auxílio emergencial. Depois de chegar a 32% em dezembro, o índice voltou a subir até repetir o maior valor desde o início do governo.

O governo é tido como ótimo ou bom por 30% – eram 31% em janeiro – e como regular por 24% – eram 26% há dois meses. A aprovação também é maior do que a média entre empresários (55%), moradores do Sul (39%) e evangélicos (37%). A reprovação, por sua vez, tem seus maiores índices entre quem concluiu o ensino superior (55%), pretos (55%), aqueles com renda mensal acima de dez salários mínimos (54%) e entre moradores do Nordeste (49%).

Desgaste na economia

A relação com o mercado, que já não atravessava o melhor momento, ganhou um novo capítulo nesta semana. Cerca de 200 economistas, banqueiros, empresários e acadêmicos assinaram juntos uma carta intitulada  “País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”. O texto classifica o cenário atual como “desolador” e não se esquiva ao apontar que o governo “subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”. A carta enviada ao governo é assinada por nomes como Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central; Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda; Roberto Setubal, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco; e Pedro Parente, presidente do Conselho de Administração da BRF.

(Malu Gaspar:A Faria Lima desiste de Bolsonaro)

Ao todo, o documento leva a assinatura de quatro ex-ministros da Fazenda, além de cinco ex-presidentes do Banco Central e do BNDES.

De acordo com o grupo, “o efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social” e, além do auxílio emergencial, “não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais”.

Filipe Vidon e Marco Grillo, O Globo, em 25.03.2021

Confiar na Justiça?

Segunda Turma do STF ofereceu muitos elementos contrários à própria imparcialidade

Em tese, a decisão de um tribunal, reconhecendo a parcialidade de um juiz de primeira instância, deveria reforçar a confiança da população no Judiciário, ao restabelecer um elemento fundamental de todo sistema de Justiça: a equidistância do julgador em relação às partes. O direito a ser julgado por juiz imparcial é condição elementar de justiça. Decorrência direta da igualdade de todos perante a lei, a imparcialidade do juiz é requisito de validade do processo.

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) conseguiu, no entanto, o exato oposto ao julgar habeas corpus impetrado em favor do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, que questionava a imparcialidade do então juiz Sérgio Moro na condução do processo penal relativo ao triplex do Guarujá. Poucas vezes se viu tal desmoralização do Supremo como a que o País assistiu durante o julgamento desse writ.

A Segunda Turma do STF deixou pouco espaço para que sua decisão fosse vista como imparcial ou mesmo jurídica. Não se trata tanto do resultado em si, declarando a parcialidade de Sérgio Moro no caso – assunto, não é demais lembrar, sempre questionado pela defesa do ex-presidente Lula e sempre rejeitado pela Justiça, em várias instâncias –, mas de como se chegou à decisão.

É estranha, por exemplo, a demora na conclusão do julgamento. O habeas corpus chegou ao Supremo em 2018. Se eram tão graves e tão evidentes os elementos indicando a parcialidade do juiz, por que tamanha demora na conclusão do caso? Se estava em risco um princípio tão fundamental do sistema de Justiça, por que o arbítrio na escolha do momento do julgamento?

Também é estranho que, tratando-se de julgamento sobre o modo como o então juiz Sérgio Moro conduziu o processo do triplex do Guarujá – não se discutia a inocência do ex-presidente Lula quanto às acusações de corrupção e lavagem de dinheiro –, a Segunda Turma do STF tenha oferecido tantos elementos contrários à própria imparcialidade.

Os ministros deram a entender que, apesar de seus enfáticos votos sobre o dever de isenção do juiz, o que eles discutiam não tinha especial importância, pois eles mesmos não estavam cuidando para que fossem vistos como imparciais e isentos, em relação tanto ao caso específico como aos integrantes do colegiado com entendimentos contrários aos seus.

Contrariado com o voto do ministro Nunes Marques, o presidente da Segunda Turma, ministro Gilmar Mendes, mesmo já tendo votado, falou durante uma hora e meia sobre o caso. “Atrás, muitas vezes, da técnica de não conhecer habeas corpus se esconde um covarde. E vou falar: o bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”, disse.

Depois, o ministro Nunes Marques respondeu. “Quem me conhece sabe que eu não me inibo com nada. Para os que não me conhecem, ainda tem um pouco mais de 26 anos pra me conhecer.” Seria muito oportuno que, nas sessões do Supremo, mais do que idiossincrasias ministeriais, pudesse se conhecer o Direito.

Mesmo nos poucos momentos serenos da sessão de 23 de março, o Direito não foi a prioridade. Por exemplo, ao mudar o voto dado no fim de 2018, a ministra Cármen Lúcia alegou que, naquele momento, as provas não eram suficientes para o reconhecimento da suspeição do juiz Sérgio Moro. No entanto, aquilo que seriam, segundo a ministra, os novos elementos probatórios eram anteriores a 2018, como a condução coercitiva do ex-presidente Lula de 2016. Cármen Lúcia assegurou que as conversas hackeadas entre Moro e os procuradores da Lava Jato não contribuíram para seu novo entendimento.

Ao final, a ministra Cármen Lúcia fez importante esclarecimento. A decisão da Segunda Turma refere-se a um caso específico de um réu específico. Seus efeitos estão restritos ao caso do triplex do Guarujá. Fica, no entanto, a questão: como impedir que a desmoralização da Justiça, levada a cabo pelo próprio Supremo, não afete os outros casos? Ainda não se teve notícia de fórmula mágica capaz de tornar irrelevante o comportamento dos magistrados na condução dos processos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de março de 2021 

O presidente improvisado

Jair Bolsonaro agora quer convencer os brasileiros de que é presidente da República, e não o irresponsável que todos conhecem

Jair Bolsonaro agora quer convencer os brasileiros de que é presidente da República, e não o irresponsável que todos conhecem. Esse novo personagem se apresentou ao País em cadeia nacional de TV, na terça-feira à noite, e numa reunião com governadores e dirigentes do Congresso e do Judiciário para tratar da pandemia de covid-19, no dia seguinte.

Bolsonaro vestiu um mal-ajambrado figurino de estadista nas últimas horas não porque, subitamente, passou a se preocupar com o padecimento de seus concidadãos, e sim porque a queda acentuada de sua popularidade, em razão de sua desastrosa administração da crise, ameaça sua reeleição.

Cobrado pelos líderes políticos que ainda o apoiam, mas que já começam a mostrar impaciência com seu talento para criar tumulto em vez de governar, Bolsonaro viu-se na contingência de se mostrar mais comedido e até disposto a defender a vacinação e a colaboração para o combate à pandemia.

Os panelaços que acompanharam o pronunciamento de Bolsonaro na TV mostram que os espectadores não se deixaram convencer por esse presidente improvisado. Pudera.

Depois de passar seus mais de dois anos de mandato mobilizando as atenções por ameaçar a ordem democrática, desrespeitar a Presidência e ofender a inteligência e a moral dos brasileiros, Bolsonaro jamais será visto como o líder que nunca foi. E jamais será porque, entre outras muitas razões, Bolsonaro trata seus governados como tolos, ao mentir descaradamente e esperar que alguém, além dos celerados que o idolatram, acredite.

No pronunciamento, Bolsonaro disse que “em nenhum momento o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus quanto para combater o caos na economia”. Ora, todos sabem que o presidente foi o líder dos negacionistas da pandemia.

Além disso, o presidente teve a audácia de dizer que “temos mais de 14 milhões de vacinados e mais de 32 milhões de doses de vacina distribuídas para todos os Estados da Federação graças às ações que tomamos logo no início da pandemia”.

Da boca de um presidente que passou a pandemia inteira a desdenhar das vacinas – a certa altura, mandou comprá-las “na casa da tua mãe” – e a prejudicar a organização da imunização ao trocar três vezes de ministro da Saúde, trata-se de inaceitável escárnio. Bolsonaro espera que todos esqueçam que a maior parte das vacinas citadas em sua fala mendaz foi produzida pelo Instituto Butantan em parceria com os chineses, sem qualquer participação do governo federal. Ao contrário, Bolsonaro desprezou desde sempre a “vacina chinesa” de São Paulo e agora, como um parasita, reivindica os louros de sua produção.

Essa desfaçatez se estendeu por quatro minutos espantosos, coroados pela promessa de que toda a população será vacinada até o fim do ano – no mesmo momento em que o Ministério da Saúde revisou para baixo, mais uma vez, seu cronograma de entrega dos imunizantes. O presidente terminou manifestando solidariedade “a todos aqueles que tiveram perdas em sua família”, depois de passar meses a dizer que não era “coveiro”, que “todos vão morrer um dia”, que era preciso enfrentar a pandemia “como homem” e de ter menosprezado a dor dos brasileiros, qualificando-a de “frescura” e de “mimimi”.

No dia seguinte, Bolsonaro, depois de se reunir com governadores e dirigentes de outros Poderes, anunciou a criação de um comitê para tomar decisões sobre a pandemia – algo que deveria ter sido feito há um ano. A sensação, no entanto, é que o tal comitê é só parte da encenação mambembe de Bolsonaro.

O presidente que hoje acena com diálogo e cooperação é o mesmo que dias antes chamou de “tiranetes” os governadores que adotaram toque de recolher contra a pandemia e entrou no Supremo Tribunal Federal contra eles. Ao rejeitar a ação, o ministro Marco Aurélio Mello, além de salientar o “erro grosseiro” do presidente ao assinar ele próprio a petição, e não a Advocacia-Geral da União, disse que “ao presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação dos esforços visando o bem-estar dos brasileiros”. Mas Bolsonaro definitivamente não nasceu para esse papel.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de março de 2021 

quarta-feira, 24 de março de 2021

Insatisfeito, Lira faz discurso duro ao Planalto: 'Tudo tem limite'

Presidente da Câmara diz que está 'apertando o sinal amarelo' e que 'tudo tem limite'

Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados Foto: Agência O Globo

Insatisfeito com o resultado de reunião promovida por Jair Bolsonaro entre Poderes, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), proferiu duro discurso em plenário na tarde desta quarta-feira. Pressionado pelos colegas a falar sobre a condução do governo no combate à pandemia, o deputado lembrou que os "remédios políticos" do Congresso são "conhecidos" e "todos amargos", em referência indireta a um processo de impeachment. Além disso, avisou que "tudo tem limite".

Ao ler o discurso, Lira criticou a política externa de Bolsonaro e cobrou ações efetivas para a situação de calamidade.  Também alertou que é preciso uma "mudança de atitude". Para amenizar o discurso, o deputado afirmou que sua fala não era "fulanizada". Chegou a dizer não é justo "descarregar toda a culpa" no governo federal ou no presidente da República. Porém, fez referência a posturas adotadas por Bolsonaro que são frequentemente criticadas na Câmara.

BRASIL SE CONSOLIDA COMO ATUAL EPICENTRO DA PANDEMIA SUPERANDO A MARCA DE 300 MIL MORTOS

— CPIs ou lockdowns parlamentares, medidas com níveis decrescentes de danos políticos, devem ser evitados. Mas isso não depende apenas desta Casa. Depende também, e sobretudo, daqueles que fora daqui precisam ter a sensibilidade de que o momento é grave. A solidariedade é grande, mas tudo tem limite, tudo. E o limite do parlamento brasileiro, a Casa do povo, é quando o mínimo de sensatez em relação ao povo não está sendo obedecido.

(Repercussão:Governadores excluídos de reunião criticam criação de comitê federal sem a participação de todos os estados)

Apesar de fazer o alerta, Lira disse que "não é hora de tensionamentos".

— Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados — discursou Lira.

O presidente da Câmara também fez referência aos instrumentos de que o Congresso dispõem para exercer o equilíbrio entre os Poderes. Antes, Lira disse que buscará a união. Mas fez questão de pronunciar a ressalva.

(Pandemia: 300 mil mortes por Covid-19 no Brasil: sepultamentos sem velório agravam o luto na pandemia)

— Mas será preciso que essa capacidade de ouvir tenha como contrapartida a flexibilidade de ceder. Sem esse exercício, a ser praticado por todos, esse esforço não produzira os resultados necessários. Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta presidência. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política.

Enquanto era ouvido com atenção pelos deputados durante a sessão, Lira também considerou insuficiente os esforços para a importação e compra de vacinas.

— Pandemia é vacinar, sim, acima de tudo. Mas para vacinar temos de ter boas relações diplomáticas, sobretudo com a China, nosso maior parceiro comercial e um dos maiores fabricantes de insumos e imunizastes do planeta. Para vacinar temos de ter uma percepção correta de nossos parceiros americanos e nossos esforços na área do meio ambiente precisam ser reconhecidos, assim como nossa interlocução.

(Covid-19: Após atritos com governadores, Bolsonaro se afasta, e Pacheco assume interlocução)

Em seguida, Lira tratou, sem exemplificar, de políticas equivocadas para a contenção da pandemia.

— Então, essa mudança de atitude em relação à pandemia, quero crer, é a semente de algo muito maior, muito mais necessário e, diria, urgente é inadiável: será preciso evoluir, dar um salto para a frente, libertamos as amarras que nos prendem a condicionamentos que não funcionam mais, que nos escravizam a condicionamentos que já se esgotaram.

Mais de uma vez, Lira pontuou que é preciso compartilhar responsabilidades.

— A razão não está de um lado só, com certeza. Os erros não estão de um lado só, sem dúvida. Mas, acima de tudo, os que tem mais responsabilidade tem maior obrigação de errar menos, de se corrigir mais rapidamente e de acertar cada vez mais. É isso ou o colapso.

Bruno Góes / O Globo, em 24/03/2021

Brasil supera 300 mil mortes por covid-19

País chega a 300.675 vítimas do coronavírus, com 1.999 óbitos nas últimas 24 horas. Contagem é prejudicada após alterações em critérios do Ministério da Saúde que comprometeram registros de dados em vários estados.

Brasil acumula mais de 300 mil mortes por covid-19. Vista aérea de covas em cemitério de Manaus

O Brasil superou nesta quarta-feira (24/03) a marca de 300 mil mortes por covid-19 desde o início da pandemia.

O país registrou 1.999 óbitos associados ao coronavírus, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Os novos números elevam o total de óbitos  para 300.675. O país atinge essa triste marca apenas dois meses e meio após ter registrado 200 mil mortes.

Também foram identificados 89.414 novos casos da doença, de acordo com o Conass. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.219.433.

Nesta terça-feira, (ontem, 23) o Brasil havia registrado um numero recorde de mortes, com 3.251 vítimas em 24 horas.

A queda na contagem diária de óbitos nesta quarta-feira ocorre após o Ministério da Saúde mudar os critérios para o registro de pacientes no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), onde estão incluídos os infectados com o coronavírus.

A mudança acabou provocando quedas artificiais na contagem de mortos por covid-19.

A alteração nos critérios de registro de óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave foi amplamente críticada por autoridades estaduais e municipais, o que levou o ministério a voltar atrás na decisão. 

Mas, a mudança nos critérios já havia afetado os números de mortes já divulgados por alguns estados, inclusive em São Paulo, o mais afetado pela doença em todo o país. O Conass relata em seu balanço diário que os dados do Amapá e do Ceará não foram atualizados em razão de problemas técnicos.

Subnotificação e falta de testagem

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 143,1 no Brasil, a 18ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.601.658 pacientes haviam se recuperado até a terça-feira.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,9 milhões de casos e mais de 544 mil óbitos.

Ao todo, mais de 124,5 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,7 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 24.03.2021

4 ministros, aversão ao isolamento, falta de vacina: a escalada que levou o Brasil às 300 mil mortes por covid-19

O Brasil alcançou nesta quarta-feira (23/3) a marca de 300 mil mortes por covid-19, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Protesto em Brasília contra a condução da resposta à pandemia pelo Planalto / CRÉDITO,REUTERS/UESLEI MARCELINO

Em pouco mais de um ano desde a confirmação do primeiro caso da doença no país, em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil precisou lidar não só com um vírus com capacidade de transmissão inédita, mas também com novos e velhos problemas sociais e políticos que agravaram a resposta à pandemia.

Esta trágica combinação alçou o Brasil ao segundo lugar de país com mais mortes por covid-19 no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 544.922 pessoas já morreram pela doença.

O tamanho da população de ambos países poderia explicar parcialmente a liderança em números absolutos. Entretanto, a posição do Brasil em termos relativos também é significativa: está no 23º lugar na taxa de total de mortes por um milhão de habitantes, segundo a plataforma Our World in Data.

E o número de novos óbitos diários por um milhão de habitantes do Brasil está crescendo desde novembro de 2020, enquanto para os Estados Unidos este número só diminui desde janeiro de 2021. O momento atual do Brasil é de "maior colapso sanitário e hospitalar da história", segundo relatório da Fiocruz.

Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, ignorar e subestimar a realidade são fatores que estão na raiz de todos os problemas que levaram o país ao colapso.

E essa negação encontrou ressonância nos gestores públicos de cidades, estados e governo federal, na comunidade médica e na própria população brasileira.

"O negacionismo é o eixo central que permitiu a sucessão de erros e a total ausência de preparação para um momento como este", analisa a enfermeira Ethel Maciel, doutora em epidemiologia e professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a médica Gulnar Azevedo e Silva avalia que particularmente a falta de protagonismo do governo federal foi uma posição "deliberada".

"Um ano já era suficiente para se ter aprendido alguma coisa para a gestão pública da pandemia, mas a descoordenação foi deliberada: não há uma preocupação do governo federal para resolver essa crise."

Relógio de rua com aviso sobre a covid-19 em São Paulo, capital do Estado com mais casos da doença desde o início da pandemia / CRÉDITO,SEBASTIÃO MOREIRA/EPA

Já o médico Marcio Sommer Bittencourt, do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), chama a atenção para a falta de medidas de prevenção contra o vírus no país.

"O pouco que fizemos, em grande extensão, foi minado pelas lideranças federais, que nem sequer estimularam as medidas mais básicas de proteção", diz.

Confira a seguir seis fatores que ajudam a explicar a escalada e o pior momento da pandemia de covid-19 no Brasil.

1. Trocas no comando do Ministério da Saúde

Desde que a pandemia começou, o Brasil teve quatro ministros da saúde diferentes: Luiz Henrique Mandetta (até 16 de abril de 2020), Nelson Teich (de 17 de abril a 15 de maio de 2020), o general Eduardo Pazuello (de 2 de junho de 2020 a 15 de março de 2021) e Marcelo Queiroga (o atual ocupante do cargo).

"Que país aguenta isso, quatro ministros em um ano durante uma pandemia?", critica a médica Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

"Essa troca de ministros é um atraso enorme, pois este é um momento em que todo mundo precisava estar trabalhando em plena capacidade. O ministro precisa conhecer todo mundo, os processos internos, mas tivemos pessoas erradas no lugar errado. Não precisa ser médico para ser um bom gestor, mas tem que conhecer o SUS (Sistema Único de Saúde), valorizar as experiências anteriores, ter competência", afirmou, mencionando particularmente o mandato de Pazuello, um militar da ativa.

O então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, quando foi confirmado primeiro caso de infecção por coronavírus no Brasil — em fevereiro do ano passado / CRÉDITO,REUTERS

Mandetta e Teich foram demitidos após divergências com Jair Bolsonaro — um dos principais motivos da discórdia era a defesa, pelo presidente, da adoção de drogas como hidroxicloroquina e azitromicina como "tratamento precoce" contra a covid-19.

Por um lado, Bolsonaro via (e continua vendo) esses remédios como uma possível solução para a pandemia, apesar das evidências científicas mostrarem justamente o contrário.

Por outro, os dois ministros, ambos com formação médica, resistiam ao chamado "kit-covid" e acabaram deixando o cargo após um intenso processo de desgaste.

Já o general Pazuello se manteve na liderança do ministério por nove meses e foi efetivado no cargo por conta de sua experiência em logística que, na avaliação do governo federal, seria importante num momento com recursos escassos e a chegada das primeiras doses das vacinas.

Mas, na prática, aconteceu o contrário: episódios como a falta de oxigênio na cidade de Manaus, no mês de janeiro de 2021, e a demora para a compra e a distribuição das vacinas acabaram arranhando a imagem do então ministro, que foi substituído em 15 de março pelo médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

No discurso oficial, porém, o manejo da pandemia feita por Pazuello é considerado bom. "[Marcelo Queiroga] tem tudo no meu entender para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento a tudo que o Pazuello fez até hoje. A parte de gestão foi muito bem feita por ele [Pazuello] e agora vamos partir para uma parte mais agressiva no tocante ao combate ao vírus", discursou Bolsonaro na frente do Palácio da Alvorada, em Brasília, na noite do dia 15 de março, ao anunciar a substituição ministerial.

Praia lotada no Rio de Janeiro em plena pandemia / CRÉDITO,REUTERS

Embora tenha feito inúmeras manifestações públicas em prol das vacinas, do uso de máscaras e do distanciamento social, Queiroga já deixou claro que pretende seguir a política estabelecida pelo governo federal.

Resta saber como ele lidará nas próximas semanas com questões polêmicas e sensíveis, decisivas para a demissão dos seus antecessores, como a prescrição precoce de remédios sem eficácia e a resistência do Planalto à adoção de medidas mais rígidas, como o lockdown.

2. Falta de uma política centralizada e de medidas 'pra valer'

Região central de Porto Alegre vazia em meio ao aumento de casos de covid neste início de 2021 / CRÉDITO,REUTERS/DIEGO VARA

A troca de ministros é apenas a ponta do iceberg de um problema sistêmico, que envolveu setores técnicos do Ministério da Saúde e culminou em exonerações e pedidos de demissão de muitos servidores de carreira.

Essas mudanças administrativas tiveram influência na criação de políticas públicas centralizadas pelo governo federal na pandemia — muitos desses funcionários tinham experiência com a condução de outras crises de saúde pública do passado.

Além disso, desde a decisão por endurecer ou flexibilizar medidas de isolamento à compra de vacinas, as respostas dos governos municipais, estaduais e federais à pandemia têm sido consideradas descoordenadas — avaliação não só de especialistas, mas também dos próprios governantes.

No início de março, secretários estaduais de saúde publicaram uma carta pedindo planos nacionais de comunicação e de recuperação econômica, além de um pacto nacional para uma reação integrada à pandemia.

"A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais que se intensificaram no período eleitoral, nos encontros e festividades de final de ano, do veraneio e do carnaval", afirmou carta assinada por Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

O fechamento do comércio e a restrição da circulação de pessoas pelas ruas, medidas conhecidas de forma genérica como lockdown, se mostraram eficazes em vários países que conseguiram controlar o número de casos e mortes por covid-19, como China, Taiwan, Coreia do Sul e Noruega.

Já o Brasil nunca teve um lockdown nacional de verdade. Muitas cidades até lançaram regras mais restritivas, como a proibição de circulação de pessoas em alguns horários do dia (geralmente na madrugada) e limitação do funcionamento do comércio e serviços.

Fila para retirada do auxílio emergencial em 2020 / CRÉDITO,REUTERS /

Mas essas políticas variaram muito de acordo com a cidade ou o Estado — e tem muito prefeito que decidiu desobedecer e ignorar as normas do governo estadual ou não estabelecer uma fiscalização mais rígida para coibir as aglomerações e festas clandestinas.

Medidas de lockdown precisam ainda vir juntas de uma série de outras políticas e estratégias, como auxílio financeiro e programas de testagem e rastreamento (que, aliás, serão tema de nosso próximo tópico).

Ou seja, ações cujo protagonismo natural seria do governo federal.

"O SUS é concebido com a integração das esferas federal, estadual e municipal. Mas em uma pandemia, em que o Brasil inteiro é afetado, quem tem que liderar o processo é o Ministério da Saúde. Os Estados e municípios precisam do governo federal, não só para maior financiamento, mas na compra de vacinas e medicamentos, em que o ministério teria condições de fazer melhores acordos com a indústria de outros países", aponta Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco.

O governo também nunca lançou campanhas massivas de comunicação que incentivassem as medidas de proteção contra a covid-19. Foram poucas as falas sobre uso de máscara, distanciamento social, necessidade de permanecer em casa sempre que possível, lavagem de mãos…

Sem máscara, Bolsonaro saudou manifestantes que pediram 'intervenção militar' em frente ao Quartel General do Exército, em 19 de abril de 2002 / CRÉDITO,AFP

Na contramão, Bolsonaro chegou até a lançar dúvidas sobre muitos dos cuidados validados cientificamente e que contam com o respaldo de entidades como a Organização Mundial da Saúde e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC).

Um dos alvos mais contumazes do discurso presidencial foram as máscaras:

"Começa a aparecer estudos aqui, não vou entrar em detalhes, sobre o uso de máscara, que, num primeiro momento aqui, uma universidade alemã fala que elas são prejudiciais a crianças e levam em conta vários itens aqui como irritabilidade, dor de cabeça, dificuldade de concentração, diminuição da percepção de felicidade, recusa em ir para a escola ou creche, desânimo, comprometimento da capacidade de aprendizado, vertigem, fadiga... Então, começam a aparecer aqui os efeitos colaterais das máscaras, tá ok?", afirmou o presidente, numa transmissão ao vivo em 25 de fevereiro de 2021.

O "estudo alemão" era apenas uma enquete preenchida por pais e responsáveis, não passou por revisão de cientistas independentes, suas observações são inconclusivas e não mudam em nada as recomendações atuais.

3. Ausência de programa de testagem e rastreamento de contatos

Desde abril de 2020, a OMS adotou três verbos para simbolizar as principais estratégias para conter a pandemia: isolar, testar e rastrear.

A covid-19 tem uma particularidade que complica demais o seu controle: uma parcela considerável de pacientes não apresenta sintomas da enfermidade, ou demora alguns dias para manifestar incômodos suspeitos.

Mesmo no período em que não há indício algum de doença, esses indivíduos são capazes de transmitir o vírus a outras pessoas, sem saber que também estão infectados. Isso, claro, complica demais o controle dos casos e facilita o espalhamento do agente infeccioso.

Uma das saídas mais eficazes para flagrar os pacientes com covid-19, mesmo aqueles que não deram qualquer pista, são os testes que detectam o coronavírus. O principal deles é o RT-PCR, que avalia a presença do material genético do agente infeccioso no organismo.

Mas o diagnóstico sozinho não é suficiente. Se o resultado do teste for positivo, é essencial fazer o isolamento do paciente e realizar o chamado rastreamento de contatos.

Em resumo, todos aqueles indivíduos que estiveram próximos de alguém doente deveriam ser avisados para tomarem os cuidados básicos e fazerem uma quarentena.

Assim, é possível quebrar as cadeias de transmissão e impedir que o vírus se espalhe ainda mais por toda a comunidade.

Essa foi a estratégia que permitiu aos países bem-sucedidos contra a covid-19, como Nova Zelândia, Taiwan e Coreia do Sul, normalizarem a situação com muito mais rapidez.

Cemitério no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, no inicio de maio / CRÉDITO,JARBAS OLIVEIRA/AFP

"Já a atuação do Brasil nesse aspecto foi nula. Não fizemos testagem para identificar e isolar os casos ou orientar quarentena para outras pessoas que tiveram contato próximo com alguém infectado", observa Bittencourt.

O médico destaca que, no atual contexto da pandemia no Brasil, lançar mão de um programa desses é praticamente impossível.

"Não dá para fazer busca ativa de contatos num momento em que temos 100 mil casos por dia. Seria necessário falar e orientar 500 ou 600 mil pessoas a cada 24 horas", calcula.

4. Insistência em tratamentos ineficazes

Em protesto, com policiais e manifestantes de máscara, pessoa levanta cartaz em formato de caixão e frase: 30 mil mortes, e daí?


Protesto em junho de 2002 relembra frase de Bolsonaro sobre pandemia: 'E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre' / CRÉDITO,EPA/ANTONIO LACERDA

No primeiro semestre de 2020, até fazia sentido ter dúvidas e esperanças sobre o efeito benéfico de remédios como hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida contra a covid-19.

Mas, com mais de um ano de pandemia, esse já é um assunto superado na maior parte do mundo.

Porém, no Brasil, o tema continua a render. Em uma transmissão ao vivo na última quinta-feira (18/03), Bolsonaro voltou a defender essa abordagem farmacológica:

"No meu prédio, as informações que tenho é que mais de 200 pessoas pegaram, fizeram algum tipo de tratamento inicial e deu certo. O tratamento inicial é bem-vindo, é uma esperança. Não vamos simplesmente remar contra, falar mal", declarou.

E não é só ele: alguns planos de saúde continuam a distribuir esses kits com remédios e vitaminas comprovadamente ineficazes.

Entidades internacionais e nacionais, como a OMS, o CDC e a Sociedade Brasileira de Infectologia já se posicionaram contra a prescrição dos remédios que são genericamente incluídos no "tratamento precoce" ou no "kit-covid".

Essas recomendações estão embasadas em estudos rigorosos, que avaliaram o poderio desses fármacos nas várias fases da infecção pelo coronavírus, e não encontraram resultado algum que justificasse a sua adoção.

"Esse é um tema cansativo. Não existe tratamento precoce contra a covid-19. Se existisse, todos os países do mundo estariam agora anunciando essa descoberta com a maior felicidade do mundo", supõe Maciel.

"O que temos são as estratégias precoces, que envolvem testar, isolar, monitorar os pacientes, ter um auxílio emergencial decente... Mas o Brasil não parece estar interessado em fazer essas coisas", completa.

5. Demora na negociação das vacinas

Vacina contra a covid-19 sendo preparada para aplicação no Rio de Janeiro / CRÉDITO,EPA/ANTONIO LACERDA

Em agosto e setembro de 2020, a farmacêutica Pfizer entrou em contato com o governo federal para negociar a venda de 70 milhões de doses de sua vacina, que naquele momento estava caminhando para a fase final dos estudos clínicos.

A empresa, porém, não recebeu nenhuma resposta.

O segundo semestre de 2020 também foi marcado por uma série de declarações polêmicas de Bolsonaro, que lançou dúvidas sobre a eficácia dos imunizantes e até "comemorou" a interrupção momentânea dos testes da CoronaVac, da Sinovac e do Instituto Butantan, em novembro, após a morte de um voluntário.

"Morte, invalidez, anomalia… Esta é uma vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser comprada. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", publicou em suas redes sociais.

Passados alguns dias daquele episódio, as pesquisas foram retomadas após os cientistas se certificarem de que o óbito nada tinha a ver com o imunizante: os testes prosseguiram normalmente e a CoronaVac foi aprovada em caráter emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2021.

No pronunciamento feito pelas cadeias de rádio e televisão na noite de ontem (24/03), Bolsonaro disse que 2021 seria o ano da vacinação no Brasil. Mas, até agora, a campanha está bem devagar, segundo os especialistas.

A Fiocruz estima que, se continuarmos no ritmo atual, demoraremos mais de dois anos e meio para aplicar uma dose em todos os brasileiros com mais de 18 anos.

E, por mais que o país tenha garantido recentemente mais de 500 milhões de doses de seis fornecedores diferentes, os cronogramas de entrega e distribuição estão sofrendo sucessivos atrasos, que comprometem qualquer planejamento nas esferas federal, estadual ou municipal.

"Nós temos um Programa Nacional de Imunizações do qual devemos nos orgulhar. Mas neste momento, infelizmente, estamos envergonhados com o que estão fazendo com ele", critica Maciel.

A especialista destaca que, até agora, não foi lançada nenhuma comunicação oficial sobre as vacinas contra a covid-19 em televisões, rádios, mídias sociais e outros meios.

"Pra mim é inacreditável que tenhamos chegado nesse nível. Todos os projetos de imunização de sucesso do passado foram precedidos de campanhas de informação", lamenta.

6. Pouco investimento em vigilância genômica

O surgimento de novas variantes do coronavírus não acontece em locais onde a pandemia está sob rédea curta.

O vírus sofre mutações onde circula com mais facilidade e sem controle algum, como foi o caso de Manaus.

A nova cepa detectada no início do ano na capital do Amazonas é mais contagiosa e pode até infectar de novo quem teve covid-19 anteriormente.

O Brasil não tem um programa amplo e bem estruturado de vigilância genômica, um tipo de serviço especializado em analisar os vírus em circulação para encontrar possíveis mutações preocupantes antes que elas se espalhem por vários lugares.

O Reino Unido realiza cerca de 10 mil sequenciamentos genéticos do coronavírus por semana — e pretende dobrar esse número em breve.

Já por aqui, não existe nenhuma estatística oficial sobre o assunto, mas especialistas estimam que o número de sequenciamentos semanais no país fique no máximo na casa das centenas.

Bittencourt avalia que, por mais importante que a vigilância genômica seja, ela não deve ser a prioridade no momento.

"Mesmo que descubramos novas variantes e elas sejam realmente mais preocupantes, as medidas de controle contra todas elas continuam as mesmas. Estamos num cenário em que precisamos implementar muita coisa antes disso", pensa.

O que fazer agora?


Um homem carrega um cilindro de oxigênio enquanto pessoas fazem fila para comprá-lo de vendedores particulares para tratar de parentes doentes em Manaus, 15 de janeiro de 2021 / CRÉDITO,REUTERS

Para o médico da USP, a situação gravíssima da pandemia deixa o Brasil numa espécie de "cobertor curto", em que não há recurso e tempo suficiente para lançar mão de tantas medidas que seriam essenciais.

"Na nossa atual circunstância, ainda vamos ver muita gente se infectar, ser internada e morrer pela doença antes de começarmos a ver alguma melhora. Isso se as medidas necessárias forem adotadas", explica.

De acordo com o especialista, a primeira coisa a se pensar é uma estratégia ampla de testagem, para que seja possível isolar os casos confirmados.

"Também precisamos usar as mídias digitais e físicas, de redes sociais a outdoor, para estimular as pessoas a fazerem isolamento e a usarem máscaras adequadamente, de preferência as mais seguras, como a N95 ou a PFF2", detalha.

Outros passos essenciais envolveriam cancelar eventos de médio e grande porte, em que há aglomerações de pessoas, controlar a entrada de estrangeiros pelos aeroportos e reduzir ao mínimo possível o transporte entre as cidades.

"Por fim, deveríamos controlar a mobilidade das pessoas, orientando para que elas se encontrem pouco e, se necessário, que essas reuniões não aconteçam em locais fechados, com proximidade física e sem o uso de máscaras", finaliza o especialista.

André Biernath e Mariana Alvim, da BBC News Brasil em São Paulo, 24.03.2021

'Nada apaga a consistência dos fatos e provas da Lava Jato', diz Deltan após decisão que declarou Moro parcial ao condenar Lula

Ex-coordenador da Lava Jato questiona entendimento de suspeição. Por 3 votos a 2, processo do triplex terá de reiniciar da estaca zero. Condenação do ex-presidente já tinha sido anulada por decisão do ministro Edson Fachin.

O procurador do Ministério Público Federal (MPF) Deltan Dallagnol, ex-coordenador da extinta força-tarefa da Operação Lava Jato no Paraná, comentou na noite desta terça-feira (23), em uma rede social, sobre decisão do STF que declarou Sérgio Moro como parcial ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá.

"Nada apaga a consistência dos fatos e provas dos numerosos casos da Lava Jato, sobre os quais caberá ao Judiciário a última palavra. A Lava Jato investigou crimes e aplicou a lei. Os 5 bi devolvidos por criminosos confessos aos cofres públicos não cresceram em árvores", disse ele.

A sentença que condenou Lula continua anulada por outra decisão, determinada pelo ministro Edson Fachin, que apontou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para analisar os processos do petista e tornou sem efeito as condenações pela Operação Lava Jato de Curitiba.

Com a decisão desta terça-feira, a Segunda Turma anulou todo o processo do triplex, que precisará ser retomado da estaca zero pelos investigadores.

Deltan Dallagnol — Foto: André Dusek/Estadão Conteúdo

Condução coercitiva

O procurador afirmou que o STF entendeu que algumas decisões, como a que determinou a condução coercitiva do ex-presidente, apontariam parcialidade, mas que, no entendimento dele "pode-se até discordar das decisões e dizer que foram duras, mas não se pode a partir delas alegar um tratamento diferenciado".

Segundo ele, "simplesmente se seguiu o mesmo padrão das demais decisões proferidas no curso da operação Lava Jato".

Dallagnol pontuou que, como um ministro colocou, para que se reconheça a imparcialidade, "não basta tratamento diferenciado, é preciso que tenha sido decisivo para o resultado do julgamento".

Entretanto, segundo o procurador, nenhuma das decisões invocadas como base para a suspeição o foi. "A condução coercitiva não foi relevante para a condenação; as interceptações sobre o ex-presidente não foram utilizadas no processo; e o levantamento do sigilo da delação de Palocci aconteceu em outro caso. Com o devido respeito ao STF, acertaram os ministros vencidos".

Para Dallagnol, este é um ponto que precisa ser esclarecido porque "define a abrangência da anulação e se afetará outros casos é a partir de que momento o ex-juiz passou a ser considerado suspeito".

O procurador disse que se a suspeição ocorreu ao final, próximo à condenação, "menos atos e decisões precisarão ser renovados".

Ele afirmou que se ocorreu no início da investigação, "muito mais coisa pode ser anulada, não só na ação penal envolvendo o triplex, mas outras".

Por fim, Deltan Dallagnol afirmou que continua acreditando no trabalho feito.

"A maior garantia da legalidade dos atos é sua fundamentação nos fatos, nas provas e na lei e sua revisão por 3 instâncias", completou.

Após Fachin anular condenações de Lula, Deltan Dallagnol fala em 'amplos retrocessos no combate à corrupção'

Sobre a decisão do STF

O Ministério Público Federal no Paraná e a 13ª Vara da Justiça Federal no estado informaram que não emitirão opinião sobre a decisão da Segunda Turma. A assessoria do ex-juiz Sérgio Moro não informou se ele se manifestará.

A defesa de Lula divulgou nota na qual afirmou que a condenação do ex-presidente por Sergio Moro causou danos "irreparáveis", entre os quais a prisão durante 580 dias.

"A decisão proferida hoje fortalece o Sistema de Justiça e a importância do devido processo legal. Esperamos que o julgamento realizado hoje pela Suprema Corte sirva de guia para que todo e qualquer cidadão tenha direito a um julgamento justo, imparcial e independente, tal como é assegurado pela Constituição da República e pelos Tratados Internacionais que o Brasil subscreveu e se obrigou a cumprir", afirmaram em nota os advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins.

A decisão resultou do julgamento pela turma de uma ação impetrada em 2018 pela defesa de Lula.

A maioria a favor da ação do ex-presidente foi formada com a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia. Em 2018, quando o julgamento se iniciou, ela tinha rejeitado a ação, mas agora seguiu o entendimento dos colegas Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, segundo avaliação da ministra, houve um julgamento irregular

A suspeição não é automática para outros processos de Lula — a defesa terá, por exemplo, que questionar os outros casos na Justiça. Moro não foi o autor da condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia, mas recebeu a denúncia e transformou o petista em réu nesse caso.

Para o relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, ministro Edson Fachin, a suspeição de Moro tem efeitos que vão além do caso de Lula e abre brecha para que advogados de condenados na Lava Jato questionem na Justiça a conduta do ex-juiz e apontem outras sentenças como ilegais.

Por Natalia Filippin e Ederson Hising, G1 PR — Curitiba, em 23.03.2021

Moro comenta decisão que o declarou suspeito em processos de Lula e diz ter 'tranquilidade' sobre 'acertos' de decisões

Por 3 votos a 2, a 2ª Turma do STF declarou na terça-feira (23) que ex-juiz foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula; com isso, processo do triplex precisará ser retomado da estaca zero.

Sergio Moro comentou decisão que o declarou suspeito em processos de Lula — Foto: REUTERS/Adriano Machado

O ex-juiz Sergio Moro disse nesta quarta-feira (24) estar "tranquilo" sobre os "acertos" das decisões judiciais que tomou na Operação Lava Jato.

Na terça-feira (23), por 3 votos a 2, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou em julgamento que o ex-juiz federal agiu com parcialidade ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá.

Com a decisão, a Segunda Turma anulou todo o processo do triplex, que precisará ser retomado da estaca zero pelos investigadores.

A sentença que condenou Lula continua anulada por outra decisão, do ministro Edson Fachin, que apontou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para analisar os processos do petista e tornou sem efeito as condenações pela Operação Lava Jato de Curitiba.

Na nota desta quarta-feira, Moro pontuou que todos os acusados nas ações que julgou pela Lava Jato foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da parte dele.

"Apesar da decisão da segunda turma do STF, tenho absoluta tranquilidade em relação aos acertos das minhas decisões, todas fundamentadas, nos processos judiciais, inclusive quanto aqueles que tinham como acusado o ex-Presidente", escreveu.

O julgamento que concluiu pela suspeição de Moro, pela Segunda Turma do STF, foi resultado de uma ação impetrada em 2018 pela defesa de Lula.

Decisão da Segunda Turma

A maioria a favor da ação do ex-presidente foi formada com a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia. Em 2018, quando o julgamento se iniciou, ela tinha rejeitado a ação, mas desta vez seguiu o entendimento dos colegas Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, segundo avaliação da ministra, houve um julgamento irregular.

A suspeição vale somente para o processo do triplex e não é automática para outros processos de Lula — a defesa terá, por exemplo, que questionar os outros casos na Justiça. Moro não foi o autor da condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia, mas recebeu a denúncia e transformou o petista em réu nesse caso.


    Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial — Foto: JN

Reconhecimento da Lava Jato

Sergio Moro destacou reconhecimento internacional à Operação Lava Jato no combate a crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Segundo ele, "o Brasil não pode retroceder e destruir o passado recente de combate à corrupção e à impunidade".

A seguir, a íntegra da nota de Moro:

"Sobre o julgamento da 2ª Turma do STF que, por três votos a dois, anulou a condenação do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro:

A Operação Lava Jato foi um marco no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no Brasil e, de certo modo, em outros países, especialmente da América Latina, colocando fim à generalizada impunidade destes crimes. Mais de quatro bilhões de reais pagos em subornos foram recuperados aos cofres públicos e quase duas centenas de pessoas foram condenadas por corrupção e lavagem de dinheiro.

Todos os acusados foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da minha parte, como juiz do caso.

Apesar da decisão da segunda turma do STF, tenho absoluta tranquilidade em relação aos acertos das minhas decisões, todas fundamentadas, nos processos judiciais, inclusive quanto aqueles que tinham como acusado o ex-Presidente.

A sentença condenatória contra o ex-Presidente foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça que, igualmente, rejeitaram as alegações de falta de imparcialidade. O ex-Presidente só teve a prisão ordenada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em 2018, após ter habeas corpus denegado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

O Brasil não pode retroceder e destruir o passado recente de combate à corrupção e à impunidade e pelo qual foi elogiado internacionalmente.

A preocupação deve ser com o presente e com o futuro para aprimorar os mecanismos de prevenção e combate à corrupção e com isto construir um país melhor e mais justo para todos.

Curitiba, 24 de março de 2021.

Sergio Fernando Moro"

Por G1 PR — Curitiba, em 24.03.2021

"Mundo precisa ajudar o Brasil", apela líder de governadores

Coordenador do Fórum Nacional de Governadores, Wellington Dias pede mais apoio internacional à vacinação no Brasil diante da situação "dramática" do país na pandemia. Ele espera mudanças sob novo ministro da Saúde.

Wellington Dias, governador do Piauí: "Nossa situação é realmente dramática. Nos sentimos muito impotentes"

Coordenador do Fórum Nacional de Governadores, Wellington Dias (PT), governador do Piauí, tem passado os últimos meses em sucessivas reuniões com a classe política brasileira, empresários, religiosos, centrais sindicais e representantes de organismos internacionais e laboratórios para tentar não apenas aumentar o ritmo de vacinação no país, mas também buscar uma coordenação nacional para o combate ao coronavírus e ao colapso do sistema de saúde do país.

A atitude desesperada dos governadores, diante da inação do presidente Jair Bolsonaro, levou 23 gestores de estados brasileiros a subscreverem e enviarem, na semana passada, cartas com apelos dramáticos ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e ao presidente da China, Xi Jinping.

Dias vem participando de reuniões e buscando pontes com laboratórios, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Organização das Nações Unidas (ONU). "O mundo precisa ajudar o Brasil", disse o governador àDW Brasil.

O Consórcio Nordeste, que reúne os noves dos nove estados da região, também presidido por Dias, anunciou na semana passada ter fechado contrato para adquirir 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik V.

Diplomático e não afeito ao confronto, Dias admite surpresa com atitudes de Bolsonaro, que na última semana acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) contra medidas restritivas de circulação tomadas pelos governadores da Bahia, do Distrito Federal, e Rio Grande do Sul. Nesta terça-feira (23/03),o ministro do STF Marco Aurélio Mello rejeitou os pedidos de Bolsonaro para suspender os decretos dos governadores.

Ainda assim, Dias diz manter alguma esperança sobre a reunião que ocorrerá nesta quarta-feira com chefes dos Poderes, representante de Estados e municípios e o presidente Bolsonaro. "Eu espero, pelo amor ou pela dor, que haja alguma mudança", afirma na entrevista a seguir:

DW Brasil: Há forte pressão sobre os governadores no Brasil devido ao confronto direto e sistemático alimentado pelo presidente da República. O sr. tem feito vários esforços diários, o Consórcio Nordeste conseguiu fechar a compra de milhões de doses de vacina. Há novas perspectivas? Os governadores parecem estar à beira do desespero.

Wellington Dias: Compramos 37 milhões da Sputnik. O Brasil tem hoje uma situação em que é o epicentro da pandemia no mundo. É visto por outros países e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS) como um propagador de variantes, de vírus com mutação. Estamos tratando com vários países, especialmente os produtores de vacinas ou de IFA [Insumo Farmacêutico Ativo]. O mundo precisa ajudar o Brasil, assim como precisa ajudar outros países em que há situação de risco para a sua população.

Em 20 de outubro, havia um Plano Nacional de Imunização. Só em 17 de fevereiro conseguimos outro passo importante, que foi o cronograma de entrega de vacinas. Queríamos que o cronograma estivesse calçado em contratos com os fornecedores, no caso de IFA, da AstraZeneca para a Fiocruz, e da China, da Sinovac, para o Butantan. Agora no começo de março passamos a ter o cronograma da OMS para o primeiro lote da AstraZeneca da Coreia. Que bom que temos contratos com a Pfizer, com a Jansen, e outras, mas há a necessidade de entregas mais emergenciais.

Por conta da decisão dos Estados Unidos, de focar até maio toda a vacina para o povo americano, foi adotada a medida de não exportação de vacina. Encaminhei um documento pelo Fórum de Governadores do Brasil ao Joe Biden, foi aberto um diálogo do presidente do Congresso Brasileiro [o senador Rodrigo Pacheco, do DEM] com a vice-presidente Kamala Harris para que vacinas que não estão sendo usadas nos EUA, como a da AstraZeneca, possam ser compradas e vendidas ao Brasil. O contato está sendo acompanhado pela Embaixada dos EUA. Nesta semana podemos ter alguma definição sobre uma quantidade de vacinas não só para o Brasil, mas para outros países de elevado risco e baixa vacinação.

Essa decisão se refere ao governo dos Estados Unidos?

Sim, do governo dos Estados Unidos. Enviamos o documento ao Joe Biden. Mandamos também para o Reino Unido, para a Índia, para a OMS, para a Opas na semana passada. Temos que garantir o cumprimento de contratos. Esse caso da AstraZeneca, por exemplo: pelo contrato com a Fiocruz, firmado ainda no ano passado, o Brasil compraria 100 milhões de IFA, e a primeira entrega de 15 milhões seria em janeiro deste ano. A entrega já foi a partir de fevereiro. Passamos a pedir o cumprimento do contrato, aí veio a proposta de ser entregue pela Serum [Institute of India], na parceria da AstraZeneca com a Índia. Eles chegaram a entregar 2 milhões de doses, a primeira [entrega] para a Fiocruz, depois mais 2 milhões em 28 de fevereiro. Logo em seguida o governo da Índia proibiu exportação. Em março, teríamos mais 4 milhões, em abril mais 4 milhões e 5 milhões em maio.

Estamos pedindo à Universidade de Oxford, AstraZeneca e ao Reino Unido: se o contrato é com a AstraZeneca, é verdade que fomos avisados e a Fiocruz, pela Índia. Só que existe um contrato, a situação do Brasil é grave, então pedimos que o Reino Unido e em outros lugares em que há produção de AstraZeneca possam fazer um esforço para o cumprimento do contrato.

Cito outro exemplo de problema real: houve uma reunião da GAVI [a aliança mundial pela vacina], o comitê de países que compõem o consórcio Covax Facility, com a OMS. A previsão acertada era que o Brasil receberia um lote no último domingo, de 1 milhão de doses, e outro em 26 de março para completar aproximadamente 2 milhões. A Opas informou que somente em abril vão entregar esse outro lote. De novo: é a OMS que reconhece a situação grave do Brasil, mais que o dobro da média de óbitos do mundo. Temos aqui um esforço de estados, municípios e com dificuldades de coordenação do poder central para medidas preventivas e restrições. Mas queremos também ter a vacina na estratégia não só para salvar vidas, mas para controlar a pandemia no Brasil.

O sr. acabou de mencionar algo óbvio e reconhecido mundialmente:  não temos coordenação mundial e temos um presidente que boicota diariamente as ações dos governadores. Para além dessas dificuldades políticas locais, o sr. enxerga alguma restrição mundial ao Brasil, exatamente pelo fato de o país ter essa condução nacional negacionista, sem medidas preventivas?

Não sei se tem. Se tiver, punir o Brasil é levar à piora da situação. Não acredito que haja essa insensibilidade mundial. O fato é que não adianta só ficar registrando o problema. Precisam nos ajudar na solução. E a ideia é que a OMS cumpra o contrato para esta semana, até o dia 26, que a gente tenha o lote de abril e o lote de maio, cumprindo o previsto para o Brasil, no cronograma de entrega. Outra relevante: conseguimos, e o Ministério da Saúde autorizou, que pudéssemos usar as vacinas desta entrega para a primeira dose. O Brasil vinha fazendo reserva para os 28 dias (a segunda dose). Ora, se já estamos com boa regularidade na entrega do Butantan, com entregas a várias semanas, e há um cronograma semanal, então não faz sentido ter estoque elevado, podendo ampliar agora a vacinação, que salva vidas. Então cerca de 4 milhões de entregas desta semana, vamos trabalhar com estoque, em vez de quatro semanas, de 3 semanas, e com isso ampliar a vacinação. Pactuamos com municípios e estados para que acelerem a vacinação.

A meta é alcançar mais 2% da população vacinada em uma semana, para a gente sair de 6% da população vacinada para 8,5% ao final desta semana e chegar a 31 de março com 10% da população vacinada, aproximadamente 21,5 milhões de brasileiros, para a gente cumprir a meta da estratégia nacional que é até abril alcançar toda a fase 1, esse grupo acima de 60 anos, com comorbidades, indígenas, etc. Como esse grupo corresponde a mais de 70% dos óbitos, essa estratégia vai permitir que a gente possa sair do colapso e reduzir o número de mortes.

Mas para alcançar esses 10% da população vacinada precisa haver a entrega da OMS em 26 de março e haver uma mudança de política para não ficar fazendo tanto estoque para a segunda dose. É isso?

Veja, a desta semana está resolvida. Só que não podemos ficar com estoque baixo. Vamos precisar deste cronograma para a semana seguinte. Aí precisamos da entrega do dia 26 e da semana seguinte.

O sr. tem feito uma série de articulações internacionais, com EUA, Reino Unido, e internamente, com governadores, prefeitos, Congresso, empresários. O sr. está vendo alguma mudança de comportamento do governo federal, algo reverbera positivamente, ou nada muda?

Hoje [na segunda-feira, 22] eu fiz uma reunião com as centrais sindicais, que fizeram nota pública em apoio às medidas restritivas preventivas e em favor de mais vacinas. E também estamos conversando para que possam encaminhar isso a outros países. A mesma coisa com a Frente Nacional de Prefeitos. Participei também de reunião, e estão organizando um consórcio para compra de vacinas. O que orientamos é para que tenha acompanhamento de embaixadas dos países e que a gente mantenha a regra de toda vacina ser para o Plano Nacional de Imunização. Houve também a carta da CNBB, da OAB. Dialogamos com eles. É importante acionar internamente e dialogar com o Congresso, o Poder Executivo, para acompanhamento do cronograma do Plano Nacional de Imunização. Temos um plano e temos que fazer com que seja cumprido. Um outro ponto que conversamos, com as igrejas, a OAB, a ABI: é importante que a gente volte com essa onda de solidariedade. Tem muita gente que não está usando máscara e não é por desobediência. É porque elas não têm dinheiro para comprar máscaras. Há muitas pessoas passando fome. Então há a necessidade de não esperarmos só por governos, é importante haver essa solidariedade nacional. Organizamos, nesta pactuação, uma reunião com os presidentes da Câmara, do Senado, e do Judiciário. Foi criado o que denominamos de "Pacto pela Vida”. A ideia foi criar um grupo de trabalho com os Três Poderes, Estados e municípios. Pedimos a organização de uma agenda para reunião com o chefe do Executivo, Jair Bolsonaro, cuja previsão é nesta quarta-feira. Sugerimos também alguém representando empresários, trabalhadores, Estados e municípios. Pelos Estados será um governador de cada região. Pelo Nordeste, será o governador de Alagoas, o Renan Filho. O que a gente mais precisa é de uma coordenação nacional para seguirmos todos na mesma direção.

O sr. tem a expectativa de que Jair Bolsonaro participará da reunião na quarta-feira [24/03], com os representantes dos Três Poderes e governadores?

Eu acho importantíssimo ele participar. Se pegarmos os 50 países de economias fortes, democracias, é o presidente que está na linha de frente das ações. Dentro do Pacto pela Vida queremos ampliar o máximo de setores, a ciência, os comitês científicos, a Sociedade Brasileira para a Ciência, conselhos da área de saúde, de medicina, academia. E os trabalhadores, empresários unidos por vacinas. Esse caminho numa mesma direção está permitindo o número de pessoas que querem se vacinar, que apoiam medidas restritivas. Ou seja, a proposta é de colocar o Brasil, ou pelo amor, ou pela dor, numa decisão de que quem é a favor da vida. Com o contrário disso, o vencedor é o coronavírus e a morte. Todo brasileiro vai ter que escolher o seu lado. Não tem separação entre as consequências para a saúde e para a economia. Ou resolve a vacinação, que é o que nos dará a solução, ou paramos o coronavírus para reduzir a transmissibilidade, internações e óbitos, ou será ruim para todo mundo.

O sr. citou que todos os mandatários no mundo inteiro precisam se envolver no combate ao vírus. No caso do Brasil, Bolsonaro não só não se envolveu nisso no último ano, como adotou posturas negacionistas, além de apostar no confronto aberto com os governadores. Foi ao STF contra três governadores que adotaram medidas restritivas. Como ter expectativa que esse presidente possa dialogar?

Ver o presidente, pelo menos por alguns momentos, utilizando máscara, acho que já é um passo. A esperança é a última que morre. Como eu disse, ou pelo amor, ou pela dor, o Brasil precisa dessa coordenação centralizada. Veja o exemplo dos Estados Unidos. Em 2020, tínhamos o presidente Donald Trump e ele trabalhava negando o coronavírus e as medidas que a ciência pregava. Meio milhão de óbitos. Perdeu a eleição. Assume Joe Biden, que segue a ciência, recomenda e usa máscara, recomenda distanciamento, trata de medidas que diminuem a circulação de pessoas. Ele reuniu todos os laboratórios de vacinas para os americanos, deu todas as condições de contrato e para acelerar a produção de vacinas e vacinação. Resultado: está trabalhando para concluir a vacinação em maio. Agora tem a média diária de 1.200 óbitos. Acredito que esse exemplo dos EUA mostra o efeito que tem quando o chefe de Estado assume a direção. Precisamos do presidente da República ligar para o presidente da China, da Rússia, o apoio aos laboratórios brasileiros, Fiocruz e Butantan, União Química, que ele ligue para a OMS, o Reino Unido.

Governador, os EUA resolveram esse problema com uma eleição e mudança de presidente. O Brasil só terá eleição em 2022. A não ser que ocorra um impeachment. Ninguém da comunidade internacional tem mais expectativa positiva com Bolsonaro. Como esperar alguma coalizão nacional? Seria via Congresso Nacional?

Temos dois caminhos. O caminho que estamos, sem a coordenação nacional e central do governo federal. O Brasil que tem 2,7% da população mundial alcançando 11% dos óbitos no mundo. E tem o caminho diferente, que é o presidente coordenando. Agora, a gente está dando passos. Ou seja, não são mais só os governadores. Os municípios estão mais integrados. Temos decretos de medidas preventivas em 27 Estados, há 21 dias, para prevenir a transmissibilidade. Mas o efeito sem o Poder Executivo é menor. Tem uma hora, nem que seja alguma coisa na alma, no coração, que vai ter que tocar. Apesar de tudo o que aconteceu, situações impensáveis, como essa de uma ação (do governo federal) contra os estados que adotaram medidas restritivas, no STF, eu espero, pelo amor ou pela dor, que haja alguma mudança. Tem um ministro novo.

Ministro que não havia tomado posse até essa segunda-feira. Ele participará da reunião na quarta?

Eu tenho esperanças. O ministro [Marcelo Queiroga, que só tomou posse na tarde de terça-feira] é um médico, formado segundo a ciência, aplicada à pandemia. Eu quero acreditar que alguém que dedica tantos anos à sua profissão, salvando vidas, pela ciência, possa ter o apoio do presidente e ajudar a salvar vidas no momento em que o Brasil mais precisa na sua história.

O sr. tem alguma nova articulação politica, alguma nova reunião nesta semana para debater a pandemia no Brasil?

Temos uma reunião para acompanhar essa crise de desabastecimento de medicamentos no Brasil, que é muito, muito grave. Falta oxigênio e medicamentos para intubação. Eu vi nesta semana o quanto foi dolorosa a situação no Rio Grande do Norte, Rondônia, Acre. É gravíssimo. Estou vivendo aqui no Piauí, temos pacientes internados em várias regiões do Estado. Os hospitais têm a armazenagem maior e até produção de oxigênio. O problema é que, com o colapso, as pessoas que estão na chamada fila de atendimento, elas não estão sem atendimento. Estão num hospital que não é UTI, ou é leito de estabilização, ou leito clínico, aguardando vaga de UTI. Essa imagem que precisa estar na mente das pessoas. Pessoas que chegam à rede de saúde não terão vagas em UTI. Tentem imaginar, neste momento, o desespero das famílias em centenas e milhares de hospitais, públicos e privados, e dos profissionais da saúde. Quando eu falo no amor e na dor, estou me lembrando dessas pessoas.

Converso com a Opas, e com a OMS, que demonstrou sensibilidade em ajudar o Brasil também neste campo. A ONU também quer falar conosco. O Brasil sempre foi um país solidário. Essa é a hora em que o Brasil está precisando. Quero levar essa palavra à ONU. Nossa situação é realmente dramática. Nos sentimos muito impotentes.

Deutsche Welle / Brasil, em 24.03.2021

Combinação auspiciosa

Maioria já não se seduz com os discursos de Lula e de Bolsonaro sobre corrupção

A mais recente pesquisa do Datafolha, publicada no dia 22 passado, revelou que a maioria dos brasileiros está escolada e já não se deixa seduzir nem pela narrativa do ex-presidente Lula da Silva nem pela do presidente Jair Bolsonaro no que diz respeito à corrupção. É alvissareiro que os discursos falaciosos de um e de outro sobre tema tão presente no debate nacional, tido por muitos como uma das maiores mazelas do País, sejam recebidos com a devida desconfiança pela maior parte dos eleitores.

Como a pesquisa mostrou, Lula da Silva pode muito bem voltar aos palanques travestido de inocente, distorcer os fatos e mentir como poucos diante de um microfone, mas a maioria dos brasileiros já não cai na sua lábia. Logo após o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), ter anulado as condenações do chefão petista na 13.ª Vara Federal de Curitiba por considerar aquele foro incompetente para julgá-lo – o que o tornou elegível –, Lula fez do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC um palco para alardear a versão de que fora “absolvido” pelo STF dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, o que é uma mentira. A anulação das sentenças de primeiro grau pelo ministro Fachin se deveu a uma questão de ordem estritamente processual, sem tratar da culpabilidade do ex-presidente.

Isto parece ter ficado claro mesmo para os que não são versados nas tecnicalidades do Direito Processual Penal. Para 57% dos entrevistados pelo Datafolha, as condenações de Lula nos casos do triplex do Guarujá e do sítio em Atibaia, entre outros, foram justas. Vale dizer, o chefão petista pode ter voltado a ser ficha limpa do ponto de vista estritamente eleitoral, mas, aos olhos da maioria dos brasileiros, Lula é considerado culpado pelos crimes de que fora acusado no âmbito da Operação Lava Jato. Para 38% dos entrevistados pelo Datafolha, as condenações do ex-presidente foram injustas; e 5% não souberam ou não quiseram responder.

O Datafolha também revelou um aumento significativo do porcentual de brasileiros que acreditam que os casos de corrupção vão aumentar no Brasil durante o governo Bolsonaro. Em abril de 2019, quatro meses após a posse do presidente, 40% dos entrevistados pelo instituto de pesquisa esperavam que a corrupção fosse aumentar no País sob o novo governo, ante os 35% que acreditavam que os casos iriam diminuir com Jair Bolsonaro na Presidência da República.

Quase dois anos depois, com o escândalo das “rachadinhas”, uma mansão de R$ 6 milhões, uma suspeita de tráfico de influência e uma genuflexão diante do altar do Centrão, subiu para 67% o porcentual dos que acreditam que a corrupção vai aumentar no Brasil, um salto de quase 30%. É muita coisa.

Ainda mais impressionante é a queda de 35% para 8% no número de brasileiros que acreditam que a corrupção vai diminuir no País enquanto Jair Bolsonaro estiver instalado no Palácio do Planalto. Como se vê, em apenas dois anos, a fantasia de caçador de corruptos vestida por Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 já está bastante puída.

Por um lado, é muito positivo que a maioria dos eleitores se mostre refratária a discursos falaciosos na seara da corrupção, como os sustentados por Lula e por Bolsonaro. Por outro, é preocupante a percepção de aumento generalizado dos casos de corrupção no País, na medida em que abre perigoso espaço para a desqualificação da política como meio mais apropriado à concertação dos múltiplos interesses da sociedade. O Brasil paga até hoje a pesadíssima conta dos ataques indiscriminados à chamada “classe política” perpetrados, entre outros, por alguns membros do Ministério Público que se arvoraram em grandes purgadores da alma nacional. Deu no que deu.

O amadurecimento da percepção dos cidadãos sobre a corrupção deve ser acompanhado pelo republicanismo das instituições de controle, que, ao combater a corrupção, devem agir em total acordo com as leis e a Constituição. O País avançará muito com esta combinação auspiciosa.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 24 de março de 2021

Joaquim Falcão: Supremo se esconde diante dos fatos visíveis pelo Brasil

Ministros Lewandowski, Cármen Lúcia e Mendes não responderam o que o País quer saber. Hackear pode produzir prova? Lícita ou ilícita?

O ministro Edson Fachin virou a mesa. Não da Segunda Turma do Supremo. Ali, perdeu. Mas a mesa das manipulações ocultas, das estratégias processuais em que, sob o manto da legalidade, abandona-se o combate a corrupção. O Supremo não julga se houve ou não corrupção. O Supremo se adia e se esconde diante dos fatos visíveis pelo Brasil. Não mergulha. Fica na borda. 

Os ministros Lewandowski, Cármen Lúcia e Mendes não responderam o que o Brasil quer saber. Hackear pode produzir prova? Lícita ou ilícita? Na sessão, repetiam que não se baseavam nas gravações. Inexistiam, mesmo presentes. Lewandowski disse que as gravações “são apenas para reforço de argumentação”. Cármen Lúcia disse: “Repito, não estou me baseando nas interceptações”. Mendes, com desprezo retórico: “Nada de conversa fiada de hackers”. Supremo hesita porque, se declarar prova lícita, incentivará hackers em todos os lugares. Enquanto isso...

O Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Foto: Dida Sampaio/Estadão

O ministro Fachin encarou de frente. As gravações hackeadas precisam ser investigadas. O Tribunal Regional da 4.ª Região deve iniciar um processo. Elas denunciam não pessoas ou grupo. Mas um sistema de justiça que pode estar longe da ética e das normas que o Estado democrático de direito exige. 

O ministro Kassio Marques também enfrentou. Declarou que provas hackeadas são ilícitas. Fez com gentileza, serenidade e respeito devido por qualquer ministro a qualquer ministro. E defendeu seu estado, Piauí. Vítima de grosseira agressão. Momento em que lembrei de João Cabral de Mello Neto, poeta pernambucano: “A boa eloquência é a de falar forte, mas sem febre.”

Joaquim Falcão, Professor de Direito Constitucional, é membro da Academia Brasileira de Letras e Conselheiro da Transparência Internacional. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.03.2021