quarta-feira, 24 de março de 2021

4 ministros, aversão ao isolamento, falta de vacina: a escalada que levou o Brasil às 300 mil mortes por covid-19

O Brasil alcançou nesta quarta-feira (23/3) a marca de 300 mil mortes por covid-19, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Protesto em Brasília contra a condução da resposta à pandemia pelo Planalto / CRÉDITO,REUTERS/UESLEI MARCELINO

Em pouco mais de um ano desde a confirmação do primeiro caso da doença no país, em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil precisou lidar não só com um vírus com capacidade de transmissão inédita, mas também com novos e velhos problemas sociais e políticos que agravaram a resposta à pandemia.

Esta trágica combinação alçou o Brasil ao segundo lugar de país com mais mortes por covid-19 no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 544.922 pessoas já morreram pela doença.

O tamanho da população de ambos países poderia explicar parcialmente a liderança em números absolutos. Entretanto, a posição do Brasil em termos relativos também é significativa: está no 23º lugar na taxa de total de mortes por um milhão de habitantes, segundo a plataforma Our World in Data.

E o número de novos óbitos diários por um milhão de habitantes do Brasil está crescendo desde novembro de 2020, enquanto para os Estados Unidos este número só diminui desde janeiro de 2021. O momento atual do Brasil é de "maior colapso sanitário e hospitalar da história", segundo relatório da Fiocruz.

Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, ignorar e subestimar a realidade são fatores que estão na raiz de todos os problemas que levaram o país ao colapso.

E essa negação encontrou ressonância nos gestores públicos de cidades, estados e governo federal, na comunidade médica e na própria população brasileira.

"O negacionismo é o eixo central que permitiu a sucessão de erros e a total ausência de preparação para um momento como este", analisa a enfermeira Ethel Maciel, doutora em epidemiologia e professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a médica Gulnar Azevedo e Silva avalia que particularmente a falta de protagonismo do governo federal foi uma posição "deliberada".

"Um ano já era suficiente para se ter aprendido alguma coisa para a gestão pública da pandemia, mas a descoordenação foi deliberada: não há uma preocupação do governo federal para resolver essa crise."

Relógio de rua com aviso sobre a covid-19 em São Paulo, capital do Estado com mais casos da doença desde o início da pandemia / CRÉDITO,SEBASTIÃO MOREIRA/EPA

Já o médico Marcio Sommer Bittencourt, do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), chama a atenção para a falta de medidas de prevenção contra o vírus no país.

"O pouco que fizemos, em grande extensão, foi minado pelas lideranças federais, que nem sequer estimularam as medidas mais básicas de proteção", diz.

Confira a seguir seis fatores que ajudam a explicar a escalada e o pior momento da pandemia de covid-19 no Brasil.

1. Trocas no comando do Ministério da Saúde

Desde que a pandemia começou, o Brasil teve quatro ministros da saúde diferentes: Luiz Henrique Mandetta (até 16 de abril de 2020), Nelson Teich (de 17 de abril a 15 de maio de 2020), o general Eduardo Pazuello (de 2 de junho de 2020 a 15 de março de 2021) e Marcelo Queiroga (o atual ocupante do cargo).

"Que país aguenta isso, quatro ministros em um ano durante uma pandemia?", critica a médica Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

"Essa troca de ministros é um atraso enorme, pois este é um momento em que todo mundo precisava estar trabalhando em plena capacidade. O ministro precisa conhecer todo mundo, os processos internos, mas tivemos pessoas erradas no lugar errado. Não precisa ser médico para ser um bom gestor, mas tem que conhecer o SUS (Sistema Único de Saúde), valorizar as experiências anteriores, ter competência", afirmou, mencionando particularmente o mandato de Pazuello, um militar da ativa.

O então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, quando foi confirmado primeiro caso de infecção por coronavírus no Brasil — em fevereiro do ano passado / CRÉDITO,REUTERS

Mandetta e Teich foram demitidos após divergências com Jair Bolsonaro — um dos principais motivos da discórdia era a defesa, pelo presidente, da adoção de drogas como hidroxicloroquina e azitromicina como "tratamento precoce" contra a covid-19.

Por um lado, Bolsonaro via (e continua vendo) esses remédios como uma possível solução para a pandemia, apesar das evidências científicas mostrarem justamente o contrário.

Por outro, os dois ministros, ambos com formação médica, resistiam ao chamado "kit-covid" e acabaram deixando o cargo após um intenso processo de desgaste.

Já o general Pazuello se manteve na liderança do ministério por nove meses e foi efetivado no cargo por conta de sua experiência em logística que, na avaliação do governo federal, seria importante num momento com recursos escassos e a chegada das primeiras doses das vacinas.

Mas, na prática, aconteceu o contrário: episódios como a falta de oxigênio na cidade de Manaus, no mês de janeiro de 2021, e a demora para a compra e a distribuição das vacinas acabaram arranhando a imagem do então ministro, que foi substituído em 15 de março pelo médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

No discurso oficial, porém, o manejo da pandemia feita por Pazuello é considerado bom. "[Marcelo Queiroga] tem tudo no meu entender para fazer um bom trabalho, dando prosseguimento a tudo que o Pazuello fez até hoje. A parte de gestão foi muito bem feita por ele [Pazuello] e agora vamos partir para uma parte mais agressiva no tocante ao combate ao vírus", discursou Bolsonaro na frente do Palácio da Alvorada, em Brasília, na noite do dia 15 de março, ao anunciar a substituição ministerial.

Praia lotada no Rio de Janeiro em plena pandemia / CRÉDITO,REUTERS

Embora tenha feito inúmeras manifestações públicas em prol das vacinas, do uso de máscaras e do distanciamento social, Queiroga já deixou claro que pretende seguir a política estabelecida pelo governo federal.

Resta saber como ele lidará nas próximas semanas com questões polêmicas e sensíveis, decisivas para a demissão dos seus antecessores, como a prescrição precoce de remédios sem eficácia e a resistência do Planalto à adoção de medidas mais rígidas, como o lockdown.

2. Falta de uma política centralizada e de medidas 'pra valer'

Região central de Porto Alegre vazia em meio ao aumento de casos de covid neste início de 2021 / CRÉDITO,REUTERS/DIEGO VARA

A troca de ministros é apenas a ponta do iceberg de um problema sistêmico, que envolveu setores técnicos do Ministério da Saúde e culminou em exonerações e pedidos de demissão de muitos servidores de carreira.

Essas mudanças administrativas tiveram influência na criação de políticas públicas centralizadas pelo governo federal na pandemia — muitos desses funcionários tinham experiência com a condução de outras crises de saúde pública do passado.

Além disso, desde a decisão por endurecer ou flexibilizar medidas de isolamento à compra de vacinas, as respostas dos governos municipais, estaduais e federais à pandemia têm sido consideradas descoordenadas — avaliação não só de especialistas, mas também dos próprios governantes.

No início de março, secretários estaduais de saúde publicaram uma carta pedindo planos nacionais de comunicação e de recuperação econômica, além de um pacto nacional para uma reação integrada à pandemia.

"A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais que se intensificaram no período eleitoral, nos encontros e festividades de final de ano, do veraneio e do carnaval", afirmou carta assinada por Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

O fechamento do comércio e a restrição da circulação de pessoas pelas ruas, medidas conhecidas de forma genérica como lockdown, se mostraram eficazes em vários países que conseguiram controlar o número de casos e mortes por covid-19, como China, Taiwan, Coreia do Sul e Noruega.

Já o Brasil nunca teve um lockdown nacional de verdade. Muitas cidades até lançaram regras mais restritivas, como a proibição de circulação de pessoas em alguns horários do dia (geralmente na madrugada) e limitação do funcionamento do comércio e serviços.

Fila para retirada do auxílio emergencial em 2020 / CRÉDITO,REUTERS /

Mas essas políticas variaram muito de acordo com a cidade ou o Estado — e tem muito prefeito que decidiu desobedecer e ignorar as normas do governo estadual ou não estabelecer uma fiscalização mais rígida para coibir as aglomerações e festas clandestinas.

Medidas de lockdown precisam ainda vir juntas de uma série de outras políticas e estratégias, como auxílio financeiro e programas de testagem e rastreamento (que, aliás, serão tema de nosso próximo tópico).

Ou seja, ações cujo protagonismo natural seria do governo federal.

"O SUS é concebido com a integração das esferas federal, estadual e municipal. Mas em uma pandemia, em que o Brasil inteiro é afetado, quem tem que liderar o processo é o Ministério da Saúde. Os Estados e municípios precisam do governo federal, não só para maior financiamento, mas na compra de vacinas e medicamentos, em que o ministério teria condições de fazer melhores acordos com a indústria de outros países", aponta Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco.

O governo também nunca lançou campanhas massivas de comunicação que incentivassem as medidas de proteção contra a covid-19. Foram poucas as falas sobre uso de máscara, distanciamento social, necessidade de permanecer em casa sempre que possível, lavagem de mãos…

Sem máscara, Bolsonaro saudou manifestantes que pediram 'intervenção militar' em frente ao Quartel General do Exército, em 19 de abril de 2002 / CRÉDITO,AFP

Na contramão, Bolsonaro chegou até a lançar dúvidas sobre muitos dos cuidados validados cientificamente e que contam com o respaldo de entidades como a Organização Mundial da Saúde e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC).

Um dos alvos mais contumazes do discurso presidencial foram as máscaras:

"Começa a aparecer estudos aqui, não vou entrar em detalhes, sobre o uso de máscara, que, num primeiro momento aqui, uma universidade alemã fala que elas são prejudiciais a crianças e levam em conta vários itens aqui como irritabilidade, dor de cabeça, dificuldade de concentração, diminuição da percepção de felicidade, recusa em ir para a escola ou creche, desânimo, comprometimento da capacidade de aprendizado, vertigem, fadiga... Então, começam a aparecer aqui os efeitos colaterais das máscaras, tá ok?", afirmou o presidente, numa transmissão ao vivo em 25 de fevereiro de 2021.

O "estudo alemão" era apenas uma enquete preenchida por pais e responsáveis, não passou por revisão de cientistas independentes, suas observações são inconclusivas e não mudam em nada as recomendações atuais.

3. Ausência de programa de testagem e rastreamento de contatos

Desde abril de 2020, a OMS adotou três verbos para simbolizar as principais estratégias para conter a pandemia: isolar, testar e rastrear.

A covid-19 tem uma particularidade que complica demais o seu controle: uma parcela considerável de pacientes não apresenta sintomas da enfermidade, ou demora alguns dias para manifestar incômodos suspeitos.

Mesmo no período em que não há indício algum de doença, esses indivíduos são capazes de transmitir o vírus a outras pessoas, sem saber que também estão infectados. Isso, claro, complica demais o controle dos casos e facilita o espalhamento do agente infeccioso.

Uma das saídas mais eficazes para flagrar os pacientes com covid-19, mesmo aqueles que não deram qualquer pista, são os testes que detectam o coronavírus. O principal deles é o RT-PCR, que avalia a presença do material genético do agente infeccioso no organismo.

Mas o diagnóstico sozinho não é suficiente. Se o resultado do teste for positivo, é essencial fazer o isolamento do paciente e realizar o chamado rastreamento de contatos.

Em resumo, todos aqueles indivíduos que estiveram próximos de alguém doente deveriam ser avisados para tomarem os cuidados básicos e fazerem uma quarentena.

Assim, é possível quebrar as cadeias de transmissão e impedir que o vírus se espalhe ainda mais por toda a comunidade.

Essa foi a estratégia que permitiu aos países bem-sucedidos contra a covid-19, como Nova Zelândia, Taiwan e Coreia do Sul, normalizarem a situação com muito mais rapidez.

Cemitério no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, no inicio de maio / CRÉDITO,JARBAS OLIVEIRA/AFP

"Já a atuação do Brasil nesse aspecto foi nula. Não fizemos testagem para identificar e isolar os casos ou orientar quarentena para outras pessoas que tiveram contato próximo com alguém infectado", observa Bittencourt.

O médico destaca que, no atual contexto da pandemia no Brasil, lançar mão de um programa desses é praticamente impossível.

"Não dá para fazer busca ativa de contatos num momento em que temos 100 mil casos por dia. Seria necessário falar e orientar 500 ou 600 mil pessoas a cada 24 horas", calcula.

4. Insistência em tratamentos ineficazes

Em protesto, com policiais e manifestantes de máscara, pessoa levanta cartaz em formato de caixão e frase: 30 mil mortes, e daí?


Protesto em junho de 2002 relembra frase de Bolsonaro sobre pandemia: 'E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre' / CRÉDITO,EPA/ANTONIO LACERDA

No primeiro semestre de 2020, até fazia sentido ter dúvidas e esperanças sobre o efeito benéfico de remédios como hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida contra a covid-19.

Mas, com mais de um ano de pandemia, esse já é um assunto superado na maior parte do mundo.

Porém, no Brasil, o tema continua a render. Em uma transmissão ao vivo na última quinta-feira (18/03), Bolsonaro voltou a defender essa abordagem farmacológica:

"No meu prédio, as informações que tenho é que mais de 200 pessoas pegaram, fizeram algum tipo de tratamento inicial e deu certo. O tratamento inicial é bem-vindo, é uma esperança. Não vamos simplesmente remar contra, falar mal", declarou.

E não é só ele: alguns planos de saúde continuam a distribuir esses kits com remédios e vitaminas comprovadamente ineficazes.

Entidades internacionais e nacionais, como a OMS, o CDC e a Sociedade Brasileira de Infectologia já se posicionaram contra a prescrição dos remédios que são genericamente incluídos no "tratamento precoce" ou no "kit-covid".

Essas recomendações estão embasadas em estudos rigorosos, que avaliaram o poderio desses fármacos nas várias fases da infecção pelo coronavírus, e não encontraram resultado algum que justificasse a sua adoção.

"Esse é um tema cansativo. Não existe tratamento precoce contra a covid-19. Se existisse, todos os países do mundo estariam agora anunciando essa descoberta com a maior felicidade do mundo", supõe Maciel.

"O que temos são as estratégias precoces, que envolvem testar, isolar, monitorar os pacientes, ter um auxílio emergencial decente... Mas o Brasil não parece estar interessado em fazer essas coisas", completa.

5. Demora na negociação das vacinas

Vacina contra a covid-19 sendo preparada para aplicação no Rio de Janeiro / CRÉDITO,EPA/ANTONIO LACERDA

Em agosto e setembro de 2020, a farmacêutica Pfizer entrou em contato com o governo federal para negociar a venda de 70 milhões de doses de sua vacina, que naquele momento estava caminhando para a fase final dos estudos clínicos.

A empresa, porém, não recebeu nenhuma resposta.

O segundo semestre de 2020 também foi marcado por uma série de declarações polêmicas de Bolsonaro, que lançou dúvidas sobre a eficácia dos imunizantes e até "comemorou" a interrupção momentânea dos testes da CoronaVac, da Sinovac e do Instituto Butantan, em novembro, após a morte de um voluntário.

"Morte, invalidez, anomalia… Esta é uma vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser comprada. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", publicou em suas redes sociais.

Passados alguns dias daquele episódio, as pesquisas foram retomadas após os cientistas se certificarem de que o óbito nada tinha a ver com o imunizante: os testes prosseguiram normalmente e a CoronaVac foi aprovada em caráter emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro de 2021.

No pronunciamento feito pelas cadeias de rádio e televisão na noite de ontem (24/03), Bolsonaro disse que 2021 seria o ano da vacinação no Brasil. Mas, até agora, a campanha está bem devagar, segundo os especialistas.

A Fiocruz estima que, se continuarmos no ritmo atual, demoraremos mais de dois anos e meio para aplicar uma dose em todos os brasileiros com mais de 18 anos.

E, por mais que o país tenha garantido recentemente mais de 500 milhões de doses de seis fornecedores diferentes, os cronogramas de entrega e distribuição estão sofrendo sucessivos atrasos, que comprometem qualquer planejamento nas esferas federal, estadual ou municipal.

"Nós temos um Programa Nacional de Imunizações do qual devemos nos orgulhar. Mas neste momento, infelizmente, estamos envergonhados com o que estão fazendo com ele", critica Maciel.

A especialista destaca que, até agora, não foi lançada nenhuma comunicação oficial sobre as vacinas contra a covid-19 em televisões, rádios, mídias sociais e outros meios.

"Pra mim é inacreditável que tenhamos chegado nesse nível. Todos os projetos de imunização de sucesso do passado foram precedidos de campanhas de informação", lamenta.

6. Pouco investimento em vigilância genômica

O surgimento de novas variantes do coronavírus não acontece em locais onde a pandemia está sob rédea curta.

O vírus sofre mutações onde circula com mais facilidade e sem controle algum, como foi o caso de Manaus.

A nova cepa detectada no início do ano na capital do Amazonas é mais contagiosa e pode até infectar de novo quem teve covid-19 anteriormente.

O Brasil não tem um programa amplo e bem estruturado de vigilância genômica, um tipo de serviço especializado em analisar os vírus em circulação para encontrar possíveis mutações preocupantes antes que elas se espalhem por vários lugares.

O Reino Unido realiza cerca de 10 mil sequenciamentos genéticos do coronavírus por semana — e pretende dobrar esse número em breve.

Já por aqui, não existe nenhuma estatística oficial sobre o assunto, mas especialistas estimam que o número de sequenciamentos semanais no país fique no máximo na casa das centenas.

Bittencourt avalia que, por mais importante que a vigilância genômica seja, ela não deve ser a prioridade no momento.

"Mesmo que descubramos novas variantes e elas sejam realmente mais preocupantes, as medidas de controle contra todas elas continuam as mesmas. Estamos num cenário em que precisamos implementar muita coisa antes disso", pensa.

O que fazer agora?


Um homem carrega um cilindro de oxigênio enquanto pessoas fazem fila para comprá-lo de vendedores particulares para tratar de parentes doentes em Manaus, 15 de janeiro de 2021 / CRÉDITO,REUTERS

Para o médico da USP, a situação gravíssima da pandemia deixa o Brasil numa espécie de "cobertor curto", em que não há recurso e tempo suficiente para lançar mão de tantas medidas que seriam essenciais.

"Na nossa atual circunstância, ainda vamos ver muita gente se infectar, ser internada e morrer pela doença antes de começarmos a ver alguma melhora. Isso se as medidas necessárias forem adotadas", explica.

De acordo com o especialista, a primeira coisa a se pensar é uma estratégia ampla de testagem, para que seja possível isolar os casos confirmados.

"Também precisamos usar as mídias digitais e físicas, de redes sociais a outdoor, para estimular as pessoas a fazerem isolamento e a usarem máscaras adequadamente, de preferência as mais seguras, como a N95 ou a PFF2", detalha.

Outros passos essenciais envolveriam cancelar eventos de médio e grande porte, em que há aglomerações de pessoas, controlar a entrada de estrangeiros pelos aeroportos e reduzir ao mínimo possível o transporte entre as cidades.

"Por fim, deveríamos controlar a mobilidade das pessoas, orientando para que elas se encontrem pouco e, se necessário, que essas reuniões não aconteçam em locais fechados, com proximidade física e sem o uso de máscaras", finaliza o especialista.

André Biernath e Mariana Alvim, da BBC News Brasil em São Paulo, 24.03.2021

'Nada apaga a consistência dos fatos e provas da Lava Jato', diz Deltan após decisão que declarou Moro parcial ao condenar Lula

Ex-coordenador da Lava Jato questiona entendimento de suspeição. Por 3 votos a 2, processo do triplex terá de reiniciar da estaca zero. Condenação do ex-presidente já tinha sido anulada por decisão do ministro Edson Fachin.

O procurador do Ministério Público Federal (MPF) Deltan Dallagnol, ex-coordenador da extinta força-tarefa da Operação Lava Jato no Paraná, comentou na noite desta terça-feira (23), em uma rede social, sobre decisão do STF que declarou Sérgio Moro como parcial ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá.

"Nada apaga a consistência dos fatos e provas dos numerosos casos da Lava Jato, sobre os quais caberá ao Judiciário a última palavra. A Lava Jato investigou crimes e aplicou a lei. Os 5 bi devolvidos por criminosos confessos aos cofres públicos não cresceram em árvores", disse ele.

A sentença que condenou Lula continua anulada por outra decisão, determinada pelo ministro Edson Fachin, que apontou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para analisar os processos do petista e tornou sem efeito as condenações pela Operação Lava Jato de Curitiba.

Com a decisão desta terça-feira, a Segunda Turma anulou todo o processo do triplex, que precisará ser retomado da estaca zero pelos investigadores.

Deltan Dallagnol — Foto: André Dusek/Estadão Conteúdo

Condução coercitiva

O procurador afirmou que o STF entendeu que algumas decisões, como a que determinou a condução coercitiva do ex-presidente, apontariam parcialidade, mas que, no entendimento dele "pode-se até discordar das decisões e dizer que foram duras, mas não se pode a partir delas alegar um tratamento diferenciado".

Segundo ele, "simplesmente se seguiu o mesmo padrão das demais decisões proferidas no curso da operação Lava Jato".

Dallagnol pontuou que, como um ministro colocou, para que se reconheça a imparcialidade, "não basta tratamento diferenciado, é preciso que tenha sido decisivo para o resultado do julgamento".

Entretanto, segundo o procurador, nenhuma das decisões invocadas como base para a suspeição o foi. "A condução coercitiva não foi relevante para a condenação; as interceptações sobre o ex-presidente não foram utilizadas no processo; e o levantamento do sigilo da delação de Palocci aconteceu em outro caso. Com o devido respeito ao STF, acertaram os ministros vencidos".

Para Dallagnol, este é um ponto que precisa ser esclarecido porque "define a abrangência da anulação e se afetará outros casos é a partir de que momento o ex-juiz passou a ser considerado suspeito".

O procurador disse que se a suspeição ocorreu ao final, próximo à condenação, "menos atos e decisões precisarão ser renovados".

Ele afirmou que se ocorreu no início da investigação, "muito mais coisa pode ser anulada, não só na ação penal envolvendo o triplex, mas outras".

Por fim, Deltan Dallagnol afirmou que continua acreditando no trabalho feito.

"A maior garantia da legalidade dos atos é sua fundamentação nos fatos, nas provas e na lei e sua revisão por 3 instâncias", completou.

Após Fachin anular condenações de Lula, Deltan Dallagnol fala em 'amplos retrocessos no combate à corrupção'

Sobre a decisão do STF

O Ministério Público Federal no Paraná e a 13ª Vara da Justiça Federal no estado informaram que não emitirão opinião sobre a decisão da Segunda Turma. A assessoria do ex-juiz Sérgio Moro não informou se ele se manifestará.

A defesa de Lula divulgou nota na qual afirmou que a condenação do ex-presidente por Sergio Moro causou danos "irreparáveis", entre os quais a prisão durante 580 dias.

"A decisão proferida hoje fortalece o Sistema de Justiça e a importância do devido processo legal. Esperamos que o julgamento realizado hoje pela Suprema Corte sirva de guia para que todo e qualquer cidadão tenha direito a um julgamento justo, imparcial e independente, tal como é assegurado pela Constituição da República e pelos Tratados Internacionais que o Brasil subscreveu e se obrigou a cumprir", afirmaram em nota os advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins.

A decisão resultou do julgamento pela turma de uma ação impetrada em 2018 pela defesa de Lula.

A maioria a favor da ação do ex-presidente foi formada com a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia. Em 2018, quando o julgamento se iniciou, ela tinha rejeitado a ação, mas agora seguiu o entendimento dos colegas Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, segundo avaliação da ministra, houve um julgamento irregular

A suspeição não é automática para outros processos de Lula — a defesa terá, por exemplo, que questionar os outros casos na Justiça. Moro não foi o autor da condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia, mas recebeu a denúncia e transformou o petista em réu nesse caso.

Para o relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, ministro Edson Fachin, a suspeição de Moro tem efeitos que vão além do caso de Lula e abre brecha para que advogados de condenados na Lava Jato questionem na Justiça a conduta do ex-juiz e apontem outras sentenças como ilegais.

Por Natalia Filippin e Ederson Hising, G1 PR — Curitiba, em 23.03.2021

Moro comenta decisão que o declarou suspeito em processos de Lula e diz ter 'tranquilidade' sobre 'acertos' de decisões

Por 3 votos a 2, a 2ª Turma do STF declarou na terça-feira (23) que ex-juiz foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula; com isso, processo do triplex precisará ser retomado da estaca zero.

Sergio Moro comentou decisão que o declarou suspeito em processos de Lula — Foto: REUTERS/Adriano Machado

O ex-juiz Sergio Moro disse nesta quarta-feira (24) estar "tranquilo" sobre os "acertos" das decisões judiciais que tomou na Operação Lava Jato.

Na terça-feira (23), por 3 votos a 2, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou em julgamento que o ex-juiz federal agiu com parcialidade ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá.

Com a decisão, a Segunda Turma anulou todo o processo do triplex, que precisará ser retomado da estaca zero pelos investigadores.

A sentença que condenou Lula continua anulada por outra decisão, do ministro Edson Fachin, que apontou a incompetência da Justiça Federal do Paraná para analisar os processos do petista e tornou sem efeito as condenações pela Operação Lava Jato de Curitiba.

Na nota desta quarta-feira, Moro pontuou que todos os acusados nas ações que julgou pela Lava Jato foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da parte dele.

"Apesar da decisão da segunda turma do STF, tenho absoluta tranquilidade em relação aos acertos das minhas decisões, todas fundamentadas, nos processos judiciais, inclusive quanto aqueles que tinham como acusado o ex-Presidente", escreveu.

O julgamento que concluiu pela suspeição de Moro, pela Segunda Turma do STF, foi resultado de uma ação impetrada em 2018 pela defesa de Lula.

Decisão da Segunda Turma

A maioria a favor da ação do ex-presidente foi formada com a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia. Em 2018, quando o julgamento se iniciou, ela tinha rejeitado a ação, mas desta vez seguiu o entendimento dos colegas Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial, favoreceu a acusação e, portanto, segundo avaliação da ministra, houve um julgamento irregular.

A suspeição vale somente para o processo do triplex e não é automática para outros processos de Lula — a defesa terá, por exemplo, que questionar os outros casos na Justiça. Moro não foi o autor da condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia, mas recebeu a denúncia e transformou o petista em réu nesse caso.


    Cármen Lúcia entendeu que novos elementos mostraram que a atuação de Moro não foi imparcial — Foto: JN

Reconhecimento da Lava Jato

Sergio Moro destacou reconhecimento internacional à Operação Lava Jato no combate a crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Segundo ele, "o Brasil não pode retroceder e destruir o passado recente de combate à corrupção e à impunidade".

A seguir, a íntegra da nota de Moro:

"Sobre o julgamento da 2ª Turma do STF que, por três votos a dois, anulou a condenação do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro:

A Operação Lava Jato foi um marco no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro no Brasil e, de certo modo, em outros países, especialmente da América Latina, colocando fim à generalizada impunidade destes crimes. Mais de quatro bilhões de reais pagos em subornos foram recuperados aos cofres públicos e quase duas centenas de pessoas foram condenadas por corrupção e lavagem de dinheiro.

Todos os acusados foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade da minha parte, como juiz do caso.

Apesar da decisão da segunda turma do STF, tenho absoluta tranquilidade em relação aos acertos das minhas decisões, todas fundamentadas, nos processos judiciais, inclusive quanto aqueles que tinham como acusado o ex-Presidente.

A sentença condenatória contra o ex-Presidente foi confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça que, igualmente, rejeitaram as alegações de falta de imparcialidade. O ex-Presidente só teve a prisão ordenada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em 2018, após ter habeas corpus denegado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

O Brasil não pode retroceder e destruir o passado recente de combate à corrupção e à impunidade e pelo qual foi elogiado internacionalmente.

A preocupação deve ser com o presente e com o futuro para aprimorar os mecanismos de prevenção e combate à corrupção e com isto construir um país melhor e mais justo para todos.

Curitiba, 24 de março de 2021.

Sergio Fernando Moro"

Por G1 PR — Curitiba, em 24.03.2021

"Mundo precisa ajudar o Brasil", apela líder de governadores

Coordenador do Fórum Nacional de Governadores, Wellington Dias pede mais apoio internacional à vacinação no Brasil diante da situação "dramática" do país na pandemia. Ele espera mudanças sob novo ministro da Saúde.

Wellington Dias, governador do Piauí: "Nossa situação é realmente dramática. Nos sentimos muito impotentes"

Coordenador do Fórum Nacional de Governadores, Wellington Dias (PT), governador do Piauí, tem passado os últimos meses em sucessivas reuniões com a classe política brasileira, empresários, religiosos, centrais sindicais e representantes de organismos internacionais e laboratórios para tentar não apenas aumentar o ritmo de vacinação no país, mas também buscar uma coordenação nacional para o combate ao coronavírus e ao colapso do sistema de saúde do país.

A atitude desesperada dos governadores, diante da inação do presidente Jair Bolsonaro, levou 23 gestores de estados brasileiros a subscreverem e enviarem, na semana passada, cartas com apelos dramáticos ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e ao presidente da China, Xi Jinping.

Dias vem participando de reuniões e buscando pontes com laboratórios, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a Organização das Nações Unidas (ONU). "O mundo precisa ajudar o Brasil", disse o governador àDW Brasil.

O Consórcio Nordeste, que reúne os noves dos nove estados da região, também presidido por Dias, anunciou na semana passada ter fechado contrato para adquirir 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik V.

Diplomático e não afeito ao confronto, Dias admite surpresa com atitudes de Bolsonaro, que na última semana acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) contra medidas restritivas de circulação tomadas pelos governadores da Bahia, do Distrito Federal, e Rio Grande do Sul. Nesta terça-feira (23/03),o ministro do STF Marco Aurélio Mello rejeitou os pedidos de Bolsonaro para suspender os decretos dos governadores.

Ainda assim, Dias diz manter alguma esperança sobre a reunião que ocorrerá nesta quarta-feira com chefes dos Poderes, representante de Estados e municípios e o presidente Bolsonaro. "Eu espero, pelo amor ou pela dor, que haja alguma mudança", afirma na entrevista a seguir:

DW Brasil: Há forte pressão sobre os governadores no Brasil devido ao confronto direto e sistemático alimentado pelo presidente da República. O sr. tem feito vários esforços diários, o Consórcio Nordeste conseguiu fechar a compra de milhões de doses de vacina. Há novas perspectivas? Os governadores parecem estar à beira do desespero.

Wellington Dias: Compramos 37 milhões da Sputnik. O Brasil tem hoje uma situação em que é o epicentro da pandemia no mundo. É visto por outros países e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS) como um propagador de variantes, de vírus com mutação. Estamos tratando com vários países, especialmente os produtores de vacinas ou de IFA [Insumo Farmacêutico Ativo]. O mundo precisa ajudar o Brasil, assim como precisa ajudar outros países em que há situação de risco para a sua população.

Em 20 de outubro, havia um Plano Nacional de Imunização. Só em 17 de fevereiro conseguimos outro passo importante, que foi o cronograma de entrega de vacinas. Queríamos que o cronograma estivesse calçado em contratos com os fornecedores, no caso de IFA, da AstraZeneca para a Fiocruz, e da China, da Sinovac, para o Butantan. Agora no começo de março passamos a ter o cronograma da OMS para o primeiro lote da AstraZeneca da Coreia. Que bom que temos contratos com a Pfizer, com a Jansen, e outras, mas há a necessidade de entregas mais emergenciais.

Por conta da decisão dos Estados Unidos, de focar até maio toda a vacina para o povo americano, foi adotada a medida de não exportação de vacina. Encaminhei um documento pelo Fórum de Governadores do Brasil ao Joe Biden, foi aberto um diálogo do presidente do Congresso Brasileiro [o senador Rodrigo Pacheco, do DEM] com a vice-presidente Kamala Harris para que vacinas que não estão sendo usadas nos EUA, como a da AstraZeneca, possam ser compradas e vendidas ao Brasil. O contato está sendo acompanhado pela Embaixada dos EUA. Nesta semana podemos ter alguma definição sobre uma quantidade de vacinas não só para o Brasil, mas para outros países de elevado risco e baixa vacinação.

Essa decisão se refere ao governo dos Estados Unidos?

Sim, do governo dos Estados Unidos. Enviamos o documento ao Joe Biden. Mandamos também para o Reino Unido, para a Índia, para a OMS, para a Opas na semana passada. Temos que garantir o cumprimento de contratos. Esse caso da AstraZeneca, por exemplo: pelo contrato com a Fiocruz, firmado ainda no ano passado, o Brasil compraria 100 milhões de IFA, e a primeira entrega de 15 milhões seria em janeiro deste ano. A entrega já foi a partir de fevereiro. Passamos a pedir o cumprimento do contrato, aí veio a proposta de ser entregue pela Serum [Institute of India], na parceria da AstraZeneca com a Índia. Eles chegaram a entregar 2 milhões de doses, a primeira [entrega] para a Fiocruz, depois mais 2 milhões em 28 de fevereiro. Logo em seguida o governo da Índia proibiu exportação. Em março, teríamos mais 4 milhões, em abril mais 4 milhões e 5 milhões em maio.

Estamos pedindo à Universidade de Oxford, AstraZeneca e ao Reino Unido: se o contrato é com a AstraZeneca, é verdade que fomos avisados e a Fiocruz, pela Índia. Só que existe um contrato, a situação do Brasil é grave, então pedimos que o Reino Unido e em outros lugares em que há produção de AstraZeneca possam fazer um esforço para o cumprimento do contrato.

Cito outro exemplo de problema real: houve uma reunião da GAVI [a aliança mundial pela vacina], o comitê de países que compõem o consórcio Covax Facility, com a OMS. A previsão acertada era que o Brasil receberia um lote no último domingo, de 1 milhão de doses, e outro em 26 de março para completar aproximadamente 2 milhões. A Opas informou que somente em abril vão entregar esse outro lote. De novo: é a OMS que reconhece a situação grave do Brasil, mais que o dobro da média de óbitos do mundo. Temos aqui um esforço de estados, municípios e com dificuldades de coordenação do poder central para medidas preventivas e restrições. Mas queremos também ter a vacina na estratégia não só para salvar vidas, mas para controlar a pandemia no Brasil.

O sr. acabou de mencionar algo óbvio e reconhecido mundialmente:  não temos coordenação mundial e temos um presidente que boicota diariamente as ações dos governadores. Para além dessas dificuldades políticas locais, o sr. enxerga alguma restrição mundial ao Brasil, exatamente pelo fato de o país ter essa condução nacional negacionista, sem medidas preventivas?

Não sei se tem. Se tiver, punir o Brasil é levar à piora da situação. Não acredito que haja essa insensibilidade mundial. O fato é que não adianta só ficar registrando o problema. Precisam nos ajudar na solução. E a ideia é que a OMS cumpra o contrato para esta semana, até o dia 26, que a gente tenha o lote de abril e o lote de maio, cumprindo o previsto para o Brasil, no cronograma de entrega. Outra relevante: conseguimos, e o Ministério da Saúde autorizou, que pudéssemos usar as vacinas desta entrega para a primeira dose. O Brasil vinha fazendo reserva para os 28 dias (a segunda dose). Ora, se já estamos com boa regularidade na entrega do Butantan, com entregas a várias semanas, e há um cronograma semanal, então não faz sentido ter estoque elevado, podendo ampliar agora a vacinação, que salva vidas. Então cerca de 4 milhões de entregas desta semana, vamos trabalhar com estoque, em vez de quatro semanas, de 3 semanas, e com isso ampliar a vacinação. Pactuamos com municípios e estados para que acelerem a vacinação.

A meta é alcançar mais 2% da população vacinada em uma semana, para a gente sair de 6% da população vacinada para 8,5% ao final desta semana e chegar a 31 de março com 10% da população vacinada, aproximadamente 21,5 milhões de brasileiros, para a gente cumprir a meta da estratégia nacional que é até abril alcançar toda a fase 1, esse grupo acima de 60 anos, com comorbidades, indígenas, etc. Como esse grupo corresponde a mais de 70% dos óbitos, essa estratégia vai permitir que a gente possa sair do colapso e reduzir o número de mortes.

Mas para alcançar esses 10% da população vacinada precisa haver a entrega da OMS em 26 de março e haver uma mudança de política para não ficar fazendo tanto estoque para a segunda dose. É isso?

Veja, a desta semana está resolvida. Só que não podemos ficar com estoque baixo. Vamos precisar deste cronograma para a semana seguinte. Aí precisamos da entrega do dia 26 e da semana seguinte.

O sr. tem feito uma série de articulações internacionais, com EUA, Reino Unido, e internamente, com governadores, prefeitos, Congresso, empresários. O sr. está vendo alguma mudança de comportamento do governo federal, algo reverbera positivamente, ou nada muda?

Hoje [na segunda-feira, 22] eu fiz uma reunião com as centrais sindicais, que fizeram nota pública em apoio às medidas restritivas preventivas e em favor de mais vacinas. E também estamos conversando para que possam encaminhar isso a outros países. A mesma coisa com a Frente Nacional de Prefeitos. Participei também de reunião, e estão organizando um consórcio para compra de vacinas. O que orientamos é para que tenha acompanhamento de embaixadas dos países e que a gente mantenha a regra de toda vacina ser para o Plano Nacional de Imunização. Houve também a carta da CNBB, da OAB. Dialogamos com eles. É importante acionar internamente e dialogar com o Congresso, o Poder Executivo, para acompanhamento do cronograma do Plano Nacional de Imunização. Temos um plano e temos que fazer com que seja cumprido. Um outro ponto que conversamos, com as igrejas, a OAB, a ABI: é importante que a gente volte com essa onda de solidariedade. Tem muita gente que não está usando máscara e não é por desobediência. É porque elas não têm dinheiro para comprar máscaras. Há muitas pessoas passando fome. Então há a necessidade de não esperarmos só por governos, é importante haver essa solidariedade nacional. Organizamos, nesta pactuação, uma reunião com os presidentes da Câmara, do Senado, e do Judiciário. Foi criado o que denominamos de "Pacto pela Vida”. A ideia foi criar um grupo de trabalho com os Três Poderes, Estados e municípios. Pedimos a organização de uma agenda para reunião com o chefe do Executivo, Jair Bolsonaro, cuja previsão é nesta quarta-feira. Sugerimos também alguém representando empresários, trabalhadores, Estados e municípios. Pelos Estados será um governador de cada região. Pelo Nordeste, será o governador de Alagoas, o Renan Filho. O que a gente mais precisa é de uma coordenação nacional para seguirmos todos na mesma direção.

O sr. tem a expectativa de que Jair Bolsonaro participará da reunião na quarta-feira [24/03], com os representantes dos Três Poderes e governadores?

Eu acho importantíssimo ele participar. Se pegarmos os 50 países de economias fortes, democracias, é o presidente que está na linha de frente das ações. Dentro do Pacto pela Vida queremos ampliar o máximo de setores, a ciência, os comitês científicos, a Sociedade Brasileira para a Ciência, conselhos da área de saúde, de medicina, academia. E os trabalhadores, empresários unidos por vacinas. Esse caminho numa mesma direção está permitindo o número de pessoas que querem se vacinar, que apoiam medidas restritivas. Ou seja, a proposta é de colocar o Brasil, ou pelo amor, ou pela dor, numa decisão de que quem é a favor da vida. Com o contrário disso, o vencedor é o coronavírus e a morte. Todo brasileiro vai ter que escolher o seu lado. Não tem separação entre as consequências para a saúde e para a economia. Ou resolve a vacinação, que é o que nos dará a solução, ou paramos o coronavírus para reduzir a transmissibilidade, internações e óbitos, ou será ruim para todo mundo.

O sr. citou que todos os mandatários no mundo inteiro precisam se envolver no combate ao vírus. No caso do Brasil, Bolsonaro não só não se envolveu nisso no último ano, como adotou posturas negacionistas, além de apostar no confronto aberto com os governadores. Foi ao STF contra três governadores que adotaram medidas restritivas. Como ter expectativa que esse presidente possa dialogar?

Ver o presidente, pelo menos por alguns momentos, utilizando máscara, acho que já é um passo. A esperança é a última que morre. Como eu disse, ou pelo amor, ou pela dor, o Brasil precisa dessa coordenação centralizada. Veja o exemplo dos Estados Unidos. Em 2020, tínhamos o presidente Donald Trump e ele trabalhava negando o coronavírus e as medidas que a ciência pregava. Meio milhão de óbitos. Perdeu a eleição. Assume Joe Biden, que segue a ciência, recomenda e usa máscara, recomenda distanciamento, trata de medidas que diminuem a circulação de pessoas. Ele reuniu todos os laboratórios de vacinas para os americanos, deu todas as condições de contrato e para acelerar a produção de vacinas e vacinação. Resultado: está trabalhando para concluir a vacinação em maio. Agora tem a média diária de 1.200 óbitos. Acredito que esse exemplo dos EUA mostra o efeito que tem quando o chefe de Estado assume a direção. Precisamos do presidente da República ligar para o presidente da China, da Rússia, o apoio aos laboratórios brasileiros, Fiocruz e Butantan, União Química, que ele ligue para a OMS, o Reino Unido.

Governador, os EUA resolveram esse problema com uma eleição e mudança de presidente. O Brasil só terá eleição em 2022. A não ser que ocorra um impeachment. Ninguém da comunidade internacional tem mais expectativa positiva com Bolsonaro. Como esperar alguma coalizão nacional? Seria via Congresso Nacional?

Temos dois caminhos. O caminho que estamos, sem a coordenação nacional e central do governo federal. O Brasil que tem 2,7% da população mundial alcançando 11% dos óbitos no mundo. E tem o caminho diferente, que é o presidente coordenando. Agora, a gente está dando passos. Ou seja, não são mais só os governadores. Os municípios estão mais integrados. Temos decretos de medidas preventivas em 27 Estados, há 21 dias, para prevenir a transmissibilidade. Mas o efeito sem o Poder Executivo é menor. Tem uma hora, nem que seja alguma coisa na alma, no coração, que vai ter que tocar. Apesar de tudo o que aconteceu, situações impensáveis, como essa de uma ação (do governo federal) contra os estados que adotaram medidas restritivas, no STF, eu espero, pelo amor ou pela dor, que haja alguma mudança. Tem um ministro novo.

Ministro que não havia tomado posse até essa segunda-feira. Ele participará da reunião na quarta?

Eu tenho esperanças. O ministro [Marcelo Queiroga, que só tomou posse na tarde de terça-feira] é um médico, formado segundo a ciência, aplicada à pandemia. Eu quero acreditar que alguém que dedica tantos anos à sua profissão, salvando vidas, pela ciência, possa ter o apoio do presidente e ajudar a salvar vidas no momento em que o Brasil mais precisa na sua história.

O sr. tem alguma nova articulação politica, alguma nova reunião nesta semana para debater a pandemia no Brasil?

Temos uma reunião para acompanhar essa crise de desabastecimento de medicamentos no Brasil, que é muito, muito grave. Falta oxigênio e medicamentos para intubação. Eu vi nesta semana o quanto foi dolorosa a situação no Rio Grande do Norte, Rondônia, Acre. É gravíssimo. Estou vivendo aqui no Piauí, temos pacientes internados em várias regiões do Estado. Os hospitais têm a armazenagem maior e até produção de oxigênio. O problema é que, com o colapso, as pessoas que estão na chamada fila de atendimento, elas não estão sem atendimento. Estão num hospital que não é UTI, ou é leito de estabilização, ou leito clínico, aguardando vaga de UTI. Essa imagem que precisa estar na mente das pessoas. Pessoas que chegam à rede de saúde não terão vagas em UTI. Tentem imaginar, neste momento, o desespero das famílias em centenas e milhares de hospitais, públicos e privados, e dos profissionais da saúde. Quando eu falo no amor e na dor, estou me lembrando dessas pessoas.

Converso com a Opas, e com a OMS, que demonstrou sensibilidade em ajudar o Brasil também neste campo. A ONU também quer falar conosco. O Brasil sempre foi um país solidário. Essa é a hora em que o Brasil está precisando. Quero levar essa palavra à ONU. Nossa situação é realmente dramática. Nos sentimos muito impotentes.

Deutsche Welle / Brasil, em 24.03.2021

Combinação auspiciosa

Maioria já não se seduz com os discursos de Lula e de Bolsonaro sobre corrupção

A mais recente pesquisa do Datafolha, publicada no dia 22 passado, revelou que a maioria dos brasileiros está escolada e já não se deixa seduzir nem pela narrativa do ex-presidente Lula da Silva nem pela do presidente Jair Bolsonaro no que diz respeito à corrupção. É alvissareiro que os discursos falaciosos de um e de outro sobre tema tão presente no debate nacional, tido por muitos como uma das maiores mazelas do País, sejam recebidos com a devida desconfiança pela maior parte dos eleitores.

Como a pesquisa mostrou, Lula da Silva pode muito bem voltar aos palanques travestido de inocente, distorcer os fatos e mentir como poucos diante de um microfone, mas a maioria dos brasileiros já não cai na sua lábia. Logo após o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), ter anulado as condenações do chefão petista na 13.ª Vara Federal de Curitiba por considerar aquele foro incompetente para julgá-lo – o que o tornou elegível –, Lula fez do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC um palco para alardear a versão de que fora “absolvido” pelo STF dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, o que é uma mentira. A anulação das sentenças de primeiro grau pelo ministro Fachin se deveu a uma questão de ordem estritamente processual, sem tratar da culpabilidade do ex-presidente.

Isto parece ter ficado claro mesmo para os que não são versados nas tecnicalidades do Direito Processual Penal. Para 57% dos entrevistados pelo Datafolha, as condenações de Lula nos casos do triplex do Guarujá e do sítio em Atibaia, entre outros, foram justas. Vale dizer, o chefão petista pode ter voltado a ser ficha limpa do ponto de vista estritamente eleitoral, mas, aos olhos da maioria dos brasileiros, Lula é considerado culpado pelos crimes de que fora acusado no âmbito da Operação Lava Jato. Para 38% dos entrevistados pelo Datafolha, as condenações do ex-presidente foram injustas; e 5% não souberam ou não quiseram responder.

O Datafolha também revelou um aumento significativo do porcentual de brasileiros que acreditam que os casos de corrupção vão aumentar no Brasil durante o governo Bolsonaro. Em abril de 2019, quatro meses após a posse do presidente, 40% dos entrevistados pelo instituto de pesquisa esperavam que a corrupção fosse aumentar no País sob o novo governo, ante os 35% que acreditavam que os casos iriam diminuir com Jair Bolsonaro na Presidência da República.

Quase dois anos depois, com o escândalo das “rachadinhas”, uma mansão de R$ 6 milhões, uma suspeita de tráfico de influência e uma genuflexão diante do altar do Centrão, subiu para 67% o porcentual dos que acreditam que a corrupção vai aumentar no Brasil, um salto de quase 30%. É muita coisa.

Ainda mais impressionante é a queda de 35% para 8% no número de brasileiros que acreditam que a corrupção vai diminuir no País enquanto Jair Bolsonaro estiver instalado no Palácio do Planalto. Como se vê, em apenas dois anos, a fantasia de caçador de corruptos vestida por Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 já está bastante puída.

Por um lado, é muito positivo que a maioria dos eleitores se mostre refratária a discursos falaciosos na seara da corrupção, como os sustentados por Lula e por Bolsonaro. Por outro, é preocupante a percepção de aumento generalizado dos casos de corrupção no País, na medida em que abre perigoso espaço para a desqualificação da política como meio mais apropriado à concertação dos múltiplos interesses da sociedade. O Brasil paga até hoje a pesadíssima conta dos ataques indiscriminados à chamada “classe política” perpetrados, entre outros, por alguns membros do Ministério Público que se arvoraram em grandes purgadores da alma nacional. Deu no que deu.

O amadurecimento da percepção dos cidadãos sobre a corrupção deve ser acompanhado pelo republicanismo das instituições de controle, que, ao combater a corrupção, devem agir em total acordo com as leis e a Constituição. O País avançará muito com esta combinação auspiciosa.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 24 de março de 2021

Joaquim Falcão: Supremo se esconde diante dos fatos visíveis pelo Brasil

Ministros Lewandowski, Cármen Lúcia e Mendes não responderam o que o País quer saber. Hackear pode produzir prova? Lícita ou ilícita?

O ministro Edson Fachin virou a mesa. Não da Segunda Turma do Supremo. Ali, perdeu. Mas a mesa das manipulações ocultas, das estratégias processuais em que, sob o manto da legalidade, abandona-se o combate a corrupção. O Supremo não julga se houve ou não corrupção. O Supremo se adia e se esconde diante dos fatos visíveis pelo Brasil. Não mergulha. Fica na borda. 

Os ministros Lewandowski, Cármen Lúcia e Mendes não responderam o que o Brasil quer saber. Hackear pode produzir prova? Lícita ou ilícita? Na sessão, repetiam que não se baseavam nas gravações. Inexistiam, mesmo presentes. Lewandowski disse que as gravações “são apenas para reforço de argumentação”. Cármen Lúcia disse: “Repito, não estou me baseando nas interceptações”. Mendes, com desprezo retórico: “Nada de conversa fiada de hackers”. Supremo hesita porque, se declarar prova lícita, incentivará hackers em todos os lugares. Enquanto isso...

O Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Foto: Dida Sampaio/Estadão

O ministro Fachin encarou de frente. As gravações hackeadas precisam ser investigadas. O Tribunal Regional da 4.ª Região deve iniciar um processo. Elas denunciam não pessoas ou grupo. Mas um sistema de justiça que pode estar longe da ética e das normas que o Estado democrático de direito exige. 

O ministro Kassio Marques também enfrentou. Declarou que provas hackeadas são ilícitas. Fez com gentileza, serenidade e respeito devido por qualquer ministro a qualquer ministro. E defendeu seu estado, Piauí. Vítima de grosseira agressão. Momento em que lembrei de João Cabral de Mello Neto, poeta pernambucano: “A boa eloquência é a de falar forte, mas sem febre.”

Joaquim Falcão, Professor de Direito Constitucional, é membro da Academia Brasileira de Letras e Conselheiro da Transparência Internacional. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.03.2021

Em manobra dispersiva, Bolsonaro inclui 1º escalão em reunião dos três poderes para esvaziar críticas

A mudança de última hora no formato da reunião no Palácio da Alvorada com os presidentes dos três poderes causou contrariedade entre autoridades do Legislativo e do Executivo.

O presidente Jair Bolsonaro se reúne na manhã desta quarta-feira (24) com chefes de poderes, ministros e governadores para discutir medidas de combate à pandemia. Inicialmente, só os presidentes dos três poderes, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o vice-presidente do TCU, Bruno Dantas, participariam do encontro.

A avaliação é que o presidente Jair Bolsonaro colocou na mesa todo o seu primeiro escalão para criar um ambiente de dispersão e, assim, diluir críticas e sair do foco das cobranças na reação à pandemia da Covid-19 por parte dos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Nesta terça-feira (23), o presidente aumentou a lista dos participantes da reunião e incluiu ministros, governadores e até o ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello.

“O presidente viu que seria emparedado numa reunião mais restrita e decidiu colocar uma tropa de choque para diluir a reunião”, disse ao blog uma autoridade do Legislativo que participou das tratativas do encontro.

Mudanças antes da reunião

Para esvaziar a reunião, o presidente Bolsonaro também mudou na véspera o comando do Ministério da Saúde e deu uma posse escondida para Marcelo Queiroga. Bolsonaro seria cobrado pela transição demorada na pasta no momento mais grave da pandemia.

Ao mesmo tempo, numa resposta antecipada, Bolsonaro fez na noite desta terça-feira (23) um pronunciamento para falar do cronograma de vacinação do país, com distorções e omissões, e não citou os movimentos do governo para recusar e dificultar a aquisição de vacinas em 2020.

Como revelou o blog nesta segunda-feira (22), autoridades do Legislativo e do Judiciário receberam com preocupação o gesto explícito do presidente Jair Bolsonaro de estimular aglomerações neste domingo (21).

A ação foi considerada um movimento claro do presidente para inviabilizar a articulação entre os poderes, a qual visa estabelecer uma espécie de pacto nacional de enfrentamento à pandemia da Covid-19 no Brasil.

Por Gerson Camarotti, comentarista político da GloboNews, do Bom Dia Brasil, na TV Globo, e apresentador do GloboNews Política. É colunista do G1 desde 2012.

Bolsonaro mente em pronunciamento sobre a pandemia

Presidente tenta melhorar imagem do governo em meio ao pior momento da epidemia de covid-19 no Brasil. Sem mencionar recorde de mortes, ele distorce dados e mente que sempre defendeu qualquer vacina aprovada pela Anvisa.

Mesmo com o ritmo lento da vacinação no país, Bolsonaro prometeu imunizar toda a população até o final do ano

Em pronunciamento na noite desta terça-feira (23/03) – dia em que o Brasil registrou mais de 3 mil mortes por covid-19 em 24 horas pela primeira vez e em meio ao pior momento da epidemia e ao que foi classificado como o maior colapso sanitário e hospitalar da história do país –, o presidente Jair Bolsonaro tentou defender as ações do governo no combate à crise, mas mentiu e distorceu dados sobre a vacinação.

Na fala de pouco mais de três minutos, apesar de reconhecer que o coronavírus "infelizmente tem tirado a vida de muitos brasileiros", o presidente sequer mencionou o recorde de mortes. Ele afirmou que o governo tomou medidas para combater o coronavírus ao longo de toda a pandemia e que sempre foi a favor das vacinas.

"Em nenhum momento, o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o caos na economia", afirmou o presidente. "Sempre afirmei que adotaríamos qualquer vacina, desde que aprovada pela Anvisa. E assim foi feito."

Na realidade, ao longo de um ano de pandemia, apesar de lançar medidas econômicas, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, combateu medidas de isolamento social, promoveu curas sem eficácia, criticou a vacina e tentou sabotar iniciativas paralelas de vacinação e combate à doença lançadas por governadores e prefeitos em resposta à inércia do seu governo na área.

Em outubro, o presidente afirmou categoricamente que não compraria a vacina chinesa Coronavac – em claro embate com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que impulsionou o desenvolvimento da vacina da Sinovac, da China, em parceria com o Instituto Butantan.

Em meados de dezembro, Bolsonaro chegou a afirmar que não iria se vacinar. "Se alguém achar que minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final", disse em entrevista à TV Bandeirantes. "Esse vírus é igual a uma chuva, vai pegar em todo mundo."

Distorções

No pronunciamento desta terça, Bolsonaro enumerou ações do governo federal para aquisição de vacinas, sem mencionar que inicialmente menosprezou a Coronavac e que inicialmente rejeitou a vacina da Pfizer-Biontech. "Estamos fazendo e vamos fazer de 2021 o ano da vacinação dos brasileiros”, prometeu.

O presidente disse que intercedeu pessoalmente junto à farmacêutica Pfizer para antecipar a entrega de 100 milhões de doses. No entanto, segundou apurou o jornal Folha de S. Paulo, o governo federal rejeitou no ano passado uma proposta da farmacêutica que previa 70 milhões de doses de vacinas até dezembro deste ano.

Em entrevista à DW, a pesquisadora Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), considerou que o Brasil errou ao não negociar vacinas para covid-19 com mais empresas farmacêuticas no "momento adequado" e que o país agora corre atrás de imunizantes.

Em sua fala desta terça, Bolsonaro afirmou também que o Brasil é o quinto país que mais vacinou no mundo. No entanto, segundo levantamento da plataforma Our World in data, ligada à Universidade de Oxford, o Brasil aparece atrás de mais de 70 países em relação a doses aplicadas a cada 100 habitantes até 22 de março. Foram aplicadas 6,64 doses para cada 100 brasileiros.

O presidente também afirmou que o Brasil tem mais de 14 milhões de vacinados. Na realidade, segundo o Ministério da Saúde, já foram aplicadas 15,2 milhões de doses no país – mas das 11,6 milhões de pessoas vacinadas, apenas 3,6 milhões já receberam duas doses.

O presidente também inflou um pouco os números de doses distribuídas para os estados. Enquanto ele disse que foram 32 milhões, o Ministério da Saúde contabiliza 29,9 milhões. 

O presidente disse ainda que estão garantidas 500 milhões de doses até o fim do ano, apesar de terem havido vários atrasos nas entregas nos últimos dias. Segundo o Ministério da Saúde, a pasta já garantiu mais de 562 milhões de doses de imunizantes até o fim de 2021, mas, como destaca a agência de checagem Lupa, o governo federal vem alterando o cronograma de entrega de imunizantes no país, o que pode alterar as estimativas.

Bolsonaro também destacou que em setembro de 2020, o Brasil assinou um acordo com o consórcio Covax Facility que prevê 42 milhões de doses para o país. No entanto, segundo a Folha, documentos mostram que cada país envolvido na iniciativa poderia optar por doses para 20% da população ou mais, mas que o Ministério da Saúde optou por acordar doses para apenas 10% dos brasileiros. O primeiro lote de imunizantes adquiridos por meio do consórcio chegou ao Brasil no último domingo.

Mesmo com o ritmo lento da vacinação no país, Bolsonaro prometeu imunizar toda a população até o final do ano. "Muito em breve, retomaremos nossa vida normal”, prometeu o presidente.

O discurso é visto como uma tentativa de melhorar a imagem do governo e mudar o tom em meio a pressões por uma coordenação nacional contra a covid-19. Durante a fala do presidente, houve protestos e panelaços em várias capitais. Na semana passada, o Datafolha apontou que a maioria dos brasileiros vê a pandemia fora de controle e que para 43% Bolsonaro é o principal culpado pela grave situação no país.

Deutsche Welle / Brasil, em 24.03.2021

Por que punições contra Moro são improváveis, segundo juristas

O ex-juiz Sergio Moro não deve sofrer punições após a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que ele atuou com parcialidade contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, avaliam juristas ouvidos pela BBC News Brasil.


Por três votos a dois, ministros do STF decidiram que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial nas investigações e processos da Operação Lava Jato relacionados a Lula (Crédito da foto: Reuters)

O julgamento contra Moro foi concluído na terça-feira (23/03). Por três votos a dois, os ministros do STF decidiram que o ex-juiz foi parcial nas investigações e processos da Operação Lava Jato relacionados ao petista.

No início de março, o ministro relator da Lava Jato, Edson Fachin já havia decidido individualmente pela anulação das condenações contra Lula na operação.

Com as duas decisões, Lula retomou seus direitos políticos e poderá disputar a eleição de outubro de 2022, a não ser que seja novamente condenado em segunda instância até o pleito do ano que vem.

Os processos agora terão que ser refeitos na Justiça Federal do Distrito Federal, conforme determinado por Fachin no começo deste mês. As provas produzidas quando Moro era juiz dos casos dificilmente poderão ser reaproveitadas, já que sua conduta foi considerada suspeita.

A decisão desta terça teve como base um recurso apresentado pela defesa de Lula contra Moro no fim de 2018.

As acusações contra o ex-magistrado ganharam peso após o portal de notícias The Intercept Brasil revelar, em julho de 2019, diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato, em que o juiz agia parcialmente em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF).

Moro abandonou a magistratura em novembro de 2018 para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública no início do governo Bolsonaro, onde permaneceu até abril passado.

"Se ele fosse juiz, poderia sofrer uma série de sanções, (em último caso) até mesmo perder o cargo. Mas como ele não está mais na função, é mais difícil", diz Clara Borges, professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"Ao meu ver, não haverá nenhuma (implicação a Moro). As consequências são a nulidade de todos os atos processuais conduzidos por ele em face do Lula", afirma Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Especialistas apontam que as principais consequências da decisão do STF para Moro estão relacionadas à imagem dele. O fato pode dificultar um bom desempenho dele em uma possível disputa eleitoral no ano que vem.

"Essa suspeição é mais um dado reforçando a sua inviabilidade política, especialmente olhando para um aspecto nacional. É um caminho para aumentar a rejeição a ele", declara o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria.

Medidas contra ex-juiz

Para Borges, o fato de Moro não ser mais magistrado faz com que qualquer punição contra ele seja descartada. Ela aponta que uma possibilidade seria que o ex-juiz respondesse criminalmente por prevaricação — quando um agente público deixa de praticar ou pratica, contra disposição expressa de lei, um ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

"Mas é difícil dizer que ele agiu por interesses pessoais. Precisaria haver mais provas para isso. Podemos dizer que ele abusou, agiu de forma que não condiz com o cargo, mas não podemos dizer que tudo isso foi para se beneficiar de alguma forma", afirma a jurista à BBC News Brasil.

"É preciso que tenha muita prova para acusá-lo de prevaricação (que tem pena de três meses a um ano de detenção) e não vejo que existam essas provas. Não dá pra associar, por exemplo, as ações dele (na Lava Jato) com o cargo de ministro do Bolsonaro, porque tem um tempo muito distante entre os fatos", acrescenta Borges.


Ministra Cármen Lúcia teve voto decisivo, mudando sua posição contrária ao recurso de Lula. (Crédito da foto: Adriano Machado/Reuters)

Glezer declara que as ações de Moro em relação a Lula poderiam ser enquadradas na lei de abuso de autoridade — que define e pune crimes de abuso de autoridade. Medidas como a condução coercitiva de Lula e interceptações de advogados do ex-presidente poderiam ser punidas conforme essa medida.

A lei define que esse tipo de abuso acontece quando um servidor público (policiais, delegados, procuradores e juízes, por exemplo) faz mau uso de seu poder para prejudicar ou beneficiar alguém.

Porém, a medida é recente e foi estabelecida justamente durante a gestão de Moro como ministro.

"As mudanças na lei de abuso de autoridade foram feitas muito depois desses atos (contra o Lula)", ressalta Glezer à BBC News Brasil.

"Fora isso, a suspeição de um juiz ou impedimento não é um ato criminoso em si. É um ato de vício processual. Então, no meu entendimento não tem implicação para o Moro. Não vi nenhuma tese que pudesse imputar alguma responsabilidade, ainda mais que ele está fora (da magistratura)", declara Glezer à BBC News Brasil.

O julgamento do STF nesta terça não causa nenhum impedimento para Moro exercer a advocacia.

A suspeição não impede também que ele continue atuando na consultoria de gestão de empresas internacional Alvarez & Marsal, da qual faz parte desde dezembro passado. A empresa administra o processo de recuperação judicial da Odebrecht, da qual Moro homologou acordo de delatores e condenou executivos e sócios enquanto atuava na Lava Jato — o atual vínculo do ex-magistrado com o processo da Odebrecht é alvo da Justiça.

Custas processuais e alvo de ação na Justiça
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes pediu que Sergio Moro pagasse as custas processuais das condenações anuladas. Essa medida era considerada uma das possíveis punições ao ex-magistrado. Porém, o pedido não foi acolhido pela maioria dos ministros.

Outra medida contra Moro, que foi alvo de comentário nas redes sociais, foi a possibilidade de Lula processar o ex-juiz. Porém, os especialistas afirmam que é difícil que haja algo nesse sentido diretamente ao ex-magistrado.

"A suspeição não me parece fundamento para uma ação de responsabilização pessoal do Moro. No voto da Turma do STF foi explicitado que essa decisão não implica nenhum direito de indenização. E nenhum réu entra (na Justiça) contra um juiz. Se houve alguma decisão ou condenação equivocada, ele entra sempre contra o governo, que pode ser na Justiça Federal ou Estadual. E o Estado pode, se houver um erro grosseiro, entrar com uma ação contra o juiz", detalha Glezer, da FGV.

"Por isso, é difícil ter fundamento para uma ação do Lula contra o Moro. Quando o dano é realizado por um funcionário público, não se processa o funcionário, se processa o governo que ele integra", acrescenta Glezer.

Manifestantes favoráveis ao ex-presidente Lula, incluindo o ex-ministro de governo petista Gilberto Carvalho, protestam em frente ao STF (Crédito da foto: Ueslei Marcelino/Reuters)

Impactos políticos

A principal consequência da decisão do STF nesta terça, segundo os especialistas, é em relação à opinião pública sobre Moro, que sempre se colocou como um exemplo do combate à corrupção e injustiças no país.

"Eu diria que a punição do Moro vai ser pública, a mácula à figura que ele tinha se tornado. E essas irregularidades e absurdos da Lava Jato podem servir de exemplos para as próximas operações do país, para evitar esses absurdos e abusos que ocorreram e foram provados nas mensagens (do ex-juiz com outros membros da operação)", declara Borges, da UFPR.

A imagem do ex-juiz é considerada uma preocupação para ele e seus aliados porque Moro é apontado como um dos possíveis candidatos à Presidência em 2022. Ele não comenta publicamente sobre o assunto, mas pessoas próximas confirmam a possibilidade.

O cientista político Rafael Cortez afirma que a decisão do STF nesta terça agora se junta a outros dois pontos que colaboram para a rejeição ao nome de Moro na disputa presidencial: a participação dele no governo Bolsonaro e o vazamento das mensagens de Moro a outros membros da Lava Jato durante a operação.

"As pesquisas de opinião pública atuais sinalizam uma alta rejeição ao Moro. E com a suspeição, o caminho é que essa rejeição aumente. Me parece que estão diminuindo as possibilidades de o Moro liderar um projeto político nacional", diz Cortez.

"É possível, eventualmente, que ele dispute um outro cargo eletivo, mas do ponto de vista presidencial me parece que o ex-juiz passou a ter um papel menos relevante do que se imaginava que ele poderia exercer", completa.

Vinícius Lemos, da BBC News Brasil em São Paulo, 23 março 2021

terça-feira, 23 de março de 2021

Brasil tem 3.251 mortes por covid-19, novo recorde em 24 horas

É a primeira vez que o número diário de óbitos supera 3 mil no país. Total de vítimas chega agora a 298,7 mil, enquanto soma de infectados vai a 12,1 milhões.

Profissionais de saúde empurram maca dentro de hospital de campanha na Grande São Paulo

O Brasil bateu nesta terça-feira (23/03) um novo recorde de mortes diárias por covid-19 desde o começo da epidemia. Em apenas 24 horas, foram registrados oficialmente 3.251 óbitos ligados à doença, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

É a primeira vez que a cifra diária de mortes supera 3 mil no país. O recorde anterior havia sido registrado em 16 de março, com 2.841 vidas perdidas em 24 horas.

Com o novo balanço, o total de vítimas da doença se aproxima de 300 mil no Brasil, acumulando exatos 298.676 óbitos.

O estado de São Paulo também registrou recorde de mortes nesta terça-feira. Em 24 horas, foram 1.021 óbitos notificados, o equivalente a três mortes a cada quatro minutos.

Em relação aos infectados, o país registrou 82.493 novos casos de covid-19 em 24 horas, somando agora 12.130.019 infecções desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 142,1 no Brasil, a 18ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.507.995 pacientes haviam se recuperado até a segunda-feira.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,9 milhões de casos e mais de 543 mil óbitos.

Ao todo, mais de 123,9 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,7 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 23.03.2021

Segunda Turma do STF declara Moro parcial ao condenar Lula

Ministra Carmen Lúcia altera seu voto e ex-juiz dos processos contra ex-presidente Lula é considerado parcial por 3 votos a 2 no processo envolvendo o caso do tríplex no Guarujá.

Ex-juiz Sergio Moro, à esquerda na foto, foi acusado de parcialidade ao julgar o processo do ex-presidente Lula, à direita

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou por 3 votos a 2 em favor da suspeição de parcialidade do ex-juiz Sergio Moro ao julgar os processos contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba,

O julgamento foi retomado após a análise do caso ter sido interrompida no dia 9 de março  após pedido de vista do ministro Nunes Marques, que afirmou precisar de mais tempo para decidir.

Na sessão anterior, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votaram a favor de que Moro seja declarado suspeito sob o argumento de que o ex-magistrado não tinha a imparcialidade necessária para julgar o petista. Ambos os votos atenderam à demanda do ex-presidente, que chegou a ficar preso por um ano e sete meses e tenta comprovar que seu julgamento não foi justo.

Outros dois integrantes da Segunda Turma, Edson Fachin e Cármen Lúcia, se manifestaram contra a suspeição de Moro, mas ambos ainda podiam mudar seu entendimento até o final do julgamento.

Nesta terça-feira, Nunes Marques devolveu o pedido de vista, o que abriu caminho para a retomada do julgamento. O ministro votou contra a parcialidade do ex-juiz e criticou o uso de habeas corpus para analisar a suspeição do ex-juiz.

Ele também rejeitou o uso das mensagens entre os membros da operação Lava Jato e Sergio Moro que foram hackeadas e divulgadas pelo The Intercept Brasil, em parceria com outros veículos de imprensa.

Nunes classificou que o aproveitamento desse material poderia abrir um precedente perigoso, colocando a sociedade sob um processo "semelhante às piores ditaduras”. "A forma importa nas democracias tanto quanto o conteúdo”, afirmou.

O ministro Gilmar Mendes rebateu as declarações de Marques e disse que seu voto a favor da suspeição de Moro não levou em conta o conteúdo das mensagens vazadas, mas sim, "está calcado nos elementos dos autos” Ele disse que usou as mensagens para "demonstrar o barbarismo em que incorremos”.

Ele ainda questionou a confiabilidade do ex-juiz de dos membros da força-tarefa da Lava Jato. "Algum dos senhores compraria um carro do Moro, um carro do [procurador Deltan] Dallagnol?” perguntou.

Pouco depois, as atenções se voltaram para a ministra Carmen Lúcia. Ela avaliou que novos elementos reunidos no processo comprovariam que a atuação de Moro não foi imparcial, além de ter favorecido a acusação, o que torna o julgamento irregular.

Ela disse que a análise sobre os fatos levantados pela defesa do ex-presidente apontam uma conduta irregular do magistrado, e sublinhou que ninguém deve ser perseguido por um juiz ou tribunal. 

A ministra disse haver sinais de que teria havido uma confusão entre o Moro e o órgão acusador, o Ministério Público, o que compromete a imparcialidade no processo do ex-presidente.

Dessa forma, Moro foi julgado imparcial pela Segunda Turma do STF por 3 votos a 2. 

Anulação das condenações de Lula

O habeas corpus analisado pela Segunda Turma foi impetrado pelos advogados do petista e sua análise estava suspensa desde 2018, quando Gilmar havia pedido vista.

A Segunda Turma retomou a análise do recurso de Lula que pede que o ex-magistrado seja declarado suspeito um dia após o ministro Edson Fachin ter decidido, de forma individual, que Moro não era o juiz competente para analisar as denúncias contra o petista.

Fachin anulou as condenações contra o ex-presidente, que recuperou seus direitos políticos, e determinou o encaminhamento de seus processos para a Justiça Federal do Distrito Federal.

A suspeição atesta a parcialidade do juiz para analisar um caso, enquanto a incompetência conclui que o foro para o julgamento não era o adequado.

A decisão de Fachin, defensor da Lava Jato, despertou controvérsia no meio político e jurídico porque poderia ter como consequência o não julgamento das ações que pedem a decretação da suspeição de Moro.

Se isso ocorresse, a atuação do ex-juiz e da Lava Jato seria preservada, apesar de vazamento de diálogos de Moro com os procuradores da força-tarefa terem levantado suspeitas de conluio na condução de inquéritos e ações penais contra diversos réus.

Fachin argumentou que sua decisão afastaria a necessidade de julgamento da suspeição de Moro, mas Gilmar discordou e decidiu colocar o processo em pauta na 2ª Turma. Fachin ainda tentou levar a análise do caso para o plenário do Supremo, mas foi derrotado por quatro votos a um.

Deutsche Welle / Brasil, em 23.03.2021

Freando Bolsonaro

Os que detêm algum poder devem refrear a irresponsabilidade bolsonarista

O presidente Jair Bolsonaro achou que era o caso de comemorar seu aniversário, no domingo passado, comendo bolo com uma centena de devotos na frente do Palácio da Alvorada. Dizem que com a idade vem a sabedoria, mas não há sabedoria nenhuma em promover aglomeração numa festinha quando os brasileiros precisam ficar em casa, longe de familiares e com dificuldade para estudar e trabalhar, diante da escalada mortal da pandemia de covid-19 e do colapso do sistema de saúde.

No convescote, Bolsonaro aproveitou para reiterar seus reptos à democracia. Chamou os governadores de “tiranetes” por ampliarem as medidas de isolamento social. “Estão esticando a corda”, ameaçou o presidente, para em seguida dizer que fará “qualquer coisa pelo meu povo” – e esse “qualquer coisa”, segundo Bolsonaro, “é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

Traduzindo a glossolalia bolsonarista: o presidente considera que as medidas de distanciamento servem para, em suas palavras, levar o povo à miséria e daí “para o tudo ou nada”, abrindo “o caminho para mergulhar no socialismo”. Esse é o pretexto que Bolsonaro vem invocando nos últimos dias para inventar que a Constituição lhe faculta o poder de decretar, à sua maneira, medidas de exceção, como estado de sítio.

O absurdo da ameaça de estado de sítio é tamanho que levou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, a telefonar para Bolsonaro e cobrar explicações sobre suas declarações. Consta que o presidente negou ao ministro ter cogitado decretar medidas de exceção – o que suas próprias palavras desmentem –, mas o simples fato de que o presidente do Supremo tenha pedido esclarecimentos a Bolsonaro mostra que felizmente há limites institucionais para a desfaçatez.

Há limites políticos também. Reportagem do Estado publicada no domingo mostra que lideranças do Centrão começam finalmente a repensar o apoio que dão a Bolsonaro. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por causa da pandemia”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).

As cobranças estão ficando cada vez mais explícitas. O Centrão pressionou pela troca no Ministério da Saúde para sinalizar uma mudança radical no modo como o governo administra a crise, mas Bolsonaro optou por um novo ministro que já declarou sua disposição de manter tudo como está. “A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes”, demandou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

Não deve ser nada fácil mesmo apoiar um presidente que já trocou de ministro da Saúde três vezes desde o início da pandemia, há um ano. Para piorar, a mais recente substituição, anunciada há uma semana, continua sem ser efetivada porque o novo ministro, Marcelo Queiroga, ainda não cumpre requisitos formais para ocupar o cargo, o que levou à esdrúxula situação de um Ministério da Saúde acéfalo, embora tenha dois ministros – um titular e um trainee.

Há ainda outro complicador. A conduta irresponsável de Eduardo Pazuello, o ex-ministro que ainda é ministro, à frente da Saúde durante a pandemia é objeto de inquérito no Supremo. Caso o intendente perca mesmo o status de ministro e, portanto, o direito a foro privilegiado, seu processo deve ser remetido à primeira instância. Especula-se que Bolsonaro pensa até em presentear seu fiel sabujo com um Ministério – algo que a então presidente Dilma Rousseff tentou fazer com Lula da Silva, para dar ao encalacrado chefão petista direito a foro privilegiado, o que escandalizou o País.

É disso que se ocupa diuturnamente o presidente da República: proteger a si mesmo e a seus chegados. Nada além disso – nem os mais de 2 mil mortos por dia, nem a falta de leitos nos hospitais, nem a lentidão da vacinação, nem o empobrecimento acelerado dos brasileiros – parece capaz de comover Bolsonaro.

Assim, todos os que têm algum poder devem exercê-lo para refrear a irresponsabilidade bolsonarista, seja retirando o apoio ao presidente, seja lembrando-lhe que sua vontade não é a lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021

Projeto de Orçamento dá a militares 1/5 dos investimentos e reajuste salarial

Em vez de sofrer cortes, como outros ministérios, recursos para as Forças Armadas subiram e chegaram a R$ 8,32 bi; para a área de saúde, houve um aumento de apenas R$ 1,2 bi em relação ao projeto que foi enviado no ano passado​

O Orçamento de 2021, previsto para ser votado esta semana com quatro meses de atraso, destina R$ 8,3 bilhões para investimentos do Ministério da Defesa, um quinto (22%) do total para todo o governo federal, segundo relatório do senador Márcio Bittar (MDB-AC) apresentado ontem. Os militares também são a única categoria que deve ser contemplada este ano com reajuste, o que deve consumir outros R$ 7,1 bilhões dos cofres públicos, enquanto todo o restante do funcionalismo está com o salário congelado até dezembro. 

No momento de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo agravamento da pandemia da covid-19, o parecer aumentou em apenas R$ 1,2 bilhão a destinação de recursos para a saúde em relação ao projeto que foi enviado pelo governo no ano passado.

Em vez de sofrer cortes, como outros ministérios, o orçamento de investimentos das Forças Armadas até mesmo subiu de R$ 8,17 bilhões para R$ 8,32 bilhões de um total de R$ 37,6 bilhões previstos no parecer. A lista dos projetos dos militares é extensa e inclui recursos para a construção de submarinos nucleares e convencionais, aquisição de aeronaves de caça, desenvolvimento de cargueiro tático e compra de veículos blindados. 

Além de mais investimentos, militares devem contar com reajuste de soldo no ano. Foto: Gabriela Biló/Estadão

O incremento tímido de recursos para a saúde, na maior crise sanitária da história, põe em xeque o discurso de parlamentares de reforço da área, mas antecipa um movimento de senadores e deputados aliados: a expectativa de que serão editados mais créditos extraordinários para financiar despesas extras para a saúde, que ficam fora do teto de gastos, a regra que trava o crescimento das despesas à inflação.

Mesmo com o Orçamento aprovado, o governo federal pode bloquear gastos não obrigatórios, incluindo os investimentos, como estratégia para cumprir a meta fiscal deste ano, que permite rombo de até R$ 247 bilhões.

Segundo cálculos do assessor no Senado e especialista em gastos de saúde, Bruno Moretti, o orçamento para ações e serviços públicos de saúde, o que é contabilizado para apuração do mínimo e não leva em conta os gastos com aposentadorias e pensões, ficou em R$ 125 bilhões, abaixo do valor inicial do Orçamento de 2020, que foi de R$ 125,2 bilhões, sem os recursos extraordinários da pandemia. “Em meio à pandemia, há queda nominal e real de recursos para o SUS. Se observarmos o Orçamento aplicado em 2020. Incluindo os créditos extraordinários, a queda em 2021, considerando a Lei Orçamentária, é de R$ 36 bilhões”, calcula Moretti. Nesse contexto, afirma ele, serão reduzidas as transferências aos Estados e municípios e as compras centralizadas para aquisição de medicamentos de UTI, manutenção e expansão de leitos, entre outras despesas. 

A presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO), Flavia Arruda, criou uma ação especial do Orçamento para reforçar as emendas e conseguiu cerca de R$ 900 milhões a mais para a área. O problema é que o governo enviou o projeto de Orçamento com a previsão de gastos com o valor do piso constitucional de R$ 123,8 bilhões e colocando na conta as emendas dos parlamentares, o que dificulta o espaço para aumento dos recursos para a saúde.

Ano eleitoral

O Congresso decidiu turbinar as áreas de interesse eleitoral. O volume de recursos com a digital dos parlamentares neste ano vai chegar a R$ 22,2 bilhões. O valor das emendas representa um aumento de quase R$ 6 bilhões em relação ao proposto inicialmente pelo Executivo. Só de emendas indicadas diretamente pelo relator-geral do Orçamento, o valor é de R$ 3 bilhões. 

A maior parte das indicações nas mãos do relator (R$ 1,129 bilhão) ficou vinculada a projetos do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apontados como estratégicos para Bolsonaro recuperar índices de popularidade, além da área social. Na prática, a destinação desse dinheiro poderá ser negociada com parlamentares em troca de apoio ao Executivo. A pasta saiu de um orçamento de R$ 6,5 bilhões para R$ 10,7 bilhões em 2021.

Além de obras, o Senado quer mais recursos para o Pronampe, que financiou micro e pequenas empresas no ano passado em função do novo coronavírus. Recentemente, os senadores aprovaram um projeto para tornar a nova linha de financiamento do programa permanente. Dos R$ 4,8 bilhões solicitados no Orçamento para irrigar o Pronampe, porém, o relator aprovou apenas R$ 1 bilhão. 

Para o consultor da Câmara, Ricardo Volpe, o relator Bittar foi “comedido” no parecer diante da pressão política, mas houve uma revisão de estimativas de receitas para cima, em R$ 14 bilhões, não acompanhada pela revisão nas projeções de gastos. “Diante dessa pressão gerada pelas reestimativas e pela falta de espaço no teto, ele cortou R$ 1,75 bilhão do Censo, que nesse momento de pandemia provavelmente não deve sair de novo”, disse. 

Volpe chama a atenção para o fato de o relatório não ter reestimado o gasto da Previdência. Pelos cálculos, só na Previdência a estimativa de pagamento deveria ser elevada em R$ 8,3 bilhões por causa do impacto do aumento do salário mínimo. Esse quadro já antecipa um bloqueio à vista do Orçamento, que deverá ocorrer em abril.

Adriana Fernandes e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021