quarta-feira, 10 de março de 2021

'Melhor modo de pensar em si é pensar em todos', diz Nizan Guanaes

Empresário pede ‘uma ONU da saúde’ porque ‘mais pandemias virão’ e critica o radicalismo das redes sociais: ‘Democracia é concordar em discordar’

Entrevista com Nizan Guanaes, publicitário e empresário 

Longe da pauleira em que viveu por tantos e longos anos, o empresário Nizan Guanaes* tem passado os dias quieto no seu canto, trabalhando muito e estudando. “Começo de manhã, vou até 2 horas da madrugada. Muito focado.” E seu foco é definir estratégias e caminhos na N Ideias, empresa que toca com mais três pessoas desde que deixou o Grupo ABC. 

Aos 63 anos, o soteropolitano Nizan, que acumulou na carreira muitos prêmios, vê no mundo à sua volta “um detox do custo, do gigantismo” e seu lema do momento é: “Acredito em grandes empresas pequenas.” Quanto ao gigantismo dos conglomerados, ele não titubeia: “Quem tem custo, tem medo.” Integrante do grupo Unidos pela Vacina, onde empresários buscam ajudar na pandemia, ele se preocupa com o que vem pela frente. “O vírus não tem fronteira”, diz ele. “Precisamos construir uma Otan, uma ONU da saúde, porque novas pandemias virão.” E já formulou a ideia chave para estes tempos: “O melhor modo de pensar em si é pensar em todos.”

Nesta conversa com Cenários, o publicitário diz que a crise da democracia o preocupa. “O rito democrático vem sendo perdido, as redes sociais fazem um papel horroroso.” Democracia, adverte, “é concordar em discordar.” A seguir, os principais trechos da conversa. 

'O vírus não tem fronteira', diz Nizan Guanaes. Foto: Marcelo Navarro

Com tanta coisa acontecendo para todo lado, o que mais lhe chama a atenção no momento? 

Permita-me começar saudando a Vicky Safra e os familiares do seu José (Safra), por quem tenho profunda admiração. Escrevi um texto quando ele se foi, tive mais de mil comentários, vi como ele era querido. E me lembrei de uma passagem de 20 anos atrás, quando ele me telefonou para dizer que queria me entregar a conta de seu banco. ‘Mas, seu José, eu já tenho a conta do Itaú’, eu respondi. E ele: ‘Não tem conflito, meu banco é pequeno’. Sim, ele pensava grande: achava que seu banco era pequeno.

Mas, vendo o mundo agora, com a pandemia e tantas variantes, teremos de achar outro jeito de conviver, né? 

Concordo inteiramente. Eu tenho trabalhado muito, absolutamente focado. Começo de manhã, vou até as 2 horas da madrugada. E toda vez que o trabalho muda, o mundo também muda. E vem uma mudança em cadeia, é o crescimento do online, a evasão dos grandes centros, o Wi-Fi, a tecnologia. Meu analista, por exemplo: digo a ele, ‘não quero ir até a Vila Olímpia, quero fazer daqui de Trancoso’. Mas veja, além de um festival de horrores nessa pandemia, há também um mar de oportunidades.

Há pouco tempo, em entrevista, o presidente de uma montadora me disse que passou a contratar gente não mais pelo preparo técnico e, sim, pela habilidade em lidar com as pessoas. O que sobrará para o ser humano fazer? 

Vai sobrar aquilo que faz dele humano: as coisas que transcendem. Olha que incrível: as montadoras vão convidar filósofos para trabalhar com eles, porque, como o carro é automático, ele, carro, vai ter de tomar decisões que o homem toma em segundos. E se ele atropela uma criança? Se bate em uma árvore?

De que modo um filósofo poderia ajudar em tais situações?

Vai ajudar na programação de decisões, digamos, não mecânicas. Terão de andar juntas coisas que, antes, nunca andaram. Tem coisa que vai mudar radicalmente, como a ocupação imobiliária dos escritórios. Tudo vai ser home office? Não, mas as ‘homes’ vão se alterar, assim como os ‘offices’. Às vezes, me perguntam sobre o ‘novo normal’, e eu digo: não muda a natureza humana, mas os rituais e processos vão evoluir. 

Percebi que as pessoas controladoras estão sofrendo muito. O sujeito não sabe o que vai fazer amanhã, se vai fechar ou abrir a sua empresa. Como isso vai afetar a iniciativa privada?

Acho que vai mudar a escala do que é médio ou longo prazo.

Médio prazo é amanhã e o longo é dois dias depois?

Exatamente. E o grande CEO de amanhã é aquele que sabe dar um cavalo de pau. Veja o Fred Trajano (CEO da Magalu), pegou a companhia e a mudou em três meses. É a capacidade de mudar de curso rapidamente. Para mim, a empresa moderna é ambidestra, criativa de um lado e executora de outro. As empresas vão ter de passar por um novo desenho, inclusive mental. E o que eu estou fazendo a respeito? Estou estudando. Todo dia, entre o meio-dia e uma da tarde, eu estou fora do ar, estudando.

O que você estuda?

Quero me atualizar nas coisas que faço, planejamento estratégico. O mundo hoje é do tipo ‘life long learning’ (aprendizado pela vida toda), tem de estudar muito nos ciclos da vida.

Você saiu de uma empresa de 2.500 pessoas e agora trabalha praticamente só. Como foi essa passagem?

Eu acredito muito em grandes empresas pequenas, que é como eu qualifico a N Ideias. Quem tem custo, tem medo. Estou centrado na estratégia. Vamos voltar ao Safra. O silêncio dos Safras era uma incrível estratégia de marketing, e muito bem colocada. Antigamente, havia uma única bala: publicidade, anúncio. Hoje, não. São as relações públicas, embalagem, eventos, mídia digital. Então, eu sou o Waze das grandes marcas. 

O que quer dizer com isso?

Você quer chegar a um lugar, então vamos combinar juntos o melhor caminho. Hoje eu tenho um luxo, que é trabalhar para seis marcas muito inspiradoras. Não trabalho com velocidade e, sim, com profundidade e arrumo tempo para estudar. Em outubro ou novembro, se Deus permitir, vou passar 40 dias em Harvard. Estudar continuamente é um novo modo de vida. 

O que vai acontecer na área da comunicação? TV, rádio, jornais, redes sociais?

Um mar de oportunidades para quem não tem custo. Acho que o mundo hoje é o detox do custo, do gigantismo. Há muita oportunidade nesse setor. Veja bem: todo mundo fala no fim do jornal, mas ninguém quer vender. 

Acha que o jornal impresso caminha para ter mais conteúdo e o online, a notícia em si, mais rápida?

Acho que nunca se precisou tanto de jornal, de jornalista. Não importa para o consumidor se o jornal é de papel ou digital. Eu, por exemplo, adoro jornal de papel, para mim ele é ‘a alta costura’ do jornal. Mas como está tudo mudando, imagino que os jornais e a televisão serão híbridos. Os reality shows de hoje são coisa de TV e digital. O Super Bowl americano era o maior evento de TV do mundo, hoje é o maior evento de TV e digital. 

O que vimos foi que os jornais sérios sobreviveram, os outros, morreram. Mas nas mídias sociais é complicado combater as fake news. Como vê isso?

Não sou especialista, mas diria que praticamente todas as indústrias têm os mesmos problemas. Onde elas só veem problemas, no entanto, a startup vê uma oportunidade, entendeu? Por exemplo, uma das maiores adesões do público ao New York Times são as palavras cruzadas. O jornal está monetizando as sessões de vinho, de comida, e as pessoas dizem que ‘isso não é importante’. Bem, eu acho que o ser humano não vive, literalmente, sem comer e sem beber. 

É um fato, goste-se ou não.

Quer ver uma coisa que me estarrece? O tal jornalismo imparcial. Não, nós, leitores, queremos parcialidade! O jornal que eu leio tem de ter uma opinião de mundo com a qual eu comungo. É bem diferente do jornal que distorce a verdade. O The New York Times é o meu jornal, ele tem opiniões. Não me representa em tudo, mas ele é um time, uma igreja da qual eu participo. 

Mudando de Nova York para Washington, o que acha que vai acontecer nos EUA de Joe Biden?

Olha, dia 8 de abril vou entrevistar o (ex-presidente americano) Bill Clinton para os clientes da N Ideias. Convidei os seis CEOs e alguns executivos e vou fazer essa mesma pergunta. Vamos ouvi-lo sobre o que se pode esperar de agricultura, mudança climática e outros desafios. Olha, não sei o que vai acontecer, mas acredito muito na têmpera de negociador do Biden. Acho que essa crise se perdeu porque não havia um ‘Obama’ à frente, nos EUA. Aí, os países foram pensando cada um em si mesmo. Mas o vírus não tem fronteiras. 

E o que isso significa?

Que o vírus não tem passaporte, e nós precisamos construir uma Otan da saúde, uma ONU da saúde, pois novas pandemias virão. Teremos de pensar em cadeia, cooperar. É preciso uma compreensão de que as grandes empresas, as big techs, não podem ser largadas soltas, entendeu? O Facebook não pode entrar e destruir um setor, criar desemprego loucamente, sem que haja uma política social correspondente. Hoje, no mundo, você tem de trabalhar em conjunto, como diz o (autor israelense) Yuval Harari.

Mas aqui no Brasil a coisa está muito dividida, não acha?

O debate hoje é assim: A apontando para B, cada um com retórica pior que a do outro. Há um rito democrático que vem sendo perdido e temos de resolver isso conversando. Nós, no grupo Unidos pela Vacina, não discutimos política. Somos um conjunto de empresários e grupos privados que quer discutir e achar a solução. Como, onde e quando fazer a vacina chegar a todos os brasileiros e logo. A meu ver, as redes sociais fazem um papel horroroso. E as pessoas acham que likes e comentários horríveis são uma vida política. Não são! 

Qual a sua mensagem final, resumindo a sua visão disso tudo?

Precisamos achar um caminho democrático, de cortesia. O que é a democracia? É concordar em discordar. É que, neste momento do mundo, a melhor maneira de pensar em si é pensar em todos. Adoro as pessoas, sejam iguais a mim ou não, o importante é que pensem. 

Nizan Guanaes é baiano de Salvador. Publicitário e consultor de empresas no N Ideias. Ex-sócio do Grupo ABC, integra o Grupo Unidos pelas Vacina e Participa do Clinton Global Iniciative.

Sonia Racy, O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021

Em 13 Estados e DF, 4,3 mil pacientes da covid-19 estão na fila por leito

Ao menos 2.257 precisam de UTI; 14 secretarias de saúde informam ter doente em algum grau de espera e só seis disseram que não têm fila

Treze Estados e o DF informaram ter paciente em algum grau de espera, seis disseram que não têm fila e sete não responderam ou disseram não ter os dados consolidados de lista de espera. Dezesseis Estados apresentavam ontem taxa de ocupação de UTIs igual ou superior a 80%.

A situação mais crítica é a do Paraná, Estado que registra a maior fila, com 1.071 doentes aguardando transferência anteontem – 519 deles por um leito de terapia intensiva. Na sequência estava São Paulo, com mil pacientes na espera (não foram especificados quantos são por UTI ou por leitos clínicos).

Os outros Estados da região Sul, que vêm registrando cenas de colapso desde a semana passada, continuam em situação crítica. São 388 nomes na lista de espera por UTI em Santa Catarina – que tem a maior taxa de ocupação do País (99,16%) – e 248 no Rio Grande do Sul. Também em situação delicada está a Bahia, onde 326 pacientes aguardavam ontem por uma vaga de UTI (veja quadro nesta página).

Paciente com covid atendido em hospital em São Paulo. Estado tem mil pacientes em espera por leitos ( Crédito Foto: Nilton Fukuda / Estadão)

'Temos de escolher quem mandar para a UTI'

Infectologista de dois dos maiores hospitais de Porto Alegre (um público e outro privado), Alexandre Zavascki conta que os profissionais estão tendo de utilizar respiradores não ideais para pacientes com covid diante da falta de equipamentos do tipo. “São respiradores que seriam adequados para um paciente que está apenas anestesiado durante uma cirurgia. Não são ventiladores com capacidade plena em todos os parâmetros”, diz o especialista.

Ele relata ainda que a tão temida escolha de quais pacientes priorizar em um cenário de colapso já está acontecendo no Rio Grande do Sul. “A gente vê pacientes graves no leito comum e sabe que não tem vaga. Temos de escolher quem mandar para a UTI e alguns deles não resistem a essa espera”, diz.

Zavascki conta que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, uma das unidades onde ele atua, chegou ao ponto de não ter mais espaço físico para a colocação de camas. “Abrimos uma sala que era de recuperação pós-cirúrgica para leitos covid e lotou. Depois, abrimos uma sala maior desse tipo para covid e também lotou. Agora, abrimos a sala de recuperação pós-cirúrgica infantil e está indo para o mesmo caminho. Não tem mais para onde expandir. O próximo passo do colapso é as pessoas morrerem nas ambulâncias ou em casa”, disse ele.

No Pará, embora a rede pública ainda não tenha entrado em colapso, os hospitais privados já não têm como aceitar mais doentes, segundo relato do médico Robson Tadachi, diretor técnico de uma das unidades da Unimed Belém.

Ele conta que a operadora não encontra leitos disponíveis nos hospitais da rede credenciada. “Chego a ter 50 pacientes na espera por dia e todas as unidades que pedimos leitos estão lotadas. É uma sensação de enxugar gelo porque chegam cada vez mais pacientes”, diz.

Um exemplo da situação dramática pela qual passa o Brasil ocorreu no fim de semana passado, quando o governo de Mato Grosso acionou o sinal de alerta. Mesmo com uma fila não tão grande na comparação com outros Estados – 44 à espera de uma vaga de UTI –, mas com a segunda maior taxa de ocupação do País (98,96%), a Secretaria de Saúde enviou um pedido de ajuda para outros Estados.

O secretário checou se alguém tinha condições de aceitar transferência de pacientes do Estado com covid-19. Com um nível de ocupação elevado em todo o País, nenhum deles respondeu positivamente.

No sábado, a morte de um enfermeiro de Cuiabá comoveu os profissionais de saúde do Estado. Ele havia trabalhado por anos, até se aposentar, no pronto-socorro municipal da cidade e acabou morrendo justamente pela falta de leito de terapia intensiva.

O momento de expansão desenfreada do vírus observado em todo o País é agravado pela exaustão dos profissionais de saúde. “Estamos vivendo um momento de muita piora mesmo e a grande dificuldade é não ter um auxílio do governo, então não tem como fazer um isolamento efetivo”, comenta o infectologista Bruno Ishigami, do Hospital Oswaldo Cruz, de Recife. O Estado tinha ontem 95% de ocupação dos leitos de UTI públicos.

“Isso está nos angustiando. Só escuto meus amigos falando: ‘velho’, eu não aguento mais, tô cansado. É 2020 se repetindo, estamos presos no ano passado, só que está pior”, lamenta o médico. “A explosão de casos ainda não se refletiu muito em aumento de mortes, mas imaginamos que logo vai acontecer, o que está nos dando muito medo. Se no Rio Grande do Sul a segunda onda foi muito pior, aqui como vai ser?”

Fabiana Cambricoli e Giovana Girardi, O Estado de São Paulo10 de março de 2021

A ficha moral de Lula é suja

      Seu retorno à ribalta eleitoral atira o País num turbilhão de incertezas, em meio a uma pandemia e ao desgoverno de Bolsonaro

A defesa do ex-presidente Lula da Silva tanto fez que conseguiu: depois de anos a invocar questões processuais para questionar as condenações de seu cliente por corrupção, finalmente foi premiada com uma decisão judicial que, na prática, livra o demiurgo de Garanhuns de prestar contas à Justiça e, ademais, lhe restitui os direitos políticos.

Desse modo, o sr. Lula da Silva pode até subir nos palanques dos grotões miseráveis onde ainda é rei para pedir votos e, eventualmente, voltar ao poder, mas ainda assim, para todos os efeitos – morais e políticos –, terá seu nome indelevelmente vinculado a múltiplos escândalos de corrupção, marca que nenhuma chicana será capaz de apagar. Lula foi até agora incapaz de explicar não apenas os mimos generosos que recebeu de empreiteiros delinquentes, objeto de suas condenações ora contestadas, mas principalmente os monstruosos esquemas de roubalheira que marcaram o mandarinato lulopetista.

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que beneficiou o sr. Lula da Silva, adotada na segunda-feira, não entrou no mérito das condenações e, portanto, não considerou o chefão petista inocente de nada. O que o ministro Fachin fez foi entender que Sérgio Moro, então juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, não era competente para julgar os casos envolvendo o ex-presidente, pois em tese esses casos não tinham vínculo direto com o escândalo da Petrobrás – foco da Operação Lava Jato.

De fato, era preciso um grande esforço interpretativo para incluir os casos envolvendo Lula diretamente no organograma do petrolão. Esse, aliás, é um dos pecados capitais cometidos pela Lava Jato – a pretensão de ser o patíbulo de todos os políticos e empresários corruptos do Brasil, como se todos os casos fossem conexos e como se Sérgio Moro fosse o juiz natural de qualquer processo de corrupção.

Enfatize-se, de novo, que isso nada tem a ver com a materialidade dos crimes monumentais cometidos sob as bênçãos de Lula da Silva. Mesmo com a suspeita de que Sérgio Moro foi parcial ao julgar os casos de Lula, que seria avaliada ontem pela segunda turma do Supremo, não é possível simplesmente considerar, como num passe de mágica, que não houve assalto lulopetista à Petrobrás, que não houve escandalosa promiscuidade no Congresso, que não houve indecente relação de Lula com empreiteiros.

O imbróglio, ademais, diz muito sobre o Judiciário, que sai lanhado. Não há explicação, compreensível para leigos, para o fato de que se tenha levado tanto tempo para processar, julgar e condenar Lula, mesmo diante de tantas evidências; para que a defesa do ex-presidente tenha tido tantas possibilidades de recurso mesmo com condenações em três instâncias; para que o Supremo decidisse pela enésima vez mudar a jurisprudência sobre prisão após condenação em segunda instância, o que permitiu a libertação de Lula; e finalmente para que se tenha decidido somente agora que Curitiba não era o foro correto para os casos do sr. Lula da Silva, sendo que havia jurisprudência específica sobre o escopo da Lava Jato desde 2015 – aliás, citada pelo próprio ministro Fachin em sua intempestiva decisão.

É como se o juiz resolvesse marcar, no final do segundo tempo, um pênalti supostamente cometido no primeiro. Há muitas explicações possíveis para esse casuísmo, e nenhuma delas é bonita.

Que, em meio a essa barafunda, o eleitor não perca de vista: Lula, que sempre contou com chicanas e prescrições para voltar a concorrer à Presidência, pode ser agora formalmente ficha-limpa, mas continua moralmente ficha-suja. Seu retorno à ribalta eleitoral, nessas condições, atira o País num turbilhão de incertezas, em meio a uma pandemia mortal e ao desgoverno do extremista Jair Bolsonaro.

É o pior dos mundos, situação que interessa somente aos populistas radicais e irresponsáveis que protagonizam a vida nacional há tantos anos. Mais do que nunca, quem ainda acredita na democracia e nos valores republicanos precisa se organizar, e rápido, para convencer os brasileiros de que há alternativa civilizada ao caos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021

O impacto do fator Lula nas eleições de 2022

Volta do ex-presidente pode reduzir chances de nomes do centro alcançarem segundo turno em 2022. Mas arrefecimento do "antipetismo" e entrada em cena do "antibolsonarismo" também embaralham chances de Bolsonaro.

Candidatura de Lula seria notícia ruim para forças de centro, segundo especialistas

Na tarde de segunda-feira, a vida política do Brasil foi fortemente abalada. De forma surpreendente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou quatro processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, abrindo caminho para uma nova candidatura do petista. "Se, de fato o Lula vier a ser candidato, o jogo de 2022 muda completamente", diz o cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "E aí fica quase certo que o segundo turno da eleição será entre Lula e Bolsonaro. Pelo menos esse é o cenário que a gente tem hoje."

Fachin, relator dos processos da Lava Jato no STF, cancelou todos as quatro processos judiciais envolvendo Lula em Curitiba, incluindo o sobre o tríplex no Guarujá, supostamente presenteado a Lula por uma construtora. Neste caso, Lula foi preso por 580 dias entre abril de 2018 e novembro de 2019, por corrupção e lavagem de dinheiro, não tendo podido concorrer às eleições de 2018, vencidas por Bolsonaro.

Notícia ruim para o centro

Em outro julgamento, Lula já foi condenado por corrupção envolvendo um sítio frequentando pelo petista em Atibaia. Dois outros processos, envolvendo o Instituto Lula, no entanto, ainda estão nos estágios iniciais. Ao anular os processos, considerando que os juízes curitibanos não são competentes para julgar Lula, encaminhando os processos para a Justiça Federal em Brasília, o petista recupera seus direitos políticos.

Praça ressalta, no entanto, que ainda não está totalmente claro se o duelo com o ex-militar Bolsonaro ocorrerá no final de 2022. Porque o Brasil está no meio de uma pandemia e de uma crise econômica, que podem enfraquecer Bolsonaro eleitoralmente.

A provável candidatura de Lula é uma péssima notícia menos para possíveis candidatos do centro, como o governador de São Paulo, João Doria, ou o apresentador Luciano Huck. O cientista político acredita que a entrada de Lula no jogo faz com que o segundo turno se torne um sonho mais distante para eles.

Apoiadores de Lula em 2018 em frente ao prédio da Polícia Federal em Curitiba

Batalha de extremos

Até agora, a oposição não conseguiu benefícios com os erros de Bolsonaro na política econômica e na luta contra a pandemia. Praça acredita, por isso, que uma candidatura de uma raposa política como Lula agrada muita gente. No entanto, sua candidatura também levaria a uma possível campanha eleitoral dos dois polos – com Bolsonaro na extrema direita e Lula na esquerda. Em última análise, esta é a melhor constelação tanto para Bolsonaro como para Lula, pois proporciona uma linha divisória clara entre os dois campos.

Em qualquer caso, Bolsonaro teria reagido com extrema tranquilidade ao cancelamento dos processos, de acordo com relatos da mídia. Porque em 2018 o sentimento anticorrupção contra Lula e seu PT o ajudou a vencer. "O anti-petismo ainda está presente, tem muita gente que nunca votaria no Lula”, diz Praça. Mas recentemente as pesquisas surpreenderam. Segundo sondagens, 44% afirmaram que definitivamente não votariam em Lula, mas a rejeição do Bolsonaro, de 56%, foi ainda maior.

Clima anti-PT se arrefece

Portanto, o auge do clima anti-PT parece ter ficado para trás. Muito pode ser atribuído às revelações depois que hackers terem invadido arquivos de mensagens de juízes e procuradores da Lava Jato em 2019, expondo conluios contra Lula. Além disso, muitos brasileiros têm boas lembranças do ex-presidente. "Acho que a impressão que fica sobre Lula, é que ele pode ter vindo de um partido corrupto e que podia ter tido corrupção no seu governo, mas que ele é um político competente", sublinha Praça, acrescentando ser algo que o diferencia do atual governante Jair Messias Bolsonaro, que é corrupto e, ao mesmo tempo, incompetente.

Crises sanitária e econômica podem se refletir em popularidade de Bolsonaro

Muitos caminhos levam à candidatura

Pouco depois de anunciada a anulação dos julgamentos, a Procuradoria-Geral da República anunciou que entraria com recurso. Isso significa que a decisão de Fachin deve ser analisada pelo plenário do STF. Mas Fachin pode contar com o apoio da maioria de seus colegas, segundo o coordenador do Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Michael Mohallem.

A candidatura de Lula também pode ser ameaçada pelo novo juiz em Brasília. Pelo menos em teoria, embora seja hipótese pouco provável, acredita Mohallem. "Mesmo que o novo juiz condene o Lula, não haverá tempo para as duas condenações", explica. Isso seria necessário para que Lula voltasse a ser considerado inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. O prazo para isso seria a data de inscrição para a candidatura de Lula, dentro de cerca de 16 meses.

"Não me parece que esse juiz vá querer cometer o mesmo erro de acelerar exageradamente o processo", opina Mohallem, que atualmente realiza uma investigação que mostra que os processos de Lula em Curitiba percorreram as instâncias com velocidade muito maior que o normal.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Em carta, Brasil apela à China por mais vacinas

Governo Bolsonaro, que disse que jamais compraria vacina chinesa, admite que campanha pode parar e pede a Pequim outro imunizante, além da Coronavac. Mensagem foi enviada a embaixador que presidente tentou remover.

Funcionária da Sinopharm inspeciona vacinas

Reconhecendo que a campanha nacional de imunização contra a covid-19 corre o risco de ser interrompida no Brasil por falta de vacinas, o Ministério da Saúde enviou uma carta ao embaixador da China em Brasília pedindo que este interceda junto à estatal Sinopharm para liberar 30 milhões de doses de seu imunizante ao Brasil.

Na carta enviada ao embaixador Yang Wanming, o secretário-executivo do ministério, Antônio Elcio Franco Filho, afirma que, diante da escassez da oferta internacional, o governo brasileiro vem buscando estabelecer contato com novos fornecedores, em especial a Sinopharm. 

"Nesse contexto, muito agradeceria os bons ofícios de Vossa Excelência para averiguar a possibilidade de a Sinopharm fornecer 30 milhões de doses da vacina BBIBP-CorV, em cronograma e preço a serem acordados, se possível, ainda para o primeiro semestre de 2021, com possibilidade de quantidades adicionais para o segundo semestre deste ano", diz a carta, datada desta segunda-feira (08/03).

O secretário-executivo da pasta ressaltou que o Brasil enfrenta a variante do coronavírus conhecida como P1, originária de Manaus e mais contagiosa.

"O Ministério da Saúde está ciente da importância de conter essa cepa e de impedir que se espalhe pelo mundo, recrudescendo a pandemia. A principal estratégia brasileira para conter a pandemia e, em particular, essa variante P1 é intensificar a vacinação", afirma.

A vacina da Sinopharm, chamada de BBIBP-CorV, tem eficácia 79,3% em evitar casos graves de covid-19, segundo a fabricante. Ela não foi comprada e nem estava entre as negociadas pelo Ministério da Saúde até o momento. A Coronavac, jé em uso no país, também foi desenvolvida na China, mas por outra empresa, a Sinovac.

Histórico de conflitos

O pedido de auxílio vem em meio ao recrudescimento da epidemia de covid-19 no Brasil, com seguidos recordes de mortes, e a críticas sobre a lentidão da campanha de imunização. Ocorre ainda após uma série de atritos entre os governos do presidente Jair Bolsonaro e o chinês e críticas a vacinas contra a covid-19 provenientes da China.

O embaixador chinês a quem a carta foi endereçada é o mesmo que o governo Bolsonaro já pediu duas vezes para ser trocado após conflitos. Os pedidos de troca não foram aceitos pelo governo chinês.

Em março de 2020, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, declarou que a China era a culpada pela pandemia. No mês seguinte, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, insinuou que o país asiático teria ganhos com a disseminação do coronavírus Sars-Cov-2, causador da covid-19, e fez piada com o sotaque chinês. À época, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, manifestou repúdio e exigiu um pedido de desculpas por parte do governo brasileiro.

Em outubro, Jair Bolsonaro afirmou categoricamente que não compraria a vacina chinesa Coronavac – em claro embate com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que impulsionou o desenvolvimento da vacina da Sinovac, da China, em parceria com o Instituto Butantan. A seguir, Eduardo Bolsonaro acusou a China de fazer espionagem por meio de sua tecnologia de rede 5G. A embaixada reagiu novamente com repúdio.

Lira também recorreu à China

A carta do Ministério da Saúde ao embaixador chinês não foi o único pedido de ajuda do governo a Pequim nesta semana. Na terça-feira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, também recorreu ao diplomata chinês.

"Eu me dirijo ao governo chinês neste momento de grande angústia para nós brasileiros, para que nossos parceiros chineses tenham um olhar amigo, humano, solidário e nos ajudem a superar a pandemia, oferecendo os insumos, as vacinas, todo o apoio que este grande parceiro da China precisa neste grave momento", escreveu Lira, que é aliado de Bolsonaro.

Além de vacinas produzidas na China, o Brasil depende de insumos importados do país para produzir imunizantes contra a covid-19 – tanto a Coronavac, produzida pelo Butantan – quanto a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca, produzida localmente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Até o momento a Coronavac e a vacina de Oxford-AstraZeneca são as duas únicas em uso no Brasil. O imunizante desenvolvido pela americana Pfizer e pela alemã Biontech é o único a já ter registro definitivo na Anvisa, mas o governo ainda negocia o fornecimento de doses após recusar ofertas pela Pfizer desde o ano passado. Nesta segunda, Bolsonaro afirmou em reunião virtual com executivos da Pfizer que gostaria de fechar contrato para a compra de vacinas do laboratório diante da agressividade do coronavírus no Brasil.

O Brasil registrou oficialmente 1.972 mortes ligadas à covid-19 nesta terça, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), a pior marca diária registrada desde o início da pandemia. A ocupação dos leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) destinados a pacientes com covid-19 supera os 80% em 20 unidades da federação, de acordo com a Fiocruz.

Segundo levantamento feito por um consórcio de veículos da imprensa brasileira, até esta terça-feira, 8,7 milhões de pessoas receberam ao menos uma dose de vacina contra a covid-19 no Brasil, o equivalente a 4,13% da população.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Brasil é 'racista' e parece executar 'indesejados' com conivência da Justiça, diz Comissão da OEA

Racismo e discriminação contra negros, indígenas, mulheres, camponeses, sem-teto e moradores de favelas. Trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas. Presos, migrantes e LGBTs em risco. Insegurança, crime organizado, milícias, facções e uma recorrente resposta violenta do Estado. Impunidade e ataques à liberdade de expressão e de imprensa.


A população negra é a ma vítima da violência no Brasil (Crédito foto: Getty Images)

Estes e outros assuntos são explorados em mais de 200 páginas de um duro relatório recém-enviado ao governo brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), principal órgão multilateral dedicado ao tema em todo o continente.

Feito com "o objetivo de aferir os principais desafios aos direitos humanos no país", o documento, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, registra centenas de falhas do Estado brasileiro, seja por "omissão, ineficiência ou ação direta de governos" - caso, por exemplo, de episódios confirmados de mortes e impunidade ligados à violência policial em todo o país.

Só em 2019, 6.357 pessoas foram mortas por policiais no Brasil - o maior patamar desde o início dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2013. A título de comparação, a letalidade policial foi 5 vezes maior no Brasil do que nos EUA no mesmo ano.

Em um dos momentos mais veementes do texto, a Comissão indica a existência de um "sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira" pela combinação de violência policial e impunidade, que contaria com a "proteção do sistema de Justiça".

O conteúdo do relatório é especialmente enfático em relação ao racismo, à discriminação e à violência de gênero no Brasil, descritos como motores de um ciclo histórico e perverso de desigualdade, pobreza e crimes.

O texto, por outro lado, "reconhece que o Brasil possui um Estado de Direito baseado em sólidas instituições democráticas".

"Contudo", prossegue o texto, "faz um alerta de que, recentemente, esse sistema vem enfrentando desafios e retrocessos".

Após a publicação desta reportagem, o governo brasileiro, por meio do ministério de Relações Exteriores, enviou comentários sobre o relatório.

"O governo brasileiro reconhece a persistência no país de desafios históricos a serem superados na busca de uma sociedade ideal, como em qualquer grande democracia. Lamenta, no entanto, que o relatório da CIDH privilegie, em determinadas passagens, uma abordagem politizada e parcial", diz a nota oficial.

Os comentários foram incluídos, na íntegra, no fim deste texto.

Bolsonarismo

Braço da OEA responsável por vigiar a garantia de direitos humanos em todo o continente, a Comissão foi criada em 1959 e tem sede em Washington, nos EUA. Entre diferentes atribuições, ela apresenta casos de violações à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e atua frente ao tribunal em casos que envolvam crimes cometidos por Estados.

Sem citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o texto frisa que a facilitação promovida pelo atual governo no acesso a armas de fogo será incapaz de conter ou reduzir a violência.

Ao contrário, segundo o órgão, a política armamentista deve aumentar a criminalidade, além de "minar a confiança dos cidadãos em relação ao Estado e aprofundar fissuras históricas do tecido social".


Bolsonaro é um entusiasta do armamento da população (Crédito: reprodução YouTube)

"A Comissão vê com extrema preocupação as tentativas do Estado de ampliar, mediante o uso de decretos presidenciais, o acesso dos brasileiros às armas de fogo, que poderiam ademais, incrementar exponencialmente a violência perpetrada contra as mulheres", ressalta a entidade.

Procurado, o Palácio do Planalto não respondeu ao pedido de comentários enviado pela reportagem.

No relatório, a entidade também mostra "preocupação" em relação à abordagem bolsonarista sobre a ditadura militar e a tortura, condenando a "negação desse passado histórico por parte do Estado brasileiro" e a impunidade da "maioria dos crimes" cometidos no período.

O órgão ainda critica medidas tomadas pelo governo Bolsonaro como a extinção do ministério do Trabalho ("o que poderia enfraquecer esforços para erradicar o trabalho em condições semelhantes à escravidão e ao trabalho infantil") e o fim de políticas relacionadas à moradia, participação da sociedade em políticas públicas, reforma agrária, entre outras.

Dados públicos da comissão mostram que, desde a posse de Bolsonaro até o fim do ano passado, o Brasil havia sido alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do relatório especial em fase de finalização.

Apesar de duros embates com gestões anteriores (Dilma Rousseff chegou a anunciar a saída da comissão após críticas à usina de Belo Monte), nunca na história da CIDH o Brasil foi objeto de tantos chamados.

Longo trabalho

A análise disponível no relatório, porém, vai muito além do atual governo e oferece um raio-X sobre o Brasil que não é visto desde 1995, data da primeira visita oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país para a elaboração de um relatório semelhante.

Publicado nesta sexta-feira (05-03) pelo órgão da OEA, o texto é resultado de mais de dois anos de um trabalho que começou oficialmente em novembro de 2018, em visita oficial de autoridades e membros da Comissão a oito estados brasileiros, além do Distrito Federal.

Na viagem oficial, a Comissão Interamericana se reuniu com ministros, juízes do Supremo Tribunal Federal, membros da Procuradoria-Geral da República, de Ministérios Públicos e Defensorias, além de cidadãos comuns, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.

"A Comissão também coletou centenas de depoimentos de vítimas de violações de direitos humanos e seus famíliares, e analisou milhares de documentos, leis, projetos de lei e outras informações", segundo registros oficiais.

As atividades incluíram visitas a prisões federais, à região conhecida como "cracolândia", em São Paulo, a comunidades indígenas e quilombolas e bairros em periferias na Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Roraima e Brasília.

Reunindo também uma série de referências a episódios e documentos posteriores à visita, o trabalho especial da Comissão Interamericana sobre o Brasil se encerrou em dezembro de 2020, depois do recebimento de comentários e informações finais do governo brasileiro.

Tanto a visita quanto o relatório foram elaborados a convite do próprio governo do Brasil, em novembro de 2017, à época chefiado por Michel Temer.

Discriminação em polícias e tribunais

Texto diz que a "polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados"

O relatório critica a atuação de policiais em operações envolvendo negros, mulheres e minorias ao citar índices desproporcionais de violência contra estes grupos.

"A CIDH observa que o país tem tido grande dificuldade em assegurar o direito à segurança cidadã a um amplo contingente da sua população", diz o texto.

"As pessoas afrodescendentes, especialmente jovens do sexo masculino e de origem familiar pobre, figuram como vítimas preponderantes de atos de violência letal intencional, grande parte dos quais são cometidos em contexto de ação policial."

Na opinião da Comissão, "há um alto índice de impunidade desses crimes, o que, em intersecção com a discriminação estrutural, consolidam um diagnóstico de racismo institucional" no país.

O texto ressalta que a "polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados", e aponta um processo nocivo "de militarização da segurança pública, que, por sua vez, acaba por consolidar uma lógica da guerra nos centros urbanos e rurais".

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai além e destaca o papel da Justiça neste processo.

é reproduzida ou mesmo ampliada pela atuação do sistema de Justiça criminal: por um lado, é crônica a impunidade dos crimes cometidos contra essas populações mais vulneráveis; e, por outro, é desproporcional o impacto do aparato repressivo do Estado contra essas mesmas populações."

Ainda segundo o órgão, "permanecendo impunes, tais violações cometidas por agentes de segurança pública atingem um caráter estrutural, sistemático e generalizado em todo o país."

A CIDH nota ainda que não apenas casos de massacres envolvendo agentes de segurança, mas também casos de pessoas envolvidas no aliciamento e utilização do trabalho escravo no Brasil terminam impunes.

"Na opinião da Comissão, tal característica (a violência policial) poderia indicar a existência de um sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira, que contariam com a proteção do sistema de Justiça".

O texto aponta que este contexto sugere "um processo de 'limpeza social' destinado a exterminar setores considerados 'indesejáveis', 'marginais', 'perigosos' ou 'potencialmente delinquentes', que conta com a anuência estatal".

Milícias

A Comissão aponta que, só em 2019, o Brasil registrou oficialmente 1.254 episódios envolvendo conflitos pela terra em todo o país, um aumento de 47% desde 2010.

O órgão enumera episódios de violência envolvendo tiros e incêndios criminosos envolvendo "forças de segurança pública e seguranças particulares conhecidos como 'jagunços'."

A Comissão também diz que "recebeu com preocupação a informação de que o Estado estaria promovendo a legalização de milícias e, de certa forma, armando-as em territórios rurais, além de estar facilitando a aplicação da excludente de ilicitude das forças militares na atuação voltada à reintegração de posse."

O órgão destaca que o Brasil se tornou, em 2017, "o país com o maior número de assassinatos de defensoras e defensores do meio ambiente no mundo".

"(A Comissão) reitera seu repúdio e preocupação com o assassinato com requintes de execução da vereadora Marielle Franco, que hoje ainda se encontra em investigação no nível estadual."

Em relação às conhecidas milícias urbanas, envolvidas no assassinato da vereadora, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, o texto cita "a dificuldade do Estado de oferecer respostas sólidas, sistêmicas e sustentáveis para a violência e a insegurança nos últimos 23 anos, articulando os diferentes níveis da federação e as diferentes forças policiais em torno de medidas que conjugam prevenção e repressão".

"(Isso) criou ambiente fértil para o surgimento e a ampliação de organizações criminosas, como as chamadas milícias", diz a comissão.

Protesto em SP em 2016 pedindo combate à violência contra a mulher (Crédito foto: Ag. Brasil)

Citando uma série de dados sobre feminicídios, com maior frequência entre mulheres negras, a Comissão informa que recebeu uma série de denúncias sobre piora em níveis de violência contra as mulheres.

O órgão lembra que "o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no país".

O texto pede que o governo e a sociedade brasileira combatam com empenho a "cultura do estupro" no país.

"A Comissão reitera suas recomendações sobre a importância de se promover leis e políticas públicas que busquem, por meio da educação em direitos humanos, abordar e eliminar preconceitos estruturais, a discriminação histórica, bem como os estereótipos e conceitos falsos sobre mulheres."

Ainda segundo o relatório, "a condição de gênero mostrou-se fator agravante das experiências de desigualdade e discriminação" nos "processos estruturais de violação dos direitos humanos no país".

"O machismo e a misoginia continuam relegando a mulher a uma posição secundária na economia e nos assuntos públicos, com evidentes diferenças salariais no mercado de trabalho e sub-representação nos parlamentos e demais poderes, sobretudo nos cargos de cúpula"

Protesto pelos direitos LGBTI+ em São Paulo, em setembro de 2017 (Crédito foto: AFP)

O órgão também observa uma "tendência de regressão na proteção e promoção dos direitos das pessoas LGBTI no país", bem como "o aumento do uso de discursos que incitam ao ódio e que tendem a aumentar as taxas de ataques contra pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero".

Em mais uma referência ao bolsonarismo, citando a atuação de "um dos candidatos à presidência do Brasil" em outubro de 2017, o texto resgata a controvérsia em torno de uma cartilha educacional sobre diversidade criada para combater o bullying nas escolas que veio a se tornar pejorativamente conhecida como "kit gay".

"A inverdade das notícias sobre o 'kit gay' foi confirmada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que solicitou a suspensão de links de sites e redes sociais relacionados à denominação", diz o texto, que também reconhece "avanços importantes" como a garantia do direito ao casamento e uso do nome social e a ampliação da participação e candidatura de pessoas LGBTI em eleições.

Por outro lado, o órgão faz um alerta.

"O Brasil continua registrando elevadíssimos índices de violência contra pessoas LGBTI, em especial lésbicas e mulheres trans; e que, na medida em que uma retórica de "defesa da família" e das tradições ganha tração no âmbito na sociedade, diversos direitos dessas pessoas encontram-se sob ameaça."

O relatório é finalizado com uma série de recomendações "para consolidar um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado nos âmbitos interamericano e internacional."

Resposta do governo brasileiro

"O relatório intitulado "Situação dos direitos humanos no Brasil", publicado em 5 de março de 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), é resultado de visita oficial daquele organismo ao país, realizada em novembro de 2018. Na ocasião, a delegação da CIDH visitou oito estados da Federação, além do Distrito Federal, em extensa agenda que incluiu encontros com representantes da sociedade civil e órgãos oficiais, além de expedições a campo.

Como prova do engajamento do Brasil com a promoção e proteção das liberdades fundamentais e dos direitos humanos, bem como da importância atribuída pelo país ao sistema interamericano, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem mantido com a CIDH relação de cooperação baseada em espírito de cordialidade, transparência e permanente diálogo. Nesse contexto, o Brasil tem atendido, com zelo e sem atraso, a todas as solicitações de informações apresentadas pela Comissão, bem como participado de modo construtivo das audiências públicas realizadas pelo órgão.

O governo brasileiro reconhece a persistência no país de desafios históricos a serem superados na busca de uma sociedade ideal, como em qualquer grande democracia. Lamenta, no entanto, que o relatório da CIDH privilegie, em determinadas passagens, uma abordagem politizada e parcial. Isso se evidencia, por exemplo, nas referências a "violência institucional", "perfilamento racial por parte de agentes do Estado", "aumento das ameaças contra a vida de jornalistas e comunicadores por parte das autoridades" e "enfraquecimento dos espaços de participação democrática".

O Brasil não mede esforços para promover e proteger os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e em outros tratados internacionais de direitos humanos de que é parte.

O combate ao crime e à violência está entre os principais compromissos do governo. A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, visando não só ao combate à prática de perfis raciais, mas também à redução da violência contra a população afrodescendente, trabalha em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública no desenvolvimento de ações voltadas à capacitação de agentes de segurança e à promoção da igualdade étnico-racial.

A garantia do pleno exercício do direito à liberdade de expressão e a oposição incansável a toda e qualquer forma de censura, princípios fundamentais da vida democrática, são prioridades para o governo brasileiro. No Brasil, jornalistas foram incluídos no rol de beneficiários do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores Sociais e Ambientalistas, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O Decreto nº 9.937/2019 instituiu o Conselho Deliberativo do programa, o que ampliou a participação de outros entes federais e introduziu a possibilidade de convite a organizações da sociedade civil.

A participação social mantém-se especialmente ativa no Brasil no desenvolvimento de políticas de direitos humanos. Diversos órgãos colegiados, que reúnem representantes do governo e da sociedade civil, realizam reuniões regularmente, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, mantendo inclusive contato direto com a CIDH, que tem sido constantemente provida de informações de organizações da sociedade civil brasileira. O sistema político e social brasileiro segue dispondo de inúmeras instâncias formais, procedimentos legais e práticas consolidadas que permitem ao cidadão participar ativamente das decisões que são tomadas pelo poder público."

Ricardo Senra - @ricksenra, da BBC News Brasil em Londres

terça-feira, 9 de março de 2021

Ministério da Saúde admite que pode faltar vacina e crise da pandemia fecha cerco sobre Bolsonaro

Atraso na compra de imunizantes desgasta imagem do presidente enquanto Brasil bate novo recorde, com 1.972 mortes por covid-19. Em ofício, pasta de Pazuello admite precisar de mais doses para não interromper vacinação

O presidente Jair Bolsonaro saindo do Palácio da Alvorada, em 9 de março de 2021.( Crédito da foto: Ueslei Marcelino / Reuters )

O Brasil vive o momento mais crítico da pandemia. Registrou 1.972 mortes nesta terça-feira, um novo recorde para óbitos em 24 horas e um número elevado mesmo considerando o impacto do represamento de dados do fim de semana. Enquanto 25 das 27 capitais do país veem mais de 80% dos leitos de UTI do SUS ocupados e diversos setores pressionam o Governo Bolsonaro para dar celeridade na vacinação, o Ministério da Saúde o admite risco de interromper campanha por falta de doses em carta à China e busca negociar compras com novos laboratórios. As críticas à ineficiência do Governo Federal para acelerar ações que possam conter a pandemia vem apertando o cerco político contra o presidente Jair Bolsonaro, que durante toda a crise sanitária adotou um discurso negacionista e errático. Até aliados no Congresso e empresários agora cobram do Planalto um cronograma claro de vacinação.

O Governo Bolsonaro passou meses defendendo um tratamento precoce sem eficácia, criticou medidas de isolamento social e demorou a fechar acordos de compra de vacinas contra a covid-19. O presidente viu sua aprovação cair e parte de seus apoiadores abandonarem o discurso antivacina que alimentava. A falta de liderança nacional ainda levou governadores a se articularem entre si para afinar ações e tentar negociar vacinas enquanto o cronograma de entrega do Ministério da Saúde sofria uma série de atrasos. Até mesmo o Congresso Nacional ―cuja cúpula foi eleita com o apoio do presidente― têm sinalizado que nem só o Planalto representa o Governo do Brasil enquanto fazem reuniões diplomáticas para tentar importar mais vacinas. A pressão parte também do empresariado, que vê na vacinação em massa a saída para fazer a economia voltar a girar. E de partidos e entidades, que se movimentam para tentar afastar o presidente diante da má gestão da pandemia, que já custou mais de 260.000 vidas no país. É neste contexto que o presidente tenta, agora, modular o discurso e adotar uma estratégia pró-vacina para tentar escapar da perda de popularidade.

O passo mais emblemático deste ensaio de mudança na retórica foi a reunião de Bolsonaro com representantes globais da Pfizer na última segunda-feira (8) depois de meses de críticas e ironias à farmacêutica. Em várias oportunidades, o presidente criticou cláusulas “draconianas” da Pfizer, especialmente pela exigência de que questões relacionadas a possíveis efeitos adversos da vacina fossem tratadas em tribunais internacionais. “Se você virar um jacaré, é problema seu”, disse em dezembro enquanto a Pfizer sustentava que as cláusulas eram um padrão dos acordos com outros países. Seu Governo recusou ao menos três ofertas da farmacêutica. Mas desde então a vacina foi a primeira a conseguir o registro definitivo no país, voltaram os panelaços e cresceu a pressão até dos setores econômicos pela vacinação em massa no país. Bolsonaro então adotou um plano para reduzir o desgaste na sua imagem e rebater críticas de ineficiência na compra de imunizantes e as ações da pandemia.

Por videoconferência, Bolsonaro pediu pessoalmente a representantes da Pfizer para acelerar a entrega de doses em um contrato a ser firmado, mas incumbiu que o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciasse à imprensa que o contrato seria firmado e que a farmacêutica teria sinalizado com 14 milhões de doses no primeiro semestre. Nas redes sociais, publicou um pequeno vídeo do encontro, mas não chegou a defender diretamente a vacinação. O Governo também anunciou que a comitiva que viajou até Israel para conhecer um spray nasal anti covid-19 ainda em fase de testes também trataria de vacinas. São acenos a diversos setores para tentar mostrar esforço federal no momento em que a população brasileira está mais disposta a tomar o imunizante. Segundo uma pesquisa do PoderData/Band divulgada na semana passada, aumentou de 78% para 85% a parcela de brasileiros que querem se vacinar.

“Campanha corre o risco de ser interrompida”

Embora o Governo venha anunciando novas negociações com vários laboratórios neste ano para mostrar o esforço em correr atrás do prejuízo na aquisição dos imunizantes, na prática, o cronograma de entrega de vacinas já contratadas está repleto de atrasos. O Ministério da Saúde agora se movimenta em busca de outros laboratórios e de cooperação internacional para conseguir mais estoques. Em um ofício enviado ao embaixador da China no Brasil, a pasta solicita a compra de 30 milhões de doses da vacina BBIBP-CorV, fabricada na China pela Sinopharm. Assinado pelo número dois da pasta, Elcio Franco, o documento argumenta que a campanha nacional de imunização corre risco de ser interrompida por falta de doses e que a estratégia brasileira para conter a variante P1 do vírus e impedir que ela se espalhe pelo mundo é a imunização. “A campanha nacional de imunização, contudo, corre risco de ser interrompida por falta de doses, dada a escassez da oferta internacional. Por conta disso, o Ministério da Saúde vem buscando estabelecer contato com novos fornecedores, em especial a Sinopharm, cuja vacina é de comprovada eficácia contra a covid-19″, diz Franco no ofício.

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello tem defendido uma ação diplomática para tentar importar vacinas. O Governo tem enfrentado dificuldades para receber 8 milhões de doses da AstraZeneca já contratadas e produzidas pelo instituto Serum, na Índia, após o país bloquear a exportação. Investigado pela Polícia Federal por suposta omissão em ações da pandemia em Manaus, Pazuello tem pedido ajuda a gestores nos bastidores. Em Brasília, articula-se a criação de uma comissão com governadores, Congresso e o ministro para afinar ações unificadas. Tudo com discrição para não provocar a ira do presidente, segundo a coluna Painel, da Folha de S. Paulo.

Eleitos para a presidência da Câmara Federal e do Senado com o apoio de Bolsonaro, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco também têm sinalizado um possível descolamento do presidente em relação à pandemia. Nesta terça (9), eles cobraram do Ministério da Saúde um cronograma de recebimento de vacinas e pediram uma resposta em 24 horas para saber se há risco de falta de insumos no país. No mesmo dia, Lira enviou uma carta ao embaixador da China, Yang Wanming, fazendo um apelo por um olhar “amigo, humano e solidário” no oferecimento de insumos e vacinas. “O Governo brasileiro não é apenas o Executivo, mas também o Legislativo e o Judiciário”, escreveu.

O Brasil vive o momento mais crítico da pandemia. Das 27 capitais do país, 25 estão com taxas de ocupação de leitos de UTI para adultos superiores a 80% ― em 15 delas, o índice já é superior a 90%. Os dados são do monitoramento feito pelo Observatório Covid-19 da Fiocruz. Há filas de pacientes aguardando internação em várias regiões do país. Secretários da Saúde têm pedido aumento das medidas restritivas nacionalmente ao Ministério da Saúde para tentar frear a alta velocidade de contágio, mas Pazuello descartou porque o presidente não deixa. A postura errática do presidente tem motivado a articulação de novas ações judiciais para afastá-lo do cargo e responsabilizá-lo por omissão tanto por partidos quanto por entidades de classe.

Novas tentativas de afastamento

O PDT, partido do ex-presidenciável Ciro Gomes, pediu a interdição de Bolsonaro à Procuradoria-Geral da República nesta segunda (8). Alega que o presidente age “na contramão dos atos que uma pessoa em plena saúde mental agiria” e não teria capacidade mental de permanecer no cargo. A interdição está prevista no Código de Processo Civil e deve ser promovida pelo Ministério Público em caso de doença mental grave. Juristas têm avaliado, porém, que o processo tem poucas chances de prosperar até pelo alinhamento do procurador-geral Augusto Aras com o Planalto. Mesmo assim, é mais um elemento de pressão.

Na última semana, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, disse que convocaria uma sessão extraordinária para discutir a gestão de Bolsonaro sobre a pandemia e um possível pedido de impeachment. Se em janeiro Santa Cruz dizia não ver ambiente para um pedido, agora diz que vem sentindo pressão da alta cúpula da entidade. “Há muita pressão de conselheiros e ex-presidentes por medidas duras contra o governo Bolsonaro”, afirmou ao Estadão. O conselho federal da entidade já denunciou o governo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por “violações” e “omissão” na pandemia. O Congresso já recebeu dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente, mas não há até agora perspectiva de apreciação. A Faculdade de Saúde Pública da USP e a Conectas Direitos Humanos analisaram 3.049 normas federais produzidas em 2020 para uma pesquisa mostrando que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”.

BEATRIZ JUCÁ, de São Paulo, Brasil, para o EL PAÍS, em 09 MAR 2021

Lewandowski empata placar, e julgamento sobre Moro é suspenso após pedido de vista de Kassio

Cármen Lúcia avisou que vai se manifestar novamente sobre o caso, mesmo já tendo votado no início do julgamento, em dezembro de 2018. Não há previsão para quando a análise da ação vai ser retomada pela Segunda Turma

O ministro Gilmar Mendes. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente Jair Bolsonaro, o ministro Kassio Nunes Marques pediu vista (mais tempo para análise) e suspendeu nesta terça-feira (9) o julgamento sobre a parcialidade do ex-juiz federal Sérgio Moro ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do triplex do Guarujá. Não há previsão para quando o caso vai ser concluído pela Segunda Turma. O julgamento está empatado, mas a ministra Cármen Lúcia avisou que vai se manifestar novamente sobre a ação, mesmo já tendo votado no início do julgamento, em dezembro de 2018.

“Todos nós sabemos que esse é um processo de extrema relevância e de um conteúdo extremamente vasto e complexo, que demanda tempo, atenção e estudo.  Eu nunca julguei essa matéria. Soube, como todos nós, do julgamento pouco antes dessa sessão”, disse Kassio Nunes Marques, ao comentar a inclusão da ação para julgamento a menos de três horas do início da sessão.

“Até que tentei, rapidamente, alinhar um voto diante do que vi e principalmente do que foi trazido aos autos. Mas o tempo foi extremamente curto para um membro da corte que jamais participou do processo e que não tinha absolutamente nenhum conhecimento sobre ele”, acrescentou. Surpreendido com a inclusão do tema na sessão, o ministro está em São Paulo, acompanhando o tratamento dos pais, que estão infectados com o novo coronavírus.

A discussão sobre a atuação de Moro na ação do triplex do Guarujá foi retomada nesta tarde com os votos dos ministros Gilmar Mendes (leia a íntegra aqui) e Ricardo Lewandowski. Expoentes da ala contrária à Lava Jato no STF, os dois ministros votaram para declarar Moro suspeito e derrubar a condenação imposta pelo ex-juiz federal ao petista. 

A análise do caso começou em dezembro de 2018, quando o relator da Lava Jato, Edson Fachin, e Cármen Lúcia votaram para rejeitar o pedido do petista – antes de virem à tona mensagens privadas obtidas por hackers e atribuídas a Moro e a procuradores da Lava Jato em Curitiba. Ao longo da sessão desta terça-feira, no entanto, Cármen deu indícios de concordar com trechos do voto de Gilmar Mendes.

Ao comentar  a interceptação do escritório de advocacia da defesa de Lula, Gilmar disse que o episódio remetia a regimes totalitários – e foi apoiado por Cármen Lúcia. “Gravíssimo”, disse a ministra. “Eu tenho voto escrito, mas vou aguardar o voto-vista do ministro Kassio. Vossa Excelência (dirigindo-se a Gilmar) trouxe um voto profundo, com dados muito graves. Darei o meu voto”, disse Cármen Lúcia na sessão.

Embora a discussão do caso diga respeito apenas ao triplex do Guarujá, investigadores temem que haja um efeito cascata caso prevaleça a posição da dupla, o que poderia contaminar outros processos da Lava Jato. 

A atuação de Moro na ação do sítio de Atibaia, que também levou à condenação de Lula, foi menor: coube ao ex-juiz da Lava Jato aceitar a denúncia e colocar o ex-presidente no banco dos réus mais uma vez. A condenação, no entanto, foi assinada pela juíza Gabriela Hardt, depois que o ex-juiz já tinha abandonado a magistratura para assumir um cargo no primeiro escalão do governo Bolsonaro.

Ao iniciar a leitura do voto, Gilmar Mendes disse que seu voto não apenas “descreve uma cadeia sucessiva de atos lesivos ao compromisso de imparcialidade”. “Ele explicita as condições do surgimento e do funcionamento do maior escândalo judicial da nossa história”, frisou.

Para Gilmar Mendes, a “Justiça Federal está vivendo uma imensa crise a partir deste fenômeno de Curitiba”. “O combate à corrupção é digno de elogios. Mas o combate à corrupção deve ser feito dentro dos moldes legais. Não se combate crime cometendo crime. Ninguém pode se achar o ó do borogodó. Cada um terá o seu tamanho no final da história. Calcem as sandálias da humildade”, disse Gilmar, ao lembrar fala proferida em dezembro de 2016. “Não podemos aceitar que o combate à corrupção se dê sem limites. Não podemos aceitar que ocorra a desvirtuação do Estado de Direito, que uma pena seja imposta de um modo ilegítimo, não podemos aceitar que o Estado viole as próprias regras.”

O ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, disse que Lula não foi submetido a um julgamento justo, mas a um “verdadeiro simulacro de ação penal, cuja nulidade salta aos olhos”. Para Lewandowski, Moro assumiu papel de coordenador dos órgãos de investigação e acusação, onde teria ficado patenteado o abuso de poder no caso. “Um completo menosprezo ao sistema judicial vigente no País”, disse. “Por razões mais do que espúrias, porque todos os desdobramentos do processo levam ao desenlace de que o ex-juiz extrapolou os limites ao assumir papel de coordenador dos órgãos de investigação e acusação”, acrescentou Lewandowski.

Responsável por liberar as mensagens hackeadas da Lava Jato e apreendidas na Operação Spoofing ao ex-presidente Lula, Lewandowski disse que usou trechos das conversas como “reforço argumentativo” em seu voto. “Parabéns pelo voto, ministro Ricardo Lewandowski”, disse Cármen ao final da sessão.

Estratégia.

A Segunda Turma retomou nesta tarde o julgamento sobre a suposta parcialidade de Moro no caso do triplex do Guarujá. Já o plenário STF vai decidir – em data a ser definida- o recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra a decisão do ministro Edson Fachin que anulou todas as condenações de Lula na Lava Jato – tanto a do triplex (assinada por Moro) quanto a do sítio de Atibaia (assinada pela juíza Gabriela Hardt).

Conforme revelou o Estadão no início do mês, Fachin lançou uma ofensiva para reduzir danos diante de derrotas iminentes que podem colocar em risco o legado da operação. A Corte virou foco de oposição à Lava Jato, e Fachin não conta hoje com situação confortável nem na Segunda Turma nem no plenário. Fachin queria considerar a discussão sobre a conduta de Moro já encerrada, mas a Segunda Turma decidiu que, mesmo com a anulação da condenação no caso do triplex, o tribunal deve, sim, analisar a conduta do ex-juiz federal na ação.

Os ministros discutiram se o ex-juiz federal de Curitiba tratou o petista como “inimigo” e agiu com parcialidade ao condenar o ex-presidente da República por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no triplex do Guarujá. Caso os ministros sigam o entendimento de Gilmar Mendes formem maioria para declarar a suspeição de Moro, todas as provas reunidas contra o ex-presidente podem ser anuladas, incluindo o acervo que embasa as demais ações penais contra Lula.

Para Gilmar Mendes, a condenação que Moro impôs a Lula no caso do triplex é de uma “cristalina contaminação”, devido ao “histórico de cooperação espúria” entre o juiz federal da Lava Jato e a força-tarefa de investigadores .

“Em fevereiro de 2016, quando o reclamante (Lula) ainda estava sendo investigado, o ex-juiz Sergio Moro chegou a indagar ao procurador Deltan Dallagnol se já havia uma denúncia ‘sólida ou suficiente’, o procurador responde apresentando um verdadeiro resumo das razões acusatórias do MP, de modo a antecipar a apreciação do magistrado”, destacou Gilmar, ao citar mensagens privadas atribuídas a Moro e Dallagnol obtidas por um grupo criminoso de hackers.

Ao comentar  a interceptação do escritório de advocacia da defesa de Lula, Gilmar disse que o episódio remetia a regimes totalitários – e foi apoiado pela ministra Cármen Lúcia. “Gravíssimo”, disse a colega, levantando dúvidas se a magistrada vai mudar o voto proferido em dezembro de 2018, quando rejeitou o habeas corpus de Lula.

Como o julgamento ainda não foi encerrado, nada impede que Cármen Lúcia altere o voto proferido em dezembro de 2018, quando o caso começou a ser analisado. Na época, a discussão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, que só liberou o processo para julgamento às 11h29 desta terça-feira, dois anos e três meses depois – a menos de três horas da sessão.

Presidente da Segunda Turma, Gilmar é expoente da ala mais contrária aos métodos de investigação dos procuradores de Curitiba. Fachin, por outro lado, é o relator do caso de Lula e integrante da corrente do STF pró-Lava Jato.

“Falo com toda tranquilidade porque não cheguei aqui pela mão do PT. E eu era considerado um tipo de opositor de algumas práticas do Partido dos Trabalhadores. Chegou-se a dizer, a imprensa chegou a dizer que eu liderava bancada de oposição no STF apontando que faltava oposição ao governo do PT. Portanto eu sou insuspeito nessa matéria. Não obstante eu sempre soube distinguir o que é ser adversário do que é ser inimigo”, disse Gilmar Mendes, ao iniciar a leitura do voto.

Para embasar o voto em que concluiu pela parcialidade de Moro, ministro ainda destacou a condução coercitiva de Lula – e a nomeação do ex-juiz federal da Lava Jato ao cargo de ministro da Justiça do governo Bolsonaro.

Histórico.

Em 2018, Fachin e a ministra Cármen Lúcia votaram para negar o pedido da defesa do petista. Na prática, o placar neste momento é de 2 a 2 contra as pretensões de Lula, mas ainda falta o voto de Kassio Nunes Marques – e Cármen Lúcia já avisou que vai votar novamente.

Nos bastidores, a avaliação é que Gilmar “segurou” o caso enquanto a revelação de novas mensagens hackeadas da Lava Jato vinham desgastando a forca-tarefa.

A mesma posição é adotada por Ricardo Lewandowski, que liberou as conversas obtidas na Operação Spoofing a Lula. A dupla intensificou as críticas ao ex-juiz da Lava Jato depois que o site The Intercept Brasil começou a publicar trechos das mensagens privadas, obtidas pelos hackers, atribuídas a Moro e a procuradores de Curitiba.

Adiamento.

Após Gilmar Mendes incluir o caso para ser examinado nesta tarde, Fachin deu um novo despacho, indicando o adiamento da discussão, expondo o acirramento de ânimos na Corte. No início da sessão, o representante da Procuradoria-Geral da República (PGR) no julgamento – o subprocurador Juliano Baiocchi – também pediu que o caso não fosse examinado hoje. A maioria da Turma, no entanto, ficou do lado de Gilmar.

“O que me preocupa mais aqui para que a gente tenha uma decisão ou um julgamento é que esse processo teve início há mais de dois anos e está suspenso por um pedido de vista. Então eu me encontro habilitada a participar do julgamento e a votar e, com todas as vênias então do ministro Fachin, neste caso tenho legítimo que haja a continuidade”, disse a ministra Cármen Lúcia, que se alinhou a Gilmar Mendes.

Como mostrou o Estadão, ao declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para análise de quatro ações contra Lula – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia, sede do Instituto Lula e doações da Odebrecht para a entidade – , Fachin agiu para reduzir danos, tirar o foco de Moro e tentar preservar as investigações de um esquema bilionário de corrupção na Petrobrás. Fachin não havia se debruçado sobre as provas contra o petista, que correm o risco de serem invalidadas agora.

O ministro Ricardo Lewandowski, que também integra a ala contrária à Lava Jato no STF, endossou a posição para que o julgamento fosse retomado. “A decisão do ministro Fachin (que anulou as condenações de Moro contra Lula) é uma decisão precária e efêmera que está sujeita à apreciação do plenário e não tem o condão de obstar a continuidade do julgamento desta Segunda Turma”, afirmou Lewandowski.  “A sociedade espera isso, a comunidade jurídica aguarda o pronunciamento da Segunda Turma.”

No início da sessão, Fachin reforçou o pedido de adiamento e citou duas razões para que o caso não fosse analisado pelos ministros nesta tarde.  Uma é sua decisão de ontem que determinou o encerramento desta ação após declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para análise de quatro ações contra Lula – triplex do Guarujá, sítio de Atibaia, sede do Instituto Lula e doações da Odebrecht para a entidade. Depois disso, as ações que discutem a suspeição de Moro foram consideradas “prejudicadas” por Fachin.

O segundo argumento apresentado pelo Ministro para que o julgamento seja adiado é a apresentação de um memorial pela defesa do ex-presidente Lula hoje. Fachin descreveu o material como “robusto e relevante”, que se devidamente provadas podem trazer “sérias consequências”. “Um conjunto relevante de imputações”, disse. Ele ainda frisou que “é atribuição própria do relator ordenar e dirigir o processo”.

Após a fala de Fachin, Gilmar votou pela continuidade do julgamento, alegando que o colega não poderia sozinho determinar o arquivamento do caso. “É o cachorro que abana o rabo, não o rabo que abana o cachorro”, disse Gilmar, ao defender a retomada do julgamento pela Segunda Turma nesta tarde.

Paulo Roberto Netto, Pepita Ortega e Rayssa Motta/São Paulo e Rafael Moraes Moura e Amanda Pupo/Brasília para o Estado de São Paulo, em 09 de março de 2021

Presidente do Clube Militar, general critica decisão de Fachin: ‘vitória do banditismo’

Com o título 'Lugar de ladrão é na cadeia', texto de Eduardo José Barbosa chama anulação das condenações de Lula de 'artimanha grotesca'

Após algumas horas em silêncio, o presidente do Clube Militar, general de divisão Eduardo José Barbosa, divulgou uma nota em que critica a decisão do ministro Edson Fachin de anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

Com o título “Lugar de ladrão é na cadeia”, o documento diz que, no Brasil, “aqueles que julgam são alinhados políticos daqueles que são julgados”. Para o general, “novos processos em outras varas são uma artimanha grotesca para que o meliante fique definitivamente impune”. 

O general de divisão Eduardo José Barbosa, presidente do Clube Militar Foto: Reprodução/Instagram Clube Militar

Ao concluir a nota, Barbosa afirma que “toda a comunidade criminosa do país e seus aliados mundo afora devem estar festejando a vitória do banditismo”. O general foi eleito para o clube na chapa do então general da reserva Hamilton Mourão, que se afastou em 2018 para ser o vice do então candidato Jair Bolsonaro. Barbosa é colega de turma do presidente da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) – ambos se formaram em 1977 – e apoiou a candidatura de Bolsonaro em 2018.

Barbosa já se havia manifestado em outras oportunidades contra decisões do STF que afetavam aliados de Bolsonaro – como a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) por crime contra Segurança Nacional, ao ameaçar ministros do STF. Na ocasião, Barbosa questionou: “Por que esses supostos crimes praticados pelos apoiadores do presidente recebem alta prioridade nas investigações, enquanto crimes cometidos por aliados ideológicos ou denúncias contra os próprios ministros do STF ficam sem investigação ou aguardando a prescrição?”

Na nota, o general afirma ainda que “a desculpa encontrada (para anular as condenações de Lula) não convence nem alunos do maternal”. “Ou alguém acredita que algum desses processos chegará a transitar em julgado (depois de centenas de recursos) com o ‘paciente’ vivo? Lugar de ladrão é na cadeia.... mas não no Brasil onde aqueles que julgam são alinhados políticos daqueles que são julgados.”

Militares críticos a Bolsonaro, ouvidos pelo Estadão, observaram que a nota do presidente do Clube Militar não menciona, como fatos que levaram ao enfraquecimento da Operação Lava Jato, casos como a escolha de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, a nomeação do ministro Kassio Nunes para o Supremo Tribunal Federal, ou a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça. O Estadão procurou Barbosa, mas não obteve resposta. 

General fala em chance de ‘ruptura institucional’

Além da nota, o general Barbosa também fez publicar no site do Clube Militar um artigo do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, no qual o militar levanta a possibilidade de uma ruptura institucional entre os Poderes e um golpe militar. “A nefasta decisão do Ministro Fachin, livrando Lula de suas condenações foi uma bofetada na cara (desculpem a expressão) da Nação Brasileira”, diz o texto do artigo. 

Paiva diz que o “STF feriu de morte o equilíbrio dos Poderes, um dos pilares do regime democrático e da paz política e social. A continuar esse rumo, chegaremos ao ponto de ruptura institucional e, nessa hora, as Forças Armadas serão chamadas pelos próprios Poderes da União, como reza a Constituição”. 

Próximo do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma) – coletivo criado para se opor ao movimento Tortura Nunca Mais, do fim dos anos 1980 –, Rocha Paiva é um dos militares que defendem a tese de que as Forças Armadas seriam uma espécie de poder moderador da República, interpretação considerada ilegal pelo STF e criticada por generais. 

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo, em 09 de março de 2021

Brasil tem 1.972 mortes por covid-19 em 24h, pior marca da pandemia

Número de mortes passa de 268 mil. País ainda registrou mais de 70 mil novos casos. Total passa de 11 milhões.


É a pior marca diária registrada desde o início da pandemia, superando o recorde da última quarta-feira, quando foram contabilizados 1.910 óbitos.

Com isso, o total de mortes no país associadas à doença chega a 268.370.

O Brasil registrou oficialmente 1.972 mortes ligadas à covid-19 nesta terça-feira (09/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O país vive um novo momento de aceleração da doença, com registro de colapso da rede de saúde pública em vários estados. 

Ainda nesta terça-feira, foram identificados 70.764  novos casos da doença, elevando o total oficial para 11.122.429.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.782.320 pacientes haviam se recuperado até segunda-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 127,7 no Brasil, a 20ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,7 milhões de casos, e da Índia, com 11,2 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 527 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 117,4 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,6 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 09.02.2021

Após reação sobre soltura de Lula em 2018, militares dizem que agora é melhor silenciar

Oficiais do Exército avaliam que o novo entendimento do STF pode beneficiar 'extremistas' das duas vertentes

A anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, provenientes da 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, desagradou aos militares. Influentes generais da reserva temem que o caso alimente o extremismo e têm feito apelos por “equilíbrio” diante da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, na prática, reabilitou politicamente Lula como pré-candidato ao Palácio do Planalto, em 2022.

Oficiais do Exército avaliam que o novo entendimento pode beneficiar “extremistas” das duas vertentes, tanto de esquerda quanto de direita, mas ponderam que, no momento, não cabem mais manifestações públicas sobre o caso por parte de comandantes da ativa, como ocorreu em abril de 2018. Na época, antes do julgamento de um habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, usou o Twitter para publicar uma mensagem que jogou pressão sobre os ministros da Corte.

"Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?", questionou Villas Bôas, na ocasião. O episódio foi detalhado em recente livro com depoimento do general, lançado pela Editora FGV. A obra provocou novo debate sobre o episódio, no mês passado,  após Villas Bôas dizer que aquele tuíte contou com o aval do Alto Comando do Exército.

Fachin respondeu que a pressão era “intolerável e inaceitável”. Villas Bôas, hoje assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, ironizou a demora da reação: “Três anos depois...”. O ministro do STF Gilmar Mendes retrucou o que considerou um deboche: “Ditadura nunca mais”.

Ex-ministro da Secretaria de Governo, o general de Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz disse ao Estadão que, embora a decisão de Fachin chame a atenção, as Forças Armadas não podem se precipitar.

Santos Cruz observou que o momento é diferente daquele de 2018, quando Lula recorria ao STF na frustrada tentativa de evitar a prisão, e Villas Bôas dizia que o Exército julgava “compartilhar do repúdio à impunidade”. Bolsonaro ainda não era presidente, mas já estava em campanha.

“São tempos distintos. Lá era véspera de uma decisão, aqui já é decisão tomada”, afirmou Santos Cruz. “Até o plenário (do Supremo) se manifestar, tem um caminho a percorrer juridicamente. Tenho absoluta certeza de que o Exército não tem nada a ver com isso. Isso é loucura, não leva a nada. Tem de esperar, ainda há passos jurídicos. Ninguém tem de se precipitar. É preciso ter equilíbrio, uma posição racional.”

No Ministério da Defesa, a decisão de Fachin foi recebida com incredulidade. Um oficial da ativa das Forças Armadas  classificou a anulação das condenações como “absurda” e disse que isso sela a derrocada do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, figura tida em alta conta no meio militar.

Entre os militares mais aborrecidos circulou até um questionamento, em tom de cobrança, para que se manifestassem novamente, repudiando a anulação das condenações de Lula. Até a noite de ontem, porém, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, preferiu nada comentar, num sinal de que espera um pronunciamento do plenário do Supremo sobre o caso. Azevedo foi assessor na Corte, durante parte do período em que o ministro Dias Toffoli era presidente do tribunal. O ministro mantém interlocução com os magistrados até hoje.

A reação do presidente Jair Bolsonaro à decisão de Fachin foi interpretada por generais como “morna”. Isso, para eles, indica que o chefe do Executivo pode tirar proveito político do caso. O tom de Bolsonaro foi semelhante ao citado nos bastidores por oficiais da ativa.

O presidente afirmou que Fachin “sempre teve forte ligação com o PT” e disse esperar que a Corte restabeleça o que havia sido julgado. “Não pode, em hipótese alguma, um homem só ser senhor desse julgamento", afirmou Bolsonaro.

O general de Exército da reserva Sérgio Etchegoyen disse que as pessoas em geral estão “indignadas” e “chocadas” com a decisão. Ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional no governo Michel Temer, Etchegoyen afirma que não faz julgamentos sobre o mérito do caso, mas questiona a necessidade de haver uma decisão coletiva dos ministros do Supremo.

“Por que essa decisão monocrática que se sobrepõe a dois tribunais colegiados não é um risco à democracia? Ou é um risco para a democracia só quando um general fala?”, afirma Etchegoyen, em referência ao tuíte do ex-comandante do Exército. “Não saberia avaliar a atitude do ministro Fachin, me surpreende somente que seja uma decisão monocrática, que se sobrepõe a dois tribunais, o TRF-4 e o STJ. Conceitualmente, a tese de que Curitiba estava virando juízo universal é antiga e é possível que esteja certa, só acho que um cidadão sozinho anular decisões... É o cara mais poderoso do mundo.”

O ex-ministro do GSI também discorda da possibilidade de novas manifestações das Forças Armadas sobre os processos de Lula. “Agora, para quê? Não faz nenhum sentido. Está encerrado o assunto. O cara foi lá e fez o que queria fazer”, opinou. Ele pondera que, em 2018, o tuíte de Villas Bôas era também um recado à tropa “para evitar que alguém da reserva dissesse alguma bobagem”.

Polarização. Santos Cruz avalia que a sociedade deve afastar de vez os extremistas de esquerda e de direita da vida política. Ele diz que um sinal prévio foi o crescimento de partidos de centro nas eleições municipais do ano passado, mas admite que a decisão de Fachin favorece nova polarização.

“O Brasil não pode mais depender, nem viver, numa guerra de extremistas. Vejo grande entusiasmo de extremistas de uma ponta e da outra. Extremista é tudo igual, o comportamento é semelhante. 

O fanatismo só está atrapalhando o Brasil. Tem que expurgar esses extremistas, que se dizem bolsonaristas, e os lá da ponta esquerda também. O Brasil tem que mostrar para as turmas das duas pontas que está cansado de extremismo. 

Está na hora da parte central da sociedade brasileira se manifestar e dizer que não aceita mais radicalismos de um lado e de outro, mostrar que a grande maioria da gente é equilibrada. A grande parcela da população não quer participar dessa novela sem fim.”

Para Santos Cruz, o País não pode aceitar uma “briga de rua” entre Lula e Bolsonaro. Ele diz que as personalidades de ambos não ajudam o País. 

E elogia Moro, personagem que militares avaliam sair desgastado do episódio. “Está aí Sérgio Moro, gente decente, e outros que são equilibrados e vão parar com esse show diário e não deixar que o Brasil tenha uma eleição transformada em briga de rua digital. É hora do centro. O Brasil precisa de equilíbrio, não de uma eleição de briga de rua”, diz o ex-ministro de Bolsonaro.

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 09 de março de 2021 

Maria Cristina Pinotti: Sociedade civil deve se unir

Surpresa provocada pela decisão é excelente indicador da fragilidade do aparato legal para lidar com casos de corrupção.

A grande surpresa provocada pela decisão do ministro Fachin de anular todas as condenações referentes a Lula no âmbito da Lava Jato é um excelente indicador da fragilidade do nosso aparato legal para lidar com a corrupção. Depois de anos de trabalho da 13.ª Vara de Curitiba, referendado por instâncias superiores, repentinamente descobre-se uma incompetência. Mais uma filigrana formal a indicar que, no Brasil, o crime de corrupção compensa.

A sensação de impunidade gerada é inevitável, e ocorre quando há, no Congresso, um movimento para abrandar as leis que definem e punem atos de corrupção como nepotismo, caixa dois, ou propõe blindagem dos parlamentares, recuo na transparência da prestação contas dos partidos e na cláusula de barreira, etc.

O que queremos para o Brasil? Permanecer no inglório grupo dos países com baixo crescimento e elevado nível de corrupção ou avançar no processo civilizatório, construindo um país ético e justo? Se este for o caso, e tenho certeza de que esse é o desejo de muitos brasileiros e brasileiras, temos de repensar, corajosamente, as nossas “sólidas instituições”. Não será a confortável ilusão de tudo o que estamos assistindo é natural (e passará com um passe de mágica) que nos livrará dos males que enfrentamos hoje. Afinal, a Venezuela aí está para mostrar como pode ser longa a noite de um recesso democrático.

O mundo nos mostra que corrupção e desenvolvimento econômico caminham juntos, e dependem da qualidade das instituições e da confiança na Justiça. A existência da corrupção evidencia que as instituições não estão cumprindo seu papel de pensar no bem comum, estão capturadas pelos interesses de grupos que se encastelam no poder e o utilizam em benefício próprio. Se reduz, cada vez mais, a qualidade da educação, da saúde, da segurança pública, minando na população a esperança de uma vida melhor. Só a união da sociedade civil será capaz de encontrar o caminho para superar esses tempos sombrios.

Maria Cristina Pinotti, economista, é coautora e organizadora do livro "Corrupção: Operação Mãos Limpas e Lava Jato". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, edição de 09.03.2021.