domingo, 3 de agosto de 2025

'Tarifas e sanções ao Brasil são chantagem', diz Nobel de Economia

"Chantagem". Essa foi a palavra escolhida pelo vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, para classificar a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e as sanções impostas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.


Joseph Stiglitz foi economista-chefe do Banco Mundial e ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2001 (Reuters)

"Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem", diz Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, à BBC News Brasil em entrevista.

O economista tem acompanhado com atenção o aumento das tensões entre o Brasil e os Estados Unidos desde que Trump anunciou, no dia 9 de julho, que adotaria a tarifa adicional para a importação de produtos brasileiros.

Na ocasião, o presidente norte-americano vinculou as tarifas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF por seu suposto envolvimento em uma trama golpista e à atuação do Judiciário brasileiro em relação a empresas americanas de redes sociais, as chamadas "big techs".

Trump também chamou o julgamento de Bolsonaro de "caça às bruxas". O ex-presidente alega ser inocente no processo.

Desde então, o governo brasileiro respondeu às acusações norte-americanas, disse que o país estaria aberto a negociar, mas que não aceitaria interferência estrangeira em questões domésticas.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações afirmando que Trump não teria sido eleito para "imperador do mundo". Suas declarações, no entanto, foram criticadas por membros da oposição que alegaram que o presidente estaria provocando o líder norte-americano.

No início da semana, porém, Stiglitz divulgou uma carta elogiando a postura de Lula diante de Trump.

"Espera-se que outros líderes políticos demonstrem coragem semelhante diante do bullying do país mais poderoso do mundo", disse Stiglitz.

Ainda nesta semana, o governo norte-americano divulgou a ordem executiva que implementa o tarifaço sobre o Brasil a partir do dia 6 de agosto. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos divulgaram uma lista com quase 700 produtos que estariam isentos da tarifa, o que foi visto por alguns analistas como um recuo de Trump.

No mesmo dia, o governo dos Estados Unidos anunciaram sanções financeiras a Alexandre de Moraes, relator do caso de Bolsonaro no STF.

À BBC News Brasil, o economista voltou a elogiar o comportamento de Lula e disse que outros líderes não adotaram uma postura semelhante por conveniência política.

"O que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar."

Segundo ele, a decisão de não capitular diante da pressão norte-americana, faz sentido estrategicamente porque, para o economista, Trump não respeita acordos.

"Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo vale o papel no qual está escrito".

Stiglitz diz que não é possível falar que Trump cedeu ao abrir exceções ao tarifaço brasileiro. Segundo ele, seria preciso entender os mecanismos internos e externos que levaram à sua decisão.

Para o economista, os acordos anunciados por países e blocos, como a União Europeia, com os Estados Unidos dificilmente serão implementados e só foram assinados para que os líderes dos países ameaçados com tarifas pudessem obter uma espécie de "cessar-fogo".

Stiglitz disse ainda que a situação entre Brasil e os Estados Unidos é imprevisível porque, segundo ele, "Trump não conhece limites".

Ainda segundo ele, o presidente norte-americano se empenha tanto na defesa de Bolsonaro por motivos particulares. "O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei".

O economista diz ainda que os supostos ataques dos Estados Unidos ao Brasil deverão empurrar o país cada vez mais para próximo da esfera de influência chinesa.

"Os Estados Unidos fazem de tudo para perder essa nova guerra fria com a China."

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Nos últimos dias, o governo Trump anunciou tarifas sobre produtos brasileiros e sanções contra um ministro do STF, vinculando tudo isso ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. O governo brasileiro classificou essas medidas como chantagem. Como o senhor descreveria tudo isso?

Joseph Stiglitz - Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem. Eu não acredito que o presidente Trump tenha a autoridade legal para fazer o que está fazendo.

Muitos comentaristas jurídicos dizem que ele teria uma duvidosa autoridade legal para impor tarifas quando há disputas econômicas. Mas o argumento que ele está usando para impor tarifas contra o Brasil não é econômico. Vocês têm superávit com os Estados Unidos. É justamente o contrário.

Na lógica dele, vocês é que deveriam impor tarifas contra os Estados Unidos. É uma questão política. E o mais surpreendente é que ele está violando o Estado de Direito, como tem feito repetidamente, ao insistir que o Brasil viole o seu Estado de Direito.

O ministro do Supremo [Alexandre de Moraes], pelo que vejo à distância, está agindo totalmente dentro da lei. Sobre o uso da Lei Magnitsky, estudiosos do direito dizem que isso é muito duvidoso. Ninguém jamais teve a intenção de que essa lei fosse usada da forma como está sendo usada.

É um precedente extremamente perigoso quando um líder autoritário nos Estados Unidos diz que vai usar seu poder para interferir no Estado de Direito em outros países.

BBC News Brasil - Ao que tudo indica, Lula parece não ter cedido à pressão dos Estados Unidos, ao menos para interromper o julgamento de Bolsonaro. Nesta semana, o governo americano divulgou uma lista de exceções que exclui 42% das exportações brasileiras dessas novas tarifas. Quem o senhor acha que venceu esse primeiro round desse confronto entre Lula e Trump?

Stiglitz - É preciso dizer que as tarifas prejudicam mais o povo americano do que qualquer outro país. Nós é que pagamos os custos. Trump está prejudicando a economia americana nos fazendo pagar preços mais altos pelo que compramos.

O que eu gostaria de enfatizar é que os Estados Unidos perderam. Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos.

Acho que é realmente muito bom que Lula esteja se posicionando assim como a China se posicionou ante este líder autoritário que está tentando destruir o Estado de direito internacional o qual, ironicamente, os Estados Unidos se esforçaram tanto para construir ao longo dos últimos 80 anos.


'Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos' (Getty Images)

BBC News Brasil - O que motiva Trump a defender com tanta veemência Jair Bolsonaro?

Stiglitz – O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei. Trump violou a lei na sua insurreição de 6 de janeiro. E foi uma violação terrível da lei em uma das partes mais importantes da democracia que é a transição pacífica de poder.

É por isso que continuo chamando-o de líder autoritário. Ele tentou impedir essa transição pacífica de poder mesmo com o presidente (Joe) Biden tendo recebido 7 milhões de votos a mais. Nem sequer foi uma disputa apertada. Ele não tinha absolutamente nenhuma justificativa.

E então, claro, essa pessoa fora da lei, autoritária e fora da lei, apoia outras pessoas do mesmo tipo. Bolsonaro imitou o 6 de janeiro. Vocês tiveram o 8 de janeiro. Bolsonaro foi ainda mais imprudente, houve uma insurreição ainda pior.

Felizmente, o Brasil está fazendo a coisa certa, e eu parabenizo os tribunais brasileiros por manterem o Estado de Direito. Isso não é uma caça às bruxas.

BBC News Brasil – O senhor elogiou a postura do presidente Lula desde o início desta crise e também escreveu que líderes mundiais deveriam seguir o exemplo dele. Por que eles não o fizeram?

Stiglitz – Alguns o fizeram. O presidente Xi Jinping se posicionou. Mas acho que a maioria deles sucumbiu à abordagem de Trump. A esperança deles era que uma tarifa de 10% não era tão ruim. Eles achavam que isso simplesmente desapareceria.

Acho que eles estavam esperando que o problema passasse. Foi uma atitude politicamente mais fácil. Eles calculam que ceder é mais fácil que lutar, especialmente considerando todos os instrumentos que Trump tem à sua disposição e que ele está usando.

Trump pode fazer qualquer coisa, porque ele é fora da lei. É por isso que eu acho que eles não se posicionaram. E acho que isso é um grande erro.

BBC News Brasil - No Brasil alguns setores argumentam que o comportamento de Lula foi excessivamente combativo e que ele acabou, em vez de ajudar, prejudicando o país. Como o senhor responde a essa crítica?

Stiglitz – Eles estão equivocados. Lula foi muito claro ao dizer que está disposto a negociar. Mas ele disse que não está disposto a negociar a soberania nacional do seu país. Ele não vai comprometer o Estado de Direito do país. E eu o apoio totalmente nisso. Há coisas que você pode negociar, e há outras que são inegociáveis.

Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo com ele vale o papel no qual está escrito. Ele assina um acordo e depois o viola. Você cede, capitula, e então ele exigirá mais. Nunca sabemos quando isso vai acabar.

Quando se está lidando com uma figura autoritária e errática, você não pode prever nada. Mas, com base no passado de Trump, acredito que o que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar.


Bolsonaro e Trump são considerados aliados políticos desde o primeiro mandato do norte-americano (Getty Images)

BBC News Brasil – Outros países e até mesmo a União Europeia assinaram acordos com Trump. Na sua opinião, esses acordos foram bons ou ruins?

Stiglitz – Antes de tudo, como já disse, um acordo com Trump não vale o papel em que está escrito. Canadá e México assinaram um acordo com Trump há cinco anos e ele os rasgou assim que voltou ao poder. Um acordo não é um acordo. No fim das contas, se ele sentir que não é favorável a ele, ele vai rompê-lo.

Não se deve tomar nada do que ele diz ao pé da letra. A maioria desses acordos, eu acredito, não será realmente implementada. Os países fizeram promessas, mas não explicaram como irão cumpri-las.

A Europa não é uma economia centralizada. Os líderes europeus podem gostar de ouvir que as pessoas farão investimentos, mas eles não podem controlar isso.

As pessoas na Europa podem pensar: "Os EUA é um país maluco para se investir". Como podemos ter certeza de que os europeus farão os investimentos que prometeram? São acordos muito estranhos que não significam muita coisa.

BBC News Brasil - Mas se eles não significam muita coisa, qual é o sentido de fechar esses acordos?

Stiglitz – Do ponto de vista das pessoas que fecham o acordo, é uma trégua temporária. Eles assinam um acordo e Trump promete que, por um tempo, não vai impor aquelas tarifas absurdas. Eles, por outro lado, dizem que não vão retaliar e temos uma trégua.

Isso dura até que Trump mude de ideia. Eles prometem que farão investimentos, mas como se monitora isso? Tudo isso fica no ar.

Daqui a dois anos, alguém vai olhar os números e dizer: "Vocês não cumpriram o que prometeram". E aí teremos outra rodada de negociações. E eu presumo que, nesse momento, Trump já será história.

BBC News Brasil - O senhor acredita que a situação entre Brasil e Estados Unidos pode piorar?

Stiglitz - Qualquer coisa é possível com Trump. Ele não conhece limites. As coisas são simplesmente imprevisíveis com ele. O resto do mundo precisa se acostumar com o fato de que estamos em um novo mundo, onde a maior economia do planeta está sob o controle de um líder errático e autoritário.

A boa notícia para o Brasil é que vocês estão comercializando com a Europa e com a China. A China é, na verdade, o maior comerciante do mundo. Em termos de quem tem as cartas na mão, quem tem poder econômico como potência comercial, está claro que é a China.

Os Estados Unidos dizem que essa é uma nova guerra fria com a China, mas parece que os próprios Estados Unidos estão fazendo de tudo para perder essa guerra fria.

BBC News Brasil – Na carta que publicou há alguns dias, o senhor escreveu que Lula se posicionou contra os interesses das grandes empresas de tecnologia, que são apoiadas por Trump. Por quanto tempo um país como o Brasil pode se opor não apenas à maior economia do mundo, mas também a algumas das maiores corporações do planeta?

Stiglitz - Eu acho que a realidade é que o Brasil tem poder para enfrentar essas empresas de tecnologia. O Brasil tem o direito de regulamentar empresas de tecnologia que operam no país, assim como a Europa faz, de maneira compatível com a lei.

A Europa aprovou a Lei de Serviços Digitais para regulamentar conteúdo, prevenir danos digitais. Todo país deveria fazer isso. As empresas de tecnologia têm roubado conteúdo de outras empresas sem compensação. O Brasil tem o direito, e eu diria até a obrigação, de agir quando há esses atos de roubo cometidos pelas empresas de tecnologia.

Uma das boas coisas sobre o Brasil é que vocês têm um alto nível de competência tecnológica. No mundo moderno, não é tão difícil criar suas próprias plataformas. E nem mesmo é tão difícil criar suas próprias empresas de inteligência artificial.

Na minha opinião, o Brasil tem o poder intelectual, político, tecnológico e econômico para fazer isso.

BBC News Brasil – Algumas pessoas dizem que isso pode aproximar ainda mais o Brasil da China. O senhor acredita que isso é uma possibilidade?

Stiglitz – Como acabei de dizer, o que os EUA estão fazendo é forçar todos os países a se diversificarem e se afastarem dos Estados Unidos. E basicamente há, podemos dizer, três grupos de países para os quais os outros estão se voltando: Europa, China e o restante dos mercados emergentes e em desenvolvimento.

Acho que esses três serão os caminhos seguidos não apenas pelo Brasil, mas por todos os demais países. Os EUA estão mostrando que não são um parceiro comercial confiável, nem um parceiro econômico confiável. E quando você não tem um parceiro econômico confiável, você se afasta dele. É simples aritmética.

BBC News Brasil – O senhor questionou a legalidade das tarifas, dizendo que apenas o Congresso poderia impô-las. Até agora, há uma impressão de que o Congresso e a Suprema Corte não impõem limites à atuação do presidente. Neste momento, Trump é imparável?

Stiglitz – Em muitas áreas houve decisões judiciais contra Trump. Elas o desaceleraram, embora não resultaram em uma verdadeira reversão de suas ações.

O Congresso se mostrou submisso a ele. Muitas pessoas acham que as eleições de 2026 serão um marco, porque as coisas não estão indo bem, o crescimento desacelerou, a inflação subiu, ele não cumpriu todas as suas promessas, o apoio dos eleitores é muito fraco. Espera-se que ele perca a liderança em pelo menos uma das casas do Congresso, o que pode enfraquecê-lo.

Minha preocupação é que alguém como Trump, que afirma que não perdeu as eleições de 2020, mesmo tendo perdido por 7 milhões de votos, não reconhecerá essa derrota ou tentará interferir nos resultados das eleições legislativas de 2026 de alguma forma.

Ele é imparável? Espero que não, mas neste momento a resposta não é clara e é por isso que é tão importante que democracias como o Brasil defendam o Estado de Direito.

BBC News Brasil - Como é, para o senhor, viver nos Estados Unidos atualmente?

Stiglitz – Estou na Universidade Columbia, que é uma das universidades que têm sido atacadas de uma forma que viola todos os princípios da liberdade acadêmica. Nossa universidade cedeu, e isso é, obviamente, muito desconfortável, porque os princípios da liberdade acadêmica são muito importantes para mim.

Os ataques à ciência, aos valores do Iluminismo, ao humanismo e aos princípios da verdade têm sido feitos de uma forma que ninguém poderia prever. É obviamente muito desconfortável. Pior que isso, eu nem sei qual palavra usar. Aqueles que leem história sentem calafrios na espinha.

Leandro Prazeres, de Brasília-DF para a BBC News Brasil, em 02.08.25

sábado, 2 de agosto de 2025

Egoísmo e covardia

Preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessa mesmo é terras raras e ‘big techs’

Era impensável que os Estados Unidos da América entrassem em conflito com o nosso país, impondo tarifas de importação astronômicas, mesmo tendo superávit nas trocas comerciais, e que impedissem a entrada em seu país de oito ministros de nossa Suprema Corte e do procurador-geral da República, aplicando, em violação de nossa soberania, a morte financeira ao ministro Alexandre de Moraes.

Mas é isso que fantasticamente ocorre por terem os Estados Unidos um presidente em transtorno delirante contínuo, para quem é natural impor o que lhe apetece mesmo intrometendo-se, de forma desabrida, em questões internas de outro país.

Industriado pela difamação do Brasil, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), promovida pelo agente avançado Eduardo Bolsonaro, Trump transformou o ex-presidente Bolsonaro em vítima, considerando seu julgamento uma vergonha internacional, que não deveria estar ocorrendo. E peremptoriamente declara ser “uma caça às bruxas que deve acabar IMEDIATAMENTE!” (“imediatamente” escrito em caixa alta).

Trump acusa o Brasil de ser contrário às eleições livres e à liberdade de expressão, tanto que o Supremo “emitiu centenas de ordens de censura SECRETAS e ILEGAIS a plataformas de mídia social dos EUA”.

Não poderia vingar outra narrativa quando a versão veio sendo construída por Eduardo Bolsonaro, cujo desprezo pelo nosso país e por suas instituições democráticas verificava-se desde 2018, quando disse: “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um cabo e um soldado. O que é o STF? Tira o poder da caneta deles, como é que vão reagir?”.

E agora, ao defender até mesmo ação armada dos Estados Unidos contra o Brasil, declarou, sem qualquer pudor, que, “se houver um cenário de terra arrasada, pelo menos eu estarei vingado desses ditadores de toga”.

Que lição se tira da era Bolsonaro, desde quando o capitão assumiu o poder até os dias de hoje? O clã familiar é movido por egoísmo e covardia.

O grupelho extremista, formado por familiares e acólitos, só se preocupa com a manutenção do poder, e não está voltado para promover o bem geral da população, como se viu na pandemia, quando conspiraram contra a vacina, fizeram chacota de pessoas doentes e defenderam o desrespeito a medidas de prevenção, como o uso de máscaras. Suas atitudes foram dirigidas pelo cálculo de manter a popularidade graças à continuidade da atividade econômica, mesmo ao custo de milhares de mortes, como efetivamente se deu. É egoísmo em elevada potência.

Covardia porque, ao não obter a adesão dos chefes do Exército e da Aeronáutica ao golpe, Bolsonaro e grupo íntimo passaram a persegui-los e a seus familiares pelas redes sociais. Assim, decidiu Bolsonaro continuar o golpe por meio dos acampados na frente de quartéis, que alimentou com a esperança de intervenção militar em seguida à ocupação das sedes dos Três Poderes.

Nesse sentido, é significativo o destaque dado pelo procurador-geral da República ao diálogo registrado entre o braço direito de Bolsonaro, Mauro Cid, e o coronel Rafael Martins de Oliveira. Em troca de mensagens eletrônicas realizada em 11 de novembro de 2022, Rafael Martins de Oliveira indagou a Mauro Cid: “Ae... o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é ir para o CN e STF? As FFAA vão garantir a permanência lá??/Perguntas recebidas”. O réu colaborador, então, respondeu: “CN e STF / Vão”.

Além do mais, a prova testemunhal, em especial o colaborador Mauro Cid, indica que o então presidente sempre dava esperanças de que algo aconteceria para convencer as Forças Armadas a concretizar o golpe.

Esperar comer com a mão do gato e sair às escondidas para os Estados Unidos, para que, em sua ausência, o País pegasse fogo é situação reveladora de triste covardia. Pessoalmente, em nada se arriscava na insurreição que industriava.

Agora, Bolsonaro, por via do filho, cuja viagem e campanha contra o País financia, entrega-se nas mãos de Trump, festejando a chantagem de que as ameaças à nossa economia seriam cessadas se arquivado, imediatamente, o processo criminal!

Para se salvar da responsabilidade de seus atos ilegais, Bolsonaro não se incomoda que sacrifiquem nosso país, sujeito a humilhações. Aplaude a barganha de supressão da medida que tira empregos dos brasileiros, se inventada uma fórmula para o livrar hoje da tornozeleira eletrônica, amanhã da condenação.

As injustificadas tarifas de 50% nas exportações prejudicam, especialmente, o setor do agro (café e carne), que sempre deu a Bolsonaro grande apoio. Agora o agro se vê sacrificado pelas ações de um delirante presidente americano em defesa de um Bolsonaro que não se comove com o prejuízo imposto aos seus fiéis apoiadores.

Unicamente preocupado com sua sobrevivência política e a fuga da prisão que se avizinha, Bolsonaro nem percebe que a Trump interessam mesmo as terras raras e big techs. Diante desse quadro, só mesmo a cegueira deliberada faz com que pessoas ainda cerrem fileira atrás deste mito de pés de barro.

Miguel Reale Júnior, o autor, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 02.08.25

Direto da escola para a guerra: os russos de 18 anos lutando e morrendo na Ucrânia

Uma investigação do Serviço Russo da BBC revelou que pelo menos 245 jovens russos de 18 anos foram mortos lutando na Ucrânia, nos últimos dois anos.

Muitos dos jovens ucranianos entraram no conflito diretamente ao saírem da escola 

Muitos deles entraram no conflito diretamente ao saírem da escola. Eles fizeram uso das novas regras que permitiam que eles eliminassem o serviço militar e seguissem direto para o exército normal, como soldados contratados.

Alguns dos jovens constantes da nossa lista foram mortos em questão de semanas.

A BBC News Rússia conversou com famílias enlutadas para saber por que jovens recém-saídos da escola, que estão apenas começando a vida, vêm se alistando para morrer na brutal guerra de Vladimir Putin.

O sonho desfeito

No dia 7 de maio de 2025, alunos da escola n° 110 na cidade de Chelyabinsk, na Rússia europeia, participaram de uma cerimônia para marcar o 80° aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

As crianças desfilaram no salão da escola, agitando bandeiras da Rússia e da antiga União Soviética (1922-1991). Elas também carregavam retratos de ex-alunos que foram lutar na guerra atual, sendo travada na Ucrânia.

Uma das fotografias era de Aleksandr Petlinsky, que se alistou duas semanas após completar 18 anos. Ele foi morto apenas 20 dias depois.

Sua mãe Elena e sua tia Ekaterina ficaram lado a lado no salão, assistindo à cerimônia em lágrimas.

Após um minuto de silêncio em homenagem aos mortos, Ekaterina subiu ao palco para falar sobre o sobrinho.

Sasha, como ela o chamava, era um menino apaixonado e determinado. Ele sonhava com uma carreira como médico e havia conseguido uma vaga na Faculdade de Medicina de Chelyabinsk.

"Mas Sasha tinha outro sonho, acrescentou Ekaterina, após uma pausa. "Quando a operação militar especial começou, Sasha tinha 15 anos de idade. E ele sonhava em ir para o front."

Ela se referia à guerra na Ucrânia, lançada pela Rússia em fevereiro de 2022.

Sasha Petlinsky é um dentre pelo menos 245 jovens de 18 anos mortos na Ucrânia nos últimos dois anos, segundo informações em domínio público compiladas e confirmadas pelo Serviço Russo da BBC.

A comemoração do Dia da Vitória, na escola onde estudava Aleksandr Petlinsky, com uma mulher em um microfone enquanto outras duas enxugam as lágrimas. (Crédito, Ekaterina Orekhova/VK)

Desde os primeiros meses da guerra na Ucrânia, o envolvimento de pessoas muito jovens em combate tem sido objeto de debate na Rússia.

Inicialmente, o foco era nos recrutas do exército.

O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou diversas vezes que nenhum jovem convocado para o serviço militar obrigatório com 18 anos de idade seria enviado para lutar na Ucrânia.

Mas, em março de 2022, apenas quatro dias depois da promessa de Putin de que a Rússia não envolveria recrutas na chamada "operação militar especial", o Ministério da Defesa do país admitiu que alguns deles realmente haviam sido destacados para a zona de combate.

A BBC confirmou os nomes de pelo menos 81 recrutas mortos na Ucrânia durante o primeiro ano da guerra. E as autoridades ucranianas afirmam terem capturado "centenas" de outros.

O exército russo deixou de enviar recrutas para lutar na Ucrânia. Mas existem outras formas que levam pessoas muito jovens para o conflito.

Quando as tropas ucranianas ocuparam partes da região russa de Kursk, em agosto de 2024, recrutas que patrulhavam a fronteira estavam entre os primeiros a sofrer os ataques.

Mas, segundo os dados coletados pela BBC, a maior parte dos jovens de 18 anos acaba no campo de batalha ao se inscreverem como soldados contratados.

Na primavera de 2022 no hemisfério norte, as autoridades russas alteraram a legislação para incentivar ativamente os homens com idade de combate a se alistarem. E, desde 2023, autoridades regionais vêm oferecendo altos pagamentos em dinheiro para os novos recrutas.

Inicialmente, os jovens que queriam fazer uso das novas regras precisavam ter pelo menos três meses de serviço militar. Mas, em 2023, esta restrição foi silenciosamente eliminada, apesar dos protestos de alguns parlamentares.

Agora, qualquer jovem que tenha atingido 18 anos de idade e se formado no ensino médio pode se inscrever no exército russo.

A parlamentar Nina Ostanina chefia o Comitê da Família da Duma, a câmara baixa do Parlamento russo. Ela alertou que as mudanças trariam consequências desastrosas para os formandos vulneráveis.

"As crianças que acabam de sair da sala de aula e querem ganhar dinheiro hoje em dia, assinando um contrato, simplesmente ficarão desprotegidas", afirmou ela.

Anúncios de serviço militar mostram a foto de uma família sorrindo e atrás o cartaz de um militar.(Crédito: PERM 36/6, TVK, CHP NIZHNEVARTOVSK)

'Serviço contratado — um futuro de valor'

Desde o início da invasão em larga escala da Ucrânia, professores russos foram obrigados por lei a oferecer aulas dedicadas à chamada "operação militar especial".

E, à medida que a guerra se aprofundava, passou a ser comum que os soldados retornassem do front para visitar as escolas e contar suas experiências.

As crianças aprendem a fazer redes de camuflagem e velas de trincheira. Os próprios alunos do jardim da infância são incentivados a enviar cartas e desenhos para os soldados na linha de combate.

Desde que os jovens de 18 anos foram autorizados a assinar contratos para entrar no exército, muitos órgãos de imprensa independentes da Rússia relataram que as escolas estão aumentando seus esforços para promover o serviço militar contratado.

Em Perm, na Rússia europeia, os alunos das escolas receberam folhetos com a foto de um homem de meia-idade em uniforme militar, abraçando sua esposa e seu jovem filho. O slogan diz: "serviço contratado — um futuro de valor!"

Na região autônoma russa de Khanty-Mansisk, nos montes Urais, cartazes nos quadros de avisos das escolas incentivam as pessoas a "defender a Pátria ombro a ombro". E, em Krasnoyarsk, no oeste da Sibéria, um cartaz com a frase "ligue agora" foi colocado em um quadro em sala de aula.

No início do novo ano escolar, em 1° de setembro de 2024, o currículo passou a incluir uma nova disciplina.

Em um retorno à era soviética, estudantes secundaristas voltaram a aprender como usar espingardas Kalashnikov e granadas de mão, como parte de um curso chamado "Introdução à Segurança e Defesa da Pátria".

Em muitas regiões do país, os recrutadores militares comparecem a aulas de carreira em escolas e faculdades técnicas. Eles ensinam os jovens a se inscrever como soldados contratados depois de se formarem.

Em abril de 2024, Konstantin Dizendorf, chefe do Distrito de Taseyevsky, na região de Krasnoyarsk, visitou uma faculdade técnica local para conversar com os alunos sobre seu futuro. Ele selecionou um estudante específico para elogiá-lo.

Aleksandr Vinshu, de 18 anos, já havia anunciado sua intenção de entrar para o exército. Ele foi considerado um herói local e foi autorizado a prestar seus exames finais mais cedo, para poder se alistar o mais rápido possível.

Sete meses depois, em novembro de 2024, chegou a notícia da morte de Vinshu.

Retrato de Aleksandr Vinshu, um jovem de cabelos bem curtos vestindo uma blusa preta.(Crédito,VK)

A contagem dos jovens mortos na guerra

A BBC News Rússia identificou e confirmou os nomes de 245 soldados contratados de 18 anos mortos na Ucrânia entre abril de 2023 e maio de 2025.

Todos eles foram recrutados como soldados contratados. E, a julgar pelos seus obituários publicados, a maioria entrou nas forças armadas voluntariamente.

Mas 21 deles haviam saído da escola há muito pouco tempo e assinaram seus contratos enquanto prestavam o serviço militar.

As famílias de alguns desses jovens alegam que oficiais superiores os pressionaram a se alistar.

Os dados da BBC mostram que as regiões com o maior número de mortos entre jovens de 18 anos ficam na Sibéria ou no extremo leste da Rússia. Confirmamos 11 mortos na região de Novosibirsk, outros 11 em Zabaykalsky e mais 10 nas regiões de Altai e Primorsky, respectivamente.

Os números da BBC são baseados em informações de domínio público. E, como nem todas as mortes são informadas, o número real de perdas entre soldados contratados de 18 anos provavelmente é maior.

Mas é importante observar que estes números ainda são muito menores que os da perda de homens mais velhos que foram contratados para servir o exército russo.

Os dados em domínio público coletados pela BBC desde o início da invasão em larga escala identificaram os nomes de 2.812 indivíduos, com 18 a 20 anos de idade, que foram mortos na Ucrânia, contra 8.267 mortes de homens de 45 a 47 anos.

Soldados mais velhos podem enfrentar índices de mortalidade mais altos por se encontrarem em forma física inferior. Mas o forte desequilíbrio provavelmente também reflete a menor disposição dos jovens para se alistar, mesmo com a oferta de substanciais incentivos financeiros.

Esta possibilidade está de acordo com uma pesquisa de opinião realizada pela organização independente Centro Levada, em maio de 2025. Ela demonstrou que 35% dos jovens com 18 a 24 anos de idade apoiam a guerra na Ucrânia, em comparação com 42% na faixa de 40 a 54 anos e 54% das pessoas com mais de 55 anos.

Olhos brilhantes



Aleksandr Petlinsky era um jovem gentil que gostava de ajudar os outros, segundo seus amigos.


Ele adorava desenhar e estava sempre pronto para fazer esboços dos personagens favoritos dos seus colegas.


Petlinsky também era um membro ativo de uma organização local de jovens. Ele coletava livros para as bibliotecas locais, visitava museus locais e organizava reuniões com uma enfermeira que havia trabalhado na linha de frente na Ucrânia.


Todas as pessoas entrevistadas pela BBC News Rússia contaram que o menino sonhava em ser médico, mas ninguém parecia saber que ele também sonhava em entrar para o exército e ir lutar na Ucrânia.

Aleksandr Petlinsky, na sua formatura da 9ª série (Crédito: VK)

No dia 31 de janeiro de 2025, Aleksandr Petlinsky completou 18 anos. Sua primeira ação foi pedir um ano de licença da faculdade, para poder assinar o contrato com o Ministério da Defesa da Rússia.

"Quando ele apresentou o pedido, perguntei o que sua mãe iria dizer", contou a secretária da faculdade posteriormente aos jornalistas locais.

"Ele respondeu: 'O que isso tem a ver com a minha mãe? É a minha escolha.' Seus olhos brilhavam."

Apenas três semanas depois, Petlinsky já havia assinado seu contrato e entrado na sua unidade de treinamento. E, pouco antes de sair, ele encontrou sua amiga Anastasia.

Os dois antigos colegas de classe se sentaram em um banco e conversaram sobre desenhos. Petlinsky desenhou uma tocha com uma chama no pulso de Anastasia, como presente de despedida.

Aquela foi a última vez que ela viu o amigo.

Algemado e espancado

A história do jovem de 18 anos Vitaly Ivanov, da região russa de Irkutsk, na Sibéria, e como entrou para o exército não poderia ser mais diferente.

Ele nasceu e cresceu em Tayturka, uma pequena aldeia de trabalhadores a duas horas de Irkutsk, onde moram apenas 5 mil pessoas.

No ensino médio, ele e seu amigo Misha haviam trabalhado em meio período em uma casa de caldeiras local. Eles também ajudaram a colher batatas nos jardins.

No verão, Ivanov ganhava dinheiro levando castelos infláveis pelas aldeias vizinhas.

Naquela época, ele conheceu uma jovem que chamaremos de Alina. Eles começaram a namorar e Ivanov a visitava com frequência.

Ele também a ajudava, colhendo batatas na sua fazenda e fazendo consertos pela casa.

Vitaly Ivanov na infância (Crédito,Vitaly Ivanov/VK)

"Ele costumava me dizer que eu estava sob a asa dele, sob sua proteção", conta Alina. Mas, às vezes, quando eles discutiam, Ivanov ameaçava deixá-la e se alistar no exército.

"Era como [se ele dissesse] 'eu vou e vou ficar bem'", relembra Alina.

Quando completou 16 anos, Ivanov saiu da escola e conseguiu uma vaga de aprendiz de mecânico em uma escola local, mas logo saiu.

Aos 18 anos, ele planejou prestar seu serviço militar obrigatório e, em seguida, ir para Kazan, para trabalhar em turnos na construção de rodovias, contou seu amigo Misha à BBC. Mas, em novembro de 2024, tudo mudou.

Houve um assalto a uma loja local. E, quando os policiais examinaram as imagens de circuito fechado, eles concluíram que um dos assaltantes se parecia com Ivanov.

Sua mãe Anna contou à BBC que ele era conhecido da polícia. No ano anterior, ele havia sido preso depois de entrar em uma briga com alguém que, segundo ela, era um traficante de drogas local. Ivanov foi acusado e condenado a prestar serviços comunitários.

Ele foi intimado pela polícia e mantido na delegacia por várias horas. Quando foi finalmente liberado, ele enviou para sua namorada uma mensagem de vídeo pelo Telegram que ela compartilhou com a BBC.

Nela, Ivanov chora ao contar para a namorada que foi algemado e espancado pela polícia.

"Aqueles demônios foram tão horríveis", conta ele, entre soluços. "Fiquei profundamente abalado."

Ivanov contou à sua mãe e à namorada que a polícia queria que ele confessasse o roubo. Sua mãe acha que foi a polícia quem disse a ele que assinasse um contrato para entrar no exército.

"É compreensível, ele estava assustado, ele tinha apenas 18 anos", ela conta. "Eles o algemaram e bateram nele por duas horas."

Vitaly Ivanov se queixou de ter sido agredido na delegacia de polícia para que confessasse o roubo (Crédito,Vitaly Ivanov)

Ao sair da delegacia, Ivanov encontrou Misha e contou a ele que havia decidido se alistar no exército. Misha ficou em choque.

"Eu perguntei 'para que você quer fazer isso? Venha comigo para Kazan, para trabalhar na construção de estradas. Será muito melhor para você.'"

Misha contou à BBC que outro amigo também havia tentado dissuadi-lo. Mas Ivanov excluiu todas as suas mensagens e interrompeu os contatos.

No dia antes de sair de casa, Ivanov ligou para sua mãe, que havia saído para trabalhar.

"Mãe, estou saindo cedo", disse ele.

"Para Kazan? OK, boa viagem", respondeu ela.

"Não, mãe, você não entendeu. Vou para a operação militar especial", respondeu ele.

Anna conta que "chorou a noite toda".

"Ele manteve tanto segredo sobre aquilo tudo", relembra ela. "Ele não me contou nada. Nunca reclamou. E fez tudo pelas minhas costas."

Alina relembra que, quando eles se encontraram pela última vez, Ivanov parecia completamente calmo.

Ele se despediu de forma contida e disse para ela não chorar. Em seguida, ele foi calmamente para casa, embalou suas coisas e saiu para a estação do trem.

Por conselho de um amigo que já havia estado no front, ele decidiu se alistar na região de Samara, não em Irkutsk. No outono de 2024, a região de Samara pagava alguns dos maiores bônus de alistamento do país.

Ivanov teria recebido cerca de quatro milhões de rublos (cerca de US$ 50 mil, ou R$ 278 mil) em bônus regionais e federais. Uma soma quase inimaginável para um menino de 18 anos do interior, com pouca formação e perspectivas ainda menores.

Primeira e última missão

Por caminhos muito diferentes, Vitaly Ivanov e Aleksandr Petlinsky, pouco depois que ambos completaram 18 anos de idade, chegaram ao front mais ou menos na mesma época, em fevereiro de 2025.

Alina relembra que, quando Ivanov ainda estava em treinamento, eles mantiveram contato constante.

"Ele escrevia que lamentava aquilo", ela conta. "Que tinha dificuldade para dormir."

"Mãe, eu percebi que isso não é brincadeira", relembra Anna, sobre suas palavras.

Depois de apenas duas semanas de treinamento, Ivanov foi destacado para uma função de reconhecimento militar.

"Filho, você aprendeu alguma coisa no treinamento?", perguntou Alina.

Mas a resposta do filho não foi animadora.

Vitaly Ivanov na guerra (Crédito: Anna Gromova/OK)

"Mãe, para se tornar um verdadeiro soldado de reconhecimento, é preciso estudar três anos!", respondeu ele. "Eu aprendi só um

Anna soube de Ivanov pela última vez em 5 de fevereiro. Ele escreveu contando que estava sendo enviado para uma missão de com

"Aquela foi a sua primeira e última missão", lamenta Anna.

No dia 4 de março, oficiais do escritório de alistamento militar telefonaram para Anna e a informaram que seu filho havia sido morto em combate no dia 11 de fevereiro de 2025. Ele havia servido apenas uma semana na frente de batalha.

Seu corpo foi trazido de volta para Tayturka em um caixão de zinco. Dezenas de pessoas vieram prestar seus respeitos e o caixão foi levado para o cemitério local.

Autoridades municipais fizeram discursos durante o funeral.

"Eles disseram que ele deu a vida pela nossa pátria, que ele foi corajoso e saiu para lutar. Aquilo que costumam dizer", conta Misha.

"Mas todos se perguntavam por que ele fez aquilo e diziam que não havia sentido em ir para a guerra com tão pouca idade. Muitas pessoas ainda não conseguiam acreditar, incluindo eu."

A família e os amigos de Ivanov não comentaram o fato de que sua participação na guerra poderia ter causado a morte de soldados ou civis ucranianos.

Profundamente abalados

Um mês após a morte de Ivanov, Petlinsky também foi morto, em 9 de março.

Seus amigos do movimento local de jovens postaram uma mensagem memorial online, destacando que ele havia "morrido na linha de combate militar durante a Operação Militar Especial".

"Como ele poderia estar lá se havia acabado de completar 18 anos um mês antes???", escreveu alguém na seção de comentários.


Retrato do funeral de Aleksandr Petlinsky (Crédito,Aleksandr Petlinsky)

"Como cidadã da Federação Russa, tenho orgulho do meu filho. Mas, como mãe, não consigo superar a perda", contou a mãe de Petlinsky, Elena, à BBC. Ela se recusou a dizer mais.

A BBC só conseguiu falar com a mãe de Ivanov, Anna, na segunda ou terceira tentativa. Nos primeiros minutos da ligação, ela soluçava e não conseguia falar.

Anna contou que continuava repassando na mente sua última despedida para o filho. "Parece ter sido ainda ontem", segundo ela.

A amiga de Petlinsky, Anastasia, declarou que, para ela, o fato de que jovens de 18 anos estão assinando contratos para se alistar no exército, agora, é um "tema muito doloroso".

"Eles são jovens, ingênuos e há muitas coisas que eles não entendem", segundo ela. "Eles simplesmente não compreendem toda a responsabilidade do que estão fazendo."

Anastasia não comentou quais poderiam ter sido as consequências da participação de Petlinsky na guerra para as pessoas na Ucrânia.

'Ninguém tem interesse'

A morte de Aleksandr Petlinsky e Vitaly Ivanov afetou profundamente seus amigos e as famílias. Mas o fato de que jovens de 18 anos estão se alistando e sendo mortos na Ucrânia, até agora, não parece ter tido maior repercussão na sociedade russa.

A família de outro homem muito jovem que se alistou na escola e foi morto muito pouco tempo depois realmente tentou defender a suspensão do envio de recém-formados do ensino médio para a frente de batalha.

Daniil Chistyakov, de Smolensk, no oeste da Rússia, havia comemorado seu 18° aniversário há menos de dois meses quando foi morto.

Como Petlinsky e Ivanov, ele havia acabado de chegar ao front. Sua família só descobriu que ele estava entrando no exército no dia em que se alistou.

"Escrevi para muitas agências, tentando falar com alguém, para que a lei que permite que jovens de 18 anos assinem contratos fosse revogada", contou um de seus parentes à BBC. "Mas ninguém teve interesse, nem se preocupou."

A mãe de Petlinsky, Anna, tentou fazer contato com as autoridades, sem sucesso, para investigar os policiais que detiveram seu filho e que ela acredita sejam os responsáveis pela sua súbita decisão de se alistar.

Nos seus esforços para "conseguir justiça", ela também escreveu uma longa carta sobre o caso do seu filho para o programa de entrevistas Homens e Mulheres em Moscou, do canal 1 da TV estatal. A carta foi enviada por correio registrado, mas ninguém do programa foi até a agência dos correios para retirá-la.

  • Anastasia Platonova e Olga Ivshina da BBC News Rússia. Publicado originalmente em 02.08.25
  • Role,

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Trump envia dois submarinos nucleares para áreas próximas à Rússia

A ordem vem em resposta a uma série de ameaças do ex-presidente russo Dmitry Medvedev.

Um submarino nuclear dos EUA, em 2023, em Port Canaveral, Flórida.(Imagens SOPA/LightRocket via Getty Images)

Donald Trump ordenou o envio de dois submarinos nucleares para áreas próximas à Rússia em resposta a uma série de ameaças "muito provocativas" feitas pelo ex-presidente russo Dmitry Medvedev, revelou o presidente americano em sua plataforma de mídia social, Truth. Medvedev é agora vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional em Moscou.

“Ordenei que dois submarinos nucleares fossem posicionados nas áreas apropriadas, para o caso de essas declarações selvagens e incendiárias irem mais longe”, escreveu Trump. “Palavras são muito poderosas e muitas vezes podem desencadear consequências indesejadas. Espero que este não seja um desses casos”, acrescentou o presidente dos EUA.

Medvedev acusou Trump esta semana de desencadear um "jogo de ultimatos" e apontou que a Rússia possui armas nucleares, como parte de uma série de declarações, respostas e contra-respostas ao americano após o republicano anunciar um prazo de 10 dias para Moscou aceitar um cessar-fogo na Ucrânia. Caso contrário, Trump ameaça impor tarifas pesadas ao Kremlin e seus parceiros comerciais. O presidente americano garantiu que enviará seu negociador Steve Witkoff a Moscou para tentar obter a aprovação do Kremlin para um cessar-fogo, uma meta que Trump havia prometido durante a campanha eleitoral que alcançaria em 24 horas se fosse eleito presidente.

“Trump está jogando o jogo do ultimato com a Rússia: 50 ou 10 dias... ele deveria se lembrar de duas coisas. Primeiro: a Rússia não é Israel, nem mesmo o Irã. E segundo: cada novo ultimato é um passo mais perto da guerra. Não entre a Rússia e a Ucrânia, mas com seu próprio país”, escreveu Medvedev no X, a antiga conta do Twitter, tendo se tornado um dos falcões mais visíveis nos círculos do Kremlin.

Até o momento, a Rússia não deu nenhuma indicação de sua intenção de cumprir o prazo imposto por Trump. O americano, que se alinhou a quase todos os argumentos do presidente russo Vladimir Putin em relação à guerra e tem sido um crítico ferrenho do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, já havia ameaçado impor sanções a Moscou se o país não aceitasse um cessar-fogo, embora, em todas as vezes em que o fez, tenha prorrogado o prazo ou simplesmente deixado expirar.

Em outra mensagem sobre a Verdade, também nesta sexta-feira, Trump afirmou que quase 20.000 soldados russos morreram neste mês na guerra na Ucrânia. Até agora neste ano, 112.500 morreram, segundo dados do presidente.

“Muitas mortes desnecessárias!”, disse o republicano, acrescentando que a Ucrânia, que luta para repelir a invasão russa, “também sofreu muito”. Segundo Trump, o país ocupado “perdeu aproximadamente 8.000 soldados desde 1º de janeiro de 2025, e esse número não inclui os desaparecidos”.

Macarena Vidal Liy, de Washington - DC para o EL PAÍS, em 01.08.25

Ibero-América na democracia: o valor do diálogo e do consenso

A iniciativa é uma tentativa de fortalecer os valores e princípios da democracia e dos direitos humanos, como única base digna para a coexistência em nossas sociedades.

Uma mulher vota durante as eleições regionais em Santiago, Chile, em 2024. (Esteban Félix - AP)

A democracia está passando por uma crise global . Como Moisés Naím corretamente alertou, três cavalos de Troia a ameaçam: a pós-verdade , que provém das mídias sociais, que banalizaram o debate público, e da tecnologia, que pode manipular, confundir e enganar, tornando mentiras plausíveis; o populismo, que explora uma multidão de descontentes, oferecendo falsas soluções para as muitas queixas dos cidadãos; e a polarização, que emergiu dos dois fenômenos anteriores — mas não se limita a eles — destruindo o consenso e a centralidade e transformando a política em um campo de trincheiras opostas.

Esses desafios são agravados por outros desafios globais: conflitos armados, crescentes tensões geopolíticas e a diminuição da influência de organizações internacionais, além da crescente importância geopolítica de novos atores econômicos, tecnológicos e comerciais, cujos interesses particulares frequentemente prevalecem sobre políticas públicas voltadas para o bem comum. Tudo isso criou uma perigosa desconexão entre as instituições democráticas e as expectativas dos cidadãos.

Na América Latina , esses desafios são sentidos de forma ainda mais aguda . As democracias da região são, no mínimo, ainda mais vulneráveis devido a problemas estruturais como corrupção, insegurança, desigualdades persistentes, economia informal e fragilidade institucional, entre outros. É em nossa região que o discurso e a pedagogia democráticos são mais carentes, pois enfrentamos paradoxos preocupantes: a maioria da sociedade latino-americana deseja viver em democracia, mas a confiança em suas instituições enfraquece a cada dia.

Exigimos eleições livres e justas para eleger nossos representantes, mas a qualidade dessa representação é questionada. Acreditamos na democracia e no Estado de Direito, mas há demasiadas violações de suas regras e princípios por parte dos que estão no poder, e os mecanismos de freios e contrapesos não são respeitados. Todos nós queremos as mais amplas liberdades, mas muitas pessoas estão dispostas a sacrificá-las em troca de segurança. Uma pesquisa recente já nos alerta que um em cada quatro jovens espanhóis com menos de 26 anos acredita que, "em algumas circunstâncias", o autoritarismo pode ser preferível à democracia, e isso é algo que deveria nos alarmar.

Em um momento em que as democracias vivenciam tensões crescentes e os espaços de diálogo estão ameaçados, a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI) lançou Ibero-América em Democracia , uma iniciativa apoiada por um comitê editorial de especialistas e vozes diversas para refletir sobre os desafios democráticos na região. Por meio de artigos, encontros, fóruns e mesas redondas, o projeto busca gerar diálogo sobre temas-chave como a separação de poderes, os processos eleitorais e o papel da educação, da cultura e da ciência em sociedades mais justas. Com esta proposta, a OEI visa renovar a confiança na democracia por meio do intercâmbio de ideias, da participação intergeracional e da publicação de textos de qualidade.

O EL PAÍS  (diário global editado a partir de Madrid - Espanha) se une a esta iniciativa, criando um espaço para promover a reflexão serena, a análise rigorosa e o compromisso com os valores democráticos. Sob o título Ibero-América na Democracia, esta série de artigos, com publicação quinzenal, reunirá autores de destaque do mundo ibero-americano: vozes com experiência, perspectivas distintas e uma defesa ativa da liberdade, dos direitos humanos, da educação e da institucionalidade. O objetivo é claro: contribuir para um debate público mais robusto, plural e construtivo.

Este projeto nasceu da intersecção natural de duas instituições que compartilham princípios: uma organização com sólida trajetória em educação, cultura e direitos fundamentais, e um veículo de comunicação comprometido com o jornalismo livre, o pensamento crítico e o debate de alto nível. Na OEI e no EL PAÍS América, entendemos que salvaguardar a democracia também envolve criar espaços onde possamos pensar profundamente, discordar respeitosamente e construir ideias para o bem comum.

Ibero-América em Democracia é uma tentativa de fortalecer os valores e princípios da democracia e dos direitos humanos, como único fundamento digno para a coexistência de nossas sociedades. Porque não há outra maneira de viver em liberdade. Porque não queremos ditaduras e autocracias (já sofremos bastante com elas no passado, e muitas ainda existem). Porque acreditamos na coexistência com direitos e responsabilidades. Porque queremos viver em paz e progresso. Porque, conscientes de suas imperfeições, falhas e ineficiências, acreditamos que a democracia é o melhor sistema político para garantir a liberdade, a igualdade de direitos, a justiça e a cidadania .

Ibero-América em Democracia é um site aberto a contribuições do pensamento e da reflexão democrática ibero-americana (sem adjetivos), para chegar ao público ibero-americano por meio da palavra. É uma iniciativa apartidária, aberta, pluralista e da sociedade civil para aqueles comprometidos com a democracia e os direitos humanos . Ibero-América em Democracia não é nada mais, nada menos. As adversidades são muitas, mas para nós, como Blas de Otero , o poeta social: "Resta-nos a palavra."

Editado por EL PAÍS.

Moraes diz que vai ignorar sanções aplicadas pelos EUA e continuar trabalhando

Moraes diz haver 'verdadeira organização criminosa' que faz 'negociação espúria' para tentar intimidar o STF

O ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenário do STF / Crédito: Antonio Augusto/STF

Alvo de sanções do governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes afirmou, durante a abertura do segundo semestre do ano do Judiciário, que vai “ignorar as sanções aplicadas” e continuar trabalhando, em referência à tramitação das ações penais contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado, em 2022. Moraes manteve o tom de que o STF, a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República (PGR) não se “vergarão” às ameaças e que os grupos golpistas são traidores da pátria que mantém a mesma forma de operação.

“Brasileiros traidores da pátria continuam a incentivar, instigar, auxiliar a prática de atividades e atos hostis ao Brasil”, disse.

O ministro disse que brasileiros processados pela Procuradoria-Geral da República, ou investigados pela Polícia Federal, “agem de maneira covarde e traiçoeira com a finalidade de tentar submeter o funcionamento deste Supremo Tribunal Federal ao crivo de um estado estrangeiro”, em alusão aos réus das ações golpistas e outros investigados, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).

Na análise de Moraes, trata-se de uma “verdadeira organização criminosa jamais anteriormente vista em nosso país” e que existe uma “negociação espúria” para tentar intimidar o Supremo Tribunal Federal.

O ministro criticou o fato de bolsonaristas chamarem para si a autoria da crise diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos, com penalidades econômicas ao país e sanções à autoridades públicas visando mudar os rumos da tramitação de um processo judicial. “Como se glória houvesse na traição”.

Além de anunciar a aplicação de tarifas de 50% a produtos brasileiros, o governo de Donald Trump sancionou o ministro Alexandre de Moraes com a Lei Magnistky, que prevê o bloqueio de todos os bens e interesses em bens dentro da jurisdição dos Estados Unidos.

Moraes lembrou que as penalidades não afetam apenas contra o STF, mas contra o Congresso e as instituições brasileiras. “Com a única exclusiva finalidade de obter um súbito inexistente, inconstitucional arquivamento imediato de ações penais”.

O ministro defendeu a condução da ação penal. “Eu aqui afirmo, sem medo de errar, não há, não houve no mundo, uma ação penal com tanta transparência e publicidade com essa ação penal. Nenhum país do mundo transmite interrogatórios, oitiva de testemunhas, para toda imprensa e sociedade acompanharem”, disse. “É o Supremo Tribunal Federal atuando dentro da Constituição, dentro dos princípios republicanos e garantindo o devido processo legal”, acrescentou.

O ministro reafirmou que não há espaço para “pressões, coações no sentido de querer obter, repito, entre aspas, expõe o arquivamento imediato dessas ações penais sob pena de se prejudicar a economia brasileira, o sustento das pessoas, o trabalho dos brasileiros e das brasileiras”.

“A ousadia criminosa parece não ter limites. Com as diversas e contínuas postagens em redes sociais e declarações da imprensa, declarações atentatórias à soberania nacional, à independência do Congresso Nacional e à independência do Poder Judiciário”.logo-jota

Flávia Maia, a autora, é Analista de Judiciário do JOTA em Brasília. Antes foi repórter dos jornais Correio Braziliense e Valor Econômico e assessora de comunicação da Confederação Nacional da Indústria (CNI). É graduada em Direito no IDP. Publicado dm 01.08.25

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O ‘fascio’ do Tio Sam

Não, isso não é democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada

Agora, quem usa a palavra “fascismo” para se referir ao governo de Donald Trump é Robert B. Reich, um intelectual sem nenhum histórico de surtos esquerdistas. Longe disso, Reich tem uma trajetória de ponderada coerência. Advogado, foi secretário do Trabalho (cargo equivalente ao de ministro no Brasil) durante o governo de Bill Clinton, de 1993 a 1997. Era cordial e atencioso no trato com jornalistas – brasileiros, inclusive. Reich foi também professor de Políticas Públicas em Berkeley. Hoje, aposentado, segue em destaque como autor de livros, alguns deles best-sellers e como articulista frequente em jornais e revistas como The New York Times, The New Yorker, The Washington Post, The Wall Street Journal, e The Atlantic. Sua voz não costuma ceder a radicalismos e destemperos.

Pois esse sujeito, lúcido e sensato, publicou no início do mês, em sua newsletter com mais de um milhão de assinantes, uma crítica ácida à lei orçamentária que o presidente dos Estados Unidos conseguiu aprovar no Congresso. Reich diz que o pacote vai tornar “os Estados Unidos mais cruéis” do que já são. Não é para menos. A peça orçamentária retira mais de US$ 1 trilhão do Medicaid (assistência médica pública). Até 2034, vai condenar ao abandono um contingente de 12 milhões de americanos. Além disso, providencia uma substanciosa redução de impostos para os mais ricos e turbina o caixa das ações militares de combate à imigração.

O sadismo é tanto que Robert Reich compara Donald Trump com os chamados “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”, e conclui: “O fato de uma legislação tão regressiva, perigosa, gigantesca e impopular ter sido aprovada no Congresso demonstra o quanto Trump arrastou os Estados Unidos para o fascismo moderno.” O parlamento abaixa a cabeça à prepotência do Executivo. A Suprema Corte, pelo que se vê, tomará caminho parecido. Fascismo é a palavra.

Não foi por falta de aviso. Há cinco anos, num longo artigo publicado no New York Review of Books, Sarah Churchwell, professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Londres, definiu, logo no título, o resumo do primeiro governo Trump: “Fascismo americano: aconteceu aqui”.

Depois de registrar que o presidente andara posando com uma Bíblia na mão, Bíblia que nunca leu, a autora lembrou um velho ditado: “Quando o fascismo chegar à América, estará envolto na bandeira e carregando uma cruz”. Ela alertou que a frase, comumente atribuída a Sinclair Lewis, tem sua origem mais provável nos discursos de James Waterman Wise, filho do rabino Stephen Wise. Há quase um século, James Wise avistou o perigo e antecipou: o fascismo chegaria às terras do Tio Sam “embrulhado na bandeira americana ou em um jornal de Hearst”.

William Randolph Hearst, ganancioso e narcisista, foi o magnata da imprensa retratado com genial mordacidade no filme Cidadão Kane, de Orson Welles, lançado em 1941. Aos olhos de Wise, a América de Hearst desejava o fascismo, mas de um tipo diferente. Bingo: no paraíso das celebridades, do consumismo pantagruélico, do entretenimento fútil e do glamour aloirado, a tintura capilar de Marilyn Monroe ganhou uma estranha ressurreição sobre o cocuruto de Donald Trump e as piores vocações autocráticas encontraram seu ponto de equilíbrio – um equilíbrio meio desequilibrado, por definição.

Há algo de imperialista na fórmula, como comprovam as ordens do inquilino da Casa Branca para que fossem revogados os vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os Estados Unidos, hoje, assumem a forma de um regime arrogante que confere ou retira autorizações de viagem não mais segundo normas impessoais, como recomenda o melhor Direito Internacional, mas segundo as manias irracionais do chefe. Absolutismo é pouco. O que estamos vendo lá é um fascismo tipo exportação.

Muitas outras características trumpeteiras ecoam os “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”. O imperador blonde faz uso do aparato policial público para perseguir desafetos privados, copiando práticas adotadas do nazismo e do fascismo históricos. Em seu livro clássico Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt apontou esse traço distintivo quando descreveu as ditaduras do Duce, na Itália, e do Führer, na Alemanha. Trump, hoje em feitio desarvorado, replica o mesmo traço: mobiliza tropas estatais para reprimir e prender estudantes desarmados, ameaça escritórios de advocacia que abracem causas incômodas aos seus interesses e veta a presença dos jornais de que não gosta na cobertura dos atos de governo.

Não, isso não é democracia. Isso não é nem mesmo um autoritarismo que procura se disfarçar de democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada. Isso é um poder que, de forma consciente, deliberada e ostensiva, dispara ataques sucessivos contra as democracias organizadas do mundo. O Tio Sam empunha o fascio e o Brasil é só mais uma de suas vítimas. O estrago político será maior do que o descalabro econômico.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor na Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 24.07.25

Eu posso, eu prendo e arrebento

O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial

Temos de admitir que Donald Trump tem uma capacidade de mobilização sem par na história recente. Infelizmente, seus atos colocam em movimento uma dinâmica econômica e social perversa para o mundo, para o Brasil e para os Estados Unidos da América.

Os últimos dias, no entanto, mostraram que ele consegue sempre fazer mais. O tarifaço que está na boca do povo logrou o inimaginável: resgatou o governo Lula de suas piores avaliações, colocou o governador Tarcísio no fio da navalha e transformou o autoproclamado maior patriota em traidor da Pátria. Isso para não lembrar a opera buffa da tentativa de recuperar o passaporte para o ex-presidente ir falar com Trump.

Ignorando por um momento os episódios mais surrealistas, quero me concentrar na impressionante eficácia com que o governo Trump tem desmantelado pilares do mundo civilizado – um mundo que, até pouco tempo, eu considerava bem mais robusto do que agora aparenta ser. Ironias do sistema: ninguém esperava que o agente corrosivo do capitalismo emergisse justamente de suas entranhas. Três aspectos, em particular, simbolizam com clareza essa derrocada.

O primeiro é o comercial, em que o tarifaço contra o Brasil é apenas a ponta do iceberg. Não há dúvida de que Trump quer muito mais do que restabelecer condições tarifárias favoráveis aos Estados Unidos. Ele quer mesmo mexer com a distribuição espacial da produção em favor da indústria e dos serviços americanos e de empresas americanas. Mas isso tem seu preço.

Ao adotar esta atitude, Trump joga no lixo séculos de discussão econômica sobre como dar fluidez às decisões de alocação da produção para que a economia consiga graus melhores de eficiência, que resultam em níveis superiores de bem-estar, na forma de bens e serviços mais baratos para todos. Cada local constrói condições mais propícias a determinadas produções de bens e serviços que se traduzem em menores custos de produção. Por isso, um comércio sem grandes amarras conduz ao melhor bem-estar de todos os povos.

Num exemplo singelo, é óbvio que produzir carne no Brasil é mais barato do que nos Estados Unidos. Com o tarifaço, o consumidor americano irá comer carne produzida nos Estados Unidos num valor maior ou continuará a comer carne brasileira com uma “gordurinha” de 50% de tarifas.

O segundo aspecto é institucional. É voz corrente que a Organização Mundial do Comércio (OMC) já não representa mais nada, assim como Trump ainda nos primeiros dias de governo, jogou pelos ares a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os esforços climáticos. No caso da OMC, décadas de negociações para construir um aparato de solução de conflitos comerciais foram carbonizadas. Não que a OMC fosse um órgão perfeito, longe disso, mas era o melhor que se conseguiu criar para dar ordem aos conflitos comerciais entre as nações.

Vale observar que nem o mais empedernido dos comunistas poderia imaginar que a maior destruição das instituições do capitalismo moderno seria conduzida justamente por um dos maiores ícones do livre mercado. Mas Trump vem operando o sepultamento da civilização com maestria.

O terceiro movimento da catástrofe é a atuação de Trump para enfraquecer a justiça ao desacreditar instituições judiciais e questionar publicamente decisões que lhe são desfavoráveis. Essa atitude incentiva seus apoiadores a desconfiar do sistema jurídico e trata investigações como se fossem perseguição política, promovendo um clima de desconfiança e hostilidade contra o Judiciário.

Além disso, ao tentar politizar o sistema judicial nomeando aliados para cargos estratégicos, Trump compromete a imparcialidade essencial ao funcionamento da justiça. Suas ações colocam em risco a confiança pública nas leis e na democracia, pois estimulam uma sociedade em que decisões judiciais podem ser manipuladas por interesses políticos momentâneos.

Causa realmente espanto a forma como as instituições americanas têm sido frágeis diante do presidente Trump. Já são inúmeras violações aos aspectos mais essenciais da democracia e da institucionalidade americanas, e o Poder Judiciário revela-se paralisado e dócil ao afrontamento de valores americanos. Infelizmente, tanto se falou em república de bananas e hoje presenciamos um quadro que só podemos caracterizar como desolador no cenário institucional dos Estados Unidos.

E tudo isso vem emaranhado em questões dos grandes negócios da economia americana. Na carta ao presidente Lula, ao lado da pressão contra a tentativa de uma moeda comercial alternativa ao dólar, a questão das big techs aparece como interesse mais imediato. O governo americano sempre defendeu suas empresas, em todas as partes do mundo, mas a intensidade da pressão contra o Judiciário brasileiro para impedir medidas regulatórias no campo das grandes mídias é algo nunca visto.

O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial. É necessário compreender que não precisamos de menos governo. Precisamos de muito mais governo e políticas que possam garantir uma mínima estabilidade durante as próximas tempestades.

José Serra, o autor deste artigo, é Economista. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 24.07.25

Os hunos do Congresso

A título de salvar seu encalacrado líder, parlamentares bolsonaristas não se importam em tumultuar o País com ameaças de impeachment de ministro do STF e a defesa de uma inaceitável anistia

A horda bolsonarista instalada no Congresso reagiu às medidas cautelares impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro para gritar a quem quis ouvir: a partir de agosto, com o fim do recesso parlamentar, a prioridade dessa turma será trabalhar pelo impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), reavivar o projeto de anistia aos golpistas envolvidos no 8 de Janeiro, definidos por eles como “presos políticos”, e desengavetar um projeto de emenda constitucional que acaba com o foro especial por prerrogativa de função para crimes comuns, mantendo-o apenas para a cúpula dos Três Poderes e o vice-presidente da República – engenharia nada sutil para tirar do Supremo processos como o que está em curso contra Bolsonaro. O grupo de parlamentares, liderado pelo PL, partido do ex-presidente, também planeja organizar um discurso “unificado” e organizar atos pelo Brasil em apoio a Bolsonaro e contra as decisões do STF.

Nenhuma dessas iniciativas tem grandes chances de prosperar na Câmara e no Senado, mas esses liberticidas estão mais interessados em outra coisa. Apostam, antes de tudo, em sua capacidade de espalhar brasas onde já há fogo e levar adiante pautas que funcionam como bandeiras simbólicas para mobilizar a militância, difundir a falsa ideia de que o País está sob uma ditadura do Judiciário, servir de arma para o discurso vitimista de Bolsonaro e, sobretudo, produzir inimigos e criar um ambiente de convulsão social. Para essa tropa, como resumiu a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), só há dois inimigos a enfrentar: Lula da Silva e Alexandre de Moraes, como se culpados fossem pelas sanções impostas ao Brasil por Donald Trump.

Nada surpreendente para um grupo que representa um ideário que se fez no caos, na mentira e na distorção da realidade – e disso se alimenta. Não se deve tirar-lhes o direito de espernear e produzir factoides para satisfazer os próprios delírios, pois afinal vivemos numa democracia. Mas não nos deixemos enganar pela natureza da coisa. Assim como ocorreu com os vândalos golpistas que, entre o fim de 2022 e o início de 2023, ultrapassaram a fronteira da liberdade de expressão e de mobilização, está-se diante de mais um capítulo do longo enredo de desprezo do bolsonarismo pelas instituições.

Fiel à violência política congênita do seu principal líder, o bolsonarismo sempre se mostrou como um ideário retrógrado, personalista e antinacional, mas hoje seus sabujos só se prestam a uma causa: proteger o encalacrado padrinho. Para tanto, vale tudo, especialmente a retórica destrutiva que afronta instituições, intimida adversários e despreza a paz social e política desejada pela maioria dos brasileiros. Pugnar pelo impeachment de ministros do STF, demonizar o Judiciário, pregar uma anistia “ampla, geral e irrestrita” ou alinhar-se vexatoriamente a Trump em sua ofensiva para prejudicar o Brasil hoje equivale àquilo que, no passado recente, destinou-se a desacreditar as urnas eletrônicas, instilar dúvidas sobre o processo eleitoral e criar o clima para a ruptura.

Vale tudo, desde que seja a serviço de uma causa que nada tem a ver com as reais necessidades do País nem com o suposto vezo autoritário do STF. É tudo apenas para salvar Bolsonaro da cadeia – algo que, na sintaxe bolsonarista, equivale a salvar a democracia. Mas é pura malandragem, pois, como se sabe, o mito fundador do bolsonarismo jamais pensou em outra coisa senão nele mesmo e na sua família.

Esse método está no manual do guerrilheiro bolsonarista, que ensina a tumultuar para triunfar. Bolsonaro passou a vida destilando ódio em seus atos e falas – seja como mau militar, quando manchou a farda com sua indisciplina, seja como deputado, quando defendeu o fechamento do Congresso e o fuzilamento de adversários, seja como presidente, quando ameaçou jornalistas, desacreditou o sistema de votação e sabotou a vacina contra a covid-19 só porque foi produzida por um adversário político. Como toda força reacionária e destrutiva, os bolsonaristas atuam como os hunos: por onde passam, nem grama nasce.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 24.07.25

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tempo de Trump vai custar a passar

Americanos começam a sentir o peso destrutivo do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver

‘O tempo envelhece depressa’, ensinou o escritor italiano Antonio Tabucchi em belíssimo livro de contos publicado há anos. Quase já não conseguimos mais habitá-lo (o tempo), tamanho é nosso desassossego contemporâneo. Estamos cada vez mais aprisionados ao turbilhão do momento, à sensação de aceleração e fragilidade do mundo. Esquecemos quanto a História é apenas um rosário de momentos que o futuro se encarrega de trançar. A política, de modo geral, e os políticos medíocres, em particular, gostam pouco de elucubrações sobre o tempo — e ainda menos de ensinamentos da História. Vão atropelando para não ser atropelados por suas próprias fraquezas. Tome-se como exemplo o 45º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Cinquenta anos atrás, o 37º ocupante da Casa Branca fora obrigado a renunciar, enrolado até o pescoço no escândalo Watergate. Para Richard Nixon, a hecatombe teve amargor pessoal. Para o resto do país, o trauma foi nacional. Ao longo dos anos seguintes, o Congresso americano empenhou-se em promulgar uma série de reformas visando a proteger as instituições democráticas e a restaurar a confiança dos americanos no governo. Foram reformas que fortaleceram a transparência e a ética públicas, aprimoraram a supervisão do Congresso, impuseram limites significativos aos poderes presidenciais. Resistiram bastante bem ao teste do tempo, até a irrupção de Trump na cena mundial. No primeiro mandato, ele escapou de dois pedidos de impeachment encaminhados pela Câmara, fatalidade histórica que poderia ter evitado seu segundo mandato. Saiu da Casa Branca literalmente pela porta dos fundos em 2020, depois de derrotado pelo democrata Joe Biden, mas renasceu legitimado nas urnas em 2024.

É desde sua segunda posse, em janeiro, que Trump passou a agir como “imperador do mundo”, expressão cunhada pelo presidente Lula em entrevista a Christiane Amanpour, da CNN Internacional. Um presidente desprovido de respeito às leis, que age como se regras fossem para tolos e normas, para perdedores. Talvez até acredite ser mesmo imperador. Já no seu primeiríssimo livro, intitulado “A arte da negociação”, de 1987, ele exaltava a arte da bravata.

— Jogo com as fantasias das pessoas — escreveu pelas mãos do ghostwriter Tony Schwartz. — As pessoas nem sempre sabem pensar grande por conta própria, mas ficam hiperfascinadas com quem é capaz disso. Querem acreditar que algo é a maior coisa do mundo, a mais espetacular e mais grandiosa. Chamo a isso de “hipérbole verdadeira”. Outros chamariam esse jogo de fraude moral.

Trump acabou revelando, na semana passada, a dimensão doentia de sua própria fantasia. Depois de anunciar a taxação dos produtos brasileiros vendidos nos Estados Unidos em 50%, deu uma explicação lapidar para os tarifaços que anda espalhando mundo afora:

— Faço porque eu posso.

Como gosta de dizer o brasileiro Frei Betto, pessoas não mudam, apenas se revelam.

Fazer, como sabemos, exige visão de longo prazo, disciplina, planejamento, compreensão de complexidades — tudo que Donald Trump desdenha por carecer desses atributos. Segundo citação frequentemente atribuída a Albert Einstein (por soar inteligente), nenhum problema pode ser resolvido a partir do mesmo grau de consciência que o criou. Pois bem, passados seis meses de governo Trump 2, nada do que ele anunciou de forma espetaculosa tem dado os resultados prometidos. A revolução tarifária destinada a “tornar a América grande novamente” corre o risco de fazer o resto do mundo conhecer-se melhor. Ucrânia e Gaza continuam com a vida civil em carne viva, com o russo Vladimir Putin e o israelense Benjamin Netanyahu dando um baile nas fantasias do americano de acabar com guerras em 24 horas. Ainda na semana passada, Netanyahu avançou mais um degrau no seu ímpeto expansionista, arrogando-se o direito de bombardear também a Síria. Putin, enquanto isso, multiplica a derrama de bombas sobre Kiev ganhando tempo e terreno

Também a política anti-imigração de Trump — extremada, perversa, aplicada com crueldade estratégica e indiferença tática — tem obtido resultados tortos. A maré humana que conseguia atravessar a fronteira pelo México praticamente secou, tornando concreta sua principal promessa de campanha. Ao mesmo tempo, o número de americanos — inclusive republicanos — que se declaram contrários à deportação em massa de imigrantes capturados nas ruas, no trabalho, em igrejas, fábricas, plantações, escolas ou hospitais já beira os 60%. Começam a sentir o peso destrutivo do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver.

Faltam três anos e meio para Trump terminar o mandato. Esse tempo certamente não envelhecerá depressa.

Dorrit Harazim, a autora, deste artigo, é Jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.07.25

Exercícios de futurologia

Aos 100 anos, Lula toma posse pela oitava vez em 2046. A oposição insistirá na candidatura de Laurinha Bolsonaro

O presidente Lula — Foto: Kazuhiro NOGI/AFP/27-3-2025

Salvo pela cavalaria americana (e sua taxação de 50%), Lula é reeleito em 2026. Por mínima margem de votos, conquista o quarto mandado, quebrando o próprio recorde de presidente mais idoso (80 anos, com energia de 70 e tesão de 68). O centro democrático (esquerda ponderada, liberais e direita racional) não tinha mesmo como votar no candidato da oposição, Eduardo Bolsonaro. Lula regula as redes, aumenta a contribuição sindical, impõe sigilo de 200 anos aos gastos do governo, investe no slogan “Milionários contra paupérrimos” e consegue no STF reeleições infinitas. Apoia a China na retomada de Taiwan e condena Israel pela guerra ao narcotráfico.

Em 2030, aos 84 anos (saúde de 82), Lula é novamente eleito, por exígua maioria — graças à esquerda decente, aos liberais e à direita digna, que o preferiam a Michelle Bolsonaro. Nomeia a primeira-dama para o STF, aumenta o Imposto de Renda, controla a imprensa. Se alinha à Coreia do Norte na invasão da Coreia do Sul e critica Israel pela guerra ao tabagismo. Cuba e Nicarágua entram para o Brics. O setor mais produtivo do país é o dos sindicatos.

Chega 2034. Liberais, esquerda sensata e direita ética se recusam a respaldar Flávio Bolsonaro e, aos 88 anos, na flor da idade, Lula se reelege, por ínfima diferença. Fica do lado da Rússia (agora de novo URSS) no bombardeio das antigas repúblicas soviéticas e denuncia Israel pela luta contra a especulação imobiliária. Recria a CPMF.

Como o STF ampliou a duração do mandato para seis anos, a próxima eleição é em 2040. Tendo Carluxo como opositor (e nele a direita lúcida, os liberais e a esquerda responsável não votariam), Lula é eleito de novo, por margem minúscula. Aos 94 — com agilidade mental de 93 e meio —, aumenta os impostos para quem é alfabetizado, é a favor da anexação da Mongólia pela China e protesta contra os ataques israelenses aos alimentos ultraprocessados. Brasileiros fogem para a Venezuela, em busca de melhores condições de vida.

Aos 100 anos, Lula toma posse pela oitava vez em 2046. A oposição insistira na candidatura de Laurinha Bolsonaro, a quem a esquerda moderada, a direita íntegra e os liberais não tinham como apoiar. No auge do vigor físico e intelectual, Lula defende a ocupação soviética da Europa e vai à ONU contra a guerra à pedofilia, conduzida por Israel. Duplica a carga tributária. Afeganistão e Coreia (agora só tem uma) entram para o Brics.

Com o mandato esticado de novo pelo STF, Lula se reelege aos 108 anos em 2054 — por margem infinitesimal. Liberais, direita equilibrada e esquerda razoável mandaram às favas os escrúpulos, mas não votariam em Jair Renan nem a pau. Sob os aplausos do Itamaraty, a Coreia invade o Japão, a China ocupa a África, a URSS toma a América do Norte e o Caribe. IRA, Farc, PCC e Alerj entram para o Brics. Pessoas em situação de rua passam a ter de recolher imposto. O PIB da Bolívia ultrapassa o do Brasil.

Em 2062, Lula (116 anos, fora da vista do público há pelo menos duas décadas) talvez seja eleito de novo — mantendo o apoio à incorporação da Lua à URSS e as críticas a Israel pelo combate à caspa. Pode ser que a esquerda esclarecida, os liberais e a direita pensante resolvam ter um candidato. Até porque o Haiti começou a deportar imigrantes brasileiros ilegais — e a candidata da oposição é a Val do Açaí.

Eduardo Affonso, o autor, é Arquiteto e Cronista. Publicado originalmente n'O Globo, em 19.07.25

Um veto à irresponsabilidade

Lula fez muito bem em vetar o infame projeto que aumenta o número de deputados, mas o Congresso promete derrubar o veto, em afronta à vontade da maioria dos brasileiros

O presidente Lula da Silva fez o certo e vetou o projeto de lei que aumenta dos atuais 513 para 531 o número de deputados federais, aprovado no fim de junho pelo Congresso. Foi o imperativo da sensatez: não havia nem há razão conceitual, política ou técnica que justifique o jeitinho que a Câmara tentou dar à exigência de redistribuição de suas cadeiras conforme a mudança populacional dos Estados.

Pelo que foi publicado na imprensa, integrantes do governo, especialmente os articuladores políticos do Palácio do Planalto, chegaram a tentar convencer o presidente a não vetar nem sancionar o projeto, deixando que o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), promulgasse a nova lei – o que, nos meandros legislativos, configura-se uma “sanção tácita”, já que Alcolumbre disse antecipadamente que o faria. Mas Lula, enfim, optou pelo veto, para marcar posição e, pelo menos, sustar provisoriamente a irresponsabilidade do Legislativo.

A consequência imediata, contudo, tem pouco a ver com a medida. Ao fazêlo, o petista comprou uma nova briga com o Legislativo, num longuíssimo enredo de fissuras, derrotas e retaliações mútuas. Desta vez, porém, foi pelos motivos adequados. Não à toa, ato contínuo, a Câmara – queixosa do anúncio do veto presidencial e da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de validar o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) contra a decisão anterior do Congresso – aprovou um crédito subsidiado de até R$ 30 bilhões para o agronegócio com verbas de petróleo do pré-sal. O cheiro de retaliação era evidente no plenário. No meio desse jogo de empurra, que tem cara menos de negociação política e muito mais de rinha entre adversários que buscam golpes abaixo da cintura, o fato é que o aumento do número de deputados já constituía um dos episódios mais lamentáveis da atual legislatura.

Embora esteja claro o destino final do projeto (a derrubada do veto e a conversão em lei), trata-se de uma medida injustificável, sob qualquer ótica. Primeiro, pelo não cumprimento da previsibilidade orçamentária e por ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal, dado o impacto anual estimado de cerca de R$ 65 milhões somente com os custos da criação das novas vagas, incluindo salários, benefícios e estrutura para novos congressistas, fora o inevitável aumento também nas cadeiras das Assembleias Legislativas, pelo efeito cascata. O segundo argumento é mais grave: tratase de um flagrante desrespeito à jurisprudência do STF e à própria lógica da representação política proporcional, prevista na Constituição e na Lei Complementar 78/1993. A primeira, em seu artigo 45, estabelece que a representação dos Estados deve ser proporcional à sua população; a segunda, que o regulamentou, fixou o mínimo de 8 e o máximo de 70 deputados por unidade da Federação.

Para que a lei fosse respeitada, a partir de 2027 alguns Estados deveriam perder assentos (Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) e outros deveriam ganhar (Amazonas, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina). Uma premissa cristalina. Para completar, em 2023, o STF foi igualmente claro: cabia ao Congresso redistribuir as cadeiras na Câmara, até 30 de junho de 2025, com base nos dados do Censo de 2022, de modo a refletir a nova realidade populacional do Brasil. A palavra-chave era “redistribuir”, mas o Congresso, vocacionado a legislar em causa própria, optou pelo aumento. Em vez de corrigir a sub-representação e a sobrerrepresentação de certos Estados, deu à Câmara mais 18 cadeiras para que, como este jornal já sublinhou, ninguém perdesse o injustificável privilégio de ter uma representação acima da que deveria. Em outras palavras, quem deveria perder, não perdeu; quem deveria ganhar, ganhou.

E assim certos votos seguem valendo mais do que outros. Estado mais populoso da Federação, com cerca de 46 milhões de habitantes, São Paulo tem quase 22% da população brasileira, mas elege apenas 13,6% dos deputados federais. Embora atinja o teto constitucional de 70 deputados, o Estado já estava severamente sub-representado. A Câmara quer tirar mais um naco dessa representação. •

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 19.07.25