segunda-feira, 1 de março de 2021

"Tragédia entrará na conta dos negacionistas", diz diretor do Butantan

Diretor do Instituto Butantan diz que, se não fosse o governo, o Brasil já teria vacina desde dezembro, e aponta obscurantismo científico das autoridades como responsável direto por nova onda explosiva de covid-19.


Brasil vive no momento a maior média móvel de mortes da pandemia

Fazia exatamente três anos que o médico hematologista Dimas Tadeu Covas estava à frente do Instituto Butantan quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia: a de covid-19.

Na corrida aberta em busca de uma vacina, ele apostou em um parceria internacional que, meses à frente, se revelou minimamente eficaz: em janeiro de 2021, a campanha de imunização brasileira começou justamente com produto desse acordo, no caso a vacina Coronavac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac.

No momento em que o Brasil vive seu pior momento desde o início da pandemia, com mais de 250 mil mortos e hospitais operando no limite de suas capacidades, Covas diz que "a interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19".

"A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo”, diz ele. "A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas".

O Instituto Butantan é uma entidade pública ligada ao governo estadual paulista. Nos bastidores da crise com o governo federal estão os dividendos políticos de dois protagonistas do cenário político brasileiro: o governador de São Paulo, o tucano João Doria — que desde o princípio busca para si o capital político da vacina do Butantan — e o presidente da República Jair Bolsonaro — que em diversos episódios buscou difamar o imunizante.

O diretor do Butantan, contudo, frisa que à despeito dessa batalha, o instituto paulista "continuará como o principal fornecedor [de vacinas ao Ministério da Saúde] por muito tempo ainda”.

DW Brasil: Há um ano, o Brasil teve o primeiro caso oficialmente registrado de covid-19. Desde essa época, estava aberta uma corrida mundial pelo desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. Quando o Butantan decidiu procurar um parceiro para a produção de vacinas?

Dimas Tadeu Covas: O Instituto Butantan mantém-se alerta para o surgimento de epidemias, inclusive participa de organismos internacionais como o CEPI [Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias] cujo objetivo maior é a preparação para o enfrentamento de epidemias. Com o surgimento da epidemia de covid-19, imediatamente iniciamos o trabalho de prospecção de vacinas e de rotas tecnológicas para a sua produção. Neste caminho, já tínhamos conhecimento prévio da Sinovac, [empresa] que visitamos em 2019 e da qual também recebemos uma visita para discutirmos cooperação em vacinas. Já existindo esse aproximação e considerando que a Sinovac já tinha uma vacina em desenvolvimento em cuja tecnologia [de vírus inativado] temos experiência, nada mais apropriado. A parceria foi firmada preliminarmente em maio e assinada em junho do ano passado. O acordo, amplo, incluía o desenvolvimento de estudo clínico de fase 3 para a vacina no Brasil.

Na época em que foi firmada essa parceria, como o senhor avaliou os riscos — no sentido de a vacina não se demonstrar eficaz ou viável? Houve momentos em que conviveu com dúvidas se daria certo a parceria, se os resultados viriam?

A parceria foi firmada já com o conhecimento dos resultados preliminares das fases pré-clínica e clínica de fase 1 e 2. Os resultados promissores nos animaram para prosseguir para a fase 3, que seria importante para a vacina em termos mundiais. Obviamente, todo estudo científico pode não ter resultados de acordo com o desejado, mas sempre acreditamos e trabalhamos duramente para conseguir realizar o estudo no menor tempo possível e com o maior rigor necessário para demonstrar a utilidade da vacina no combate ao covid-19. Riscos são inerentes a todo processo inovador e o cientista e gestor responsável deve avaliar corretamente e assumir estes riscos, principalmente quando se trata da vida de milhões de pessoas. Assumimos o risco e felizmente hoje temos uma excelente vacina que é a base do programa nacional de imunização nesse momento.

Em que momento o senhor teve a certeza de que a vacina desenvolvida pela empresa Sinovac funcionaria? 

No momento em que recebemos os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos de fase 1 e 2 que já demonstravam o grande potencial da vacina. Passou-me pela cabeça a grande oportunidade de contribuirmos de forma positiva para dotar o Brasil de uma alternativa viável e tornar-se autossuficiente nessa vacina no momento do maior desafio que o país enfrentava em termos de saúde pública

Como o senhor avalia o movimento antivacina, que já era grande antes da pandemia e agora tem sido turbinado com teorias conspiratórias sobre as vacinas? Como conscientizar as pessoas da importância da vacinação?

O movimento antivacina no Brasil era incipiente até muito recentemente. A postura de autoridades federais negando a sua utilidade e, inclusive, usando de uma campanha subterrânea de fake news e mentiras a respeito da vacina e da própria pandemia vieram a alimentar esse movimento. Recentemente, no entanto, com o início da vacinação, esse movimento sofreu um grande revés e hoje a procura e o apoio à vacina é muito grande. Ao contrário do que alguns esperavam, a vacina se tornou assunto nacional com grande apoio popular que se traduziu inclusive em manifestações da cultura popular como o rap [funk Vacina Butantan, de Mc Fioti].

O senhor declarou à Folha de S. Paulo que nunca existiu interferência política tão grande na saúde pública quanto agora. Como lidar com essas pressões?

A interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19. A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo e que vai se agravar pela presença da chamada variante P1. Esse obscurantismo científico das mais altas autoridades do país causou um dano irreversível ao país, que ultrapassou as 250 mil mortes, uma catástrofe sem precedentes. A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas. Para o cientista preocupado e engajado como eu nessa luta resta, além de apontar esses absurdos, trabalhar em todas as frentes para minorar o sofrimento da população, inclusive na frente da comunicação e na batalha política da ciência.

A relação com o Ministério da Saúde deveria ser melhor? O que precisaria ser feito para aparar as arestas, principalmente considerando que vivemos uma pandemia?

O Instituto Butantan é o principal fornecedor de vacinas e soros para o Ministério da Saúde, e o nosso relacionamento sempre foi excelente. O ponto fora da curva aconteceu nesse governo que vem negando, por motivos políticos e obscurantistas, essa importância. A despeito dessas barreiras que ocorreram esse ano passado e nesse ano, o Instituto Butantan continua cumprindo o seu papel e é o responsável pelo fornecimento das vacinas para covid-19 que permitiram o inicio da vacinação no Brasil. Sem o Butantan o Brasil não teria vacinado mais de 7 milhões de pessoas. O Butantan entregou mais de 12 milhões de doses até esse momento ao Ministério e continuará como o principal fornecedor por muito tempo ainda.

Por que a aposta do Butantan foi no sentido de firmar uma parceria internacional em vez de desenvolver uma própria vacina?

O Butantan tem três vacinas [contra covid] em desenvolvimento, mas optou pela parceria inicial para ganhar tempo na incorporação da vacina e permitir o acesso do Brasil mais rapidamente. Não tivéssemos tido os problemas de relacionamento com o governo federal, teríamos vacinas disponíveis desde dezembro de 2020.

Essas vacinas em desenvolvimento não chegarão tarde demais?

As vacinas que o Butantan desenvolve terão seu papel nesta pandemia visto que se prevê que ela venha a se tornar endêmica e possivelmente sazonal como a influenza. Trabalhamos nessa perspectiva e, em 2022, teremos vacina totalmente feita aqui, adicionalmente à vacina feita em parceria com a Sinovac.

Deutsche Welle Brasil, em 01.03.2021

STJ admite, ‘há muito’, decisão sucinta como a de quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro, diz relator

Ministro Félix Fischer afirmou que juiz Flávio Itabaiana usou técnica válida para fundamentar abertura de dados bancários e fiscais para o Ministério Público em apuração sobre 'rachadinha'; considerada prova principal da denúncia, quebra foi anulada na 5.ª Turma, após voto de ministro Noronha

A brevidade das palavras do juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, no decreto em que quebrou o sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro (Republicanos/RJ) e de outras 94 pessoas – todos suspeitos de desvio milionário na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) – foi o que motivou a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a anular a prova principal da denúncia criminal contra o filho mais velho do presidente, Jair Bolsonaro.

No sucinto despacho, o magistrado do Rio usou uma técnica jurídica que “há muito, é admitida” pelo STJ para fundamentar a decisão. É o que defendeu o ministro Félix Fischer, relator do processo no STJ.

O Zero Um é acusado pelo Ministério Público do Rio de crimes de peculato, lavagem de dinheiro e de liderar uma organização criminosa. Considerado juiz linha-dura, Itabaiana atuou no caso das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro de 2018 – ano de início das apurações – até julho de 2020.

O processo foi retirado da 27.ª Vara Criminal, após a defesa obter vitória no Tribunal de Justiça do Rio, que concedeu foro privilegiado ao ex-deputado e e enviou para a segunda instância a apuração. Decisão tomada dias após o MP prender o operador e estopim do esquema, Fabrício Queiroz – policial militar aposentado, ex-assessor na Alerj e amigo do presidente.

A 5ª Turma do STJ anulou a quebra de sigilo por 4 votos a 1, na última terça-feira, 23, em decisão encabeçada pelo ministro João Otávio de Noronha, ue derrubou o entendimento do relator do caso –  que seguiu a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Tribunal de Justiça do Rio.

Noronha acatou argumentou da defesa de Flávio Bolsonaro, de que o despacho do juiz Flávio Itabaiana – de abril de 2019 – é nulo, pois “falta de fundamentação da decisão do juiz”. A defesa alegou que o a decisão “não teria passado de um parágrafo, não fez referência ao caso concreto nem indicou importância da medida para as apurações nem mesmo sua urgência”. Argumentos levados ao colegiado pelo advogado e conselheiro da família Bolsonaro Frederick Wassef, encampados por Noronha e seguidos pelos ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e José Ilan Paciornik.

“Ele (o juiz Flávio Itabaiana) afasta o sigilo de 95 pessoas, cada investigado tem uma situação, numa decisão de duas linhas. Em verdade, o magistrado não se deu ao trabalho de adotar de forma expressa as razões do pedido (do Ministério Público), apenas analisou os argumentos, concluindo que a medida era importante. Apenas isso. A decisão é manifestamente nula”, criticou Noronha, ao ler seu voto na sessão de terça-feira.

Com a decisão, a 5.ª Turma anulou o despacho da primeira instância e mandou retirar os dados da quebra do processo. Alinhado ao Palácio do Planalto, Noronha tem um perfil garantista, mais propenso a ficar do lado de investigados – e tem sido criticado, nos bastidores, por tentar se cacifar para a vaga que será aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) em julho.

‘Per relationem’. Flávio Bolsonaro passou a ser investigado no MP do Rio em fevereiro de 2018. A quebra dos sigilos fiscais e bancários dos investigados foi decretada em abril de 2019, por Itabaiana. A decisão curta remete os fundamentos aos elementos apresentados no pedido de quebra feito pela Promotoria.

“Compulsado os autos, ou seja, analisando os argumentos expedidos pelo Parquet (Ministério Público) na petição inicial de folhas 02/87 e examinando os anexos constantes da mídia digital de folha 88, verifica-se que o afastamento dos sigilos bancário e fiscal é importante para a instrução do procedimento investigatório criminal”, escreve o juiz no decreto – agora anulado pela 5.ª Turma.

A técnica é chamada de fundamentação “per relationem“. Nela, o magistrado pontua no despacho sua motivação remetendo ou fazendo referência às alegações da parte – no caso, o Ministério Público, ou até mesmo a decisão anterior nos autos do mesmo processo.

O relator do caso no STJ, Felix Fischer foi voto vencido. Ele foi contra os argumentos da defesa de Flávio Bolsonaro e registrou, em decisão anterior, que era “importante ressaltar que a técnica da fundamentação per relationem, utilizada na primeira decisão, há muito, é admitida por este Tribunal Superior”.

O ministro destaca que Itabaiana usou a remissão, “chamada de fundamentação per relationem“, em que se refere aos fundamentos que deram suporte ao pedido do Ministério Público ou até mesmo a anterior decisão. Lembrou que a técnica visa economia processual e “constitui meio apto a promover a forma incorporação, ao ato decisório, da motivação a que ele se reportou como razões de decidir”.

O relator das “rachadinhas” no STJ listou também em despacho de abril de 2020 casos de julgamentos anteriores, inclusive da 5.ª Turma e de seus membros, em que a técnica per relationem foi aceita. Citou ainda entendimento do STF, em outros casos, que a técnica foi aceita.

Pesquisadores de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) levantaram que apenas 3 de 29 decisões da 5.ª Turma, tomadas em casos semelhantes ao do senador Flávio Bolsonaro, foram similares à da que derrubou a prova principal da denúncia, conforme reportagem do Estadão. O levantamento foi feito no banco de dados da Corte, e se referem ao período entre 1.º de janeiro de 2020 a 24 de fevereiro de 2021.

PGR. Fischer destacou também manifestação “esclarecedora” do sub-procurador-geral da República Roberto Luís Oppermann Thomé, em parecer do caso, em que considerou inexistente qualquer “constrangimento ou ilegalidade/nulidade” nas decisões” do juiz da primeira instância.

“As movimentações bancárias suspeitas na conta do investigado Fabrício Queiroz configuram fortes indícios de que assessores ligados ao co-investigado Flávio Bolsonaro faziam transferências bancárias ou sacavam mensalmente parte de seus próprios vencimentos e os repassavam em espécie a Fabrício Queiroz, configurando-se prática criminosa conhecida no meio político por ‘Rachadinha’, ‘Rachid’ ou ‘Esquema dos Gafanhotos’, ou seja, prática em tese de peculato.”

Para Fischer, a decisão de Itabaiana foi tomada com “amparo em fortes indícios de materialidade e autoria de crimes, inclusive, com a suposta formação de associação criminosa, com alto grau de permanência e estabilidade, envolvendo dezenas de pessoas”. “Não bastasse, a imprescindibilidade da medida de quebra de sigilo foi muito bem explicada na segunda decisão” de Itabaiana.

O juiz expediu novo despacho na época, em que registrou que o “afastamento dos sigilos bancário e fiscal” citados “é imprescindível para o prosseguimento das investigações”. “Pois somente seguindo o caminho do dinheiro é possível o Ministério Público apurar os fatos que estão sendo investigados, não havendo outros meios menos gravosos de averiguar o contexto fático.”

Denunciado. Flávio Bolsonaro, seu ex-assessor Fabrício Queiroz e outras 15 pessoas foram denunciadas em novembro. A derrota desta semana na 5.ª Turma do STJ foi considerada o pior revés das apurações do MP do Rio contra o senador. A decisão invalida o decreto de quebra de sigilo de Itabaiana, o uso dos dados obtidos e toda prova colhida à partir deles. No processo, enfraquece substancialmente a denúncia, mas não anula por completo o caso, segundo autoridades ligadas ao caso ouvidas em reservado.

No pedido de quebra de sigilo feito ao juiz da 27ª Vara Criminal do Rio, o MP lista todos os elementos colhidos até aquele momento que justificavam a necessidade do pedido.

“Diante dos desafios inerentes à compartimentalização da cadeia de comando em crimes desta espécie, a identificação das lideranças do núcleo político e de outros possíveis integrantes dos núcleos operacional e executivo, bem como a descoberta do destino final dos recursos desviados demandará, dentre outros meios de prova, o afastamento dos sigilos bancário e fiscal dos envolvidos”, registra o MP.

O pedido de quebra, que tem 87 páginas e uma série de anexos que foram analisados pelo juiz e mencionados como referência para sua decisão, lista os elementos colhidos até ali que indicavam as práticas de crimes e a necessidade de se obter os dados. Entre elas as movimentações financeiras suspeitas entre assessores, constante em relatório do Coaf, revelado pelo Estadão, que apontou movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em uma conta de Queiroz, informações suspeitas prestadas pelo ex-assessor, transações imobiliárias suspeitas.

O Ministério Público do Rio informou em nota que ‘analisará as medidas’ a serem adotadas, depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em entrevista à imprensa, após o julgamento de terça no STJ, o advogado Frederick Wassef e Flávio Bolsonaro afirmaram que o colegiado fez o que diz a lei e que toda apuração do MP do Rio foi invalida, assim como a decisão do juiz da 27.ª Vara Criminal. “Isso é absolutamente ilegal”, disse Wassef.

O senador disse que a corte reconheceu aquilo que ele e sua defesa afirmam desde o início do caso, de que ele era alvo de uma perseguição. Falou em conluio entre promotores e o juiz Flávio Itabaiana, sugerindo que ele tinha interesses políticos. “Pode me investigar a vontade. Agora, não dá para rasgar a lei.”

Ricardo Brandt e Fausto Macedo. publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2021.

 

José Roberto Nalini: Uma democracia precária

 Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

Em 17.4.1995, o jornal italiano “La Stampa” trazia um artigo de Norberto Bobbio cujo título era “A democracia precária”.

Interessante observar como um quarto de século depois, a impressão que Bobbio tinha da Itália de seu tempo guarda analogia com o Brasil deste 2021. Ele dizia: “Também nestes dias se disse que, para levar nosso país a uma democracia completa, isto é, em direção ao bipartidarismo perfeito, é necessário ir além do fascismo e do comunismo, inimigos mortais, entre os quais não pode existir alternativa”.

Parece exatamente a situação brasileira, ressalvado o fenômeno bizarro de que temos quase quarenta partidos e que os nanicos, que só existem para favorecer seus dirigentes e fazer conchavos, queiram ganhar sobrevivência e perpetuidade.

A polarização nacional antepõe em arenas belicosas os “fascistas” contra os “comunistas”. Não há uma terceira via. Tudo vai recair nesse binômio fatídico. Quem não está com a pauta conservadora, é comunista. Quem não adota o esquerdismo mais racial é fascista.

Há ridículo de parte a parte. O retrocesso na mentalidade política é manifesto. O muro de Berlim caiu em 1989. O fascismo foi derrotado na primavera de 1945. Mas as consciências absorveram a seiva que alimentou esses movimentos e não conseguem sair do confronto.

Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

O próprio Norberto Bobbio deu uma receita de democracia: “Repetimos incessantemente que o ABC da democracia consiste no fato de que os dois concorrentes na competição livre para governar o país se considerem não dois inimigos, mas dois adversários, dos quais um reconhece ao outro o direito de estar no governo por um limitado período de tempo após ter vencido as eleições”.

Não é o que acontece aqui. Vários fatores impedem a experiência de uma verdadeira Democracia. O primeiro é a pulverização partidária. Não é possível existam mais de quarenta ideologias, para legitimar a formação de partidos. O que existe no Brasil é o aproveitamento de ineficácia da legislação para que grupelhos se intitulem portadores de uma parcela da vontade nacional e se autodenominem partidos. Com isso, legitima-se o acesso aos nefastos Fundo Partidário e Fundo Eleitoral. Pessoas sobrevivem durante décadas, vivendo às custas do povo que sustenta essa fantasia.

Outra, é o maldição da reeleição. Mal reconhecido pelo próprio primeiro beneficiado por ela, o Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir da implementação da possibilidade de mais um mandato, o primeiro dia do primeiro mandato já é uma articulação com vistas aos próximos quatro, depois de encerrado o primeiro.

Essa chaga acaba com a possibilidade de uma vida democrática digna. Para se reeleger, o candidato à reeleição vende sua alma. O pior é que vende também a alma de quase todos os brasileiros.

O terceiro fator é a ignorância. Um país de analfabetos, não apenas aqueles que não conseguem extrair verbetes da junção de letras. Mas os analfabetos funcionais, que não sabem o que leram, embora possam ler ou pelo menos titubeiem palavras, uma tropeçando na outra.

Há um analfabetismo digital, dos que não conseguiram adentrar à realidade da Quarta Revolução Industrial e vão ficar cada vez mais alienados de tudo o que acontece no Brasil e no mundo.

E a vasta legião dos iletrados. Mesmo os que superaram as barreiras do analfabetismo em sentido estrito, do analfabetismo funcional, do analfabetismo digital, não conseguem ler. E por não lerem, não conseguem pensar com clareza. Não têm discernimento para distinguir o que acontece ou não no seu país e no planeta.

Por isso é que o “fla-flu” do fascismo versus comunismo consegue manter as massas iludidas. Cada qual achando que está protegendo a Nação, sua família, sua descendência, impedindo que tudo caia sob o domínio de Satã, que é o inimigo. Enquanto isso, não se habilita a nova idade, o conjunto dos millenials, os nativos digitais, a se interessarem por política. Pela política da qual não podemos fugir, pois está distante a utopia de uma sociedade tão civilizada, tão humana e tão racional, que prescindisse do monopólio da força entregue a seres humanos que quase nunca sabem servir-se adequadamente dela.

Comunismo e fascismo são rótulos fáceis de se aplicar a quem quer que não pense como a gente. Mas existem muito mais na imaginação fértil e pouco iluminada de quem não quer acordar para a urgência de uma ação firme, coordenada e lúcida, que só pode partir dos verdadeiros donos do poder: os cidadãos.

José Renato Nalini, o autor deste artigo, é Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e Presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022. Publicado originalmente em      28.02.2021 n'O Estado de São Paulo.  

Para Tasso Jereissati, CPI é teste da autonomia de Pacheco

Senador tucano cobra do presidente da Casa a instalação de comissão para apurar a conduta do governo na pandemia

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pressiona o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro na crise de covid-19. O senador é um dos autores do pedido para abertura da investigação no Congresso que vai apurar a condução do combate à pandemia por autoridades públicas, incluindo o chefe do Planalto.

A instalação depende de Pacheco, apoiado por Bolsonaro na eleição para o comando da Casa e também pela oposição. “Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro” afirmou o tucano em entrevista ao Estadão.

Segundo Tasso, objetivo da CPI não é punir, mas tentar frear ‘insanidade’ do governo na condução da pandemia  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Na sexta-feira passada, Bolsonaro visitou as obras de duplicação da BR-222, em Caucaia (CE), e, mais uma vez, cumprimentou simpatizantes sem respeitar as medidas de contenção da covid-19, na semana em o que País atingiu novo recorde diário de mortes pela doença. “É preciso parar esse cara”, disse Tasso. A aglomeração ocorreu após o governador do Estado, Camilo Santana (PT), decretar toque de recolher e reduzir o funcionamento de atividades em função do avanço do novo coronavírus. Confira os principais trechos da entrevista:

Como o senhor avalia a recente visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará?

Dois dias antes, o governador e o secretário da saúde anunciaram toque de recolher e outras medidas. Tudo isso porque estamos pertinho do colapso e com tendência de crescimento da pandemia muito grande. Chega o presidente aqui e vai a um município, junta gente, aglomera gente sem máscara, depois vai para outro e conclama a população a sair de casa. Além de conclamar, joga uma ameaça: aquele governador que fechar agora tem que pagar o auxílio emergencial. É um esforço enorme para conscientizar a população e o cara vem e conclama o contrário. 

Por que o senhor defende a instalação da CPI no Senado?

Estou pedindo ao Senado, com receio de que teremos dificuldade porque não sei qual vai ser a posição do presidente Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da covid-19. Ele colocou meio na gaveta, fez aquela audiência com Pazuello, que foi um desastre, para empurrar com a barriga. É preciso parar esse cara (Bolsonaro). O intuito da instalação da CPI não é nem para punir, mas é para pelo menos parar essa insanidade. Por ser presidente da República, não pode conclamar a população inteira a correr risco de morte sem nenhum tipo de punição.

Que medida prática a CPI faria? Pode encaminhar uma denúncia ao Ministério Público?

Denúncia ao Ministério Público. Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso. 

O senhor advoga a tese do impeachment?

Eu só quero parar com isso, que o presidente caia em si. Acho que impeachment vai criar uma crise sem tamanho. E, outra coisa, ele tem seguidores. Vai piorar a coisa. Temos que conscientizar o presidente pelos seus puxa-sacos que isso tem consequências legais e ele vai ter que pagar por isso um dia. Não é assim. Dentro da CPI da covid-19, vamos levantar quem é responsável. 

O presidente do Senado está segurando a CPI. Qual é a viabilidade de ele autorizar?

O pedido de CPI está na mesa do presidente do Senado com as assinaturas. O que eles podem fazer é pedir que senadores retirem assinaturas. Se não, vai ser mais cedo ou mais tarde obrigado a implantar. Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo – e eu espero que seja – ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro.

O senhor acredita que Pacheco será independente? A comissão de acompanhamento que ele autorizou é para empurrar com a barriga?

Estamos com a possibilidade enorme de ter um caos no Brasil inteiro. Eu acredito que o presidente do Senado é um homem que tem consciência disso. A comissão de acompanhamento funciona bem, mas não tem consequência nenhuma. CPI é que mostra que tem consequência. O objetivo da CPI não é criar crise, é mostrar que o presidente da República não pode fazer e dizer o que quer, que tem consequências e que vai ser responsabilizado. 

O funcionamento remoto do Senado em função da covid-19 pode servir como justificativa para não instalar a CPI?

Justificativa não, pode servir de desculpa. Vai ter argumentação de que é difícil fazer virtualmente. A instalação tem de ser já, mesmo remotamente. Não podemos ficar quietos. Não estamos funcionando remotamente para outras coisas de muita responsabilidade? Não tá a PEC Emergencial aí agora? Não tá a PEC da imunidade na Câmara? 

Daniel Weterman, O Estado de São Paulo, em 01 de março de 2021

A decepção com Bolsonaro

Por diferentes motivos, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar que foram enganados.     

O desapontamento com o governo Bolsonaro não é um fato novo. Há quem tenha se desencantado com Jair Bolsonaro em razão, por exemplo, da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça em abril de 2020. Na ocasião, o ex-juiz da Lava Jato relatou tentativas de interferência por parte do presidente na condução da Polícia Federal. O episódio levou a que muita gente revisse sua ideia sobre a suposta carta branca que Jair Bolsonaro teria dado a Sérgio Moro para o combate à corrupção.

Na semana passada, a interferência de Jair Bolsonaro na presidência da Petrobrás produziu uma nova onda de decepção. Além dos efeitos devastadores sobre a empresa, com prejuízos muito concretos para as centenas de milhares de acionistas minoritários, a ordem para mudar a chefia da empresa consolidou a percepção de que Jair Bolsonaro não tem nenhum compromisso com a agenda liberal proposta na campanha de 2018. Não há mais nem mesmo o cuidado de manter as aparências.

Sempre houve bons motivos para desconfiar da adesão de Jair Bolsonaro a uma pauta de reformas. Basta pensar, por exemplo, que, por mais de duas décadas, a atuação do ex-capitão na Câmara dos Deputados foi oposta a todo o conjunto de reformas anunciado por Paulo Guedes na campanha eleitoral do então candidato do PSL à Presidência da República.

O fato, no entanto, é que muita gente confiou em Jair Bolsonaro: em sua disposição e capacidade de promover uma profunda mudança liberal no Estado brasileiro. A ideia era a de que, sob a batuta de Paulo Guedes, haveria um choque de gestão. O déficit fiscal acabaria, muitas privatizações seriam feitas, o poder público seria mais eficiente e o ambiente de negócios sofreria uma revolução.

“Quando candidato, Bolsonaro falava em privatização, e o ministro Guedes, que é liberal, defendia a tese da redução do tamanho do Estado. Me senti motivado a deixar meus negócios para contribuir com isso”, disse o empresário Salim Mattar ao Estado. De janeiro de 2019 até agosto de 2020, Salim Mattar foi o secretário especial de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia.

Hoje, ao falar daquele sonho liberal, Salim Mattar não esconde sua decepção. “O ministro Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido. Por exemplo, há quanto tempo a história da Eletrobrás está no Congresso e não consegue autorização?” Como se sabe, a resistência à venda da Eletrobrás não vem apenas do Legislativo. Até a edição da MP 1.031/21, Jair Bolsonaro tinha colocado mais condições do que defendido sua privatização.

Ao avaliar o panorama atual do País, citando, entre outros pontos, o episódio do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e a mudança no comando da Petrobrás, Salim Mattar não é otimista. “Nós perdemos o foco como país, não vai dar certo, não tem jeito de dar certo. O País precisa de foco para aquilo que é importante para o cidadão”, disse.

Paulo Uebel também não esconde sua decepção com os rumos do governo federal. Segundo o ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, mais do que simplesmente não promover as reformas, o presidente Jair Bolsonaro segue o caminho das administrações petistas. “Isso (a interferência na política de preços da Petrobrás) é uma mudança que vai contra o que foi aprovado nas urnas e aproxima Bolsonaro de práticas que o PT fazia. E isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver”, disse Paulo Uebel ao Estado. Em sua avaliação, o resultado da interferência pode ser a “destruição de valor muito grande da empresa, como vimos durante a gestão do PT”.

O abandono de qualquer imagem de governo reformista se dá num momento em que a aprovação de Jair Bolsonaro caiu para 44%, uma queda de oito pontos em quatro meses, de acordo com a pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA. No período, também diminuiu a avaliação positiva do governo (ótimo e bom) de 41% para 33%. Por diferentes motivos – a irresponsável atuação do governo federal na pandemia é apenas um deles –, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar, ora vejam, que foram enganados.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 01 de março de 2021 

Eliana Calmon: O desmanche das instituições

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Eliana Calmon. (Crédito foto: Instituto Não Aceito Corrupção - INAC / Divulgação).

A partir de 1992 o mundo ocidental foi surpreendido com um feito inédito da Justiça: a “Operação Mãos Limpas” que enfrentou os criminosos da “máfia italiana”, infiltrada há anos nas instituições do país,  considerada, à época, a maior investigação destinada a desvendar a engrenagem de corrupção entre políticos e empresários, pondo de cabeça para baixo a política italiana, com 5.000 investigados, 1.300 condenações e sumiço dos dois principais partidos políticos.

O Brasil, nessa época, lutava para implantar as mudanças trazidas com a Constituição Federal de 88, dentre as quais dar nova estrutura à Polícia Federal e ao  Ministério Público Federal, até então despreparados para atender aos desafios de combate à corrupção em um país tradicional e historicamente patrimonialista, onde o interesse público sempre esteve a serviço dos interesses privados das elites política e econômica.

Mas no final do século XX o mundo estava bem diferente: os parceiros comerciais estavam preocupados em estancar a corrupção que tanto prejudicava as relações negociais e exigiam cada vez mais segurança jurídica, enquanto as nações mais desenvolvidas, preocupadas com o terrorismo, incentivavam o combate aos crimes transnacionais, alimentados pelo dinheiro fácil da corrupção.

E o Brasil praticamente foi indiretamente persuadido pelas relações internacionais a ingressar nesse novo quadro da economia globalizada, modernizando a sua defasada legislação anticorrupção e aprovando importantes instrumentos legislativos tais como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Combate às Organizações Criminosas (1995), a Convenção Interamericana da OEA (1996), a Lei de Lavagem de Dinheiro (1998), a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), dentre outras.

Esses ingredientes deram início às primeiras operações  contra os históricos saques aos cofres públicos, com severa atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

A Justiça Brasileira, infelizmente, muito resistiu às mudanças  estruturais e enfrentou a pós-modernidade de forma acanhada, formal e defasada da realidade, preocupada em manter o seu status de privilégios como “super partes”, perdendo-se no tempo. Praticamente quase todas as operações foram inutilizadas pela prescrição consentida, ou pelo formalismo exacerbado, construído de forma sofisticada pelos grandes escritórios de advocacia, sendo certo que as eruditas teses jurídicas tecidas ao sabor de parcerias elitistas e compadrio não tiveram o poder de esconder uma realidade: os que conseguiram fugir da Justiça nunca foram inocentados dos crimes cometidos, nem obrigados a devolver o que furtaram dos cofres públicos. E com o tempo foram esquecidos, voltando à vida pública.

A única operação que prosperou, fugindo de qualquer prognóstico, foi o Mensalão, em 2005, envolvendo políticos, empresários, banqueiros e o Partido dos Trabalhadores, ao qual pertencia o Presidente da República. Foi um divisor de águas. O que aconteceu?

A resposta ficou gravada nas páginas da história, deixando a receita para todo o Poder Judiciário: a forte atuação do  Ministro Presidente do Supremo à época, institucionalmente comprometido como guardião constitucional, a figura de um destemido Ministro Relator, focado unicamente na técnica, um Ministério Público já fortalecido pelo papel constitucional que lhe foi dado na Constituição Cidadã e no descuido das defesas que, à cargo de uma elite de causídicos, acostumada  às facilidades da processualística, descuidaram-se das provas que, de forma ululante,  saltavam dos autos à primeira vista d”olhos.

O Mensalão foi responsável por um novo momento, em que o Poder Judiciário se reabilitou perante a nação brasileira, devolvendo aos magistrados a autoestima, e valorizando as demais instituições parceiras.         E foi neste clima de democracia nova que em junho de 2013 a população foi para rua exigindo punição para os corruptos e serviço público de qualidade.

Assustados com as manifestações deram os parlamentares um jeito de rapidamente aderirem aos pleitos e às pressas aprovaram uma lei importantíssima que lá dormitava há três anos.

Refiro-me à Lei Anticorrupção, a qual traz no seu contexto dois importantíssimos institutos, já conhecidos do ordenamento jurídico brasileiro, mas só sedimentados com a lei nº 12.846: delação premiada e acordo de leniência.

Assim surgiu a Operação Lava Jato, a maior iniciativa de combate a corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil. Iniciada em março de 2014, perante a Justiça Federal de Curitiba, conduzida por uma força tarefa do Ministério Público Federal, sob o comando do Procurador da República Deltan Dallagnol, tendo como juiz principal o Dr. Sergio Moro.

Não esquecidos das inúmeras operações anuladas por Tribunais Superiores, dentre as quais 4 delas tidas como emblemáticas (Banestado, Satiagraha, Castelo de Areia e Boi Barrica), cujas decisões, para tirar  os réus das mãos da Justiça, não se acanharam em colidir com decisões precedentes, dos mesmos tribunais, agiram os investigadores com extrema cautela e estratégia. Iniciaram investigando primeiro os  agentes públicos menos graduados, passando depois aos diretores de empresas estatais, em seguida aos  empresários, sendo deixada a empresa Odebrecht, a maior e mais protegida pelos políticos, por último e em um processo em separado, para só ao final chegarem aos políticos de primeira grandeza. Coincidentemente foi quando começou o desmanche da operação.

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Juristas italianos, ao visitarem o Brasil, sempre advertiam. O Dr. Gherardo Colombo, por exemplo, magistrado protagonista da Operação Mãos Limpas, disse em entrevista ao Estadão: “a Justiça sozinha é incapaz de derrotar a corrupção. No mesmo sentido o pensamento da socióloga italiana Donatella Della Porta, foi enfática ao declarar: “O grande erro foi acreditar que o Poder Judiciário conseguiria mudar sozinho o corrupto sistema italiano. Uma transformação significativa necessitava que profunda reforma política fosse feita em paralelo às investigações policiais e às decisões judiciais”.

O esforço derradeiro do juiz Sergio Moro, ao sentir o que se avizinhava, foi tentar na política provocar a mudança que foi capaz de realizar no Judiciário. Lamentavelmente não deu certo, faltou ao Ministro o necessário apoio político, sendo engolido por uma realidade que o fez recuar e reiniciar na trincheira da cidadania, a única capaz de causar uma mudança significativa na política. Afinal está com os cidadãos o poder de mudança pelo voto, o que não é nada fácil,  mas é o único caminho para mudar.

Não são poucos os cidadãos que estão dispostos a lutar pelo pais, pela democracia, pelos seus filhos e netos, principalmente porque no Brasil a hecatombe foi pior do que a da Itália. A nação está sofrendo ataques poderosos vindos de dentro das próprias instituições, na tentativa de desacreditar os órgãos de controle, deixando a cidadania duvidosa, cabisbaixa e amedrontada. Afinal em quem acreditar quando assistimos a mais  alta Corte de Justiça a assim se comportar?

Sem preocupação em construir uma nação, sem assegurar os postulados da Constituição da qual são ou deveriam ser guardiões, a leniência e incoerência de teses jurídicas, julgando ora de uma forma, ora de outra, destrói a segurança jurídica dos jurisdicionados, a hierarquia do Judiciário que os magistrados acostumaram-se a obedecer, fazendo dos juízes órfãos institucionais.

Como profissional do direito e magistrada que fui, por quarenta anos acreditei, e obedeci, tendo os olhos sempre voltados para uma Corte que respeitei até o momento em que, com tristeza, perdi a minha ingenuidade.

Conservo entretanto a minha fé na cidadania e por ela continuo a defender a Lava Jato, até agora o instrumento mais eficaz para proteger uma democracia que sangra com desmanche de suas instituições.

Eliana Calmon foi Ministra do Superior Tribunal de Justiça e Corregedora Nacional de Justiça. Advogada em Brasília e Professora de Direito Público. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo (blog do Fausto Macedo), edição de 26.02.2021. 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Ala liberal perde espaço e sobe o tom contra Bolsonaro

Um dos pilares da frente que elegeu o presidente em 2018, o grupo sofreu perdas relevantes no governo e ampliou as críticas ao presidente com intervencionismo na Petrobrás e outras medidas populistas

Nesta semana, em linha com o seu estilo “morde e assopra”, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer um afago no ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de criticar a política de preços da Petrobrás e anunciar a demissão do comandante da empresa, Roberto Castello Branco.

Diante dos rumores de que Guedes poderia deixar o cargo após a dispensa de Castello Branco, um dos expoentes do grupo de liberais que ele levou para o governo, Bolsonaro resolveu tirar da gaveta as privatizações da Eletrobrás, a estatal de geração e transmissão de energia, e dos Correios, defendidas desde sempre pelo ministro.

Política Econômica

Bolsonaro pediu a saída de Roberto Castello Branco, presidente da Petrobrás Foto: Wilton Junior/Estadão

Bolsonaro também procurou mostrar que a percepção de que não está comprometido com a agenda liberal de Guedes – cada vez mais acentuada até entre seus apoiadores – é infundada. “Nossa agenda continua a todo o vapor”, afirmou, ao entregar o projeto de privatização da Eletrobrás ao Congresso, na terça-feira, 23. “Nós queremos, sim, enxugar o Estado, para que a economia possa dar a resposta que a sociedade precisa.”

Guedes, aparentemente, “agasalhou” mais esse revés e deverá continuar por ora a conferir ao presidente o verniz liberal que foi essencial para a sua eleição, em 2018, com a esperança de que ainda receberá o aval do chefe para dar tração às suas propostas. Guedes costuma dizer a seus auxiliares que é “duro na queda” – e, considerando que permaneceu no cargo até agora, apesar das inúmeras “bolas nas costas” que levou de Bolsonaro nos 26 meses de governo – é difícil discordar dele neste aspecto, independentemente do que se pense a seu respeito. Em sua posição, outros, provavelmente, já teriam abandonado o barco por muito menos.

Legado econômico

Com a aproximação das eleições de 2022 e a provável candidatura de Bolsonaro à reeleição, a implementação de medidas que são fundamentais para o País, mas mexem com interesses de todos os tipos, como as privatizações, as reformas, a austeridade fiscal, a abertura econômica e o fim de privilégios setoriais e de categorias profissionais, deverá se tornar cada vez mais difícil. O ministro, porém, parece encarar a sua passagem pelo governo como uma missão e se mostra disposto a enfrentar as adversidades para tentar deixar um legado na economia do qual possa se orgulhar.

“O ministro Paulo Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido”, disse recentemente o empresário Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, à repórter Cleide Silva, do Estadão. “O presidente está de olho na reeleição e não quer fazer nada que possa prejudicar a sua imagem.”

Política Econômica

Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do Ministério da Economia Foto: Gabriela Biló/Estadão

Batizado de Posto Ipiranga por Bolsonaro durante a campanha eleitoral, o superministro que reuniu quatro pastas sob seu comando – Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento e Trabalho, além da Previdência – está se tornando uma voz cada vez mais solitária no governo. Aos poucos, mas de forma consistente, a ala liberal que ele representa e que foi um dos pilares da frente política que elegeu Bolsonaro, está vendo seu espaço minguar a olho nu. Da equipe de liberais puros-sangues levados por Guedes para Brasília, restam apenas Carlos da Costa, secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.

Batida em retirada 

Com a queda de Castello Branco, que faz parte da velha guarda da Universidade de Chicago, o templo do liberalismo global no qual Guedes também se formou, já são cinco os representantes do “núcleo duro” de liberais do governo que ficaram pelo caminho. Isso sem contar os nomes que bateram em retirada, mas tinham um perfil mais técnico e eram profissionais de carreira no setor público, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, ou não faziam parte do círculo mais próximo do ministro.

Além do próprio Castello Branco e de Salim Mattar, que deixou o cargo por não ter conseguido realizar as privatizações em série que pretendia, a lista inclui o ex-secretário especial de Desburocratização, Paulo Uebel, que saiu contrariado com a resistência do presidente em promover uma ampla reforma administrativa, que englobasse os atuais servidores. Inclui ainda o ex-presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, também ex-aluno da Escola de Chicago, que renunciou ao posto dizendo que “é muito difícil para um grupo de liberais trabalhar no ambiente de Brasília”.

Política Econômica

Economista e diplomata Marcos Troyjo foi secretário de Comércio Exterior até julho de 2020 Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Outro integrante da ala liberal que se desligou do governo foi o ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo, que tinha a missão de tocar a abertura econômica desejada por Guedes. Mas, como a abertura não saiu do papel, em razão da influência exercida por representantes do setor industrial junto a Bolsonaro, Troyjo acabou indicado para ocupar a presidência do Conselho de Governadores do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês), mais conhecido como Banco do Brics (a organização formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Rompimento com liberais

Se o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, deixar mesmo o posto, como tudo indica, o grupo vai ganhar mais um integrante. Brandão colocou o cargo à disposição na sexta-feira, 25, depois de ser ameaçado de demissão por Bolsonaro, por ter anunciado um programa de redução de custos que previa o fechamento de agências e um plano de demissão voluntária para eliminar 5 mil vagas na instituição.  O episódio, aliado à intervenção na Petrobrás, reforçou o temor de que a guinada de Bolsonaro possa  levar  a um rompimento definitivo com os liberais, culminando com a saída de Guedes do governo.

Política Econômica

Rubem Novaes, predecessor de André Brandão no comando do Banco do Brasil Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Em vez do discurso adotado na campanha, o presidente está resgatando as velhas posturas corporativistas e nacional-desenvolvimentistas, de viés estatizante, que marcaram a sua trajetória política, sem qualquer identificação com as bandeiras defendidas pelos liberais no País.

'Função social'

"O petróleo é nosso ou de um pequeno grupo no Brasil?”, afirmou Bolsonaro, em referência à frase do ex-presidente Getúlio Vargas adotada depois na campanha nacionalista que levou à criação da Petrobrás, nos anos 1950, ao esbravejar contra os seguidos aumentos nos preços dos combustíveis.  “Uma estatal, seja ela qual for, tem de ter visão social”, acrescentou, incorporando um discurso que é o oposto do adotado pela turma de Guedes.

Segundo a visão liberal, a melhor forma de as estatais cumprirem a sua “função social”, é por meio do aumento de eficiência e de produtividade, para gerar mais lucros e mais dividendos para o governo poder aplicar o dinheiro em saúde, educação e segurança. "Os combustíveis são commodities, como o açúcar, o café, o trigo. São commodities cotadas em dólar e seus preços são formados pela oferta e demanda internacional", afirmou Castello Branco, em resposta às críticas de Bolsonaro, durante a apresentação do balanço da Petrobrás no quarto trimestre de 2020, que apontou lucro recorde de R$ 59,9 bilhões. “O preço não é caro nem barato, o preço é preço de mercado. Se o Brasil quer ser uma economia de mercado tem de ter preços de mercado. Não atenderemos aos melhores interesses da sociedade subsidiando os preços dos combustíveis.” 

Ironicamente, os aplausos à intervenção de Bolsonaro na Petrobrás vieram do PT e de outras organizações de esquerda, defensores tradicionais do “papel social” das estatais e principais adversários do presidente. “Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos”, disse o ex-ministro e ex-senador petista Aloizio Mercadante. “Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo brasileiro, os caminhoneiros e os motoristas de aplicativos.”

'Práticas do PT'

Ao mesmo tempo, representantes da ala liberal, que até ontem ou anteontem reforçavam as fileiras bolsonaristas nas redes sociais, saíram em defesa de Castello Branco. Até o ex-secretário Paulo Uebel, que era um dos homens de confiança de Guedes, decidiu se manifestar.

“Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, será substituído por estar fazendo o trabalho certo: blindar uma empresa estatal contra o uso político, contra o populismo. As empresas estatais não devem ser usadas para gerar votos. Isso viola os princípios da administração pública e contraria as boas práticas de governança”, afirmou no Twitter.  Depois, em entrevista ao Estadão, Uebel foi além. “A mudança na Petrobrás aproxima Bolsonaro das práticas do PT”, disse. “Isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver.”

Política Econômica

Ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Paulo Uebel Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Um caso relatado pelo economista Gustavo Franco em sua coluna de 27 de dezembro no jornal, ocorrido durante uma visita de Bolsonaro à Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), revela, de forma emblemática, o desapreço que ele confere às ideias e propostas da ala liberal do governo, muitas vezes camuflado por um discurso que pode até “levantar a arquibancada”, mas tem pouco a ver com a realidade.

Segundo os relatos de testemunhas ouvidas por Franco, Bolsonaro afirmou, ao chegar ao palanque armado no local para recebê-lo: “Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair...Não consigo encontrar, é uma coisa pequena”. Em seguida, acrescentou: “Vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais estavam todas no mesmo chaveiro...É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada no chão, vamos procurar por favor...”.

A troça de Bolsonaro fala por si mesma, mas, para não deixar margem a dúvida, Franco sintetizou o seu real significado no artigo: “A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com sua política econômica, declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um casamento arranjado”.

Apesar das divergências com Bolsonaro, boa parte da ala liberal que o apoiou em 2018 vinha relativizando os seus pecados até agora. Mas, diante da sucessão de transgressões às crenças do grupo nos últimos tempos, o divórcio dos liberais com Bolsonaro talvez esteja mais próximo do que se poderia imaginar algum tempo atrás e deverá afetar a correlação de forças nas eleições de 2022 e reforçar a busca por uma alternativa política para a disputa.

Polarização política

Salim Mattar, por exemplo, que chegou a ser sondado como candidato do Novo à Presidência em 2018, tem confidenciado a interlocutores do partido que estaria disposto a participar do pleito se houver um posicionamento independente da legenda, que fuja da polarização política entre Bolsonaro e o PT.

“Hoje, não tenho mais confiança na fidelidade de Bolsonaro à agenda liberal”, diz Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, uma organização voltada para a difusão das ideias liberais no País. “Imaginava que, para mim, o ponto máximo de decepção com Bolsonaro seria a saída do Paulo Guedes, mas isso não foi necessário para eu chegar lá. Muitos liberais se decepcionarem com o presidente  sem a necessidade de o ministro sair.”

Como líder dos liberais no governo, Paulo Guedes, provavelmente, vai “apagar a luz”. A questão, agora, pelo que se pode observar, não é tanto saber “se” ele vai deixar o governo, mas “quando” o fará. Se a guinada nacional-desenvolvimentista e intervencionista de Bolsonaro se confirmar, o risco de Guedes esticar a sua permanência no cargo e continuar a “engolir sapos” do presidente é ele estar à frente de um exército de um homem só – ele próprio.

José Fucs, O Estado de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2021

Brasil registra 1.386 mortes por covid-19 em 24 horas

País acumula mais de 254 mil óbitos resultantes de infecções pelo novo coronavírus. Autoridades de saúde registram ainda 61,6 mil novos casos, e total de infectados vai a 10,5 milhões.    

Paciente é retirado de ambulância em frente a hospital de Manaus

Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia

O Brasil registrou 1.386 mortes por covid-19 e 61.602 novos casos da doença neste sábado (27/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.517.232, enquanto os óbitos chegaram a 254.221.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Segundo o Ministério da Saúde, 9.355.974 pacientes se recuperaram da doença até o dia anterior. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 121 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Segundo um consórcio da imprensa brasileira, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até esta sexta-feira 6.433.345 pessoas haviam recebido ao menos a primeira dose da vacina contra a covid-19, cerca de 3% da população.

Em números absolutos, o Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 511 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 113,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,5 milhões morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 27.02;2021

Ascânio Seleme: A infâmia

O presidente é solitariamente o indivíduo que mais contribuiu para a encrenca em que o Brasil está metido, à beira de um colapso sanitário

A tragédia foi anunciada há um ano. Desde fevereiro de 2020 sabia-se que a pandemia de coronavírus deveria ser tratada com todo rigor pelas autoridades, nas três instâncias de poder, e pelos brasileiros, em cada um dos cantos da Nação. Foi já neste começo que percebemos que não dava para contar com a contribuição do presidente do Brasil. Jair Bolsonaro fez graça e piada sobre a “gripezinha” e desafiou a ciência ao propor tratamento alternativo inteiramente ineficiente. Jamais respeitou o distanciamento social recomendado e quase nunca usou máscara para se proteger e proteger os demais.

O exemplo do principal líder do país repercutiu de maneira devastadora. Bolsonaristas passaram a usar a mesma retórica, os mesmos argumentos do mito, deixaram as máscaras em casa e se aglomeraram. O Ministério da Saúde, seguindo as instruções absurdas do presidente, instrumentalizou a Anvisa, deixou de comprar vacinas, torpedeou o quanto pôde o Instituto Butantan e receitou cloroquina para quem sentia falta de ar e não dispunha de oxigênio para se socorrer.

O fanatismo de Bolsonaro foi de tal ordem que ele chegou agora ao ponto de atacar o uso de máscaras. Citando estudo de uma universidade alemã que não identificou, disse que máscaras são prejudiciais porque podem irritar e desconcentrar as pessoas, além de causarem dor de cabeça. Pode? Não pode. Sob qualquer ângulo que se observe, a afirmação do fanático é estúpida. No mesmo dia em que ele pronunciava a barbaridade, 1.582 brasileiros morriam em consequência da doença.

Fora um ou outro, governadores e prefeitos Brasil afora não caíram imediatamente na falácia presidencial. Em alguns casos, corretamente, decretou-se lockdown nos momentos mais agudos da crise no ano passado. Os resultados foram positivos, nenhuma dúvida. Mas, do lado de fora, Bolsonaro torpedeava os que endureciam acusando o desarranjo que o fechamento produziria na economia. Aos poucos, a contaminação tomou também a consciência de alguns mandatários em estados e municípios.

No Rio, por exemplo, hospitais de campanha foram fechados prematuramente e ambientes propícios à aglomeração, como shoppings, bares e restaurantes, foram reabertos muito rapidamente. Morrem quase 200 pessoas a cada dia no estado. Nas últimas duas semanas foram registrados 30 mil novos casos por aqui. As praias estão abertas e os calçadões fechados no domingo para que o carioca possa se divertir e se aglomerar tranquilamente. Aliás, por que as praias do Rio continuam abertas?

A fantástica aglomeração observada no Palácio do Planalto no dia da posse do novo ministro João Roma foi mais um exemplo de como os homens que ocupam o poder se lixam para a doença. O que viu foi de causar inveja até mesmo nas noites mais quentes da Dias Ferreira. Nem a garotada desgarrada da Zona Sul do Rio consegue superar o capitão. Só os fins de semana de sol em Ipanema, Copacabana e Leblon aglomeram tanta gente.

A infâmia produzida em escala nacional por Jair Bolsonaro gera crias estaduais e municipais que ampliam seu poder deletério. O presidente é solitariamente o indivíduo que mais contribuiu para a encrenca em que o Brasil está metido, à beira de um colapso sanitário. Mas seus filhotes, espalhados por todos os lados da organização do Estado nacional, ajudam muito no esforço do capitão para solapar os brasileiros.

Francamente

Ao anular as quebras de sigilo aprovadas pelo juiz Flávio Itabaiana, o STJ atrasou por pelo menos três anos o andamento na Justiça do caso das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro na Alerj. Ficará tudo para depois das eleições de 2022. Um belo serviço prestado ao capitão. Todas as evidências dos crimes cometidos estão no inquérito, com testemunhas, operadores e pessoas beneficiadas. Até Michelle, a mulher do presidente, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz. O dinheiro era desviado dos salários de funcionários do gabinete e caía nas contas do zerinho, da sua mulher e da sua madrasta. Os servidores do gabinete pagavam até a escola dos netos de Bolsonaro. Mas três de quatro juízes, orientados pelo voto de João Otávio de Noronha, não aceitaram a quebra do sigilo que revelou a corrupção porque suas excelências não enxergaram “fundamentação” para tanto.

Vai ter que remar

Depois desta semana, Augusto Aras vai ter que fazer muito esforço e malabarismo para voltar a se destacar na corrida pela vaga de Marco Aurélio Mello no STF. Ainda restam alguns meses, tempo suficiente para o capitão e sua turma aloprada aprontarem mais uma. E então, Aras voltará a ser útil.

Bittar na história

Há duas categorias de abilolados. A primeira é formada pelos que se envergonham da sua condição e tentam não fazer muito barulho para passarem despercebidos. A segunda reúne gente que fala o que lhe dá na telha e tenta tocar ideias malucas sem se preocupar com o impacto que podem causar em sua imagem, como o senador Márcio Bittar, relator da PEC do auxílio emergencial. O senador propõe suspender os gastos mínimos com Saúde e Educação, desviando parte desse dinheiro para os gastos emergenciais. A ideia, que não é dele, contempla o pacote liberal de Paulo Guedes. Não deve passar, mas com esse Senado nunca se sabe. Se a PEC passar, Bittar será eternamente lembrado como a tesoura de Saúde e Educação.

Se está sobrando...

De acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União, 6.157 militares das três Forças Armadas servem em postos civis no governo Bolsonaro. Destes, 3.029 são da ativa, segundo o Ministério da Defesa. Com o contingente desviado de função, dá para montar uns cinco ou seis batalhões de infantaria do Exército. Se esse volume de gente não faz falta às Forças Armadas, não seria o caso de reduzir o tamanho do aparato todo e economizar recursos? Olha uma oportunidade aí, Bittar.

Flamengo

Difícil falar de qualquer coisa importante depois do octacampeonato do Flamengo. Pretendia usar minha coluna para, além de declarar meu total apoio ao mais querido, enaltecer a conquista de quinta-feira. Mas, aí apareceu o nosso capitão.

Não toquem nas Laranjeiras

O prefeito Eduardo Paes pediu ao governador Cláudio Castro que desista da ideia de transformar o Palácio Laranjeiras em museu. Jurou que ele mesmo cuidará do assunto mais adiante, mas antes disso quer morar na residência oficial do governo estadual. Claro que antes ele tem que ser eleito governador. O prefeito, que adora uma residência oficial, morou seus dois primeiros mandatos na casa da Gávea Pequena, para onde voltou agora. No Laranjeiras, todo mundo sabe, habitam muitos fantasmas, mas Paes não se importa.

Claro, prefeito

O museu terá de esperar. O governador não vai desagradar o prefeito, sobretudo porque ele poderá ser o seu principal cabo eleitoral para uma eventual candidatura pela reeleição. Castro é de longe a melhor opção para Paes, que não vai se desincompatibilizar da prefeitura para concorrer em 2022. Ele calcula que se outro for eleito no ano que vem, será um adversário forte em 2026, ano em que o prefeito quer se eleger governador para ir morar no Laranjeiras. Com Castro no lugar, o caminho fica mais fácil.

Melhor que o paraíso

O ex-senador Darcy Ribeiro costumava dizer que o Senado é melhor do que o paraíso, porque não é preciso morrer para dele usufruir, basta ter um mandato. E olha que na época de Darcy não se discutia a total e absoluta impossibilidade de a Justiça punir um parlamentar, como prevê a PEC da Impunidade. Imagina o que o senador diria hoje, lembrando que pela emenda, o paraíso terrestre passa a ser acessível também aos deputados. Todos terão liberdade para delinquir à vontade.

Coronel Fan Coil

A comunicação do Planalto vai mudar. O civil Fábio Wajngarten dá lugar ao almirante Flávio Rocha. Do primeiro nunca se obteve uma informação relevante que fosse. Do segundo pode-se esperar menos. São os legítimos sucessores do “coronel Fan Coil”, do governo do general João Figueiredo. Fan Coil é um sistema de refrigeração central. Grande, exige espaço amplo e exclusivo. No Planalto de Figueiredo havia uma sala para o equipamento com o seu nome numa placa na porta. Todo jovem jornalista que iniciava a cobertura do Planalto era instruído pelos mais velhos a procurar o coronel Fan Coil no quarto andar, que ele sempre tinha boa informação. Era só chegar, bater na porta e esperar ele abrir. Poderia demorar, mas valia a pena. Mesmo os que caíram no trote tiveram com Fan Coil mais informação do que conseguiriam com a turma de hoje.

Ascânio Seleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 27.02.2021

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Brasil passa de 252 mil mortes por covid-19 e tem novo recorde na média móvel de óbitos

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.455.630 casos de covid-19 e 252.835 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta sexta-feira (26/2).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 1.337 óbitos e 65.169 novos casos da doença.

Pelo terceiro dia consecutivo, o país bate recordes na média móvel de sete dias: nesta sexta, a média calculada dos últimos sete dias foi de 1.153 casos de óbitos.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (59.129), seguido de Rio de Janeiro (32.909) e Minas Gerais (18.276).

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 509 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado oficialmente em número de casos, entretanto, pela Índia (11 milhões), em segundo lugar depois dos Estados Unidos (28,4 milhões).

BBC News Brasil, em 26.02.2021

OMS diz que Brasil vive 'tragédia' com nova onda da Covid e diz que Estados tentam fazer a coisa certa

Mike Ryan lembrou que o país já está há um período muito prolongado com altas taxas de casos e de mortes. Mais cedo, Fiocruz afirmou que SUS enfrenta pior momento desde o início da pandemia.

Michael Ryan, diretor-executivo do programa de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS) — Foto: Christopher Black/OMS

O diretor-executivo de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), Mike Ryan, chamou a pandemia no Brasil de tragédia e lamentou que o país enfrente uma nova onda de casos e mortes pela Covid-19

"Infelizmente, é uma tragédia que o Brasil esteja enfrentando isso de novo e é difícil. Esta deve ser a quarta onda que o país volta a enfrentar", disse Ryan nesta sexta-feira (29).

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Ryan ressaltou qualidades do sistema público de saúde brasileiro e elogiou a ação dos estados para tentar conter a alta transmissão do coronavírus, mas afirmou que é urgente o país controlar a transmissão em nível comunitário. "Não houve um ponto do país que não tenha sido afetado de forma grave pela pandemia", disse.

"O Brasil é muito capaz e tem muitas instituições científicas e de saúde pública fantásticas. Acho que o país sabe o que fazer e muitos estados estão tentando aplicar as melhores medidas. Não é simples. Não é fácil", disse.

Lição: pandemia não acabou

A alta nos casos e mortes brasileiras, segundo Ryan, serve de lição para o mundo e comprova que a pandemia não acabou. "Não acabou para ninguém e qualquer relaxamento é perigoso", afirmou.

A fala do diretor-executivo da OMS ocorreu no mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro, em visita ao Ceará nesta sexta, criticou estados que estão adotando medidas mais rígidas para restringir a circulação de pessoas diante do avanço da Covid-19.

"Esses que fecham tudo e destroem empregos estão na contramão daquilo que seu povo quer. Não me critiquem, vão para o meio do povo mesmo depois das eleições”, afirmou Bolsonaro à uma aglomeração que se formou por causa da sua presença na cidade de Tinguá (CE).

Recorde de mortes

Na quinta-feira (25), o Brasil registrou um novo recorde de mortes pela Covid-19: foram 1.582 mortes pela Covid-19 registradas na quinta-feira (25), segundo o consórcio de veículos. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 1.150. É o segundo recorde seguido registrado nessa média.

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O recorde anterior de número de mortes em 24 horas foi registrado em 29 de julho do ano passado, quando chegou a 1.554.

Acelerar vacinação

Ainda nesta sexta, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanon, alertou que é necessário aumentar a produção de vacinas contra Covid-19 e acelerar sua distribuição.

"Agora é a hora de usar todas as ferramentas para aumentar a produção [das vacinas contra Covid-19], incluindo licenciamento e transferência de tecnologia e, quando necessário, isenções de propriedade intelectual", pediu Tedros.

"Também é importante lembrar que, embora as vacinas sejam uma ferramenta muito poderosa, elas não são a única ferramenta. Ainda precisamos acelerar a distribuição de diagnósticos rápidos, oxigênio e dexametasona", complementou o dirigente.

Tedros lembrou que o Covax, aliança internacional dirigida pela OMS, entregou o seu primeiro lote na quarta-feira (29). O país escolhido para receber as primeiras vacinas foi Gana.

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"Fizemos bons progressos, mas eles são frágeis. Precisamos acelerar o fornecimento e distribuição de vacinas contra a Covid-19, e não podemos fazer isso se alguns países continuarem a abordar fabricantes que estão produzindo vacinas com os quais o Covax está contando", disse.

No começo da semana, Tedros afirmou que o Covax enfrenta dificuldades em adquirir vacinas por causa dos contratos que países ricos estão fazendo com os fabricantes.

O Covax, uma coalizão de mais de 150 países criada para impulsionar o desenvolvimento e a distribuição das vacinas contra a Covid-19, já tem acordo com o Instituto Serum para compra de 1,1 bilhão de doses das vacinas Oxford/AstraZeneca e Novavax.

Por Laís Modelli, do G1, em 26/02/2021 14h36  


'Brasil está no meio de uma avalanche de legalização da corrupção', diz economista

Estudiosa de Teoria da Corrupção e pesquisadora dos efeitos da Operação Mãos Limpas e da Lava Jato, Maria Cristina Pinotti alerta que o País vive um momento crítico, 'uma grande operação abafa'

Entrevista com

Maria Cristina Pinotti, economista e coautora do livro 'Corrupção: Operação Mãos Limpas e Lava Jato'

PEC da Blindagem. Derrubada da quebra de sigilo fiscal e bancário de Flávio Bolsonaro na Quinta Turma do STJ. Revisão da Lei da Improbidade e do nepotismo. Proposta de reforma da Lei Orgânica das Polícias. A lista de episódios recentes que marcam passos atrás no combate à corrupção no Brasil é enorme, alerta a economista Maria Cristina Pinotti.

"Há também o desmonte da Lava Jato e o aparelhamento de órgãos de controle e partes do Judiciário, entre outros fatos que demonstram uma tendência." Coautora e organizadora de Corrupção: Operação Mãos Limpas e Lava Jato, livro lançado em 2019 (editora Portfolio-Penguin), ela sustenta que o País está "no meio de uma avalanche de legalização da corrupção". Em outras palavras, "temos uma grande operação abafa em curso".

 A economista Maria Cristina Pinotti: "legalizar a corrupção é esvaziar as leis que a definem como crime". Foto: ALEX SILVA/ESTADAO

"Ainda é difícil identificar o ponto exato de inflexão, quando o desmonte das ferramentas de controle conquistadas com o Mensalão e a Lava Jato chega ao auge e passa a definir o momento que vivemos, mas não tenho dúvidas de que isso acontece sob o governo de Jair Bolsonaro", diz Pinotti. Ela cita a interferência do presidente na eleição para o comando do Congresso e a aliança com o Centrão como fatos determinantes nessa escalada. "Isso é legalizar a corrupção: esvaziar as leis que a definem como crime, exatamente como vemos hoje no texto substitutivo que quer retirar o artigo que trata de nepotismo na Lei de Improbidade Administrativa."

Confira a entrevista.

Qual o significado da decisão da Quinta turma do STJ, que derrubou a quebra de sigilo bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro e pode comprometer a investigação do caso das rachadinhas?

Essa decisão faz parte de uma tendência em curso no País: o enfraquecimento do combate à corrupção. Há ciclos nos processos de corrupção, na forma como a sociedade a enfrenta. São movimentos comuns a diversos países e reconhecidos na academia, nos estudos da teoria da corrupção. Vivemos hoje essa fase de refluxo, ou, como diz o ministro (Luiz Roberto) Barroso, 'a fase do abafa'. Temos uma grande operação abafa em curso no Brasil, com duas vertentes essenciais: tentativas de legalizar a corrupção e de aparelhar a maior parte possível dos órgãos de controle e do próprio Judiciário. As revelações e investigações do Mensalão e da Lava Jato marcam a fase vitoriosa do ciclo positivo de combate à corrupção; leis foram alteradas ou criadas para enfrentar os desvios. Houve uma melhora institucional, por exemplo, para punir crimes de colarinho branco. Acordos internacionais foram fechados para facilitar a troca de informações e permitir o rastreamento de recursos ilícitos; aumentaram as penas para crimes de corrupção; a definição do que é uma organização criminosa foi redefinida e instituída a possibilidade de colaboração premiada, o que é essencial, pois, assim como acontece na máfia, a corrupção não passa recibo, é preciso alguém de dentro para contar o que acontece.

Quais são os principais exemplos desses avanços?

A própria Lei Anticorrupção foi um passo importante, a Lei da Ficha Limpa, a Lei das Estatais. Houve um avanço institucional determinante a partir do escândalo do Mensalão, que permitiu que a Lava Jato existisse. Parece contraditório, mas mesmo que em menor grau, desde o Mensalão passamos a viver uma fase intermediária caracterizada por avanços e retrocessos, com tentativas de desmontar as estruturas de controle, como foi o debate que suspendeu a possibilidade de prisão em segunda instância no meio das investigações do mensalão. Isso foi aumentando até cairmos nessa fase 2, aguda e atual. Ainda estamos muito perto dos eventos para poder citar marcos específicos do ponto de vista histórico, mas, a partir do governo Bolsonaro, começamos a ver uma coisa muito mais consistente nessas duas linhas que mencionei: seja o aparelhamento de órgãos de controle e partes do judiciário, seja legalizar a corrupção.

O que significa 'legalizar a corrupção'?

É descriminalizar a corrupção, desmontar as normas legais que a definem como crime. Simplesmente a corrupção deixa de ser crime. Depois desse acordo do Bolsonaro com o Centrão, abriu-se de vez a porteira. Talvez esse seja o grande marco histórico a ser identificado lá na frente. Há vários exemplos que demonstram esse fenômeno, sendo os mais recentes, além da decisão sobre as rachadinhas, a chamada PEC da Blindagem, a revisão das regras que configuram o nepotismo como crime e outras mudanças na Lei de Improbidade Administrativa. No mundo inteiro, o nepotismo é um dos primeiros itens da lista de mecanismos possíveis de corrupção.

Qual é o ponto de inflexão?

Ainda é difícil identificar o ponto exato de inflexão, quando o desmonte das ferramentas de controle conquistadas com o Mensalão e a Lava Jato chega ao auge e passa a definir o momento atual, mas não tenho dúvidas de que isso acontece sob o governo de Jair Bolsonaro. A eleição do novo presidente da Câmara (Arthur Lira) e a aproximação do governo com o Centrão, assim como a interferência do presidente na disputa pelo comando do Congresso, jogando toda sua força para eleger seus aliados, são marcos. Mas a inflexão talvez seja anterior, só teremos certeza com algum tempo e distanciamento histórico. A saída do ministro Sergio Moro do governo também pode ser considerada aqui. Sem escolher um momento específico, o marco geral acontece sob o governo Bolsonaro. Não significa que antes dele não tenha havido tentativas de fragilizar o combate à corrupção; a Segunda Turma do STF fez uma atrás da outra antes da eleição de 2018, também no governo Temer tivemos várias tentativas. Não interessa à grande maioria dos políticos combater a corrupção. A história de outros países deixa muito claro o que é preciso para reduzir o nível de corrupção. Existe uma cartilha reconhecida, o próprio Fundo Monetário Internacional tem um passo a passo identificando os hot spots, as áreas críticas nas quais os desvios são comuns, como compras públicas, licitações, grandes obras.

O que é necessário para colocar essa cartilha em prática?

Vontade política, de fato. E aí é que foi o grande engano, porque o Bolsonaro personificou esse desejo da população na eleição de 2018. Mas a prática foi bem diferente. Depende dos políticos e do apoio da população. São os dois ingredientes indispensáveis para conduzir um programa verdadeiro de enfrentamento da corrupção. O papel das ferramentas de transparência é fundamental. Até para permitir o exercício desse desejo da população. Nesse contexto, entra não só a sociedade civil contrária à corrupção, mas a existência de uma imprensa livre e atuante. Hoje, com a digitalização das informações e da gestão do Estado é muito mais simples seguir o dinheiro. É como a reforma tributária, todo mundo sabe o que precisa fazer. E por que não sai? Porque afeta os interesses daqueles que estão ganhando com o status quo. O caminho das pedras é sabido. O que precisa? A vontade política.

Qual o legado da Lava Jato?

O processo de fragilização do enfrentamento, a legalização da corrupção veio num crescente em contraposição à Lava Jato. Independentemente dos crimes revelados e punidos, dos recursos recuperados, a grande virtude da Lava Jato é que a população soube o que estava acontecendo, teve acesso às delações, acompanhou o caminho do dinheiro pela televisão. Isso ninguém tira da Lava Jato: o mérito de ter sido competente e reconhecida pela população, que acompanhou tudo e ficou muito irritada. E aqui preciso chamar atenção para um ponto muito delicado. Estamos tensionando a democracia ao extremo, de forma que me deixa profundamente preocupada.

Como assim?

Qual o apoio à Lava Jato? Dizem as pesquisas que ela tem apoio de 80% da população e que Sergio Moro aparece bem posicionado para as próximas eleições, com popularidade maior do que boa parte dos políticos que pretende se eleger. Se os institutos de pesquisa estão corretos, é isso o que pensa a população, que está trancada em casa por causa da pandemia, não pode ir à rua, não pode se manifestar. Ora, primeiro a população precisa garantir sua sobrevivência, não vai às ruas para protestar. O medo da morte faz com que as pessoas se sintam vulneráveis, sem muita coragem de reagir às coisas erradas. A pandemia tem contribuído para que essa operação abafa ganhe uma proporção inusitada. E ela passa pela tentativa de tornar Sergio Moro inelegível e por tentar legalizar a corrupção. Temos um sistema político minoritário que está indo na contramão da vontade das pessoas. Aonde vamos parar do ponto de vista da qualidade da democracia, da legitimidade do voto? Há um crescente divórcio entre a vontade popular e as práticas políticas. Não é o bem-comum que está norteando os eleitos pelo povo, e, sim, seus interesses particulares.

Quais outros elementos podem ser associados a esse recuo no enfrentamento dos desvios?

Tudo o que existe e que atrapalhe o exercício da corrupcão, o Congresso tenta e vai seguir tentando alterar. Outro exemplo, Lira criou um grupo de trabalho da Câmara para fazer uma reforma da legislação eleitoral, mesmo com a oposição da opinião pública Lira insiste em votar a PEC da Blindagem. É como se tivesse sido aberta a porta do inferno. Parece até anedota. O FMI demonstra que a corrupção compromete a arrecadação tributária de um país e seu crescimento econômico. Num de seus relatórios, a entidade mostra que os países mais corruptos têm menos investimentos em educação e saúde. Bem, o Brasil não entrava nesse quesito, porque temos o investimento mínimo constitucional em saúde e educação. Por quê? Por que é muito mais proveitoso praticar a corrupção em grandes obras do que em despesas fragmentadas e menores como as de educação e saúde. O volume de investimento é alto na soma, mas a despesa ocorre de maneira mais distribuída. E não é que o Congresso resolveu tentar mexer exatamente nisso com a desculpa de facilitar a obtenção de recursos para pagar o auxílio emergencial? Isso é inaceitável, especialmente no meio de uma pandemia. Ao invés de cortar benesses, reduzir gastos do próprio Congresso, o que vemos? Mais uma forma de facilitar a corrupção.

A senhora destacou a ação do Congresso, mas como esse movimento se reflete no Judiciário?

Foco no Legislativo porque lá são elaboradas as leis. O Judiciário garante que elas sejam cumpridas. Não adianta o judiciário querer punir se não tiver lei para isso. É o que assistimos na revisão da Lei da Improbidade. O que vejo do outro lado: o Executivo tem o poder de nomear pessoas para postos-chave que vão acentuar ou minimizar esse movimento contrário aos desvios. Hoje o Executivo não tem interesse em nomear pessoas determinadas a enfrentar a corrupção. Não vou citar nomes, mas basta olhar o que está havendo na Procuradoria Geral da República, na Advocacia Geral da União, nas Cortes superiores. Nossa sorte é que temos uma imprensa livre e competente e a sociedade está alerta, mas estamos no meio de uma avalanche de legalização da corrupção. Isso também aconteceu na Itália.

Que outros paralelos a senhora destaca entre o que viveu a Itália pós Operação Mãos Limpas e o Brasil com a Lava Jato?

A Itália está entrando numa fase de muita esperança depois de enfrentar um revés grande na esteira da Mãos Limpas. Mas a corrupção não foi eliminada. Não existe uma bala de prata. É um trabalho constante. Tanto que, após a Mãos Limpas, a Itália ficou estagnada economicamente, num limbo. Isso vem mudando nos últimos anos, com a vantagem de a Itália estar submetida aos controles da União Europeia. A vontade política que não temos aqui, está começando a aparecer lá e Mario Draghi traz muita esperança de uma fase de integridade na política italiana. A Mãos Limpas também demonstra que, quanto maior for seu esforço de enfrentamento da corrupção, maior será a reação para tentar contê-lo.

Qual a perspectiva de mudança, independentemente das eleições?

A única esperança possível para o Brasil é a mobilização da sociedade civil, e a preservação das regras democráticas. Cada um de nós que não concorda com o estado atual das coisas precisa encontrar alguma maneira de agir politicamente, seja não aceitando as pequenas corrupções, protestando, votando. É verdade que com a pandemia isso fica mais difícil, assim como o ambiente para legalizar a corrupção ficou facilitado. Mas vai passar e todo esse sofrimento nos dará coragem para continuar lutando a favor da integridade e de um país mais justo e próspero. O sistema político brasileiro é um feudo. Cada um precisa continuar a fazer o que pode, assim como a imprensa. Acredito que vamos resistir e superar esses tempos sombrios.       

Mariana Caetano, O Estado de São Paulo, 26 de fevereiro de 2021 

André Brandão coloca cargo à disposição e abre corrida política por sua vaga

Saída do presidente do Banco do Brasil, ainda não confirmada oficialmente, movimenta alguns dos principais grupos políticos em Brasília; Bolsonaro já havia ameaçado demitir o executivo após anúncio de plano de reestruturação

O presidente do Banco do Brasil, André Brandão, avisou o presidente Jair  Bolsonaro que colocou o cargo à disposição, o que deflagrou uma corrida política pela sua vaga. Brandão foi claro no recado de que pretende ficar no banco até a escolha do seu substituto, mas não há condições de permanecer já que não houve entendimento entre ele e Bolsonaro desde quando o presidente criticou o plano de enxugamento de agências e corte de pessoal do banco.

Embora a saída de Brandão não seja confirmada oficialmente e não tenha ainda data para ocorrer, a disputa pelo posto movimenta alguns dos principais grupos políticos da Esplanada. 

Integrantes da ala militar gostariam de ver no cargo o atual secretário-executivo do Ministério da Cidadania, Antônio Barreto Junior, que pode deixar o posto com a posse do novo ministro João Roma. Ele é funcionário de carreira do Banco do Brasil e também foi secretário-executivo da Casa Civil.

Jair Bolsonaro ameaçou demitir André Brandão do comando do Banco do Brasil após anúncio de plano de reestruturação. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Na equipe econômica, a movimentação é em torno de deslocar o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, para o BB. Além de ter passado pela presidência do BNDES substituindo Joaquim Levi ainda no primeiro ano do governo, Montezano também é amigo do ministro Paulo Guedes e dos filhos do presidente Jair Bolsonaro.

Dentro do banco, o nome do vice-presidente de agronegócio e governo, João Rabelo Júnior, também é bem visto internamente e tem simpatia de integrantes da bancada do agronegócio. Outro nome que está no radar é o do presidente do Banco de Brasília, Paulo Henrique Costa, que tem apoio do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, e de integrantes do Centrão.

Desde a semana passada, quando o presidente Jair Bolsonaro demitiu o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, e ameaçou com novas mudanças do tipo “tubarão e não bagrinho", os olhos se voltaram para André Brandão. O presidente do BB já tinha sido demitido extraoficialmente por Bolsonaro, que depois recuou da decisão. No rastro da Petrobrás, os aliados políticos do presidente aumentaram a pressão.

Segundo apurou o Estadão, uma nova movimentação em torno da saída de Brandão começou nessa sexta-feira, logo no início da manhã, depois que começaram a circular informações de que ele tinha sinalizou intenção de deixar o cargo ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. O presidente do BC é amigo de Brandão e padrinho da indicação do seu nome para a presidência do BB.

Assessores de André Brandão no BB contam que a gestão dele banco ficou fragilizada desde o episódio com o presidente Bolsonaro por conta da política de fechamento das agências, que recebeu críticas de políticos bolsonaristas.

Fontes ouvidas pelo Estadão informaram que Brandão quer evitar um desgaste público como o ocorrido com o presidente da Petrobrás.

Antes da gestão de Rubens Novaes, que antecedeu Brandão, o BB tinha duas vice-presidências das nove ocupadas por políticos. Novaes cortou esses cargos e alimentou a pressão contra o BB da ala politica.

Adriana Fernandes, Marcelo de Moraes e Murilo Rodrigues Alves, O Estado de São Paulo, em 26 de fevereiro de 2021