sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Bolsonaro ficará 'isolado em autoritarismo' sem 'companheiro Trump', diz ex-chanceler do México

O ex-ministro das Relações Exteriores do México (2000-2003), Jorge Castañeda, acredita que o Brasil ficará muito isolado, em termos de mudança climática, na era do presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden.

Donald Trump e Jair Bolsonaro: presidente brasileiro considerava colega americano como importante aliado. (Foto: Alan Santos, Presidência da República.)

Segundo ele, o isolamento brasileiro envolve ainda a "falta de responsabilidade" durante a pandemia do novo coronavírus e atitudes em relação aos direitos individuais. "Muito isolado em seu autoritarismo, em sua postura contraria a tudo sobre os direitos de gênero, de outras minorias, de LGBT e etc. O Brasil está indo, claramente, contra a corrente. Bolsonaro achava que com sua aliança com Trump tinha um companheiro. Tinha. Já não tem mais", disse em entrevista à BBC News Brasil.

Professor da Universidade de Nova York, autor de uma biografia sobre o ex-guerrilheiro argentino-cubano Ernesto 'Che' Guevara, Castañeda disse ainda que as esquerdas na América Latina têm o desafio de se modernizar e que para Biden "não será fácil" tentar retomar iniciativas do governo do ex-presidente Barak Obama.

Nesta entrevista, ele falou ainda sobre as semelhanças entre Bolsonaro e o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que, apesar de opostos ideologicamente, são, na sua visão, muito parecidos. "Os dois odeiam os meios de comunicação, os dois são populistas, são autoritários e nepotistas", disse. E ligados a Trump, acrescentou.

A seguir, os principais pontos da entrevista à BBC News Brasil:

BBC News Brasil - Qual a sua expectativa para a relação entre o governo Biden e a América Latina, depois que ele anunciou nomes da época do ex-presidente Obama para a área de política externa (Antony Blinken, secretário de Estado) e um latino (Alejandro Mayorkas, nascido em Cuba) para a área de política migratória?

Jorge Castañeda - Antes de mais nada, são pessoas competentes e com experiência. Mas, ao mesmo tempo, são pessoas que não têm grande vocação latino-americana. Não é que não saibam, e não conheçam (a região). Mas não tem ninguém com grande envolvimento com a América Latina. Mas acho que o importante não é quem são eles, mas sim o que Biden disse sobre os diferentes assuntos vinculados com a América Latina.

Ele já falou sobre os temas migratórios, que são muito importantes para o México, para a América Central, para o Caribe e para o Equador, pelo menos. Ele já disse que mudará as políticas de restrição, racista e punitiva, de Trump. Biden também já disse que buscará caminhos alternativos, no caso da Venezuela, mas sem definir, porém, quais serão estes caminhos alternativos. E também disse que enfatizará o assunto de mudança climática. E aí sim acho que haverá certas tensões com o Brasil.


Ex-ministro das Relações Exteriores do México, Jorge Castañeda, acredita que o Brasil sofrerá impactos negativos após derrota de Trump. (Foto, Juan Manoel Herrera, OAS)

BBC News Brasil -Quando ainda era candidato, em um dos debates com o presidente Trump, Biden sugeriu que o Brasil poderia receber sanções econômicas diante do desmatamento na Amazônia brasileira. Como ex-chanceler e por sua experiência, o senhor acha que essa 'tensão' seria específica sobre a Amazônia? Ou algo mais amplo?

Castañeda - Acho que pode ser algo pontual. Mas é também importante ressaltar que para Biden o assunto mudança do clima é uma prioridade interna e externa. A nomeação de (John) Kerry, neste sentido, é muito marcante. O retorno ao Acordo de Paris, que ocorrerá nos primeiros dias do governo, também é muito marcante. Portanto, onde existam políticas claramente diferentes das que Biden colocará em prática nos âmbitos interno e externo, haverá tensões. Neste caso, tanto com Brasil como com México.

O governo mexicano colocou muito foco em fontes de energia não renováveis, no petróleo e no carvão. E, então, certamente, também haverá tensões com México. Acho que estas tensões com o Brasil poderão ser encapsuladas, restritas ao tema da Amazônia, mas vai depender muito da posição do Brasil. As posições de Biden são muito claras. Não acho que chegarão ao grau de sanções econômicas, mas acho que Biden terá uma postura mais parecida, digamos, a de (Emmanuel) Macron (presidente da França) do que a de Trump.

BBC News Brasil - O que o senhor quer dizer com 'encapsular'? Isolar este tema ambiental?

Castañeda - Sim, que o tema ambiental não contamine os outros assuntos (dos EUA) com Brasil. Mas isso não é simples. É um assunto muito sensível no Brasil, mas também nos EUA.

BBC News Brasil - Os presidentes do Brasil e do México ainda não tinham reconhecido a vitória de Joe Biden. Eles são antíteses em termos ideológicos. Qual a sua opinião sobre esta atitude de Bolsonaro e de López Obrador? Esse fato pode chegar a complicar a relação com o governo Biden?

Castañeda - Em primeiro lugar, os dois podem estar em lados ideológicos opostos, mas se parecem muito. Os dois odeiam os meios de comunicação, os dois são populistas, são autoritários e nepotistas. O fato que os dois, junto com (Vladimir) Putin, não tenham parabenizado Biden reflete que são muito parecidos e que os dois eram partidários e amigos de Trump. Não acho que essa atitude (de não parabenizar Biden) afetará a relação no longo prazo, mas a afetará, no curto prazo, de maneira inevitável. Deixa, digamos, um gosto ruim. Não necessariamente por parte de Biden, mas as equipes (dele) são mais sensíveis, mais pé no chão, e podem sentir esta falta de amabilidade por parte de Bolsonaro e de López Obrador.

BBC News Brasil - O senhor observa o Brasil isolado do mundo na era Bolsonaro?

Castañeda - O Brasil ficará muito isolado, em termos de mudança climática, com Biden. Muito isolado por não ter sido responsável com a pandemia. Muito isolado em seu autoritarismo, em sua postura contraria a tudo sobre os direitos de gênero, de outras minorias, de LGBT e etc. O Brasil está indo claramente contra a corrente. Bolsonaro achava que com sua aliança com Trump tinha um companheiro. Tinha. Já não tem mais.

BBC News Brasil - Pode aparecer outro protagonista na América Latina na era Biden, já que Brasil e México, nas eras de Bolsonaro e Obrador, tinham afinidade com Trump?

Castañeda - Não. Os dois países têm peso muito grande.

BBC News Brasil - O senhor escreveu uma biografia do ex-guerrilheiro argentino-cubano Ernesto Che Guevara (A vida em vermelho) e é estudioso das esquerdas na América Latina. Como o senhor vê as esquerdas na região hoje?

Castañeda - Acho que a situação da esquerda hoje não se restringe ao fato de voltar ou não a governar, mas sim como governar e como governa onde já governa. Em muitos casos, como no México e, de certa forma, também na Argentina, esquemas muito antiquados, de outra época, com nostalgia de outras épocas.

A atualização da esquerda ocorreu sim no Chile (Concertación) e Uruguai (Frente Amplio) e em parte no Brasil, com Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), mas não nestes outros casos que mencionei. E ainda na Venezuela, na Nicarágua ou em Cuba. Mas os dois casos mais decepcionantes são México e Argentina. Agora temos que ver se as esquerdas latino-americanas podem aproveitar as crises econômicas provocadas pela pandemia e como também os democratas nos EUA giram à esquerda para entrarem num processo de modernização.

BBC News Brasil -Foram realizadas eleições municipais no Brasil e o Partido dos Trabalhadores (PT), dos ex-presidentes Lula e Dilma, teve um resultado fraco, principalmente em São Paulo, a maior cidade brasileira. O PT ficou em quarto lugar e o destaque, na esquerda, foi o candidato do PSOL para Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos (que perdeu para Bruno Covas, do PSDB, neste domingo). Na sua visão, o PT continua sendo um partido importante?

Castañeda - Eu acho que sim, mas também acho que desde que Lula saiu do governo, ocorreram condutas muito erráticas. Em muitos casos e de muitos aspectos. De Dilma (Rousseff) e de outros, como governadores. E acho que isso fez com que o PT perdesse muito de seu prestigio e de sua liderança. Os resultados em São Paulo de certa forma confirmam isso. Mas o assunto é se o PT pode se refazer, se reinventar, ou se vai continuar com a nostalgia do passado e que, claramente, não é atraente para muitos brasileiros.


Presidente eleito nos EUA, Joe Biden, durante discurso (Getty Images)

Discurso de Joe Biden sobre atenção especial às mudanças climáticas deve ser problema para governo Bolsonaro, aponta especialista

BBC News Brasil - O fato de a esquerda latino-americano tenha sido acusada de corrupção, como nos casos de Rafael Correa, do Equador, Cristina Kirchner, na Argentina, Lula e etc., também pode ter afetado estes resultados?

Castañeda - Em termos gerais, em toda a América Latina, claro que sim. E, inclusive, no caso do Chile que não é um país com grande tradição de corrupção, mas também ocorreram pequenos escândalos de corrupção (durante o governo da ex-presidente Michelle Bachelet). Na Venezuela, são grandes escândalos. E todos conhecemos os efeitos (de casos de corrupção) no Brasil, na Argentina e, inclusive, na Bolívia, com Evo Morales, no Equador, com Correa, e na Nicarágua com Daniel Ortega. E se todos se mantém amarrados ao passado, será difícil que as pessoas voltem a acreditar numa esquerda que, em muitos casos, deixou um legado de corrupção e também de má administração econômica. Acho que estes temas vão surgir constantemente. Por isso, a pandemia é uma oportunidade para que a esquerda dê uma nova formulação de como construir um estado de bem-estar na América Latina. Bem-estar que não existe, como a pandemia mostrou.

BBC News Brasil - Na sua visão, as esquerdas têm algum forma de responsabilidade diante da eleição de Bolsonaro?

Castañeda - Sempre que surge um líder autoritário, de extrema direita, racista, sexista, homofóbico e etc, quase sempre há, em alguma parte, uma responsabilidade da esquerda. No caso específico do Brasil não quero fazer um julgamento rigoroso porque não segui muito os fatos desde que Bolsonaro ganhou. Mas, claramente, quando isto acontece, em qualquer país, quase sempre a esquerda tem uma parte de responsabilidade

BBC News Brasil -O fato de Biden ter falado primeiro com o presidente do Chile, Sebastián Piñera, que é de direita, significa alguma coisa? Um jogo de cintura política de Biden? Ou o que significa na sua visão?

Castañeda - O lógico teria sido que Biden falasse com México, primeiro, junto com Canadá, e depois com o Brasil. Mas, bem, se o México e o Brasil não querem, e a Argentina é um assunto mais complicado... Por isso acho que ele falou com o presidente do Chile e não (necessariamente) com Sebastián Piñera. Ou seja, se a presidente chilena fosse Michelle Bachelet também teria falado com o presidente do Chile. Acho que para Biden o importante é o que Chile representa para a América Latina e não o governo de Piñera. Mas, sim, os últimos 30 anos e também o desafio de responder a um movimento social através de uma base institucional. Acho que Biden levou estes fatos em consideração.

BBC News Brasil -A América Latina está, digamos, condenada, e ainda mais agora com a pandemia, a não reagir contra seus problemas? É a região mais castigada com a desigualdade social e pobreza. O que acontece?

Castañeda - De fato foi a região mais afetada pela pandemia. Talvez as exceções tenham sido Uruguai e Costa Rica. Os demais a administraram muito mal. O México, o Brasil, mal, muito mal. A Argentina muito mal também, não sei se por sua culpa, mas muito mal também. É muito difícil que as situações não sejam bem administradas e depois esperar que não aconteça nada. Tudo tem consequências.


Para especialista, números da covid-19 em diversos países da América Latina ilustram os problemas enfrentados pelas administrações locais. (Foto: Fábio Teixeira / Anadolu Agency via Getty Images)

BBC News Brasil -O ex-presidente Barak Obama teve uma política de aproximação com Cuba. Havia uma preocupação com os imigrantes nos EUA e seus familiares na Ilha. O senhor acha que Biden seguirá esta mesma linha de Obama?

Castañeda - Acho que sim, mas também acho que será um assunto complexo para Biden. No caso de Cuba, da Venezuela, do Irã e dos imigrantes mexicanos, voltar a um estágio, sem levar em conta o período de Trump, vai ser muito difícil. Não vai ser fácil voltar ao acordo com Irã, como estava, suprimir todas as medidas migratórias de Trump para voltar a situação de Obama, suspender todas as sanções para os governantes venezuelanos e deixar de reconhecer a (Juan) Guaidó e etc.

E no caso de Cuba, voltar à normalização de Obama, exatamente como era, será muito difícil. Tudo isso será muito difícil porque vai significar ou significariam decisões unilaterais, controvertidas do ponto de vista de política interna dos EUA e, em alguns casos, com consequências complicadas para os EUA. Então, por exemplo, no caso de Cuba, há muito que pode ser feito, mas é preciso ver se será feito, unilateralmente, incondicionalmente, expondo-se a uma reação muito negativa na Flórida (imigrantes cubanos e com eleitorado de Trump) e afastando-se dos republicanos e dos conservadores ou se vai tentar voltar ao que Obama fez e pedindo aos cubanos alguns gestos novos e importantes que possam ir além do que foi acordado na época de Obama. Não sei. O que sei é que em qualquer uma das alternativas que falei, é difícil. Não é fácil ignorar Trump.

BBC News Brasil - Trump teve uma votação maior do que era esperada. E seria complicado contrariar esse eleitorado? Seria isso?

Castañeda - O eleitorado e, principalmente, alguns senadores importantes, de Estados importantes. Não é tão fácil, simplesmente, voltar (à época de Obama). Biden queria voltar ao acordo conjunto com Irã, como era, mas não acho que poderá. Existe Trump, os republicanos, Israel. São muito fatores.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil / 02.12.2020.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O ‘cancelamento’ estatal e o Estado ‘lacrador’

O problema do presidente e asseclas nem é ideológico, é da ordem da cognição

Por Eugênio Bucci

Tem sido comum ouvirmos queixas sobre a prática do “cancelamento”. São procedentes. Na etiqueta sem etiqueta das redes sociais, o “cancelamento” consiste numa avalanche de turbas virtuais que, em questão de horas, derruba a lista de seguidores de uma pessoa e acaba com seu prestígio digital. Basta uma opinião fora da ortodoxia das turbas para o sujeito se expor ao “cancelamento”. Há exemplos diários. O “cancelado” é banido. Os que eram seus admiradores se convertem em seus “detratores” (guardemos essa palavra, pois ela vai nos pegar de tocaia alguns parágrafos adiante).

Trata-se de uma pena afetiva: “Ei, nós não gostamos mais de você, ponha-se daqui para fora!”. Podem sobrevir repercussões políticas e econômicas. Políticas porque o “cancelamento” destrói os laços virtuais pegajosos que davam popularidade à infeliz criatura “cancelada”, que se vê de repente degredada, como se tivesse sido expulsa do partido. As pessoas entram em depressão. E econômicas porque os influencers (e eu que achava que nunca escreveria tal barbarismo), que ganham dinheiro com o número de likes, engajamentos, retuítes e coraçõezinhos piscantes, perdem faturamento. As pessoas entram em inadimplência.

Estamos falando de um flagelo cultural. Escritores e intelectuais são vítimas desse empastelamento simbólico perpetrado por maiorias barulhentas, intolerantes e implacáveis.


Mas não se trata propriamente de uma novidade tecnológica. Parecerá incrível, mas Alexis de Tocqueville, que morreu em 1859, sem desfrutar os prodígios gozosos dos smartphones, anotou o germe de tudo isso em seu Democracia na América: “A maioria traça um círculo formidável em torno do pensamento. Dentro desses limites o escritor é livre, mas ai dele se ousar sair!”.


Portanto, a moda do “cancelamento” nada mais faz do que trazer a máxima de Tocqueville para os dispositivos interconectados que funcionam na velocidade da luz. Nos nossos dias, a tal América ocupa o epicentro dessa prática nefasta, seguida de perto pelo Brasil. Aqui, no entanto, além das pessoas físicas – de carne, osso, mas sem muita massa cinzenta –, a própria máquina de governo decidiu ingressar com estardalhaço no esporte de “cancelar” a reputação de cidadãos honestos.

Agora, nesta semana, o jornalista Rubens Valente, do UOL, descobriu e noticiou que uma agência de comunicação, a pedido do governo federal, preparou uma lista de 77 influencers (reincidi), entre os quais aparecem 44 jornalistas, e os dividiu em três grupos: os “detratores” (eis a palavra), que criticam o governo, os “neutros” e os “favoráveis” (que los hay, los hay). Pela legislação ordinária e pelos princípios constitucionais, o governo não pode discriminar cidadãos pela opinião que emitam, mas, como o atual governo não liga para a lei, promove discriminações a toda hora. A lista sugere que as autoridades adotem condutas diferentes para falar com uns e outros. Uns merecem “parcerias”. Quanto aos demais, bem, um pouco de “cancelamento” estatal talvez ajude.

Esse pessoal na Esplanada dos Ministérios não tem modos? Aliás, será que ninguém ali pensa? Aliás, de novo, o problema do presidente da República e de seus asseclas mais próximos não é nem ideológico – é da ordem da cognição. Há sentidos que eles não apreendem, independentemente de concordarem ou não com o postulado. Que conduzam os negócios públicos como se fizessem arruaça em redes sociais é apenas mais um sintoma da limitação cognitiva profunda.

O “cancelamento” estatal vem junto com o Estado “lacrador”. Expliquemos o adjetivo. Entre os adictos das redes, o termo “lacração” se refere àquele post ou àquela atitude performática que “causa”, mas “causa” muito, tipo “causa” assim demais, cara, você não tem ideia, e fere outras pessoas, mas, tipo assim, tudo bem. E daí? (Essa interrogação cairia bem de epitáfio.) O que conta é “lacrar”, tá ligado? O Estado “lacrador”, pilotado por “lacradores”, desconhece a diferença entre “curti” e “voto aprovado”. Lacra. Cancela.

Falando em diferenças não percebidas, o presidente não capta a que existe entre um gabinete clandestino que distribui calúnias anônimas e um órgão de imprensa registrado em cartório, que recolhe impostos, tem endereço certo e um diretor de redação com nome e CPF. Não é que, por motivações ideológicas, ele negue a distinção. Ele simplesmente não a alcança.

Em 28 de maio de 2020, na entrada do Palácio da Alvorada, quando protestou contra o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou uma indústria ilegal de fake news e discursos de ódio, o presidente, sem querer, confessou que não tem ideia dessa diferença essencial para a democracia: “Querem acabar com a mídia que tenho a meu favor!”.

O governante brasileiro acha que as fake news são uma “mídia” como qualquer outra – e como usa as palavras “mídia” e “imprensa” como sinônimas, fica evidente: não consegue distinguir entre a mentira e a verdade factual, assim como não aprendeu o que separa a ditadura da democracia. Para ele, só o que conta é a histeria das redes e suas milícias digitais. Adeus, República. #cancelamentoestatal.

Eugênio Bucci, Jornalista, é Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 03.12.2020.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Brasil supera marca de 175 mil mortes por covid-19

País registra 755 óbitos associados à doença em 24 horas, com mais de 50 mil infecções por coronavírus. Mundo ultrapassa total de 1,5 milhão de vítimas, com 65 milhões de casos desde o início da pandemia.

Brasil acumula mais de 175 mil mortes por covid-19 desde o início da epidemia no país

O Brasil registrou oficialmente 755 mortes ligadas à covid-19 e 50.434 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta quinta-feira (03/12) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Com o novo número, o total de infectados no país vai a 6.487.084, enquanto o total de óbitos chega a 175.270. Segundo o Ministério, 5.725.010 pacientes se recuperaram da doença. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.267.912 casos e 42.637 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados na maioria dos países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia, Rússia, França, Espanha, Reino Unido, Itália, Argentina e Colômbia.

Minas Gerais é o segundo estado com maior número de casos, somando 428.790, seguido de Bahia (412.685), Santa Catarina (383.577), Rio de Janeiro (365.185) e Rio Grande do Sul (337.003).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 22.891 óbitos. Em seguida vêm Minas Gerais (10.187), Ceará (9.657), Pernambuco (9.098) e Bahia (8.336).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 83,4 no Brasil, uma das dez mais altas do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino e Andorra.

A cifra brasileira só fica abaixo das registradas na Bélgica (148.06), Peru (112,43), Espanha (97,99), Itália (94,40), Reino Unido (89,93), Argentina (88,0), Macedônia do Norte (87.62) e México (85,24). 

A taxa brasileira também fica um pouco abaixo da registrada nos EUA (83,58), nação mais atingida pela pandemia no planeta.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 14 milhões de casos, e da Índia, com 9,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 275 mil pessoas.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando mais de 138 mil.

Ao todo, quase 65 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e mais de 1,5 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle, 03.12.2020

Covid-19 aumentará miséria em países mais pobres, alerta ONU

Pandemia causa pior recessão em 30 anos nas 47 nações menos desenvolvidas do planeta e pode levar à pobreza extrema até 32 milhões de pessoas, diz relatório da ONU

Mulher de véu e máscara protetora diante de ônibus amarelos

Situação nas nações menos desenvolvidas afeta as metas globais de saúde, educação e sustentabilidade, diz a UNCTAD

Em 2020, os países menos desenvolvidos do mundo (LDCs, na sigla em inglês) terão seu pior desempenho econômico em 30 anos devido à pandemia de covid-19, diz o relatório divulgado nesta quinta-feira (03/12) pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), órgão intergovernamental que busca promover a integração dos países em desenvolvimento na economia mundial.

No texto, intitulado Relatório dos Países Menos Desenvolvidos de 2020, a UNCTAD prevê que a queda dos níveis de renda, o desemprego generalizado e os crescentes déficits fiscais causados ​​pela pandemia podem levar até 32 milhões de pessoas à pobreza extrema nos 47 países considerados como "menos desenvolvidos" pela ONU.

Embora o impacto inicial do coronavírus na saúde tenha sido menos grave nesses países do que muitos temiam, o impacto econômico foi devastador, segundo o relatório. As previsões de crescimento econômico para esses países foram revisadas para baixo, de 5% para -0,4% entre outubro de 2019 e outubro de 2020, o que deve levar a uma queda geral na renda per capita de 2,6% em 2020.

"Os países menos desenvolvidos hoje estão passando pela pior recessão em 30 anos", escreve o secretário-geral da UNCTAD, Mukhisa Kituyi, no prefácio do documento. "Seus padrões de vida já baixos estão caindo. Suas taxas de pobreza teimosamente altas estão aumentando ainda mais, revertendo a lenta melhora que haviam alcançado antes da pandemia. O progresso em direção a avanços em nutrição, saúde e educação está sendo anulado por conta da crise."

Especialistas acreditam que a experiência anterior em lidar com epidemias, assim como com fatores demográficos, incluindo menor densidade populacional e uma população relativamente jovem, ajudou muitos dos países menos desenvolvidos a resistir aos primeiros meses do surto de covid-19. Mas a UNCTAD adverte que um aumento futuro na disseminação do coronavírus nesses países representaria um choque para os sistemas de saúde, que continuam subdesenvolvidos.

Vítimas da economia global

A recessão econômica global provavelmente teve um impacto maior nas economias desses países do que a retração do mercado doméstico. Uma grande queda na demanda global por produtos desses mercados causou uma queda nos preços das principais exportações. Os países cujas economias dependem fortemente da exportação de alguns produtos, como minerais, metais ou vestuários, sofreram choques particularmente graves, já que os preços e o volume do comércio exterior caíram repentinamente.

Uma crise econômica prolongada também pode causar perda de empregos permanente e ameaçar o empreendedorismo de uma forma que prejudicaria seriamente o potencial de produção futura nesses países, alerta o texto.

Gráfico com países menos desenvolvidos

Os níveis globais de pobreza e insegurança alimentar também devem aumentar, com crises temporárias de pobreza se prolongando. A proporção daqueles que vivem abaixo da linha de pobreza de 1,90 dólar (cerca de 9,90 reais) por dia nos países menos desenvolvidos deverá aumentar 3 pontos percentuais para 35,2%, representando mais 32 milhões de pessoas, conforme o relatório.

"Os países menos desenvolvidos empregaram seus limitados meios para conter a recessão, mas se encontram entre os mais atingidos por uma crise pela qual não são responsáveis, semelhante à sua situação em relação às mudanças climáticas", ressalta Kituyi. "Isto é uma injustiça que precisa ser corrigida."

Meta de desenvolvimento global em risco

A situação nessas nações representa um risco particular para as metas globais de saúde, educação e sustentabilidade, de acordo com a UNCTAD. As populações podem ser levadas implementar estratégias de enfrentamento da crise prejudiciais, incluindo a redução do consumo de alimentos saudáveis ​​e a retirada de seus filhos da escola.

Apoiar os países menos desenvolvidos será fundamental para alcançar as metas globais estabelecidas na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que visa alcançar um futuro sustentável e mais equitativo para a população global. Os objetivos incluem a erradicação da pobreza.

"Reconstruir essas economias na época pós-covid será especialmente difícil se suas capacidades de produção – já baixas antes da pandemia – não forem melhoradas", frisa o relatório. A capacidade produtiva de um país é sua capacidade de produzir bens e serviços e alcançar crescimento e desenvolvimento.

"Melhorar essa área permitirá que essas nações superem as barreiras estruturais que constituem a fonte de sua vulnerabilidade", argumenta a UNCTAD. Isso inclui pobreza generalizada, dependência excessiva de importações de bens e serviços essenciais e mercados de exportação excessivamente concentrados.

Para tanto, Kituyi pede à comunidade internacional que apoie essas economias vulneráveis ​​com um plano de ação que vise o desenvolvimento de capacidades produtivas nesses países. "Esta é a única maneira de garantir o desenvolvimento sustentável e superar os desafios de desenvolvimento de longo prazo dos países menos desenvolvidos", sublinha secretário-geral da UNCTAD.

Deutsche Welle, 03.12.2020

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Brasil tem 698 mortes por covid-19 em 24 horas

Ao todo, óbitos ligados ao coronavírus se aproximam de 175 mil. País registra ainda quase 50 mil novos casos em um dia, e total de infectados chega a 6,43 milhões.


Funcionários de cemitério em São Paulo enterram caixão

O Brasil registrou oficialmente 698 mortes ligadas à covid-19 e 49.863 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta quarta-feira (02/12) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Com o novo número, o total de infectados no país vai a 6.436.650, enquanto o total de óbitos chega a 174.515. Ao todo, 5.698.353 pacientes se recuperaram da doença, segundo o ministério. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.259.704 casos e 42.456 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados na maioria dos países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia, Rússia, França, Espanha, Reino Unido, Itália, Argentina e Colômbia.

Minas Gerais é o segundo estado com maior número de casos, somando 424.155, seguido de Bahia (409.417), Santa Catarina (378.621), Rio de Janeiro (361.397) e Rio Grande do Sul (331.279).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 22.764 óbitos. Em seguida vêm Minas Gerais (10.121), Ceará (9.640), Pernambuco (9.802) e Bahia (8.315).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 83,0 no Brasil, uma das dez mais altas do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino e Andorra.

A cifra brasileira só fica abaixo das registradas na Bélgica (146,96), Peru (112,43), Espanha (97,40), Itália (93,26), Reino Unido (88,96), Argentina (87,49), Macedônia do Norte (86,03) e México (84,61). Ainda supera a dos EUA (82,72), nação mais atingida pela pandemia no planeta.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 13,8 milhões de casos, e da Índia, com 9,4 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 272 mil pessoas.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando 138 mil.

Ao todo, mais de 64,2 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 1,48 milhão de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / 02.12.2020.

A dura travessia até 2022

Presidente sem partido, sem projeto e sem aliados é uma situação perigosa

Por Elio Gaspari

No meio de uma pandemia e de uma recessão, o Brasil ficou com um presidente sem partido, sem projeto e sem aliados. Para quem não gosta dele, pode ser motivo de alegria, mas daqui a pouco vai se perceber como é perigosa essa situação.

O capitão Bolsonaro nunca foi um admirador das instituições democráticas. Em dois anos, falando em “minhas Forças Armadas”, tentou armar conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso. Foi dissuadido, mas tentou. Tem um chanceler que se sente bem como “pária”. Sempre que pode, arruma confusão com a China. Atravessou a linha do Equador para escorregar na casca de banana da política americana. Falava em “menos Brasília e mais Brasil”, e nem a estatal do trem-bala conseguiu fechar. Prometia combater a corrupção, e até hoje seu governo não explicou a origem do edital que torraria R$ 3 bilhões, mandando computadores para escolas públicas. Uma delas receberia 117 laptops para cada um de seus 255 alunos. Registre-se que a girafa foi denunciada pela Controladoria-Geral de seu o próprio governo.

O que seria uma nova política tornou-se um reaparecimento do Centrão. É mais do mesmo. O novo resume-se ao fingimento daqueles que dizem acreditar na sua fidelidade.

A crise sanitária, os números da economia e o resultado da urnas mostraram que o negacionismo de Bolsonaro foi além das derrotas. Ele saiu de moda, mas ficará no Planalto, sem rumo. Presidente desorientado é coisa perigosa. Em julho de 1961, o tresloucado Jânio Quadros cogitava alguma aventura nas Guianas, onde existiria “intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas”.

Nos dias 23 e 24 de agosto, voltou à questão, dirigindo-se aos três ministros militares, referiu-se à ameaça do surgimento de uma “estrutura soviética” na Guiana Inglesa. No dia seguinte tentou a maluquice da renúncia.

Bolsonaro disse que a Covid era “gripezinha”, não acredita nas urnas eletrônicas e admitiu que uma empresa americana fosse capaz de desenvolver um projeto de transmissão de energia elétrica sem fios. Lá atrás, ele teve uma ideia que permitiria ao governo arrecadar bilhões. Era a legalização da jogatina e, em abril passado, o economista Paulo Guedes, com seu currículo de Chicago, endossou a sugestão. (Eles a ouviram de um bilionário americano numa suíte do Copacabana Palace, à qual chegaram entrando pela cozinha do hotel.)

A onda de 2018 tinha um componente de irracionalismo, que foi tolerado diante da soberba do comissariado petista. Em dois anos, Bolsonaro radicalizou a onda, tirou-lhe plumagem e saiu de moda, mas ainda não se produziu uma alternativa sólida. Apareceram sinais esparsos, mas eles só se juntam no respeito às instituições democráticas. É pouco, mas é o suficiente para conter aventuras e crises artificiais, até porque, em matéria de problemas, o Brasil tornou-se uma vitrine.

As crises artificiais podem ser barulhentas, mas destinam-se sempre a esconder os verdadeiros problemas. Como capitão e deputado do baixo clero, Jair Bolsonaro foi um mestre na fabricação desse tipo de episódios e, graças a isso, chegou aonde chegou e lá deverá continuar até o final de 2022.

Elio Gaspari, Jornalista e escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 02.12.2020.

Voo cego e sem rumo

Mais inquietante que a piora das contas públicas é o fato de nenhum roteiro de reconstrução econômica ter sido apresentado

Mais inquietante que a piora das contas públicas, confirmada mês a mês por dados oficiais, é a indefinição do governo quanto a políticas de ajuste e de sustentação do crescimento. Ninguém consertará em um ano uma dívida igual ou superior a 95% do Produto Interno Bruto (PIB), mas nenhum roteiro de reconstrução econômica foi apresentado pela administração federal. É inútil cobrar do presidente qualquer esclarecimento, porque o assunto, como quase todos os temas ligados ao ato de governar, está obviamente fora de suas preocupações. Mas quem dará uma resposta, se nem sobre o Orçamento de 2021 há um acordo mínimo entre as autoridades?

Com ou sem estratégia governamental, os fatos seguem seu curso, e em quatro semanas acabará um dos anos mais desastrosos da história brasileira. O ano terminará, mas seus efeitos continuarão – e tanto piores, provavelmente, quanto menos planejado for o rumo da política econômica. Os números já divulgados dão ideia de como será o balanço de 2020.

Estropiadas pela pandemia, as contas públicas acumularam déficit de R$ 919,46 bilhões de janeiro a outubro, valor correspondente a 15,37% do PIB. Em um ano o rombo quase triplicou. Nos dez meses correspondentes de 2019 o déficit geral, de R$ 337,56 bilhões, havia sido equivalente a 5,65% do PIB, segundo relatório do Banco Central (BC).

Esse resultado resume o balanço mais amplo dos três níveis de governo e das estatais, excluídas Petrobrás e Eletrobrás. A soma inclui o custo dos juros. O valor geral corresponde, no jargão das finanças públicas, ao saldo nominal.

Excluídos os juros, obtém-se o resultado primário, correspondente ao saldo de receitas e despesas não financeiras, típicas do dia a dia da administração. O saldo primário do setor público, no período de janeiro a outubro, foi um déficit de R$ 632,97 bilhões, soma equivalente a 10,58% do PIB. O governo central acumulou nos dez meses saldo negativo de R$ 680,21 bilhões.

Dois dos componentes desse conjunto, o Tesouro Nacional e o BC, foram superavitários, mas o resultado final foi determinado pelo déficit de R$ 252,38 bilhões do INSS. O resultado primário do setor público foi ainda atenuado pelos saldos positivos de governos subnacionais e de estatais.

O buraco das contas públicas foi ocasionado, neste ano, principalmente pelas ações de enfrentamento da pandemia e por medidas de apoio à atividade e às famílias mais vulneráveis. Pelas contas do Tesouro, até outubro as ações de resposta à pandemia consumiram R$ 468,9 bilhões. Além dos gastos extraordinários e das facilidades fiscais, em parte já revertidas, também a baixa da atividade afetou a receita pública.

Pelos cálculos do Tesouro, de janeiro a outubro o governo central arrecadou R$ 1,17 trilhão, 11,2% menos que no ano anterior, descontada a inflação. A receita de outubro, de R$ 153,57 bilhões, foi, no entanto, 9,6% maior que a de um ano antes. A receita fiscal tem refletido a reação econômica iniciada em maio, depois da forte contração de março-abril. Com a retomada parcial da atividade, a arrecadação tributária tem melhorado. Além disso, impostos e contribuições diferidos no pior momento já estão sendo regularizados. Mas a recuperação, na atividade e no recolhimento de tributos, é ainda parcial.

O PIB deste ano deve ser 4,5% menor que o de 2019, segundo as projeções correntes no mercado e no setor público. O déficit primário do governo central deve chegar a R$ 844,3 bilhões, ou 11,7% do PIB, pelas novas estimativas do Tesouro. A dívida bruta do governo geral atingiu em outubro R$ 6,57 trilhões, 90,7% do PIB, com alta de 0,2 ponto porcentual em um mês. Em dezembro deverá estar em 95% do PIB, segundo cálculos correntes, e nos anos seguintes poderá superar 100%.

O financiamento dessa dívida poderá ficar complicado, se aumentar a insegurança em relação à política fiscal, e toda a economia será prejudicada. É urgente uma sinalização do governo a respeito de como pretende cuidar de suas contas e da atividade a partir de 2021. Já faz muita falta um plano de voo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, edição de 02.12.2020

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Idosos acima de 75, profissionais de saúde e indígenas serão os primeiros vacinados contra covid

Previsão do ministério é que imunização comece em março e chegue até toda a população somente em dezembro de 2021

 Idosos acima de 75 anos, profissionais de saúde e indígenas serão os primeiros a ser vacinados contra a covid no País, segundo cronograma apresentado nesta terça-feira, 01, pelo Ministério da Saúde em reunião com um comitê de especialistas.

No encontro, a pasta informou ainda que a perspectiva é começar a vacinação contra a doença em março de 2021 e finalizar a campanha somente em dezembro, quando haveria doses suficientes para imunizar toda a população.

Uma possível vacina contra a covid-19 poderá ser aprovada se tiver eficácia mínima de 50%

Uma possível vacina contra a covid-19 poderá ser aprovada se tiver eficácia mínima de 50% Foto: Alex Silva/ Estadão

Segundo especialistas presentes na reunião, o ministério ainda considera como principal imunizante do SUS a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca, mas não descartou a compra de outros imunizantes.

Participaram da reunião mais de 70 especialistas tanto do ministério, Estados e municípios quanto de sociedades científicas.

Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo / 01 de dezembro de 2020 

Politização da Justiça e ativismo judicial

Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis ao Estado de Direito

 Por Ruy Martins Altenfelder Silva

Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689 em Bordeaux, na França, e morreu em 10 de fevereiro de 1775 em Paris. Foi político, filósofo e escritor. Ficou famoso por sua teoria da separação dos Poderes, incluída em muitas Constituições mundo afora, como a brasileira.

A teoria da tripartição dos Poderes do Estado foi desenvolvida por Montesquieu no livro O Espírito das Leis, escrito em 1748. O autor partia das ideias de John Locke, cerca de um século antes. A tese da existência de três Poderes remonta a Aristóteles. Montesquieu dividiu os Poderes separando-os em Executivo, Judiciário e Legislativo.

A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 2.º, dispõe que os Poderes são independentes e harmônicos entre si, tornando tal disposição cláusula pétrea.

A tríade una do poder do Estado está constituída pelo Poder Legislativo, competente, em razão do poder constitucionalmente outorgado pelo povo, para elaboração das leis que regerão a Nação; pelo Poder Executivo, exercido por pessoas escolhidas pelo povo e encarregado da gestão administrativa do Estado, do controle e administração das finanças, da segurança, da saúde, da educação e do desenvolvimento do Estado; e o Poder Judiciário, que tem a competência de interpretar e aplicar as leis e fazer cumprir as suas decisões, garantindo a eficácia do Direito e da ordem jurídica.

O poder político institucional do Estado é uno, embora dividido em três unidades que devem dar efetividade às suas respectivas competências e funções de forma autônoma e independente, harmônica, confluindo todas as particulares ações para o bem-estar social, concorrendo para a paz e a segurança da sociedade, assegurando, assim, a unicidade do poder.

O excesso de demandas levadas à Justiça acarreta a conduta ativa do Poder Judiciário (judicialização da política e politização da Justiça). A atuação expansiva e proativa do Poder Judiciário ao interferir em decisões dos outros Poderes (Legislativo e Executivo) pode ser caracterizada e mesmo definida como ativismo judicial.

O ativismo judicial pode ser considerado como um fenômeno jurídico, uma postura positiva do Judiciário nas opções políticas dos demais Poderes. O protagonismo do Judiciário, notadamente no Supremo Tribunal Federal (STF), pode ser classificado como “ativismo judicial”.

A edição do Estado do último dia 26 de outubro publicou, na primeira página, sob o título Supremo tem dez liminares valendo há mais de 5 anos, matéria do competente jornalista Breno Pires noticiando que o Supremo Tribunal Federal necessita de um esforço concentrado para poder acabar com uma pilha de liminares pendentes de julgamento. O jornal identificou decisões monocráticas, tomadas por relatores há mais de cinco anos, suspendendo desde resoluções, a leis estaduais e federais, até emendas à Constituição.

Todas em pleno vigor por decisão de um único ministro e que até hoje nem sequer começaram a ser julgadas pelo plenário do Supremo Tribunal.

São 65 liminares concedidas por um único julgador, pendentes de julgamento pelo plenário, caracterizando o que tecnicamente pode ser classificado como “ativismo judicial”. Por isso a desmonocratização anunciada pelo ministro Luiz Fux, que assumiu recentemente a presidência da Suprema Corte, é bem vista pelos que estudam e participam da vida judiciária.

Uma das ideias é que todas as liminares sejam levadas ao chamado plenário virtual imediatamente após tomadas. Dependeria disso a validade da decisão do ministro relator. Isso valeria não apenas daqui para a frente, mas também para decisões monocráticas antigas. Uma das mais antigas e de grande repercussão foi a que garantiu o pagamento de auxílio-moradia e que até hoje aguarda julgamento do plenário.

Em outra liminar que alcança o Poder Legislativo, o ministro Dias Toffoli decidiu que em casos de eventual vacância no Senado Federal, por cassação pela Justiça Eleitoral da chapa eleita, o candidato imediatamente mais bem votado na eleição assume o cargo interinamente, até que seja empossado o senador eleito em pleito suplementar. A decisão é de 31 de janeiro deste ano, em ações apresentadas à Suprema Corte, diante da cassação do mandato da senadora Selma Arruda pela Justiça Eleitoral.

Além dessas, outras decisões antigas de igual repercussão aguardam julgamento pelo plenário.

Uma das mais emblemáticas se refere à distribuição dos royalties do petróleo. O STF é órgão colegiado e, como tal, suas decisões devem privilegiar decisões conjuntas, reduzindo o risco de insegurança jurídica derivada de entendimentos que abalam a credibilidade do próprio Poder Judiciário.

Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, para o País.

Ruy Martins Altenfelder Silva, advogado, é Presidente da Academia Paulista de Letras e do Conselho Superior de Estudos Avançados. Este artigoi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, ediçao de 01.12.2020.

Um novo e positivo cenário

Ao rechaçar extremismos ideológicos e optar por candidaturas de centro, o eleitor deu uma eloquente manifestação de confiança na política

O resultado das eleições de 2020 sinaliza uma mudança significativa do eleitorado em relação às escolhas feitas em 2018. Ao rechaçar extremismos ideológicos e optar por candidaturas de centro, o eleitor deu uma eloquente manifestação de confiança na política. Naturalmente, é ainda muito cedo para traçar prognósticos para o cenário eleitoral de 2022 ou para listar os principais candidatos da próxima disputa presidencial. A importância do pleito de 2020 não reside em suas eventuais consequências sobre as eleições de 2022. Tanto no primeiro turno como no segundo, o que se destacou – e é extremamente positivo para a democracia – foi a maturidade do eleitor.

O resultado das eleições de 2020 revela, de forma contundente, um eleitor capaz de repensar escolhas políticas feitas em um passado recente, em especial, as propostas do bolsonarismo e as do lulopetismo. O eleitorado mostrou-se inclinado a superar a visão da política como terra arrasada pela corrupção, que, de tão difundida por integrantes da Lava Jato, chegou a ganhar nome correspondente: o lavajatismo.

Aos que anunciaram, depois das eleições de 2018, a morte da chamada política tradicional, o pleito deste ano mostrou que velhos partidos políticos podem ainda ter especial força e representação. Quando são capazes de apresentar candidatos e propostas consistentes, legendas há muito conhecidas continuam tendo apelo entre os eleitores. Basta ver que os cinco maiores partidos, em porcentual do eleitorado governado por seus prefeitos, foram PSDB, MDB, DEM, PSD e Progressistas (ex-PP).

O PSDB elegeu 533 prefeitos, que governarão cerca de 17% do eleitorado a partir de 2021. Em seguida está o MDB, cujos prefeitos eleitos governarão cerca de 13% da população. Além de ser campeã em número de prefeituras conquistadas (803 ao todo), a legenda conquistou neste ano cinco capitais: Porto Alegre, Goiânia, Teresina, Boa Vista e Cuiabá.

Outro destaque das eleições de 2020 foi o DEM, partido com maior crescimento em número de prefeitos eleitos. Em 2016, conquistou 277 prefeituras. Agora, foram 476, a representar cerca de 12% do eleitorado. A principal vitória do antigo PFL ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. No segundo turno, o ex-prefeito Eduardo Paes ganhou do prefeito Marcelo Crivella, que tentava a reeleição com o apoio do presidente Jair Bolsonaro. O DEM ganhou ainda as prefeituras de Salvador, Curitiba e Florianópolis.

O PSD e Progressistas também cresceram nas eleições deste ano. Junto ao DEM, os três partidos devem governar quase um terço do eleitorado (32%). Em 2016, as prefeituras conquistadas pelas três legendas representavam cerca de 17% do eleitorado.

Esses resultados contrastam com os números do bolsonarismo e do lulopetismo. Ao longo da campanha eleitoral, o presidente Bolsonaro pediu voto para 16 candidatos a prefeito. Apenas quatro se elegeram – Tião Bocalom em Rio Branco (AC), Roberto Naves em Anápolis (GO), Gustavo Nunes em Ipatinga (MG) e Mão Santa em Parnaíba (PI). O PSL elegeu 92 prefeitos (1,3% do eleitorado).

Além da rejeição ao bolsonarismo, houve também o inédito sumiço do PT na gestão das capitais. A partir do ano que vem, nenhuma das 27 capitais do País será governada por um prefeito petista, fato que nunca tinha ocorrido desde a redemocratização. Nos próximos quatro anos, os prefeitos eleitos do PT deverão governar cerca de 3% do eleitorado. Trata-se de uma situação muito diferente da que se viu anos atrás. Nas eleições de 2012, por exemplo, o partido de Lula foi o campeão no ranking de prefeitos por porcentual de eleitorado, com mais de 19%.

As eleições de 2020 confirmam, assim, que para superar um extremismo ideológico não é preciso inventar outro extremo. Não é necessário o bolsonarismo para vencer o lulopetismo ou vice-versa. A política pode e deve oferecer outras soluções, mais viáveis e mais responsáveis. E, como se viu nos resultados dos dois turnos, o eleitor está atento a essas outras opções. Há amplo espaço para a política.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, 01 de dezembro de 2020 

Casos e mortes por coronavírus no Brasil em 1° de dezembro

País tem 173.229 óbitos e 6.344.345 diagnósticos de Covid-19, segundo levantamento junto a secretarias estaduais de Saúde.

Brasil tem média de 35,4 mil casos de Covid por dia na última semana.

Desde o balanço das 20h de segunda-feira (30), 6 estados atualizaram seus dados: CE, GO, MG, MS, PE e TO.

Veja os números consolidados:

173.229 mortes confirmadas

6.344.345 casos confirmados

Na segunda-feira, às 20h, o balanço indicou: 173.165 mortes confirmadas, 317 em 24 horas. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 518. A variação foi de -7% em comparação à média de 14 dias atrás, indicando tendência de estabilidade nas mortes por Covid, quando não há aumento ou queda significativos.

Em casos confirmados, desde o começo da pandemia 6.336.278 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 22.622 desses confirmados no último dia.

A média móvel nos últimos 7 dias foi de 35.468 novos diagnósticos por dia, a maior desde 6 de setembro --quando chegou a 39.356. Isso representa uma variação de 20% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de alta nos diagnósticos.

Brasil, 29 de novembro

Oito estados apresentaram alta na média móvel de mortes: Santa Catarina, Espírito Santo, Acre, Amazonas, Rondônia, Ceará, Pernambuco e Sergipe.

Também vale ressaltar que há estados em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. Os dados de médias móveis são, em geral, em números decimais e arredondados para facilitar a apresentação dos dados.

Estados

Subindo (8 estados): SC, ES, AC, AM, RO, CE, PE e SE

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (7 estados): PR, RS, RJ, AP, PA, BA e MA

Em queda (11 estados + DF): MG, SP, DF, GO, MS, MT, RR, TO, AL, PB, PI e RN

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Por G1 / 01/12/2020 13h06


Biden confia o comando da recuperação da economia a uma equipe dominada por mulheres

A diversidade, a experiência e o foco no emprego caracterizam os escolhidos pelo presidente eleito dos EUA para pilotar a crise


Neera Tanden, escolhida para dirigir o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA, em foto de 2016, na Filadélfia.

As contas do Governo Biden, assim como sua voz, serão femininas. O presidente eleito dos Estados Unidos completou nesta segunda-feira suas equipes econômica e de comunicação, e ambas terão presença majoritária de mulheres nos altos cargos. As nomeações incluem várias mulheres de diversas origens, em linha com a promessa do próximo presidente democrata de formar um Governo que reflita a sociedade norte-americana.

Na equipe à qual Biden vai entregar a tarefa da recuperação de uma economia abalada pela pandemia, além da prestigiada economista e ex-presidente do Federal Reserve Janet Yellen para secretária do Tesouro, cuja nomeação foi anunciada na semana passada, estará também Neera Tanden, filha de imigrantes indianos e presidente do progressista Center for American Progress. Ela será a primeira mulher não branca a chefiar o influente Escritório de Administração e Orçamento, órgão encarregado de auxiliar o presidente a atingir seus objetivos políticos, orçamentários, regulatórios e de gestão. Cecilia Rouse, reitora da Escola de Políticas Públicas de Princeton, será a primeira mulher afro-americana à frente do Conselho de Consultores Econômicos. Os outros dois membros do conselho, que desempenha papel fundamental no assessoramento do presidente em questões econômicas, serão os economistas Heather Boushey e Jared Bernstein.

Tanto Rouse como Tandem têm ampla experiência pública, tendo servido nas duas últimas Administrações democratas (Bill Clinton e Barack Obama). Este também é o caso de Brian Deese, eleito para chefiar o Conselho Econômico Nacional, e Wally Adeyemo, indicado por Biden para ser o adjunto de Yellen no Departamento do Tesouro (ele será o primeiro afro-americano no cargo). Deese foi assessor de Obama e Adeyemo também fez parte dessa Administração e, depois, chefiou a organização sem fins lucrativos do ex-presidente.

Outra característica compartilhada por vários dos nomeados para a equipe econômica, como Yellen, Rouse, Bourshey e Bernstein, é a especialização em políticas de emprego. Além da diversidade e da experiência, com essas escolhas o presidente eleito manda uma terceira mensagem: a política econômica de seu Governo terá como foco o emprego como motor do crescimento econômico.

Os anúncios nesse campo se somam aos deste domingo para a equipe de comunicação da Casa Branca, cujos sete principais postos serão ocupados por mulheres. Jennifer Psaki, uma veterana da Administração Obama, terá o papel mais visível como secretária de imprensa. Kate Bedingfield, assessora de longa data de Biden e também durante a campanha, é a escolhida para ser diretora de comunicações. Será a primeira vez que a cúpula da equipe encarregada de falar em nome do presidente e de dar forma a sua mensagem será formada inteiramente por mulheres.

PABLO GUIMÓN, EL PAIS /  Washington - 30 NOV 2020

Brasil fica para trás na estratégia de vacinação contra a covid-19 e acende alerta

Ausência de informações sobre estratégia nacional levanta receio de que o país desperdice sua expertise na imunização contra o coronavírus. Governo admite que vacina não será oferecida a toda a população em 2021


Um voluntário recebe a vacina contra o coronavírus desenvolvida pela AstraZeneca.JOHN CAIRNS / AP

“Este vírus vai continuar entre nós para sempre”

Enquanto laboratórios anunciam resultados preliminares promissores de suas vacinas contra o coronavírus e o mundo já desenha seus planos de vacinação, ainda não se sabe quase nada sobre quais serão as estratégias que o Brasil deverá adotar. O país ―onde a pandemia voltou a ganhar velocidade nas últimas semanas― dispõe de um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente, mas tem visto a disputa ideológica contaminar as decisões sobre as ações de combate ao vírus deste o início da crise. Diante da ausência de informações sobre o plano vacinal, pesquisadores e parlamentares receiam que o país desperdice sua expertise e não consiga apresentar uma estratégia consistente à sociedade logo que as vacinas sejam registradas. Na última semana, o Ministério da Saúde admitiu que a vacina contra a covid-19 não deverá ser disponibilizada para toda a população em 2021 e que a lógica de imunização deve ser semelhante à da vacinação contra a gripe, que prevê a aplicação do medicamento em grupos específicos.

Por enquanto, nenhum laboratório solicitou ainda o registro de sua vacina à Anvisa e o órgão diz que precisará de pelo menos 60 dias pra analisar eventuais pedidos. No mundo, ainda não há um medicamento imunológico licenciado, mas os países já começam a informar parte de suas estratégias. A Espanha, por exemplo, já anunciou que dividiu a população em 15 grupos e definiu quais teriam prioridade para receber a vacina: idosos em casas de repouso, cuidadores e pessoas com deficiência. No Brasil, um comitê técnico (do qual participam representantes do Governo, secretarias estaduais e municipais da Saúde, entidades de classe e organismos internacionais) foi criado em setembro para pensar nas estratégias. Uma reunião está prevista para a esta terça-feira para discutir uma primeira versão de um plano de vacinação para a covid-19. O país optou por esperar os registros dos imunizantes para avaliar quais serão incorporados no SUS e, a partir daí, desenvolver seu plano nacional.

O Brasil já tem um acordo para a transferência de tecnologia da vacina da AstraZeneca e participa de um consórcio global para ter prioridade na aquisição de outras nove vacinas, o Covax Facility. Também tem dialogado com laboratórios, ainda que não haja novos contratos de aquisição avançados neste momento. Alguns Estados já fizeram acordos para adquirir vacinas promissoras, como por exemplo São Paulo com a Coronavac e a Bahia com a Sputinik V. Mas desde que a corrida por uma vacina entrou na retórica ideológica de Bolsonaro, paira uma desconfiança sobre as futuras ações de imunização. O Ministério da Saúde afirma que trabalha com a possibilidade de incorporar diferentes vacinas no plano nacional, mas a possibilidade de rejeição de determinados imunizantes ganhou força desde que o presidente desautorizou seu ministro a firmar um contrato de intenção de compra da Coronavac, adquirida pelo seu adversário político e governador de São Paulo, João Dória.

O ministro Eduardo Pazuello garante que o plano nacional está, sim, sendo construído e chegou a afirmar que parte dele já estaria pronto. “Podem ficar tranquilos. Estamos acima do momento, estamos adiantados. Quando estivermos com dados logísticos das vacinas, a gente fecha o plano”, afirmou na última semana, sem apresentar maiores detalhes. Pazuello disse apenas que a lógica segue a mesma de outras campanhas: estudar os grupos prioritários e as áreas mais afetadas. No dia seguinte, porém, a equipe técnica do Ministério da Saúde afirmou que o que está definido são os objetivos do plano: reduzir a mortalidade e proteger pessoas mais expostas, já que neste momento não há capacidade de produção de vacina para toda a população brasileira.

“Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira”, disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Gestantes e crianças, por exemplo, não entraram nos testes dos imunizantes. Segundo Fantinato, os detalhes logísticos de um plano nacional de vacinação só devem ser definidos após o registro pela Anvisa. Por enquanto, a pasta trabalha em uma fase preparatória para desenvolver sua estratégia.

Mas a demora para algumas definições preocupa especialistas e parlamentares. A cobrança para que o Governo apresente um plano de vacinação para a covid-19 está na Justiça. O Supremo Tribunal Federal recebeu pelo menos quatro ações sobre o tema, motivadas pelo discurso de Bolsonaro contra a obrigatoriedade da vacinação e por sua rejeição à Coronavac. A Corte deverá tomar uma decisão no dia 4 de dezembro, mas nesta semana o ministro Ricardo Lewandowski, que é relator das ações, antecipou o voto favorável à iniciativa. Lewandowski declarou que, na iminência de aprovação de várias vacinas, “constitui dever incontornável da União considerar o emprego de todas elas no enfrentamento do surto da covid-19”.

A microbiologista Natalia Pasternak alerta que um atraso no planejamento da vacinação é prejudicial, mesmo com a expertise do SUS, especialmente no caso do coronavírus. O cenário que se desenha no momento é que os países precisarão adotar diferentes vacinas para atingir a imunização coletiva e, num país continental como o Brasil, exige-se um plano complexo. Os medicamentos imunológicos mais promissoras atualmente envolvem diferentes necessidades de logística e armazenamento (alguns precisam de ultracongeladores), então é importante que o Governo planeje quais deverão ser incorporadas e quais seriam as mais adequadas para cada região, além de desenvolver um sistema de controle da vacinação e das doses de cada usuário.

“O Ministério da Saúde está devendo esse planejamento. Espero que estejam planejando e só não tenham comunicado ainda à população. Pensar que não há um plano é desastroso”, afirma Pasternak. A pesquisadora argumenta que é preciso pensar na aquisição de equipamentos (como câmaras frias para determinados medicamentos), nas possibilidades de distribuição, nas necessidades de ampliação de estruturas de postos de saúde e mesmo um plano de capacitação rápida para profissionais. “Quais vacinas vão pra quais regiões? A Coronavac e a da AstraZeneca são mais fáceis de armazenar. Quem vai ser atendido com qual vacina? E fazer um acompanhamento adequado, porque cada uma delas tem seus regimes de doses. Tudo isso precisa de planejamento e treinamento de pessoal”, explica. Para ela, a falta de transparência do Governo sobre isso deixa a população desamparada e confusa, além de estimular teorias da conspiração contra as vacinas.

A questão também tem preocupado parlamentares da comissão externa da Câmara que acompanha as ações de enfrentamento à pandemia. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT), opositor de Bolsonaro e membro do colegiado, teme que o Brasil priorize a vacina da AstraZeneca e opte por um plano de vacinação mais restrito diante da guerra política protagonizada pelo presidente. “Acredito que o desejo do atual Governo é um plano limitado de vacinação, usando apenas a vacina de Oxford (Astrazeneca). Ele torce pra que esta seja a primeira registrada, quando o Brasil deveria ter uma postura mais ousada e participar de vários projetos, mas pra isso tem que ter investimento. E o Governo está querendo retirar recursos da Saúde em 2021″, afirma.

A vacina da AstraZeneca ―a principal aposta do Governo até o momento― deve refazer testes após um problema de falta de transparência sobre os dados preliminares. Novos dados apresentados sobre seu estudo geraram dúvidas sobre sua autêntica eficácia. Isso deve acarretar atrasos no seu registro, mas o Brasil diz que não modifica seu planejamento. O Ministério da Saúde dialoga com outros laboratórios, mas mesmo assim já admitiu que não deverá oferecer a vacina da covid-19 a toda a população em 2021. A estratégia, assim como na imunização contra a gripe, será a de definir grupos prioritários com base em mortalidade, exposição e análise epidemiológica. “O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar”, afirma o número 2 da pasta, Élcio Franco.

O risco de desigualdade na vacinação

As vacinas só poderão ser distribuídas nacionalmente pelo SUS se tiverem aval da Anvisa e forem implementadas pelo Governo Federal. São Paulo, por exemplo, pode incluir a Coronavac em seu programa, mas não pode distribuir para outros Estados. Nesse sentido, há um risco de que haja desigualdade na distribuição das vacinas, já que Estados mais pobres podem não ter recursos para adquiri-las. Isso já aconteceu no país, mas nos últimos anos o programa nacional foi ganhando robustez e promovendo campanhas unificadas e amplas de imunização. “O Governo Federal deve garantir calendário mais amplo possível. Até porque o Estado isolado dificilmente vai ter força para garantir a transferência de tecnologia”, argumenta Padilha. Por enquanto, o Governo de São Paulo não diz se trabalha com um plano próprio ou se esperará as diretrizes do Governo Federal. Afirma apenas que trabalha nas estratégias de vacinação e que elas serão divulgadas no momento oportuno.

Enquanto isso, a pandemia volta a ganhar força no Brasil. O ministro Pazuello admitiu nesta semana novos “repiques” de infecções, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, mas não apresentou novas ações para conter os contágios. A estratégia continua voltada ao tratamento de pessoas já infectadas. O país segue falhando em uma política de controle e rastreio de casos, mesmo dispondo de um amplo exército de agentes de saúde, presentes em praticamente todos os municípios. O ex-ministro Mandetta chegou a justificar que, no início da crise, essa estrutura não foi utilizada para o rastreio porque havia escassez de equipamentos de proteção individual e testes.

Mas nove meses e duas trocas de ministros depois, o país continua sem uma política efetiva de controle de casos. E quase sete milhões de testes RT-PCR que poderiam ser usados para controlar a pandemia estão vencendo nos estoques do Governo, conforme noticiou o Estadão. O Ministério da Saúde diz a empresa responsável pelos testes já pediu a prorrogação da validade desses insumos à Anvisa e que monitora o caso. Os testes venceriam em dezembro e janeiro. A pasta também diz que não há risco de falta de testes. “Estamos repetindo os mesmos erros. No começo do ano, a gente demorou a reagir. De novo, vemos aumento de casos na Europa e também não nos preparamos para o aumento que chegaria aqui. Nunca tivemos um planejamento realmente organizado, centralizado, e direcionado pelo Ministério da Saúde. Passaram-se nove meses. Não deu tempo até agora de termos um plano de enfrentamento?”, questiona a microbiologista Natalia Pasternak.

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BEATRIZ JUCÁ, EL PAÍS / São Paulo - 01 DEC 2020

Desmatamento anual na Amazônia cresce 9,5% e bate novo recorde

Floresta perdeu área de 11.088 km² entre agosto de 2019 e julho de 2020, segundo dados do Inpe. Mourão minimiza destruição e elogia medidas de combate aplicadas pelo governo Bolsonaro.

Quase 47% do desmate da Amazônia foi registrado no Pará

O desmatamento na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020 atingiu o maior patamar em mais de uma década. Foram 11.088 km² de devastação, a maior taxa registrada desde 2008, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (30/11) pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Os números superaram o já alto índice registrado no período anterior, que havia sido de 10.129 km², e representam um aumento de 9,5% em relação aos dados consolidados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) entre agosto de 2018 e julho de 2019.

Desde que foi iniciado, em 1988, a maior taxa medida pelo Prodes foi de 29.059 km², registrada em 1995. A partir de então, a taxa de desmatamento sofreu forte queda até chegar aos 4.571 km² em 2012.

De acordo com o Prodes, o estado que mais desmatou neste período foi o Pará, responsável por 47% do desmate do bioma. Em seguida aparecem Mato Grosso, Amazonas e Rondônia. 

Esse é o primeiro levantamento anual do desmatamento medido pelo Prodes que reúne a devastação registrada apenas no governo de Jair Bolsonaro. Os dados do ano passado incluíam os registros de agosto a dezembro de 2018.

Ao comentar o índice, o vice-presidente Hamilton Mourão minimizou a destruição registrada. "Podemos observar o início de uma tendência decrescente. Havia expectativa de que o resultado atual que fosse ser divulgado nos daria um aumento em torno de 20% do que ocorreu o ano passado. Foi um pouco menos da metade disso aí", alegou, acrescentando que, ainda assim, "não é para comemorar".

Mourão disse ainda que 45% do desmatamento ocorreu em áreas consolidadas. Outros 30% teriam sido em áreas públicas, o que o vice-presidente chamou de "grande problema, a mais flagrante de todas as ilegalidades, que tem ser combatida".

Segundo Mourão, apesar de o trabalho de combate ter começado tarde neste ano, em maio, "os esforços que estão sendo empreendidos começam a render frutos".

Depois de diversos ataques públicos feitos por membros do governo de Bolsonaro ao trabalho do Inpe, que culminou na exoneração do ex-diretor Ricardo Galvão por defender a ciência, houve apenas elogios durante a cerimônia de divulgação de dados nesta segunda-feira.

O ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, parabenizou os cientistas pelo trabalho e falou sobre a importância para o país do sistema de monitoramento feito no Inpe. Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que revelou durante reunião ministerial em maio gravada em vídeo a intenção de aproveitar a pandemia para "passar a boiada", não participou do evento.

Fiscalização em baixa

A notícia da alta do desmatamento e os comentários de Mourão foram recebidos com bastante crítica por especialistas. 

"Se tivesse baixado pelo menos um pouco o desmatamento, talvez daria pra dizer que as ações caríssimas dos militares na Amazônia tivessem tendo efeito", disse à DW Brasil Gilberto Camara, ex-diretor do Inpe. "Mourão com todo o seu Conselho da Amazônia não está resolvendo nada", analisa.

"Tudo é deprimente: o número, a forma como eles tratam o dado", pontua Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, sobre a postura de Mourão. "O general não apresentou nenhum plano, nenhuma solução, nenhuma perspectiva, nenhuma meta, absolutamente nada. O ministro do Meio Ambiente sequer estava presente", adiciona. 

A notícia da alta não surpreendeu entidades que acompanham a política ambiental no país. "Este cenário já era sabido. E, ainda assim, a resposta do governo federal frente ao aumento do desmatamento tem sido maquiar a realidade, militarizar cada vez mais a proteção ambiental e trabalhar para coibir a atuação da sociedade civil, ferindo a nossa democracia", afirma Cristiane Mazzetti, porta-voz de Amazônia do Greenpeace.

Segundo levantamento do Observatório do Clima, mais de 3.400 militares foram destinados à Operação Verde Brasil 2. "[A operação] falhou em conter tanto o desmatamento quanto as queimadas, que até novembro eram 20% mais numerosas na Amazônia do que o já escandaloso índice de 2019", argumenta a entidade.

Desde que Bolsonaro foi eleito, multas por crimes ambientais foram praticamente suspensas, o Fundo Amazônia foi paralisado, funcionários de carreira do Ibama e ICMBio perderam postos de comando, leis foram flexibilizadas, houve aumento de invasão de terras públicas.

Para Camara, há pelo menos um fato a ser comemorado, a continuidade da independência do Inpe. "Apesar de o governo ter tentado várias vezes desqualificar o Inpe, foi uma vitória do instituto ter aguentado a pancada e mantido o trabalho. As denúncias feitas pela imprensa nesse sentido também foram muito importantes", comenta.

Deutsche Welle, em 01.12.20

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O espectro da fome

Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiros devem cair na vala comum da miséria.

 Ante o impacto planetário da pandemia, a atribuição do Prêmio Nobel da Paz para o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla em inglês) foi mais que oportuna. A principal agência humanitária das Nações Unidas responde pelo maior programa de combate à fome no mundo. Como notou a própria entidade, o prêmio é um “poderoso lembrete de que a paz e a erradicação da fome são indissociáveis”.

Em todo o mundo, cerca de 821 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar. São 135 milhões que passam fome, e a eles se juntarão mais 130 milhões. Ou seja, a fome dobrará.

A situação no Brasil também é alarmante. Em 2004, 35% dos domicílios estavam em situação de insegurança alimentar. Essa parcela chegou a cair para 22,6% em 2013. Agora, porém, como alertou ao Estado Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro do WFP, o País caminha “a passos largos” para voltar ao Mapa da Fome. Os passos foram alargados com a pandemia, mas começaram a ser trilhados bem antes dela. Com a recessão de 2014, milhões de domicílios passaram para o estado de insegurança alimentar, chegando a 36,7% do total em 2018. Em cinco anos, a fome aumentou 43,7%. Até o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiros devem cair na vala comum da miséria, totalizando quase 15 milhões, 7% da população.

Os desafios mais dramáticos enfrentados pelo WFP no mundo vão muito além dos problemas que afligem o Brasil, envolvendo a atuação em zonas de conflito onde a fome chega a ser utilizada como arma para aniquilar populações tidas por inimigas. Mas há os desafios análogos. O Comitê do Nobel apontou que o prêmio ao WFP também simboliza a “necessidade de solidariedade e multilateralismo”. O que o multilateralismo é no cenário internacional, a cooperação federativa é no nacional. “O grande drama é que não há uma unicidade, um comando que lidere o Brasil como um todo para sair desta pandemia”, alertou Balaban. “O governo federal tem uma linha difusa, não sabe se apoia ou não a OMS, se apoia ou não a quarentena.”

Outra diferença em relação às calamidades enfrentadas pelo WFP é que a fome no Brasil não é causada pela falta de comida, mas de dinheiro. Em relação a políticas públicas, não há como exagerar a importância deste fato, mas também não se pode minimizar o escândalo nele implícito: o País produz muito mais do que o suficiente para alimentar toda a população – é um dos maiores exportadores de alimento do mundo – e ainda assim milhões de famílias passam fome.

O auxílio emergencial mostrou a importância de construir uma salvaguarda contra a miséria. Em razão dele, segundo a FGV Social, o número de pobres caiu 23,7%, mas com o fim do programa esse contingente voltará à pobreza. O Planalto tenta elaborar um novo programa de renda mínima – se não por mais nada, pelo seu valor eleitoral –, mas, como sempre, de maneira desarticulada e inepta. O governo já propôs de tudo, até medidas ilegais, como o uso de precatórios, mas reluta em encampar mudanças estruturais que poderiam reduzir gastos (como a reforma administrativa, o Pacto Federativo ou a PEC dos gatilhos emergenciais), ou promover mecanismos distributivos (como a reforma tributária), ou reduzir a dívida pública (desestatização).

Como disse o Papa Francisco em sua encíclica Todos irmãos: “Ajudar os pobres com dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho”. Mas, se os quadros do governo batem cabeça para garantir um programa de renda que lhe garanta a reeleição, não há nada remotamente parecido com um roteiro de recuperação, produtividade, trabalho e educação.

Os cavaleiros do apocalipse jamais cavalgam sós. Com a peste, vem a fome; e com elas, a guerra e a morte. O Brasil não é assolado por conflitos civis, mas a criminalidade é devastadora. Se o flagelo do crime não pode ser reduzido à carência material, ela é sem dúvida a sua mola principal. Não é admissível que na 9.ª maior economia do mundo tantas pessoas morram pela fome ou pela bala.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, 30.11.20


Novo ministro do Supremo de Bolsonaro surpreende com defesa do Estado laico

Magistrados como Kassio Nunes Marques devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a lei.


Kassio Nunes Marques ao chegar para sabatina no Senado que confirmou sua indicação ao STF, em 21 de outubro. ADRIANO MACHADO / REUTERS

Por JUAN ARIAS

O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que a primeira nomeação de um novo magistrado do Supremo Tribunal Federal seria alguém “terrivelmente evangélico”, o que criou preocupação visto que o Brasil, pela Constituição, é um Estado laico. O novo ministro do STF, Kassio Nunes Marques, porém, surpreendeu, na última quarta-feira, ao defender enfaticamente a laicidade do Estado, que deve respeitar todas as confissões religiosas igualmente sem se identificar com nenhuma.

Segundo Nunes Marques, “a laicidade do Estado não significa Estado ateu, mas Estado de todas as religiões e de religião alguma”. E acrescentou que “o fato é que o Estado não deve professar religião alguma e que se manter neutro não significa manter uma postura hostil ou impeditiva da religiosidade”.

A postura impecável do novo magistrado na defesa da laicidade do Estado contrasta com a ideia quase obsessiva de Bolsonaro desde que era um simples deputado, quando defendia que o Estado brasileiro não é laico, mas cristão. “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico, não”, gritou durante a campanha eleitoral, acrescentando: “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”.

Não é descabido pensar que o sonho de Bolsonaro e dos pastores evangélicos, que já têm três partidos próprios no Parlamento e estão presentes em outros 16, é mudar a Constituição para eliminar sua laicidade e trocá-la pela Bíblia, para criar uma espécie de República islâmica.

E o sonho dos evangélicos, que passam de 30% da população, sempre foi ter um presidente deles. Até agora só conseguiram que um deputado, o pastor Marco Feliciano, presidisse a importante Comissão Parlamentar de Direitos Humanos. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, já havia profetizado que “era a vontade de Deus que um evangélico chegasse à presidência”.

Com Bolsonaro o conseguiram só pela metade, pois na verdade sempre foi católico e se fez rebatizar na Igreja Evangélica por cálculos eleitorais, já que essas igrejas poderosas movimentam milhões de votos sob o lema “o irmão vota no irmão”.

Todos os presidentes até agora nas campanhas eleitorais tiveram que se render aos evangélicos e se ajoelhar para pedir sua bênção, inclusive a candidata agnóstica Dilma Rousseff, escolhida por Lula para substituí-lo. Dilma foi obrigada, para não perder o voto dos evangélicos, a enviar-lhes uma carta se comprometendo a não tocar na lei contra o aborto durante seu mandato. Dilma foi eleita e cumpriu sua promessa.

O deputado Feliciano, que foi coroinha aos 13 anos na Igreja Católica e se converteu ao evangelismo quando conseguiu sair do mundo das drogas, hoje é um evangélico que chega a dizer que “os católicos adoram Satanás e têm seus corpos entregues à prostituição”.

No Brasil, o reino de Deus é cada vez mais deste mundo. As igrejas evangélicas e pentecostais atuam cada vez mais como um tea party à brasileira.

O pastor Feliciano, que dirige uma das igrejas mais importantes, chegou a dizer que os africanos carregam uma maldição divina desde os tempos de Noé, que faz com que vivam na miséria.

Ainda é cedo para saber se o novo ministro do Supremo, Nunes Marques, se manterá firme na defesa da Constituição e do Estado laico. E ainda é difícil saber o que Bolsonaro pensou da defesa da laicidade do Estado feita por seu magistrado. Como é cedo para saber se, em se tratando de assuntos que dizem respeito ao delicado tema das denúncias de corrupção da família Bolsonaro, o novo magistrado continuará sendo coerente com seu juramento de defender a Constituição em vez de ser um lacaio do presidente que o escolheu a dedo.

Para não cair no pessimismo, prefiro pensar que o presidente tenha ficado decepcionado com seu novo ministro e que este preferirá não sujar sua carreira de alto jurado da mais alta corte e, como acaba de fazer, seja fiel à Constituição.

Prefiro pensar que essa defesa aberta da laicidade do Estado estabelecida na Constituição continue alinhada com a independência que todo magistrado do Supremo deve ter, o que nem sempre tem sido o caso, pois levou não poucas vezes a relações espúrias entre alguns magistrados e o mundo político, ao que tantas vezes se dobraram, traindo a importante separação entre as instituições que devem ser independentes, como exige a Constituição.

Mais do que “terrivelmente evangélicos”, os magistrados do Supremo devem ser terrivelmente fiéis à Constituição, sem maracutaias políticas que acabam manchando a Carta Magna dos brasileiros.

Juán Árias é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente por EL PAÍS, edição de 27.11.2020.

Com eleições sem incidentes, Barroso refuta ilação de Bolsonaro sobre eficiência: “Não controlo imaginário”

Enquanto sugere fraude no sistema, presidente busca partido para iniciar sua campanha pela reeleição. Ministro do TSE diz que há pessoas que acreditam até que a Terra é plana


O presidente Jair Bolsonaro, ao votar no Rio no segundo turno das eleições municipais, neste domingo. ANTONIO LACERDA / EFE

Após o susto no primeiro turno, com ataque hacker e atraso de quase três horas nas apurações, as eleições deste domingo voltaram ao eixo. Pouco mais de quatro horas após a conclusão da votação na maior parte do país, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluiu a apuração da totalidade dos votos das 57 cidades onde ocorreram segundos turnos para prefeituras. 

Oficialmente, a apuração terminou às 21h11, de acordo com o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso. Mesmo assim, não faltou espaço para que o presidente da República, Jair Bolsonaro, voltasse a imitar a estratégia frustrada do presidente Donald Trump sobre potenciais fraudes no pleito. 

“Espero que possamos em 22 ter um sistema de votação seguro ao eleitor de que, em quem ele votou, o voto efetivamente foi para aquela pessoa. A questão do voto impresso é uma necessidade. Está na boca do povo”, disse Jair Bolsonaro sem base na realidade.

AFONSO BENITES, do EL PAÍS / Brasília - 30 NOV 2020

OMS pede que Brasil leve covid-19 a sério

Chefe da entidade afirma que estado atual da epidemia no país é "muito, muito preocupante" e que são necessárias ações. Tedros recomenda ainda que grandes festas de fim de ano sejam evitadas em todo o mundo.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta segunda-feira (30/11) que a situação da epidemia de covid-19 no Brasil é "muito preocupante".

"O Brasil teve seu ápice em julho. O número de casos estava diminuindo, mas em novembro os números voltaram a subir. O Brasil precisa levar [isso] muito, muito a sério. É muito, muito preocupante", afirmou Tedros a jornalistas.

Após uma diminuição no ritmo da epidemia e uma queda no número de mortos, o Brasil vem enfrentando nas últimas semanas um aumento dos casos e de óbitos em decorrência da covid-19.

Na semana passada, a taxa de contágio no país foi a maior desde maio, segundo dados do Imperial College de Londres, no Reino Unido. A estimativa da instituição pôs o índice em 1,30 – ou seja, cada 100 pessoas contaminadas transmitiam o vírus para outras 130, em média.

De acordo com dados divulgados no domingo, o total de infectados no Brasil desde o início da epidemia é de 6.314.740, enquanto o total de óbitos chega a 172.833.

Tedros fez ainda um apelo para que, em todo o mundo, seja evitada a realização de festas de fim de ano com grande número de pessoas, como forma de conter a propagação do novo coronavírus.

"É recomendável comemorar em casa, evitar reuniões com pessoas de fora, e se houver encontros, essas pessoas devem estar, de preferência, no exterior [das casas], com distância física e usando uma máscara", aconselhou.

"Todos temos que nos perguntar se, nestas circunstâncias, é preciso viajar, se é realmente necessário, pois [este] é o momento de ficar em casa e seguro", completou.

Na semana passada, Tedros destacou a primeira queda clara nos casos globais de infecção desde setembro, especialmente por causa da desaceleração do contágio na Europa. No entanto, ele advertiu que o cenário poderia mudar rapidamente. Hoje, o diretor-geral reforçou o alerta.

"A pandemia vai mudar a maneira como celebramos, mas isso não significa que não possamos fazê-lo", disse Tedros, que admitiu entender o desejo das famílias se reunirem, embora afirme que é preciso atenção. "Temos que considerar os riscos que corremos com nossas decisões", acrescentou.

O diretor-geral da OMS admitiu ainda o temor de que as festas de fim de ano se tornem o fator de produção de uma nova onda de infecções no mundo, já que não há garantias de uma vacinação em massa até lá.

Tedros também recomendou que sejam evitados "os shoppings, se houver muita gente neles", sugerindo que a população tente ir em horários de menor movimento e busque optar pelo comércio eletrônico.

Deutsche Welle, em 30.11.20

Eleições de 2020 trazem derrotas para Bolsonaro e vitória da direita

Nenhum candidato apoiado pelo presidente em capitais é eleito, mas partidos da direita e centro-direita saem fortalecidos. PT não conquista prefeitura de nenhuma capital, e esquerda indica novo equilíbrio de forças.

Condução desastrada do país durante a pandemia pode ter prejudicado candidatos apoiados por Bolsonaro, aponta analista

O resultado final das eleições municipais, concluídas neste domingo (29/11), confirma o desempenho ruim do presidente Jair Bolsonaro ao tentar apoiar aliados para o comando de prefeituras e, ao mesmo tempo, referenda o sucesso de partidos de direita e centro-direita, que viram o seu número de prefeitos e vereadores crescer.

Bolsonaro havia declarado apoio a sete candidatos nas capitais, e todos perderam. Celso Russomanno (Republicanos) em São Paulo, Coronel Menezes (Patriota) em Manaus, Bruno Engler (PRTB) em Belo Horizonte Marcelo e Delegada Patrícia (Podemos) no Recife ficaram pelo caminho já no primeiro turno. No segundo turno, também foram derrotados Marcelo Crivella (Republicanos) no Rio, Capitão Wagner (Pros) em Fortaleza e Delegado Eguchi (Patriota) em Belém.

Candidatos de perfil bolsonarista, mas que não tinham recebido apoio formal do presidente, também perderam em João Pessoa, onde Nilvan Ferreira (MDB) foi derrotado por Cicero Lucena (PP), e em Cuiabá, que viu Abilio (Podemos) ser superado por Emanuel Pinheiro (MDB).

A exceção foi Vitória, que elegeu Delegado Pazolini (Republicanos), um político sintonizado com a pauta bolsonarista. Em junho, ele havia invadido um hospital para denunciar supostas "farsas" relacionadas ao combate da pandemia do coronavírus apontadas pelo presidente. E, em agosto, atuou para impedir que uma menina de 10 anos, grávida após ser estuprada seguidas vezes pelo tio, fizesse o aborto na cidade.

Direita fortalecida, bolsonarismo não

Apesar do fracasso de Bolsonaro em emplacar aliados, na análise geral dos números, os partidos mais beneficiados pertencem ao campo da direita. Um exemplo é o DEM, que elegeu quatro prefeitos de capitais — Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis e Salvador, contra apenas um em 2016. No total, a legenda elegeu 465 prefeitos, 74% a mais do que no último pleito, e governará para 12% da população nas cidades brasileiras.

O DEM já controla a presidência da Câmara, com Rodrigo Maia, e do Senado, com Davi Alcolumbre. Ambos aguardam um posicionamento do Supremo Tribunal Federal que deve permitir que disputem a reeleição para os respectivos cargos.

Outro partido que teve bom desempenho é o Republicanos (ex-PRB), que elegeu 211 prefeitos, o dobro do que no pleito passado, e teve a maior votação para vereador nas capitais. O PSD, que elegeu dois prefeitos de capitais, fez 655 prefeitos, 21% a mais que no último pleito.

"Esta é uma eleição da qual a direita sai fortalecida, mas o bolsonarismo, não", afirma à DW Brasil a cientista política Tassia Rabelo, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Um dos fatores que prejudicou a performance de Bolsonaro foi a falta da estrutura e da marca de um partido, aponta Rabelo. Eleito pelo PSL, o presidente deixou a legenda em novembro de 2019 para tentar criar um partido próprio, o Aliança pelo Brasil, que não obteve o número de assinaturas necessário para ser registrado. Nestas eleições, ele decidiu apoiar pontualmente candidatos de partidos diversos, com os quais tinha identidade ou vínculo político. 

"Partidos são uma instituição atualmente mal avaliada pela sociedade, a confiança neles não chega a dois dígitos há mais de uma década. Mas eles fazem a diferença na política, e essa eleição é um exemplo disso", diz Rabelo, que também aponta para a condução desastrada do país durante a pandemia do coronavírus como um elemento que prejudicou o presidente.

A direita mostra a sua cara

O cientista político Henrique Carlos de O. de Castro afirma que esta eleição revelou a consolidação de um eleitorado identificado com a direita, que pela primeira vez numa disputa municipal assumiu de forma clara a sua posição no espectro ideológico — mais que no pleito de 2018, quando o apoio a Bolsonaro foi em grande parte resultado de uma onda anti-PT.

"Até pouco tempo atrás, não era aceitável na cultura política brasileira a identificação com a direita. Na ditadura, não se falava em direita, a Arena não falava que era direita. Depois, o PP se dizia, no máximo, de centro-direita, enquanto a identificação com a esquerda dava uma impressão vaga de esperança, de mudança. A esquerda era entendida como portadora da novidade e a direita, como algo nefasto", afirma.

"Nesta eleição, vimos candidaturas que fizeram questão de se colocar como de direita, e uma direita sem ‘vergonha', que faz questão de mostrar a sua cara", conclui O. de Castro, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey) no Brasil.

Nesse contexto, Bolsonaro não seria uma liderança "tão forte como ele acredita", pois sua maior qualidade teria sido apenas aproveitar o clima político de 2018 para se lançar como o mais "raivoso" dos antipetistas, considera O. de Castro. Dois anos depois, vê-se que a maior parte dos que o elegeram, afirma o cientista político, não são "seguidores" do presidente que votam cegamente em quem ele apoia, mas eleitores de direita que avaliam as opções pensando nos candidatos e na sua cidade. Esse é um dos motivos que impulsionaram o crescimento do DEM e partidos do Centrão, como Republicanos, PSD, PP e PL.

"Os partidos [do Centrão] vão agora pressionar mais a presidência, querendo seu quinhão no governo, pois é um governo de direita. E aí veremos se a movimentação mais para frente será no sentido de apoiar uma reeleição de Bolsonaro, ou se tentarão outra candidatura mais palatável", afirma O. de Castro.

O PSDB, que tradicionalmente polarizava com o PT, vem atravessando uma crise de identidade e teve resultados mistos no pleito. Elegeu quatro prefeitos para capitais, três a menos do que em 2016, e um total de 521 prefeitos, 35% a menos do que no último pleito. Mas saiu vitorioso na cidade mais populosa do país, com a reeleição de Bruno Covas em São Paulo.

Cenários para 2022

Muitas mudanças no cenário político ainda podem ocorrer até a próxima eleição nacional, mas o resultado do pleito deste ano dá pistas sobre como serão as movimentações para a disputa de 2022.

Rabelo, da UFPB, diz que tanto a direita quanto a esquerda devem se fragmentar no primeiro turno, com o objetivo de conseguir mais holofotes para seus respectivos líderes. Em qualquer lugar onde haja segundo turno, afirma, há um desincentivo estrutural para coligações amplas já no primeiro turno — tirando poucas exceções, como ocorreu com a candidatura de Manuela D'Ávila à prefeitura de Porto Alegre, que uniu PCdoB e PT desde o início da campanha.

No segundo turno, ela vê chances de um embate entre um candidato representando a esquerda e outro da direita, como tem ocorrido nas eleições presidenciais no Brasil desde a redemocratização.

Apesar do desempenho fraco do PT, que pela primeira vez na sua história não elegeu nenhum prefeito de capital, ela destaca que o partido ainda teve bastantes votos para vereador — entre as capitais, foi o segundo mais votado — indicando que a legenda não está totalmente fora da próxima disputa nacional.

Do lado da direita, O. de Castro projeta que a elite econômica do país fará o possível para lançar alguém menos extremista que Bolsonaro, um nome que não crie "polêmicas desnecessárias" que acabam sendo prejudiciais à economia e à imagem do Brasil no exterior. Uma opção é a do governador paulista João Doria, do PSDB, fortalecido pela reeleição de Covas e com chances de derrotar a esquerda em um segundo turno. Se isso ocorrer, Bolsonaro ainda sairia candidato, porém mais isolado na extrema direita.

Num cenário em que o candidato moderado da direita não consiga fazer frente a Bolsonaro, que ainda terá o comando da máquina federal e poder para alavancar a sua candidatura, e o atual presidente vá ao segundo turno contra alguém da esquerda, o professor da UFRGS projeta que, se esse nome não tiver a "mácula do PT", terá chances de vitória.

Ele diz que o resultado de Guilherme Boulos (Psol) em São Paulo, a votação de Manuela D'Ávila (PCdoB) em Porto Alegre e a vitória de Edmilson Rodrigues (Psol) em Belém indicam um novo equilíbrio de forças dentro da esquerda, que pode acabar beneficiando uma melhor articulação desse campo em um segundo turno.

"O PT deixou de ser sinônimo de esquerda e passou a ser apenas 'uma' das forças dela. E a esquerda pode se tornar mais forte ao se dividir, porque começa a ver alternativas a um partido só e a saber a atuar junta", diz.

Deutsche Welle, 30.11.20.

sábado, 28 de novembro de 2020

Friedrich Engels: um ídolo socialista completa 200 anos

De herdeiro industrial a revolucionário: sem o filósofo nascido em Wuppertal, talvez a obra máxima marxista "O Capital" nunca viesse ao mundo. Em seu bicentenário, Engels permanece tão contraditório quanto inspirador.


Friedrich Engels jovem (foto tirada entre 1857 e 1859)

Quando Friedrich Engels nasceu, em 28 de novembro de 1820, o mundo se encontrava em reviravolta. A partir da Inglaterra, a revolução industrial se alastrara como um incêndio descontrolado, com a formação de hordas de operários.

Também em Wuppertal, ao sul da Região do Ruhr, no oeste da Alemanha, as chaminés das fábricas fumegavam sem parar. Ali Friedrich Engels, pai, mantinha uma próspera manufatura têxtil. E, de filho de industrial, que aprende e compreende exatamente como o capitalismo funciona, seu primogênito se tornaria o mais famoso crítico do sistema, ao lado de Karl Marx.

Contraditório? Talvez. Mas sem dúvida uma virada surpreendente, que fascina até hoje. "Para mim, Engels era bipolar", especula o artista Eckehard Lowisch, que concebeu uma escultura do sociólogo e revolucionário para as comemorações dos 200 anos de seu nascimento.

"Um homem que de manhã saboreava camarões e champanhe, e de noite perambulava com os amigos pelos bairros pobres de Manchester", prossegue o escultor. "Ele era ambos: capitalista e revolução. Seja como for, possuía um grande senso de justiça."

Entre herança capitalista e revolta social

Primeiro de nove filhos, Friedrich Engels era a esperança do patriarca, que o tirou da escola, pouco antes de se qualificar para o estudo universitário, a fim de que começasse a formação como comerciante. Pai e filho estavam em conflito constante: a contradição entre a carolice pietista e a conduta capitalista repugnava o jovem. Sob o pseudônimo Friedrich Oswald, publicou as Cartas de Wuppertal, seus primeiros escritos socialistas.

"Reina uma terrível miséria entre as classes mais baixas, sobretudo entre os operários de fábrica de Wuppertal", formula, tão loquaz quanto drástico, o rapaz de 19 anos, "apenas em Elberfeld, de 2.500 crianças em idade escolar, 1.200 são privadas de aulas e crescem nas fábricas, só para que o dono não precise pagar a um adulto, cuja vaga essa criança ocupa, o dobro do salário que dá a ela."

O que impulsiona o jovem Friedrich? Após a formação profissional, em 1841 ele cumpre voluntariamente o serviço militar na Guarda de Artilharia real-prussiana, em Berlim. Como ouvinte, frequenta palestras universitárias de filosofia, letras orientais e finanças, e circula nos meios intelectuais de esquerda. No ano seguinte, em Colônia, finalmente se encontra pela primeira vez com Karl Marx, na época ainda editor-chefe do jornal Rheinische Zeitung.

Miséria operária na Inglaterra

O pai envia Engels para sua fábrica de fiação de algodão em Manchester, onde ele conhece a jovem irlandesa Mary Burns. Com a futura companheira, atravessa o bairro operário da cidade inglesa, confrontando-se com as desumanas condições de trabalho e moradia dos trabalhadores têxteis.

Ele coloca suas impressões no papel no estudo social A situação da classe operária na Inglaterra: "Em muitos casos, a família não é totalmente dissolvida por a mulher trabalhar, mas posta de cabeça para baixo", já que, enquanto "a mulher sustenta a família, o homem fica em casa, cuida das crianças, varre o chão e cozinha."

Torna-se cada vez mais estreita a colaboração com Marx, que nesse ínterim emigrara para Paris. Engels escreve para o almanaque Deutsch-Französische Jahrbücher, editado por Marx e Arnold Ruge. Quando as primeiras assembleias comunistas se realizam em 1845, em Elberfeld, ele é um dos oradores.

Em seguida vai para Bruxelas, acompanhando Marx, ambos empreendem viagens juntos. Em 1847, em Londres, filiam-se à Liga dos Justos, a futura Liga Comunista. É para essa associação que, no ano seguinte, redigem o Manifesto Comunista.

Simbiose Marx-Engels


Amigos inseparáveis: Engels (esq.) com Marx e filhas na década de 1860

"Sem Friedrich Engels, muitos dos escritos de Karl Marx jamais teriam existido", afirma o historiador econômico Werner Plumpe, da Universidade de Frankfurt. Foi só através do empenho do amigo que as ideias se transformaram em postulados políticos. E sem o dinheiro do herdeiro industrial, Marx provavelmente teria morrido de fome.

"O Manifesto Comunista é um trabalho de equipe, que em grande parte foi escrito por Marx, mas que deve a Engels, acima de tudo, a urgência que se percebe até hoje nos escritos dele. Ou seja, essa disposição de se forçar a um posicionamento político claro, e então dizê-lo e defendê-lo com veemência. Isso é algo que atravessa todo o Manifesto", analisa Plumpe.

Quando, no começo de 1849, os operários vão às barricadas em Barmen e Elberfeld, Engels está junto, e mais tarde participará da Revolução de Baden. Após a derrota, foge para a Suíça, seguindo depois para a Inglaterra, onde a partir de 1850 atua como procurador, e mais tarde como sócio dos negócios paternos.

Engels dava apoio financeiro ao amigo Marx, e mais ainda para suas publicações: muitas vezes é quase impossível distinguir um autor do outro. Por exemplo, foi ele que, a partir de anotações, compilou postumamente os volumes dois e três da obra máxima marxista, O Capital.

Em 1869, após vender suas ações da firma familiar, vai juntar-se a Marx em Londres. Após a morte do companheiro, em 1883, Engels se transforma na principal figura do socialismo internacional, em especial da social-democracia alemã. Na China, é venerado até hoje: em 2014 o país até doou a Wuppertal uma polêmica estátua do pensador.

Friedrich Engels reaparece agora em Wuppertal como figura multifacetada. "Através da digitalização, estamos hoje diante de gigantescas reviravoltas, que também transformam a arte", diz o escultor Lowisch. Para sua estátua de Engels, que projetou no computador, ele mandou cortar, de um único bloco de mármore, 64 placas, que amontoadas formam a figura em tamanho natural do filósofo, morto em 1895.

Para o bicentenário, sua cidade natal havia proclamado um "Ano Engels", em que lhe ergueria um monumento vivo, com festas de rua, concertos, exposições, tours e debates. Devido à pandemia de covid-19, as festividades tiveram que ser canceladas, inclusive a reabertura da Casa Engels, uma das antigas cinco moradias da família em Wuppertal.

Em vez disso, numerosos eventos se realizarão pela internet, a fim de que – nas palavras dos organizadores – "o novembro seja sem contatos, mas não sem Engels".

Deutsch Welle, em 28.11.2020